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A COSMOVISÃO PROTESTANTE DA ÉTICA E CIDADANIA DO
TRABALHO SEGUNDO OS PRESSUPOSTOS DE JOÃO CALVINO
Gilson Moreira1
INTRODUÇÃO
Tendo em vista a situação que se encontra a sociedade contemporânea e,
hodiernamente, algumas pessoas, individualmente, procuram segundo sua formação
religiosa, educacional, nível intelectual, econômico e cultural, bem como da visão que
tem do mundo, agir muitas das vezes sem nenhum escrúpulo, visando única e
exclusivamente sua vaidade pessoal. Esta triste realidade é vista especialmente na classe
política de nossa nação, em todas as esferas e níveis, como a própria mídia tem
noticiado sobejamente, especialmente nesse período político-eleitoral.
Torna-se relevante perscrutar através da cosmovisão protestante a ética e o
exercício da cidadania do trabalho, focado mais especificamente em pressupostos
lançados e desenvolvidos pelo grande reformador genebrino, João Calvino (1509-1564),
que devem refletir-se na conduta do indivíduo em seu ethos. Esse reformador foi o
instrumento usado por Deus para trazer contribuições que marcaram e ainda marcam a
história do mundo ocidental. Especialmente quando voltamos nosso olhar para a obra:
A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo , de Max Weber (1864-1920), que a
escreveu na primeira década do século XX, expondo o referido enfoque. Ressaltar-se-á
algumas normas de conduta, padrões, regras, pressupostos e alguns fatores que põem
em evidência a pratica religiosa do sujeito, servindo-lhe como marco teórico fundante.
RESUMO
Este artigo pretende expor a cosmovisão protestante da ética e cidadania do
trabalho segundo os pressupostos de João Calvino. Buscar algumas contribuições em
contraste com aquilo que o mundo propaga segundo sua filosofia e ideologia, que são
largamente difundidas. João Calvino, no século XVI, elaborou e desenvolveu os
1
O autor deste artigo é ministro presbiteriano, pastor da 1ª IPB em Cariacica ES, Bacharel em Teologia e
Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. O presente artigo, com
breves mudanças, é uma parte do segundo capítulo de dissertação defendida em setembro de 2008.
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princípios protestantes que norteiam a conduta ética do indivíduo em seu trabalho, ao
desenvolver o exercício de sua função, não importando qual seja; os quais foram
largamente difundidos e praticados pelos reformados, huguenotes e os puritanos, dos
séculos XVII e XVIII.
Assim sendo, a presente abordagem explicitará os pressupostos da ética
protestante do trabalho no exercício da cidadania do individuo em João Calvino.
Fundamentados especialmente em escritos desse renomado reformador e em algumas
obras que tratam sobre a sua pessoa, doutrina e ensino, por ele e seus discípulos,
defendidos e difundidos.
PALAVRAS CHAVE
Ética. Trabalho. Pressupostos. Calvino e Protestante.
ABSTRACT
This article has the intention to present teh ethics and labor citizenship protestant
worldview according to John Calvin`s assumptions. Also, search some contributions in
contrast to what the world propagates according his philosophy and ideology, that are
widely distributed. John Calvin, in the sixteenth century, drew up and developed the
protestant pinciples that guide the individual ethics behavior in his work, when he
developed the exercise of its function, no matter what; that were widely spread and
practiced by the reformed, huguenots and puritans from the seventeenth and
eighteenth`s centuries.
So, this present approach will clarify the assumptions of the protestant ethics of
work in the exercise of the individual citizenship, in John Calvin. Reasoned specially in
writings of this renowned reformer and in some works that deal on his person, doctrine
and teaching, defended and spread by him and his disciples.
KEYWORDS
Ethics. Work. Assumptions. Calvin and Protestant.
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A COSMOVISÃO PROTESTANTE DA ÉTICA E CIDADANIA DO
TRABALHO SEGUNDO OS PRESSUPOSTOS DE JOÃO CALVINO
Este texto é fruto de parte de uma pesquisa feita sobre a cosmovisão protestante
da ética e a cidadania do trabalho segundo os pressupostos de João Calvino. Antes,
porém, será relevante situar o leitor a respeito do conceito e significado do termo
protestante, e algumas implicações inerentes ao mesmo.
Breve conceituação do termo Protestante
O Dicionário Aurélio, para o verbete Protestante, traz a seguinte definição:
[Do lat. Protestante] Adj. 2 gr. 1. Que protesta. 2. Relativo ao, ou próprio do
protestantismo. 3. Diz-se de partidários da Reforma que protestaram contra a decisão
da Dieta de Espira (1529). (1993; p.1406). A BASE (Biblioteca de Auxílio ao Sistema
Educacional), ao verbete Reforma, sobre a Dieta de Espira,2 alude:
Em 1526, Carlos V, reuniu uma dieta em Espira, para conceder
liberdade de culto aos já então chamados reformistas . Mas numa
segunda dieta de Espira, reunida em 1529, tornou a tolher esta
liberdade, pelo que os reformistas protestaram. Daí o nome de
protestantes com que passaram a ser denominados. (VICENTE, ed.,
2001, v.9, p.2880).
Mendonça, ao tratar sobre O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas.
Discorre sobre o referido tema de forma elucidativa através de algumas perguntas por
ele levantadas, como: O que é protestantismo e o que é protestantismo brasileiro? 3
Ainda, o que é um protestante? Ao dissertar o assunto sob a ótica destas questões, faz,
dentre outras, as seguintes afirmações:
Então, protestantes seriam aquelas igrejas que se originaram da
Reforma ou que, embora surgidas posteriormente, guardam princípios
gerais do movimento... Em suma, o protestante é o homem que se sente
liberto por Cristo, segue exclusivamente a Bíblia como única regra de
fé e prática , cultiva uma ética racional de desempenho para contribuir
para a glória de Deus e vive moralmente segundo os 10
mandamentos e os padrões da moral burguesa vitoriana... O
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Para se saber mais sobre a Dieta de Espira, recomenda-se uma leitura do artigo sobre o Protestantismo,
em Elwell (ed.), in: Enciclopédia Histórico Teológica da Igreja Cristã. (1990; v.III, p.194).
3
Para quem deseja saber mais sobre o protestantismo brasileiro, sugere-se as obras: O Protestantismo
Brasileiro Estudo de Eclesiologia e História Social , de Émile G. Leonard, ASTE; 1963; ou ainda: O
Celeste Porvir A Inserção do Protestantismo no Brasil , de Antônio G. Mendonça, ASTE; 1965.
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protestante é um indivíduo que professa uma religião individual, de
consciência, que se inspira na interpretação direta e pessoal da Bíblia,
pauta suas ações na ética racional do trabalho e na moral burguesa
vitoriana. (COSTA, [ed.], 2005, pp.50/1/2). (Itálico nosso).
Estas colocações de Costa apud Mendonça, esclarecem e trazem luz para uma
melhor compreensão sobre o protestante e o protestantismo. Em síntese, o protestante é
aquele que proclama e defende os princípios bíblicos, doutrinários e teológicos, que
Lutero os divulgou ao deflagrar a Reforma Protestante. Ao depois, João Calvino os
organizou mediante um sistema teológico ordenado, sistematizando-os, bem como, toda
a teologia chamada e conhecida por reformada ou calvinista.
Deve-se ressaltar que muitas das novas denominações existentes hoje, sobretudo
aquelas que surgiram a partir da segunda metade do século XX, algumas pentecostais,
mas, principalmente as neo-pentecostais, não gostam de se identificar com o movimento
da Reforma Protestante. Logo, quem pertence a este grupo de Igreja prefere ser
chamado de crente, evangélico ou cristão; protestante, são aqueles que pertencem às
Igrejas históricas e que compõem a grande família da Reforma, como disse Mendonça.
Apontamento de Pressupostos da Ética do Trabalho em João Calvino
Para que haja uma melhor compreensão da cosmovisão protestante sobre a ética
do trabalho pelos seus pressupostos em João Calvino, é necessário conhecer a posição
dele sobre determinados temas como Deus, homem, religião, sociedade e a conduta da
vida cristã. Calvino entende que todo homem é tocado por uma idéia de religião que
poderá conduzi-lo a conhecer Deus, logo,
...é certo que todos somos criados a fim de conhecer a majestade de
nosso Criador, e tendo-a conhecido, estimá-la acima de todas as coisas e
honrá-la com todo temor, amor e reverência... Portanto, é necessário
que a principal preocupação e solicitude de nossa vida seja buscar a
Deus, aspirá-lo com toda a afeição de nosso coração e descansar nele
somente. Ninguém deseja ser considerado completamente alienado da
piedade e reconhecimento, visto ser comum pensar-se que, se nossa
vida for sem religião, somos os mais miseráveis e de forma alguma
melhores que os animais brutos... No entanto, querendo ou não, os
homens estão vinculados por esse pensamento, sempre voltados a suas
mentes, de que há alguma divindade por cujo poder se levantam ou
caem... A verdadeira piedade consiste em um zelo puro e verdadeiro
que ama a Deus totalmente como Pai, o reverencia verdadeiramente
como Senhor, abraça a sua justiça e teme ofendê-lo mais do que a
própria morte. (CALVINO, 2003, pp.12/3/4).
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Essa declaração confessional registrada em Catecismo elaborado por Calvino,
apresenta em seu cerne a idéia sobre a necessidade do homem conhecer a Deus em sua
majestade em primeiro lugar, para depois conhecer-se a si mesmo. Este conhecimento
levará o indivíduo a uma verdadeira piedade que se refletirá em sua conduta diária,
demonstrando que ama a Deus pela prática da justiça, revelando uma conduta ética em
seu ethos, cotidianamente. Segundo o ensino desse reformador, há um resultado no
mínimo nebuloso da imagem e semelhança de Deus no homem, pelo fato delas terem
sido afetadas desde os nossos primeiros pais (Adão e Eva), como ele assim expressa:
Como resultado dessa semelhança de Deus apagada em nós, todos os
que descendemos da semente de Adão, nascemos carne da carne...
[Logo] O intelecto do homem está de fato cegado, envolto em infinitos
erros e sempre contrário à sabedoria de Deus; a vontade, má e cheia de
afeições corruptas, odeia a justiça de Deus; e a força física, incapaz de
boas obras, tende furiosamente à iniqüidade. (CALVINO, 2003, p.17).
Suas colocações aqui são incisivas quando diz que intelectualmente o homem
está cego e avesso ao saber de Deus; volitivamente, suas inclinações são corruptas e
contrárias à justiça divina. Este raciocínio está em pleno acordo com a afirmação feita
pelo sábio Salomão ao dizer: Não há homem justo sobre a terra que faça o bem e não
peque. (Eclesiastes 7.20). Provavelmente, esse tipo de entendimento Salomão o tomou
emprestado do rei Davi, seu pai, que já havia deixado registrado: ... não há quem faça
o bem, não há nenhum sequer (Salmo 14.3); estas palavras são repetidas por Davi e
estão registradas em outro Salmo de sua autoria, o de número 53, versículos 1 e 3, in
fine. Posteriormente, o apóstolo S. Paulo, em sua carta aos Romanos, escreveu: Como
está escrito [referindo-se ao que Davi e Salomão haviam escrito]: Não há justo, nem um
sequer. (Romanos 3.10).
Mediante esta realidade bíblica irrefutável, o indivíduo, ao exercitar as suas
habilidades para desenvolver uma atividade física, realizar um trabalho, exercer uma
função que seja considerada boa obra; pelo pensamento de Calvino, o homem é incapaz
de realizá-la. Além disso, ele inclina-se tenazmente para a prática daquilo que é errado
ou fruto da iniqüidade, diz esse reformador. Pelo seu entendimento exposto nessas
palavras, nada que o homem faça poderá de, per si mesmo, fazer algo de bom.
Quanto ao mencionado acima sobre a semelhança de Deus apagada em nós,
todos os que descendemos da semente de Adão. Ele reporta a este assunto ao dissertar
sobre o arrependimento, ao dizer que a imagem de Deus no homem também foi afetada
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e sofreu mudanças negativas:
digo que o arrependimento é uma regeneração
espiritual cujo objetivo é que a imagem de Deus, obscurecida e quase apagada em nós
pela transgressão de Adão, seja restaurada. (CALVINO, 2006, v.2, p.135). Perceba
que esta idéia de afetamento da imagem e semelhança de Deus no homem, ter sofrido
determinada mudança pela transgressão de Adão, é muito enfática em Calvino.
Nessa mesma linha de raciocínio, ao falar sobre a natureza do homem, comenta:
... o homem não pode atribuir a si mesmo nem um grão de bem, além da medida, que
não se estrague pela confiança vã, e que não se faça culpado do sacrilégio por usurpar
a glória de Deus. (CALVINO, 2006; v.1, pp.100/1). Observe que o alvo de vida para o
homem segundo este pensamento, é a glória de Deus, que jamais deverá ser usurpada.
Logo, para que isso não aconteça, o homem deverá conduzir seu agir segundo a vontade
de Deus que levá-lo-á a compreender a sabedoria espiritual . Segundo Calvino esta
compreensão virá, na prática, em saber como nos cabe regrar a nossa vida segundo a
vontade de Deus.
(Idem, p.107). Submetendo-se a Ele obediente, dependente,
abnegada e incondicionalmente.
Portanto, a vontade de Deus é o elemento principal que regrará a vida do
indivíduo numa conduta ética, tornando-o útil em sociedade segundo os padrões
estabelecidos pelos princípios de fé expressos em sua prática religiosa. Calvino, em
posição confessional já mencionada, postula apresentar uma diferença entre a
verdadeira e a falsa religião. Sua principal ênfase nesse ponto tem a ver com o modo de
vida de alguém que manifeste uma verdadeira piedade em sua conduta, como segue:
Ninguém deseja ser considerado completamente alienado da piedade e
reconhecimento de Deus, visto ser comum pensar-se que, se a nossa
vida for sem religião, somos os mais miseráveis e de forma alguma
melhores que os animais brutos. Mas, há uma grande diferença no
modo de declaração da religião de alguém, visto que a maioria dos
homens não é verdadeiramente tocada pelo temor de Deus. No entanto,
querendo ou não, os homens estão vinculados por esse pensamento,
sempre voltando as suas mentes, de que há alguma divindade por cujo
poder se levantam ou caem... Porém, vivendo de um modo desordenado
e rejeitando toda a honestidade, exibem um grande senso de segurança a
despeito do julgamento de Deus... Conseqüentemente, embora possam
mais tarde esforçar-se por servir a Deus com grande cuidado, isto não
lhes traz benefício algum porque não adoram o Deus eterno, mas os
sonhos e fantasias de seus próprios corações no lugar de Deus... A
verdadeira piedade consiste em um zelo puro e verdadeiro que ama a
Deus totalmente como Pai, o reverencia verdadeiramente como Senhor,
abraça a sua justiça e teme ofendê-lo mais do que a própria morte.
(CALVINO, 2003, pp.12,13,14). (Itálico nosso).
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Segundo esse ensino, a maneira de alguém agir será o reflexo de sua expressão
religiosa, visto que há alguma divindade por cujo poder se levantam ou caem . Logo,
vivendo de um modo desordenado e rejeitando toda a honestidade, exibem um grande
senso de segurança a despeito do julgamento de Deus , porque a maioria dos homens
não é verdadeiramente tocada pelo temor de Deus. Aqueles que assim agem, mesmo
que mais tarde esforçam-se por servir a Deus com grande cuidado, isto não lhes traz
benefício algum porque não adoram o Deus eterno. Fazem isto porque entregam-se
aos sonhos e fantasias de seus próprios corações no lugar de Deus ; mas também,
porque a maioria dos homens não é verdadeiramente tocada pelo temor de Deus .
Consequentemente, essa maioria de homens agirá segundo o disposto em seu
interior, fazendo a sua vontade e procurará agradar única e exclusivamente a si mesma.
Por isso, nada temem, agem segundo seus instintos, inclinações e disposições internas
do coração. Há nas colocações acima, pelo menos três fatores que revelam uma grande
diferença no modo de declaração da religião de alguém , pondo em evidência a sua fé:
a) A auto-confiança exacerbada: Pois exibem um grande senso de segurança
em si mesmos;
b) Insensibilidade ao toque de Deus: Infelizmente, a maioria dos homens não
é verdadeiramente tocada pelo temor de Deus, tornando-os insensíveis não
somente no que diz respeito à religião, mas também, à prática de atos dignos;
c) Inversão de valores: Isto acontece quando os sonhos e fantasias de seus
próprios corações [são colocados] no lugar de Deus.
Quando a auto-confiança exacerbada, a insensibilidade e a inversão de valores,
são encontradas em alguém, significa que a verdadeira piedade está sendo vilipendiada
ou no mínimo, colocada de lado. Porque ela consiste em um zelo puro e verdadeiro
que ama a Deus totalmente como Pai, o reverencia verdadeiramente como Senhor,
abraça a sua justiça e teme ofendê-lo mais do que a própria morte. (CALVINO, 2003,
p. 14). Isto posto, no entendimento deste autor, este pensamento de Calvino é um dos
principais pontos que contribui para nortear a conduta do indivíduo quanto ao seu agir
ético, no exercício de sua cidadania, construindo e fortalecendo seu ethos perante a
sociedade, demonstrando dignidade e moral naquilo que faz.
Em seu tratado
Sobre a Vida Cristã , na introdução, onde apresenta seu
principal motivo para discorrer sobre o referido assunto, comenta Calvino: Quanto a
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mim, considero suficiente mostrar certa ordem pela qual o cristão possa ser conduzido
e dirigido à verdadeira meta que consiste em ordenar adequadamente a sua vida.
(2006, v.4, p.177). A verdadeira meta para a vida do cristão segundo a visão protestante,
consiste em ordená-la adequadamente. Este ordenamento de vida é norteado por uma
regra geral que lhe sirva de parâmetro para orientar todas as suas ações.
(CALVINO, 2006, v.4, p.177). Dentro desta perspectiva será brevemente exposto aqui
alguns parâmetros desenvolvidos por Calvino nesse tratado, que fazem parte da regra
geral por ele estabelecida.
Parâmetros de Vida como Regra Geral para a Conduta Protestante
Entende-se como regra geral tudo aquilo que engloba ou serve como parâmetro
para orientar todas as ações do cristão protestante. Essa regra geral e todas as suas
implicações estão necessariamente interligadas, por emanarem da Bíblia Sagrada; da
doutrina, teologia e ensino de Calvino. Para apresentar os fundamentos que segundo ele
não podem ser encontrados nos filósofos, porque eles nunca vão além dos limites da
dignidade meramente natural do homem, quando procuram mostrar qual é o dever
deles. (CALVINO, 2006, v.4, p.181). É feita por Calvino a seguinte argumentação em
conexão com a salvação:
A Escritura toma tempo e espaço para nos exortar quanto a todos os
benefícios que nos vêm de Deus e a todas as partes da nossa salvação,
como quando diz: Visto que Deus nos é dado como Pai, merecemos ser
repreendidos por nossa grande ingratidão, se não nos comportarmos
como seus filhos. Visto que Cristo nos purificou e nos lavou com o seu
sangue, e nos comunicou esta purificação pelo Batismo, é mister que
não nos maculemos com nova impureza. Visto que ele nos uniu a si e
nos enxertou em seu corpo, devemos zelosamente cuidar que não
contaminemos de modo alguma, já que somos seus membros. Visto que
ele, que é a cabeça, subiu ao céu, é de toda conveniência que nos
desfaçamos de todo apego às coisas terrenas, parar aspirarmos de todo o
nosso coração à vida celestial. Visto que o Espírito Santo nos consagrou
para sermos templos ou santuários de Deus, é necessário que façamos
tudo o que pudermos para que a glória de Deus seja exaltada em nós, e,
por outro lado, para não nos deixemos manchar por nenhuma forma de
contaminação do pecado. Visto que a nossa alma e o nosso corpo foram
destinados à imortalidade do reino de Deus e à incorruptível coroa da
sua glória, é necessário que nos esforcemos para conservar alma e corpo
puros e imaculados, até o dia do Senhor. (CALVINO, 2003, pp.180/1).
Imediatamente após apresentar esses argumentos, Calvino assevera: Aí estão
fundamentos verdadeiramente bons e próprios para que sobre eles edifiquemos a nossa
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vida. (2003, p.181). Observe que a vida do fiel protestante deve ser edificada sobre
esses fundamentos que nortearão sua conduta: Visto que... . Nesses pareceres, estão e
contemplam-se alguns princípios cardeais à vida cristã:
1. Santidade na vida
Visto que Cristo nos purificou e nos lavou com o seu sangue:
não nos maculemos; não nos contaminemos de modo algum; não nos deixemos
manchar por nenhuma forma de contaminação do pecado; é necessário que nos
esforcemos para conservar alma e corpo puros e imaculados;
2. Despojamento e desprendimento dos bens materiais: Visto que..., desfaçamos de
todo apego às coisas terrenas;
3. Propósito nobre e principal alvo: Visto que..., é necessário que façamos tudo o
que pudermos para que a glória de Deus seja exaltada em nós.
De fato, para o protestante esses princípios bíblicos servem como parâmetros à
sua vida enquanto neste mundo. Eles nortearão sua conduta que se refletirá em atos
realizados cotidianamente em seu labor, denotando o nível ético e moral de sua vida.
Como bem observou Biéler: Como toda a ética do reformador, a ética do trabalho
baseia-se, portanto, na visão bíblica das realidades sociais... A ética reformada do
trabalho ordena, portanto, ação social eficaz para prevenir o desemprego e intervir em
benefício de suas vítimas. (1999, pp.124,127). Nisso observa-se a importância que se
deve dar ao significado espiritual e ético do trabalho, no exercício da cidadania e suas
implicações à vida de cada indivíduo, refletindo-se ao próximo e em sociedade. Isto põe
em evidência o nível e o padrão ético de conduta do indivíduo, como objeto de análise.
O Padrão Ético de Conduta da Vida Cristã Segundo Calvino
Este é um ponto de fundamental importância dentro do pensamento e ensino de
Calvino, pois envolve especialmente a manifestação por atos e palavras, através da vida
de alguém que confessa ser protestante de fato; um padrão ético de conduta que reflita o
nível e os objetivos de sua vida cristã enquanto neste mundo. Daí verifica-se a
necessidade de se abordar esta questão através de algumas obras de Calvino, particular e
especialmente em As Institutas.4 Calvino, contrapondo o princípio filosófico que não vai
além dos limites meramente natural do homem, que deve viver como convém à sua
4
O exemplar da referida obra, usado nesta abordagem é: As Institutas. 1ª edição. São Paulo: ECC, 2006.
Em seu Livro IV, o Capítulo XVII, que trata: Sobre a Vida Cristã , (pp.177-225).
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natureza. Postula o contrário a este pensamento, ou seja, com o propósito de alicerçar a
conduta cristã pautada no Modelo que é Cristo, afirma:
...para nos despertar mais vivamente, a Escritura nos demonstra que,
assim como Deus em Cristo nos reconciliou consigo, assim também ele
o constituiu em exemplo e padrão ao qual devemos amoldar-nos....
Depois de [as Escrituras] nos ter advertido de que nos degeneramos em
relação à verdadeira origem da nossa criação, acrescenta que Cristo,
reconciliando-nos com Deus, Seu pai, nos é dado como um exemplo de
inocência e cuja imagem deve ser representada em nosso viver.
(CALVINO, 2006, v.4, 179).
Por esta colocação, a preocupação primária de Calvino é expor uma triste
realidade do ser humano, que é a sua degeneração. Da qual, segundo ele, o homem foi
reconciliado com Deus em Cristo, tornando-se Ele, exemplo e padrão de vida cristã,
para não ser somente admirado, mas, principalmente seguido e imitado, como suas
palavras expressam: cuja imagem deve ser representada em nosso viver. E também:
Visto que o Espírito Santo nos consagrou para sermos templos ou
santuários de Deus, é necessário que façamos tudo o que pudermos para
que a glória de Deus seja exaltada em nós, e, por outro lado, para que
não deixemos manchar por nenhuma forma de contaminação do pecado.
(CALVINO, 2006, v.4, p.180).
Aqui são expostos dois objetivos bem claros para os quais deverá o protestante
agir e pautar a sua vida com dignidade e retidão: 1) Tudo deverá ser feito para a glória
de Deus; 2) Tudo deverá ser feito sem se manchar e nem se contaminar com o pecado.
Para que estes objetivos sejam alcançados e não somente almejados, cada um
protestante
cristão
deverá saber a quem pertence e a quem está servindo de fato em sua vida:
Ora, se nós não nos pertencemos, mas somos [referindo-se a Cristo] do
Senhor, vê-se claramente o que devemos evitar para não errarmos, e
para onde devemos canalizar todas as ações que praticamos em nosso
viver. Não somos de nós mesmos; portanto, não permitamos que a nossa
razão e a nossa vontade exerçam domínio sobre os nossos propósitos e
sobre nossas ações... E agora: nós somos do Senhor; vivamos e
morramos por ele e para ele. Somos do Senhor; que a sua vontade e a
sua sabedoria presidam a todas as nossas ações. Somos do Senhor;
relacionemos todos os aspectos da nossa vida com ele como o nosso fim
único. Ah, quão proveitoso será para o homem que, reconhecendo que
não é dono de si, negue à sua razão o senhorio e o governo de si mesmo
e o confie a Deus. (CALVINO, 2006, v.4, pp.183,184).
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Perceba que através deste ponto de vista, Calvino joga um balde de água fria
na ideologia filosófica humanista, cuja ênfase recai sobre a razão do homem que
governa e rege a sua vida segundo a sua vontade, com total liberdade. Reportando-se
aos filósofos e ao que eles defendem com ênfase na razão, Calvino afirma:
Eles
ensinam que somente a razão deve reger e dirigir o homem, e pensam que só a ela
devemos ouvir; com isso, atribuem unicamente à razão o governo da vida. (2006, v.4,
p.184). Em contrapartida, fazendo frente a esta linha de pensamento filosófico,
argumenta: Por outro lado, a filosofia cristã pretende que a razão ceda e se afaste,
para dar lugar ao Espírito Santo, e que por ele seja subjugada e conduzida, de modo
que já não seja o homem que viva, mas que, tendo sofrido com Cristo, nele Cristo vive e
reina. (CALVINO, 2006, v.4, p.184).
Portanto, o cerne da questão aqui está no fato do homem esvaziar-se ou despir-se
de tudo aquilo que o leva a confiar em si mesmo e não em Deus, nas palavras do
reformador: nós não nos pertencemos; e, nós somos do Senhor. Ou seja, Ele é o
soberano, Senhor absoluto em todos os sentidos e níveis à vida do cristão-protestante.
Como devoto que é, deverá sujeitar-se e dar lugar à ação do Espírito Santo em sua vida
e tão somente dele depender, orienta Calvino. Em uma outra obra: A Verdadeira Vida
Cristã , quando aborda a respeito da autonegação, dentro daquilo que aqui foi
mencionado nesse momento, afirma:
Se não nos pertencemos a nós mesmos, mas pertencemos ao Senhor,
devemos fugir daquelas coisas que lhe desagradam e processar nossas
obras e nossos feitos como tudo aquilo que Ele aprova... Se
pertencemos ao Senhor, deixemos que parte de nossa existência seja
dirigida por Ele. Esta deve ser a nossa meta suprema. (CALVINO,
2000, pp.29,30).
Por esta colocação vê-se que a preocupação do reformador está em incutir no
coração do indivíduo a consciência de uma meta suprema a ser almejada em sua vida,
através do serviço que deve ser prestado como de um servo ao seu Senhor, ao qual ele
pertence. Suas obras e feitos deverão em tudo buscar a aprovação de seu Senhor, cuja
existência, Ele mantêm e dirige. Na prática, isto significa que a busca para o sentido da
vida cristã segundo este ensinamento, deverá priorizar a vontade de Deus, a Ele
submeter-se incondicional, humilde e dependentemente. Por isso, diz ele: apliquemos
e dediquemos com fidelidade nossos diligentes esforços para seguir a Deus e obedecer
aos seus mandamentos. (CALVINO, 2006, v.4, p.185).
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Tal disposição e aplicação de todos os esforços à faina diária, conduzirão o fiel
praticante a uma preocupação como fim principal em sua vida, que deverá ser sempre
observada da seguinte maneira: Seja esta a sua preocupação: consciente que terá que
prestar contas de todas as suas obras a Deus, dirigirá a ele todas as suas intenções e
nele as manterá fixas.
(CALVINO, 2006, v.4, p.185). Esta é uma premissa
indispensável à vida cristã. Visto que a própria Bíblia afirma: E não há criatura que
não seja manifesta na sua presença; pelo contrário, todas as coisas estão descobertas e
patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas. (Hebreus 4.13).
Este princípio bíblico enfatizado por Calvino, quanto a prestação de contas do
fiel praticante, ao Deus e Senhor que ele serve, aplica-se a qualquer ser humano
independente de sua confissão religiosa ou de fé, porque não há criatura... . Logo,
tanto o protestante como qualquer confessante de outra religião, por serem criaturas de
Deus, deverão prestar contas a Ele de seus atos e obras: Assim, pois, cada um de nós
dará contas de si mesmo a Deus , revela o apóstolo S. Paulo em Romanos 14.12.
A forma abnegada de se viver e ter esta preocupação, como alvo a ser alcançado
pelo indivíduo, ao apresentar este tipo de comportamento. Conduzirá o mesmo a agir
contrariamente aos desejos e ambições que emanam de seu coração. Calvino, em seu
comentário aos Gálatas, ao falar sobre a existência da ambição em sociedade e na Igreja
como um dos males que as afligem e deve ser combatido, escreveu:
Dos muitos males existentes em nossa sociedade, e particularmente na
Igreja, a ambição é a mãe de todos eles... Os filósofos pagãos não
condenam toda a ambição por glória. Entre os cristãos, porém, quem
quer que seja ávido por glória é com justa razão acusado de ser
possuidor de fútil e louca ambição, porquanto se divorcia da genuína
glória. Para nós só a glória de Deus é legítima. Fora de Deus só há mera
vaidade. (CALVINO, 1998, p.173).
Perceba que só a glória de Deus, é o princípio calvinista que deve nortear a vida
do indivíduo, levando-o a ter uma conduta cristã ilibada perante a sociedade e a Igreja.
Sobretudo, procurando não vangloriar-se, pelo contrário, prestar a Deus toda a glória,
por ser, nas palavras de Calvino, legítima. Que Weber nesse sentido alude:
A vida do santo estava exclusivamente voltada para um fim
transcendente, a bem-aventurança, mas justamente por isso ela era
racionalizada [de ponta a ponta] em seu percurso intramundano e
dominada por um ponto de vista exclusivo: aumentar a glória de Deus
na terra jamais se levou tão a sério a sentença omnia in majorem Dei
gloriam. (2005. p.107).
13
Mediante esta realidade segundo o ensino calvinista, para a prática do bem em
favor do próximo, visando a glória de Deus, há normas de conduta que devem estar
presentes para orientarem em todo momento a vida da pessoa:
Portanto, para nos orientarmos na prática do bem e das ações
humanitárias, adotemos esta norma: de tudo que o Senhor nos deu com
o que podemos ajudar o nosso próximo, somos despenseiros ou
mordomos, sendo que teremos que prestar contas de como nos
desincumbimos da nossa responsabilidade. E mais: não há outra
maneira recomendável de administrar o que recebemos senão a de
seguir a norma do amor. (CALVINO, 2006, v.4, p.189).
Quando estas normas: a da mordomia e do amor se tornarem uma realidade de
fato na vida de alguém, em seu modo de agir; significa que em tudo e em todo
momento, social e humanitariamente, o indivíduo e o próximo serão beneficiados. Isto
leva o indivíduo a submeter-se infalivelmente a um princípio norteador que o auxiliará
em sua vida cristã piedosa, qual seja:
Um ditame da verdadeira piedade cristã é que somente a mão de Deus
conduz e governa a boa ou má sorte, lembrando que a sua mão não age
de maneira impetuosa e inconsiderada, mas dispensa o bem e o mal
segundo uma justiça sabiamente ordenada. (CALVINO, 2006, v.4,
p.197).
Observe que através desta orientação, Calvino chama a atenção que em tudo a
mão de Deus conduz e governa tanto a boa como a má sorte. Isto significa que o cristão
protestante deve estar pronto para enfrentar todas as coisas em sua vida, que dispensam
quer sejam o bem ou o mal segundo a justiça ordenada sabiamente por Deus. Como
Paulo disse: Sabemos que todas as cousas cooperam para o bem daqueles que amam a
Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. (Romanos 8.28). Isto quer
dizer que, quem segue e admite este ensinamento em sua vida, deverá viver submissa,
abnegada e obedientemente, segundo aquilo que Deus estabelece para a mesma. Quanto
a isso, assim explica o referido doutrinador:
A dedicação do cristão deve subir um ponto ainda mais alto, para o qual
Cristo chama todos os que lhe pertencem. Chama-os para que cada qual
leve a sua cruz. Porque todos quantos o Senhor adotou e recebeu na
comunidade dos seus filhos devem dispor-se e preparar-se para uma
vida dura, laboriosa e repleta de labutas e de infindáveis espécies de
males. É da vontade do Pai celestial exercitar assim os seus servos, a
fim de prová-los. (CALVINO, 2006, v.4, p.197).
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Corroborando e como fundamento para este ensino, Jesus Cristo já disse: Se
alguém quer vim após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. (Mateus
16.24). Sobre as dificuldades que seus seguidores enfrentariam enquanto nesta vida, Ele
advertiu: No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo.
(João 16.33). Com esta advertência Jesus deixou claro que quem quisesse ou viesse a
segui-lo e ser seu discípulo, deveria nas palavras de Calvino: preparar-se para uma
vida dura, laboriosa e repleta de labutas e de infindáveis espécies de males. Contudo,
assim como Cristo venceu
eu venci o mundo
, importa também que os seus
seguidores sejam mais do que vencedores (Romanos 8.37). Diante da realidade de
confrontar as dificuldades que o cristão não poderá livrar-se delas, mas encará-las e
procurar enfrentá-las com determinação, Calvino conclui:
Portanto, se queremos ser discípulos de Cristo, devemos empenhar-nos
no sentido de que o nosso coração se encha de tal reverência e
obediência a Deus que nos habilite a dominar e subjugar todos os
sentimentos contrários ao seu beneplácito. Decorre disso que, em
qualquer tribulação que estejamos mesmo na maior aflição da alma que
seja possível alguém sofrer, não deixaremos de perseverar em nossa
paciência. As adversidades sempre nos causarão agrura e sofrimento.
Por essa causa, quando formos afligidos por enfermidades, gemeremos
e choraremos, e desejaremos ser curados; quando formos oprimidos
pela indigência, sentiremos alguns aguilhões nascidos da perplexidade e
da preocupação. Semelhantemente, a humilhação, o desprezo e todas as
formas de injúria que nos causem nos farão sentir dor no coração... Mas
sempre chegaremos a esta conclusão: Como, porém, Deus o quis,
sigamos a sua vontade . (2006, v.4, pp.208/9).
Deve-se atentar para o fato que, por esta linha de pensamento não importa o que
aconteça, quando alguém desenvolve um trabalho ou atividade no exercício de sua
função, quer seja através do empenho, esforço e dedicação. Deverá, em todo momento,
demonstrar reverência e obediência a Deus; que o habilitará a dominar e subjugar todos
os seus sentimentos que não sejam de acordo com a bondade de Deus. Dessa maneira,
conclui o reformador: Deus o quis, sigamos a sua vontade. À vontade de Deus a pessoa
deverá nortear sua conduta, coração e sentimentos, e tudo que envolve a sua vida. Com
respeito a piedade, citando Calvino, Costa, faz a seguinte menção:
Deus só é corretamente servido quando sua lei for obedecida. Não
deixa a cada um a liberdade de codificar um sistema de religião ao
sabor de sua própria inclinação, senão que o padrão de piedade deve ser
tomado da Palavra de Deus ... Visto que todos os questionamentos
supérfluos que se inclinam para a edificação devem ser com toda razão
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suspeitos e mesmo detestados pelos cristãos piedosos, a única
recomendação legítima da doutrina é que ela nos instrui na reverência e
no temor de Deus. E assim aprendemos que o homem que mais progride
na piedade é também o melhor discípulo de Cristo. (COSTA, 2006,
p.218).
Observa-se por esta análise calvinista, que Deus não permite que nenhum
sistema religioso possa ditar um padrão de piedade para alguém, a não ser a Sua
Palavra. Assim, aquele que mais cresce na piedade, será nas palavras de Calvino: o
melhor discípulo de Cristo. Portanto, Se desejamos ser discípulos de Cristo, devemos
reverenciar a Deus de tal maneira que possamos triunfar sobre todas as inclinações
contrárias e submeter-se com alegria a Seu plano. (CALVINO, 2000, p.56).
Calvino, no final deste seu tratado, quando escreve
Sobre a Vida Cristã ,
expõe algumas regras (04) ou princípios gerais da Escritura, que auxiliam o indivíduo a
refrear a carne,5 que o leva a inclinar-se, ou seja, a fazer algo ou desejar alguma coisa
que seja contrário àquilo que a Escritura no-lo determina. Por isso, recomenda:
...é necessário que não menos diligentemente repudiemos a
concupiscência da nossa carne, que se extravasará sem medida, se for
deixada sem freios. Lembremo-nos de que, como eu já disse, há alguns
que, sob o pretexto de liberdade, concedem à carne tudo quanto ela
deseja. (CALVINO, 2006, v.4, p.220).
Para que este tipo de pensamento não se manifeste em atitudes vis e muito
menos numa conduta reprovável, esse reformador orienta:
Das regras que visam
refrear a carne, a primeira é a seguinte , e cita outras também:
Todos os bens que temos foram criados para que reconheçamos o seu
autor e magnifiquemos a sua bondade com ações de graça... [e] o
caminho mais certo e mais curto para levar o homem a desprezar a vida
presente é meditar na imortalidade celestial. Dessa regra decorrem
outras: [1ª] A primeira é que os que desfrutam deste mundo devem fazêlo com o mínimo de apego, como se nada desfrutassem dele...; [2ª] a
outra regra subsidiária é: aprendamos tanto a sobrelevar pacientemente
e com coração sereno a pobreza, como usar moderadamente a
abundância... [A 3ª regra é]: A outra regra será que aqueles que se
acham na pobreza aprendam a suportar com paciência a sua escassez,
para não se tornarem com demasiada preocupação. Os que conseguem
observar esse equilíbrio emocional têm tido não pequeno proveito da
escola do Senhor... Todos quantos desejam servir a Deus com
sinceridade aprendam do exemplo do apóstolo, que sabia viver contente
5
Por carne, do grego: sarxós, deve-se entender como sendo a manifestação dos desejos, inclinações e
disposições naturais, internas da pessoa, que a leva agir e satisfazer tão somente a sua vontade,
procurando agradar a si mesma.
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na abundância e na escassez; saibam, pois, conduzir-se moderadamente
na abundância e ter positiva paciência na pobreza... [A 4ª e última regra
é]: ...que todas as coisas nos foram dadas pela benignidade de Deus, e
destinadas ao nosso uso e proveito, que elas nos foram deixadas como
em custódia, em depósito, e chegará o dia em que deveremos prestar
contas delas. Por isso devemos administrá-las tendo sempre em mente
esta sentença: teremos de prestar contas de tudo que o Senhor nos tem
confiado. (CALVINO, 2006, v.4, pp. 220/1/2/3).
Calvino apresenta nestas regras algumas preocupações básicas quando se refere
à vida do cristão protestante, quais sejam: prestar sempre em todas e quaisquer
circunstâncias ação de graças a Deus; não deverá ter apego às coisas deste mundo;
deverá satisfazer-se equilibrada e moderadamente tanto na riqueza como na pobreza,
pacientemente; conscientizar-se que é um mordomo de Deus enquanto peregrina nesta
terra, pois, ao seu Senhor prestará contas de tudo.
Isto se deve pelo fato que:
Somos sempre e integralmente dependentes de
Deus. [Por isso] Um verdadeiro cristão não deverá atribuir nenhuma prosperidade à
sua própria diligência, trabalho ou boa sorte, mas antes ter sempre presente que Deus
é quem prospera e abençoa. (CALVINO, 2006, p.42). Portanto, por estes pressupostos
é que o verdadeiro cristão, como afirma o reformador, deverá viver; exteriorizando-os
em sua conduta diária quer seja em sua vida social, eclesiástica ou no trabalho. Servindo
a Deus, o próximo e a sociedade, demonstrando um padrão ético de cidadania que sirva
de exemplo a outros.
CONCLUSÃO
Como se viu neste breve ensaio, os pressupostos da ética protestante que tiveram
suas bases lançadas por João Calvino, põem em evidência a conduta de quem segue este
tipo de ordenamento religioso em sua vida, os confessa, defende e difunde, bem como,
seus princípios. Na prática, Calvino enfatiza que a piedade é uma das principais marcas
à vida do protestante reformado, que age de acordo com este ordenamento bíblicodoutrinário, como sistema que deve reger a vida do indivíduo cotidianamente.
A preocupação que o reformador genebrino não somente deixou explícito em
seus escritos quanto a este assunto, mas também, buscou colocar em prática em sua
vida, está no propósito de vida da pessoa que é o de servir ao próximo, tendo como alvo
supremo tão somente a glória de Deus. Quem assim agir em seu trabalho, demonstrará
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infalivelmente, pela cidadania, uma ética em seu ethos, com eqüidade; como também,
estará certamente contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e melhor.
Portanto,
se seguirmos fielmente nosso chamamento divino, receberemos o
consolo de saber que não há trabalho insignificante ou nojento que não seja
verdadeiramente respeitado e importante ante os olhos de Deus. (CALVINO, 2000,
p.77). Assim, o protestante desenvolve o seu trabalho, consciente que Deus tudo
observa; tributando-lhe toda a glória, pois um dia a Ele prestará contas de tudo.
BIBLIOGRAFIA
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MENDONÇA, Antônio Gouvêa, O Celeste Porvir
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VICENTE, Orlando (Ed.), BASE
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Paulo: Editora Iracema, v.9, 2001.
WEBER, Max, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia
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