1 A SUSTENTABILIDADE DAS COOPERATIVAS MÉDICAS NA SAÚDE SUPLEMENTAR Renato Cesar Vieira Pagano¹ e; Luiz Gonzaga Massari Filho² RESUMO Por muito tempo as cooperativas médicas gozaram de saúde financeira e domínio do mercado de saúde suplementar. A partir de 1998, com a criação da Lei 9656, o crescimento das despesas assistenciais passou a ameaçar resultados e honorários médicos, principalmente pela inserção tecnológica de OPME e medicamentos de alto custo. Hoje, hospitais e médicos passaram a substituir a remuneração serviços médicos por ganhos com materiais e medicamentos, criando um ciclo vicioso que coloca em risco toda a cadeia da saúde suplementar, inclusive o Sistema Único de Saúde (SUS). Enquanto médicos, hospitais e operadoras não abandonarem a tentativa de maximizarem lucros, todo esse sistema estará em perigo. A solução passa por grandes mudanças culturais na gestão hospitalar, relacionamento comercial entre operadoras e prestadores médicos e, principalmente, por mudanças profundas na regulação do setor de saúde suplementar e da indústria de tecnologia médica. Palavras-chave: gestão, acreditação, hospitalar, ANS, ANVISA, despesas assistenciais, regulação, OPME, medicamentos, honorários, serviços, médicos, hospitais, lei 9656. INTRODUÇÃO Durante mais de trinta anos, as cooperativas médicas viveram de maneira muito estável e próspera, mantendo com certa tranquilidade a sua principal missão: a promoção do trabalho médico valorizado de maneira justa. A partir do ano de 1999, a regulamentação brasileira dos planos de saúde (Lei 9.656/1998), culminando na criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (Lei 9.991/2000), aliada à evolução tecnológica cada vez mais rápida provocaram mudanças profundas na composição dos custos assistenciais, nas relações entre cooperativas e cooperados e entre as cooperativas e seus clientes. Gerente de Estratégia e Sistemas de Gestão e aluno do curso de MBA em Gestão Estratégica de Negócios em Saúde, e-mail: [email protected] ² Médico Cardiologista e aluno do curso de MBA em Gestão Estratégica de Negócios em Saúde, email: [email protected] 2 A problemática deste assunto é entender se essas mudanças tornaram as cooperativas sustentáveis no longo prazo. Como tudo indica que a resposta é não, o que fazer para reverter essa situação? Dessa forma, o objetivo desse artigo é fundamentar as respostas às essas questões e propor mudanças no atual modelo das cooperativas como operadoras de saúde e na regulação do setor da Saúde Suplementar. UNIMED: SINÔNIMO DE COOPERATIVA MÉDICA Em 1967 surgia a primeira cooperativa Unimed. O movimento surgiu dentro do sindicato da classe médica de Santos, São Paulo, uma reação ao surgimento das primeiras empresas de medicina de grupo. Segundo Akamine (1997), a lógica era a seguinte: os médicos associados poderiam fornecer alta qualidade na assistência, pois, por serem os proprietários da Unimed, seriam remunerados de maneira justa. A lógica parece ter funcionado, pois quarenta e cinco anos depois, segundo Unimed do Brasil (2013), são trezentas e sessenta e sete singulares, mais de dezoito milhões de beneficiários e mais de cento e doze mil médicos cooperados. A EVOLUÇÃO DA MEDICINA ENTRE OS ANOS 60 E 2000 De maneira geral, a medicina no final da década de sessenta e início da setenta no Brasil era essencialmente clínica. A medicina diagnóstica se resumia a simples exames patológicos e exames de Raios-X, enquanto a terapêutica estava limitada a poucos medicamentos. Com sua evolução, as diferenças entre médicos de especialidades diferentes começaram a se destacar e os interesses de grupos menores passaram a se sobrepor aos das cooperativas. Muitos médicos se tornaram grandes empresários, oferecendo tecnologia de ponta aos clientes, mas também passaram a pressionar as cooperativas para incluí-las nas coberturas de seus beneficiários. Durante muito tempo o custo dessas novas tecnologias pôde ser incorporado sem grandes danos econômicos, pois tudo dependia da decisão do 3 cliente no ato da contratação, escolhendo as coberturas de acordo com o seu poder aquisitivo. Mas um evento mudaria totalmente esse modelo. A LEI 9.560/1998 e a ANS Com o discurso de moralizar os planos de saúde à luz do Código de Defesa do Consumidor e da Constituição Brasileira de 1988, em 03 de junho de 1998 é sancionada a Lei 9.560/98 pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Basicamente, garantiu aos usuários a cobertura de praticamente toda a tecnologia disponível em território nacional, regulou os períodos de carência, acabou com as exclusões de cobertura por doenças ou lesões pré-existentes, limitou os reajustes para planos individuais familiares e enunciava a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). As mudanças radicais na regulamentação dos planos de saúde provocaram mudanças operacionais profundas nas operadoras, culminando em uma brusca redução no número de atores nesse mercado. Segundo dados da Agência Nacional de Saúde (2013), no ano 2000 eram 2723 operadoras registradas contra 1125 (973 com beneficiários) em 2012. O que pode parecer apenas uma consolidação do setor, na verdade é um indicativo das dificuldades encontradas pelas operadoras de menor porte de se sustentarem no mercado, tamanho o peso da regulação. Não há dúvidas que a regulamentação trouxe enormes benefícios aos beneficiários, no que tange a qualidade dos planos de saúde e acesso à informação, mas as constantes atualizações no rol de procedimentos de cobertura obrigatória sem a devida avaliação de custo versus eficiência e a falta de regulação sobre materiais e medicamentos, vêm piorando a sinistralidade (índice de custo assistencial dividido pela receita) do setor de maneira constante. O gráfico abaixo, retirado do site do Instituto de Estudos em Saúde Suplementar (2013), mostra a evolução da sinistralidade geral das operadoras de saúde. 4 Gráfico 1- Receitas, despesas e sinistralidade de operadoras médico-hospitalares de 2003 a setembro de 2012. Fonte: IESS (2013) Chama à atenção a tendência de alta expressiva da sinistralidade a partir de 2007. Há uma distorção na evolução por conta da crise internacional que represou reajustes dos planos coletivos empresariais em 2009, mas que puderam ser recuperados em 2010. Essa tendência coincide com o início das atualizações mais constantes e intensas no rol de procedimentos a partir de 2008, com a publicação da Resolução Normativa 167. Não são necessárias muitas contas para se concluir que, com despesas administrativas na ordem de 14% do faturamento das operadoras, o sistema de saúde suplementar passa a ter, na média nacional, resultados negativos a partir de 2015 aproximadamente. EVOLUÇÃO DOS CUSTOS ASSISTENCIAIS – QUEM GERA E QUEM PAGA A CONTA? Normalmente se atribui a culpa pela evolução não sustentável dos custos assistenciais às constantes atualizações no rol de procedimentos, provisões técnicas obrigatórias e reajustes regulados para planos individuais/familiares, todos impostos 5 pela ANS. Não há dúvida de que tudo isso corresponde a uma parcela importante da evolução dos custos assistenciais, mas existe outro ator muito importante nesse contexto. Na verdade, é quem mais lucra com o modelo atual da saúde suplementar: a indústria de tecnologia médica, tanto a de medicamentos como a de materiais e equipamentos. Em uma relação de consumo tradicional, o cliente decide pela compra, avaliando sua necessidade e seu poder aquisitivo, pois será o responsável pelo pagamento. Quem produz precisa avaliar a penetração do seu produto no mercado, pois existem limites baseados no poder aquisitivo e número de consumidores. Outro fator a ser avaliado é o da distribuição. O produto precisa ter a capacidade de remunerar de maneira satisfatória os distribuidores para conseguir chegar ao consumidor final. Portanto, para que um produto tradicional tenha aceitação e prospere, são necessários preço, qualidade, necessidade, mercado e distribuição. Vamos ver como isso funciona no caso da tecnologia médica. O mercado está pronto, pois, segundo o Instituto de Estudos da Saúde Suplementar (2013), são mais de 48,7 milhões de beneficiários. Não há limite de poder aquisitivo, pois quem vai pagar pela aquisição desses produtos são os planos de saúde. Quem avalia a necessidade não é o cliente, mas um intermediário de alta credibilidade, quase inquestionável, e que coincidentemente é o verdadeiro “distribuidor” dos produtos: o médico. Os conflitos de interesses são enormes. Segundo pesquisa do CREMESP (2010), no Estado de São Paulo, 93% dos médicos recebiam benefícios de até quinhentos reais (jantares, revistas, amostras grátis, etc.) da indústria; 80% recebem representantes; 77% declaram que conhecem outros médicos, que recebem benefícios de maior valor (cursos, congressos nacionais e internacionais, comissões por prescrição, etc.); 37% afirmam que receberam ou aceitaram; 74% afirmam ter presenciado ou aceitado benefícios da indústria durante a graduação; e o mais grave: 33% presenciaram ou souberam de médicos que recebem comissões por indicações ou que indicam procedimentos, medicamentos, órteses e próteses desnecessários. Na mesma pesquisa foi apurado que 32% acreditam que a relação entre médicos e indústria está totalmente fora de controle, enquanto 33% consideram que a regulação ética é insuficiente. 6 Tudo isso ocorre mesmo diante do parecer nº016/2008 do CFM (2008): “O médico S.J.W., Coordenador de Auditoria Médica - Federação de SC, encaminha ao CFM, consulta datada de 27/9/07, nos seguintes termos: Assunto: Parecer do CRM-PR sobre escolha de fornecedores de OPMES pelos médicos. “Este parecer anexo é um exemplo de preocupação do CRM-PR com a dignidade do serviço médico. Seria possível obtermos um posicionamento do CFM a respeito do mesmo? Evitaria a necessidade de solicitar para todos os CRMs do país opinião a respeito.” O Conselho Regional de Medicina do Paraná exarou o Parecer Nº 1.627/04, transcrito a seguir: PARECER N.º 1627/2004 – CRMPR CONSULTA N.º 27/04 – PROTOCOLO N.º 0141/2004 ASSUNTO: CONDUTA ÉTICA PARECERISTA: CONS. LUIZ SALLIM EMED “U. M. formula consulta a este Conselho Regional de Medicina, nos seguintes termos: “... Servimo-nos da presente para formular consulta a esse Egrégio Conselho, no sentido de saber se o fato do profissional médico, exigir, para a realização da cirurgia, o fornecimento de instrumental o aparelho de determinada marca comercial, caracteriza, em tese, algum tipo de infração ao Código de Ética Médica. ...” Sobre a Consulta temos a aduzir o que segue: O artigo segundo do Código de Ética Médica registra que “o alvo de toda atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício do qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”. A medicina como ciência tem grande avanço científico e tecnológico e as empresas de equipamentos médicos oferecem cada vez mais alternativas de órteses e próteses na indicação de tratamentos, proporcionando grande benefício na recuperação dos pacientes. A disputa por esse mercado, pelas empresas fornecedoras de materiais e equipamentos é bastante agressiva, mas no entanto, nenhuma vantagem deverá comprometer a relação médico paciente. O médico deve receber material e instrumental para realizar os procedimentos registrados e liberados pelos órgãos competentes, mais do que isso devem ser de comprovada qualidade. Existem várias empresas que disponibilizam os materiais e os instrumentais de qualidade muito semelhante, portanto não tem qualquer motivo para o médico exigir uma marca comercial específica. Poderá em casos muito especiais que um instrumental tem particularidade técnica específica e única alternativa para determinado procedimento a ser realizado. Nestes casos excepcionais, o médico deve apresentar uma solicitação, com os detalhes e a justificativa da indicação. Caso não se tratando desta condição excepcional, não há qualquer justificativa para o médico exigir o material ou instrumental de apenas uma empresa fornecedora dos referidos materiais. Quanto a questão, se poderá haver algum tipo de infração ao código de ética médica, respondo que até seria possível haver indícios de infração, se restar comprovado que o médico tem atuado de forma em obter ganho ou vantagens pela exigência de utilizar materiais de uma única empresa, quando outras empresas disponibilizam matérias de igual qualidade. É o parecer. 7 Curitiba, 06 de dezembro de 2004. Cons. LUIZ SALLIM EMED Parecerista Aprovado na Reunião Plenária nº 1641, de 27/12/2004.” Trata-se de consulta advinda, ao que parece, de representante de uma coordenação de auditoria de uma cooperativa médica, o qual, ao tomar conhecimento do muito bem elaborado parecer da lavra do conselheiro Luiz Salim Emed do CRM-PR sobre esta importante questão, pede ao CFM que emita também sua posição para centralizar tomada de decisões nos demais CRM. O conselheiro José Hiran da Silva Gallo elaborou parecer fundamentado em conceitos éticos e defendidos por todos os demais conselheiros deste plenário, mas deixando a este conselheiro algumas incertezas que podem permear interpretações diversas em outras instancias. A questão submetida a este Conselho Federal, data vênia, parece mais complexa e consiste em saber se o médico no exercício de sua profissão, para realizar um procedimento médico, procede eticamente, exigindo instrumental ou aparelho de determinada marca comercial, existindo diversas outras marcas comerciais, todas aprovadas cientificamente. Entendemos que o médico não tem, isoladamente, competência técnica para reprovar todas as outras marcas comerciais, aprovadas e comprovadas cientificamente. Entendo, ainda, que essa exigência, em certos casos, acarreta suspeita de mercantilização sorrateira da medicina, que arrasta, por atos sem ética de alguns, toda a classe médica. Não podemos desconsiderar que essas posturas antiéticas acabam por prejudicar não somente a classe médica, mas também a própria sociedade que, inequivocamente, fica privada da devida assistência médica. Sabe-se que o direito à saúde é constitucionalmente protegido, consoante está na Constituição Federal, em seu artigo 196, in verbis: “Art. 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Quando um médico deixa de atender um paciente porque este não tem condições de custear determinada marca comercial de equipamento médico, contraria a Constituição Federal, o Código de Ética Médica, bem como princípios consagrados que balizam a profissão médica. Podemos até concordar que um médico possa indicar a utilização de um instrumental ou equipamento de determinada marca comercial, aprovada cientificamente pelos órgãos competentes, sendo-lhe vedado excluir as outras marcas comerciais, desde que também aprovadas cientificamente pelos órgãos competentes, não podendo se recusar a executar o procedimento médico, sob o fundamento de que só o fará usando a marca de sua preferência, provocando fundada presunção de interação ou dependência com a comercialização do produto. Em tese não ouso discordar do bem elaborado parecer do CRM-PR nem no do conselheiro José Hiran Gallo, mas, em tempo, proponho modificações neste ultimo, as quais podem ser incorporadas, se assim aceitar o ilustre colega de plenário. Minhas modificações estão baseadas no fato de que infelizmente também há imposições mercadológicas de empresas de planos de saúde e/ou hospitais públicos ou privados que comprometem o correto desempenho de médicos quanto ao uso de determinados 8 materiais. Considerando que é possível aos administradores ou gestores conhecerem antecipadamente quais os produtos liberados no país pelo órgão competente e que estão á disposição, e também que o médico tem, além de conhecimento cientifico, respaldo ético previsto no artigo 8º do CEM para posicionar-se tecnicamente quanto ao uso de determinados produtos quando sob sua responsabilidade, entendo que possamos estabelecer no âmbito deste assunto que: 1. Os médicos e/ou instituições referenciadas para procedimentos que possibilitem o uso de materiais e instrumentais considerados neste parecer, devam ter conhecimento antecipadamente de um cadastro destes produtos no âmbito de seu trabalho. 2. Seja garantido que exceções devam ser analisadas após motivadas em relatório padronizado. 3. Seja garantido aos médicos e, por conseguinte, aos pacientes o acesso a evolução tecnológica comprovada cientificamente. Este é o parecer, SMJ.”. A indústria de tecnologia médica faturou R$ 9,9 bilhões em 2011, evolução de 35,7% em três anos, conforme gráfico a seguir, extraído do site da Associação Brasileira de Artigos e Equipamentos Médicos, Odontológicos, Hospitalares e de Laboratórios (2013). Gráfico 2- Faturamento Fonte: ABIMO (2013) 9 No mesmo período, a Saúde Suplementar cresceu 11,9% em número de vidas, uma taxa três vezes menor. Enquanto isso, o valor médio das consultas pagas por planos de saúde cresceu 22% entre 2008 e 2011. O gráfico a seguir mostra a evolução da composição percentual dos itens do custo assistencial da cooperativa Unimed Campinas entre os anos de 2005 e 2012. Gráfico 3- Custo Assistencial da Unimed Campinas Fonte: Unimed Campinas (2013) Nitidamente há uma migração de recursos de honorários e consultas (menos 3,53 pontos percentuais) principalmente para materiais e medicamentos (mais 2,06 pontos percentuais), mesmo sendo essa cooperativa uma referência no controle desse tipo de despesa assistencial. Sem esses controles, estima-se que a representatividade de consultas e honorários frente ao total de despesas assistenciais já estaria em aproximadamente 16,5%, enquanto a de materiais e medicamentos representaria algo em torno de 23%. Por outro lado, abaixo está representada a evolução de custo assistencial e faturamento da mesma cooperativa, comparados com o IPCA, acumulados entre 2008 e 2012. 10 Gráfico 4- Evolução comparada com o IPCA 2008 a 2012 !"#$ %&'()%*#) +)(!, !-).$/ +)(!, !-).$/ 0)#!'), &1#$ %&' ()%*#) +)(!, !-).$/ Fonte: Unimed Campinas (2013) O gráfico mostra uma evolução do custo e do faturamento por beneficiário acima da inflação do período. Eliminadas as distorções causadas pela crise internacional de 2008/2009, podemos perceber uma tendência do custo subindo acima do faturamento, mostrando que há um limite do mercado quanto aos preços e reajustes. Avaliando em conjunto os gráficos, concluímos que, em planos de saúde, principalmente em cooperativas, quando o mercado não suporta preços e reajustes crescentes acima da inflação, os recursos que seriam destinados a honorários e consultas são usados para equilibrar o sistema. A situação é tão séria que durante o ano de 2012, os órgãos da classe médica organizaram paralizações de atendimento aos planos de saúde, amplamente divulgados na imprensa, reivindicando reajustes nos honorários e liberdade nas prescrições, sem darem conta de que as duas coisas são contraditórias no âmbito econômico. Em suma, quem gera essa conta é o médico, fortemente influenciado pela competente indústria de tecnologia médica, a grande beneficiada do modelo atual da saúde suplementar. E quem paga essa conta é o próprio médico, vendo a sua mãode-obra ser remunerada com um percentual cada vez menor dos recursos do setor. 11 OS SERVIÇOS HOSPITALARES NA SAÚDE SUPLEMENTAR Indispensáveis nos sistemas de saúde, os hospitais são a base de atendimento das operadoras de saúde suplementar. Segundo dados do Instituto de Estudos da Saúde Suplementar (2013), em 2011 os serviços hospitalares (internações) foram responsáveis por 49,4% de todas das despesas assistenciais do setor. Avaliando a cooperativa Unimed Campinas, os gastos com diárias e taxas representam praticamente 20% do total de despesas assistenciais, ou seja, na comparação com o índice apurado pela ANS, a diferença é de mais de 29 pontos percentuais, compostos basicamente por materiais e medicamentos. Isso acontece porque o serviço hospitalar deixou de ser a principal fonte de resultados para os hospitais. Alguns até aceitam trabalhar com prejuízo nas diárias e taxas, pois acabam lucrando o suficiente nos materiais e medicamentos para suprir esse déficit e ainda obter resultados com o negócio. Em um estudo realizado dentro de um hospital entre 2005 e 2008, Moura (2008) chegou a conclusões que destacam muito bem esse comportamento. Segundo ele, a conta hospitalar é principalmente composta por OPME com representatividade de 41,7%, diárias com 20,6% e medicamentos com 8,8%, totalizando 71,2% de todo o faturamento frente uma operadora de saúde. No hospital em questão, o custo é composto principalmente por folha salarial com representatividade de 50,4%, OPME com 22% e medicamentos com 4,2%. Além disso, o hospital possuía uma lucratividade média de 17,2%, sendo que a lucratividade média apenas com OPME era de 17%, não esquecendo que novas tecnologias chegam constantemente e o percentual é aplicado sobre os novos valores, que em alguns casos chegam a ser dez vezes maiores que a tecnologia substituída. Fica muito fácil deduzir que, se o custo é composto principalmente por folha salarial (50,4%) e se a receita da operadora que remunera o serviço hospitalar (diárias) não passa de 21%, a saúde financeira do negócio está apoiada na lucratividade de OPME e medicamentos. Essa conduta vem funcionando porque a inserção tecnológica na medicina vem sendo muito acelerada, com preços que geram lucros tão grandes para a indústria, que acabam permitindo importantes ganhos aos hospitais com materiais e medicamentos. Abbas (2001) já citava essa prática dizendo: “as diárias e taxas hospitalares são deficitárias, sendo compensadas, entre outras, pela 12 comercialização de materiais e medicamentos”. Novamente, recursos que deveriam ser destinados à melhoria da remuneração por serviços hospitalares estão sendo consumidos por materiais e medicamentos. Aparentemente isso não faz diferença para os hospitais, mas os mesmos insumos também estão consumindo recursos que deveriam ser destinados ao pagamento de melhores honorários. Como tudo o que não é sustentável um dia acaba, quando esse sistema entrar em colapso, os hospitais estarão em situação muito mais difícil do que já estão, o que pode provocar falências em massa, colocando toda a saúde suplementar em risco. A GESTÃO DOS HOSPITAIS PRIVADOS NO BRASIL Segundo Abbas (2001) nas empresas hospitalares de fins lucrativos, a eficiência administrativa é avaliada pela maximização da riqueza dos proprietários. A otimização de lucros visa remunerar o capital investido a uma taxa satisfatória. Por outro lado, a maioria conta com uma direção administrativo-financeira ocupada por médicos que não possuem preparo técnico para administrar uma empresa de tamanha complexidade administrativa. Citado por Abbas, disse Cerri (1998): “Não existe, pelo menos que eu conheça, hospitais que cobrem taxas com embasamento técnico. Simplesmente os custos dos serviços são desconhecidos. Pior ainda: regra geral, quem estabelece o preço dos serviços são os compradores (talvez o único setor da economia onde isto ocorre)”. Cerri (1998) diz ainda que: “Somos extremamente lentos na tomada de decisão e na implantação de soluções. Possuímos lideranças fortemente engajadas na busca de soluções, mas, algumas vezes, destoantes frente às formas de conquistar o que é o objetivo comum. Como entidades representativas, temos que alterar as diretrizes paternalistas com as quais temos conduzido nossas ações, até porque não estamos aparelhados, no momento, para isso. Carecemos também de profissionalização. Os hospitais, independente do porte ou localização, precisam de orientação bem formada que contribuam para o seu amadurecimento como empresas”. Nada mais atual que esses artigos escritos em 1998 e 2001, pois a gestão continua sendo um problema crônico dos hospitais brasileiros. Paralelos aos 13 problemas financeiros, uma grande crise de qualidade na assistência vem se agravando por falta de gestão. Dos mais de 4800 hospitais privados do Brasil, apenas 178 estão acreditados pela Organização Nacional de Acreditação (ONA). A verdade é que uma certificação de qualidade ou acreditação requer uma cultura de planejamento e rigor gerencial e documental ainda muito distante da cultura de quem historicamente vem administrando essas instituições: a classe médica. CONCEITOS DE VALOR COMPARTILHADO O modelo assistencial da saúde suplementar no Brasil, onde os prestadores são remunerados por evento, incentiva gastos desnecessários. Mas o grande problema é a cultura de maximizar os lucros, sem se considerar a complexa cadeia econômica dos sistemas de saúde. Nessa lógica, para que alguém ganhe outro alguém obrigatoriamente deve perder. Porter e Kramer (2011) definem perfeitamente essa lógica: “No passado, as melhores empresas assumiam uma ampla gama de papéis para atender às necessidades de trabalhadores, comunidades e operações de apoio. À medida que outras instituições sociais entraram em cena, contudo, esses papéis foram abandonados ou delegados. O horizonte de tempo cada vez menor do investidor começou a estreitar o raciocínio sobre investimentos pertinentes. Com a empresa verticalmente integrada dando lugar a uma maior dependência de fornecedores externos, a terceirização e o offshoring enfraqueceram o elo entre a empresa e a comunidade. Ao distribuir toda sorte de atividade por mais e mais localidades, a empresa não raro perdeu o vínculo com um determinado lugar. Aliás, muitas empresas já não consideram ter uma “casa” — se julgam, antes, “globais”. Grande parte do problema está nas empresas em si, que continuam presas a uma abordagem à geração de valor surgida nas últimas décadas e já ultrapassada. Continuam a ver a geração de valor de forma tacanha, otimizando o desempenho financeiro de curto prazo numa bolha e, ao mesmo tempo, ignorando as necessidades mais importantes do cliente e influências maiores que determinam seu sucesso no longo prazo. 14 Essa perspectiva também moldou a estratégia das próprias empresas, que basicamente excluíram considerações sociais e ambientais de seu raciocínio econômico. A empresa tomou como dado o contexto maior no qual opera e resistiu a padrões regulamentares como invariavelmente contrários a seus interesses. A solução de problemas sociais foi entregue a governos e a ONGs. Programas de responsabilidade empresarial — uma reação a pressões externas — surgiram basicamente para melhorar a reputação da empresa e são tratados como um gasto necessário. Tudo o mais é visto por muitos como um uso irresponsável do dinheiro de acionistas. O poder público, por sua vez, não raro regula de modo a dificultar a geração de valor compartilhado. “Implicitamente, cada lado assume que o outro é um obstáculo às suas metas e age como se fosse.” Por outro lado, propõem um novo modelo econômico que denominam “Valor Compartilhado”: “O conceito de valor compartilhado, em contrapartida, reconhece que as necessidades da sociedade, e não só necessidades econômicas convencionais, definem o mercado. Trata-se, antes, de aumentar o bolo total do valor econômico e social. Um bom exemplo dessa diferença de perspectiva é o movimento “fair trade” no comércio. A meta do fair trade é aumentar a parcela de receita que vai para agricultores de baixa renda com o pagamento de um preço mais elevado pelos mesmos produtos. Uma empresa pode criar valor econômico com a criação de valor social. Há três saídas distintas para tal: reconceber produtos e mercados, redefinir a produtividade na cadeia de valor e montar clusters setoriais de apoio nas localidades da empresa. Cada uma delas é parte do círculo virtuoso do valor compartilhado; melhorar o valor em uma área abre oportunidades nas outras. O conceito de valor compartilhado redefine as fronteiras do capitalismo. Ao conectar melhor o sucesso da empresa com o progresso da sociedade, abre muitas maneiras de atender a novas necessidades, ganhar eficiência, criar diferenciação e expandir mercados. Nem todo lucro é igual — ideia que se perdeu no foco estreito e imediatista do mercado financeiro e em muito do pensamento administrativo. O lucro que envolve um propósito social é uma forma superior de capitalismo — forma que permitirá à sociedade avançar mais rapidamente e, às empresas, crescer ainda mais. O resultado é um ciclo positivo de prosperidade empresarial e social que torna sustentável o lucro.” (AUTOR, Ano) Essa proposta vem como uma solução às necessidades dos sistemas de saúde da saúde suplementar, onde os recursos estão cada vez mais escassos. Prestadores e operadoras de saúde vivem da mesma fonte de recursos: os beneficiários. Se esses dois atores continuarem na tentativa de maximizar os lucros em detrimento do outro, a qualidade do produto final (a assistência médica) vai cair 15 constantemente. Sairá na frente quem conseguir operacionalizar um verdadeiro modelo de valor compartilhado, o bom e velho “ganha-ganha”. PROPOSTAS EMERGENTES PARA A SUSTENTABILIDADE DO SETOR DE SAÚDE SUPLEMENTAR Algumas operadoras de saúde possuem serviços hospitalares próprios, mas praticamente todas dependem, mesmo que parcialmente, dos hospitais credenciados. Dessa forma, desenvolver os prestadores passa a ser questão de sobrevivência e diferenciação no mercado. As operadoras de saúde suplementar no Brasil possuem uma cultura de gestão muito mais desenvolvida que os hospitais. Dentro da filosofia do valor compartilhado, elas poderiam desenvolver a gestão de custos nos hospitais em troca da transparência e da verticalização das compras de materiais e medicamentos. Com o tempo, os hospitais poderiam ser remunerados com margens reais de lucratividade sobre o custo dos seus serviços, conquistando finalmente a independência dos ganhos com materiais e medicamentos. A maneira de realizar essa proposta é a instauração de uma gestão conjunta, onde profissionais das operadoras passariam a trabalhar dentro dos serviços hospitalares, mapeando processos e custos. Profissionais dos serviços hospitalares passariam a ser treinados dentro da cultura de gestão das operadoras, assimilando com mais facilidade o conhecimento. A importância da gestão seria imediatamente percebida e expandida para os serviços não administrativos, permitindo a melhoria da qualidade e segurança na assistência. Kaplan e Porter (2011) propõem o mapeamento dos custos baseados na patologia, por meio de sete passos: 1. Definir a patologia; 2. Definir a cadeia de valor da prestação da assistência; 3. Criar mapas de processo de cada atividade na prestação da assistência ao paciente; 4. Obter estimativa de tempo de cada processo; 16 5. Estimar o custo de fornecer recursos de assistência ao paciente; 6. Estimar a capacidade de cada recurso e calcular o custo unitário da capacidade; 7. Calcular o custo total da assistência ao paciente. Essa forma, testada em serviços hospitalares nos Estados Unidos, não leva em consideração a complexidade e variabilidade do tratamento de algumas patologias e nem a legislação a ser cumprida. Um fator importantíssimo que precisa ser levado em consideração é a legislação que regula os serviços hospitalares, o que muitas vezes levará a uma ociosidade de equipes e leitos. Hoje, no Brasil, um hospital com taxa de ocupação na faixa de 85% é considerado lotado. No Brasil, seria mais prudente o mapeamento do custo por leito por dia, baseado na realidade de cada hospital. Custos específicos com a patologia, como materiais, medicamentos e honorários médicos precisam ser apurados à parte, com o cuidado de colocar os hospitais em situação de insolvência, o que só agravaria o problema. Essa nova forma de relacionamento entre operadoras e hospitais provocaria uma cadeia de geração de valor sustentável, eliminando algumas causas da constante elevação dos custos assistenciais. Para os hospitais, seria a oportunidade de obter ganhos reais com o seu negócio principal (os serviços), eliminar retrabalho e desperdícios, melhorar a qualidade da assistência, a gestão do negócio e atrair novos clientes. Para as operadoras, significaria possuir em sua carteira serviços credenciados de qualidade superior, redução do custo assistencial causado por desperdício, superfaturamento dos hospitais e, principalmente, por eliminar as altas margens dos prestadores com a aquisição direta de materiais e medicamentos. Também não há mais espaço para lucratividades de negócio como a apurada por Moura (2008) no hospital estudado, em torno de 17%. Apesar de raros, e provavelmente não se repete nos dias atuais, não podem ser mantidos quando as operadoras mantém uma lucratividade média na ordem de 0,8%, segundo Instituto de Estudos da Saúde Suplementar (2013). Infelizmente isso tudo não é suficiente para tornar a saúde suplementar sustentável. Mesmo com a mudança da lógica econômica na relação entre operadoras e prestadores, ainda vai persistir a principal causa das elevações das despesas assistenciais bem acima da inflação: a inserção tecnológica sem critérios. 17 Para resolver esse problema, há necessidade de profundas mudanças na regulação de materiais e medicamentos antes que sejam colocados no mercado. Para isso, é fundamental o uso de conceitos de farmacoeconomia e custo/efetividade na precificação de novos produtos. A regulação de preços pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) é inevitável, mesmo para a sustentabilidade do SUS. Hoje, se coloca no mercado, a um custo quatro ou cinco vezes maior, um produto para uso similar a outro já existente sem a mesma proporção de benefícios, muitas vezes citados, mas quase sempre sem base científica. Na regulação da saúde suplementar, é necessária a criação de um rol de materiais e medicamentos de alto custo, incluindo diretrizes de utilização baseadas em evidências científicas. Isso é papel da Agência Nacional de Saúde Suplementar, que já faz uso desse mecanismo para procedimentos médicos. Na atual legislação, qualquer material ou medicamento colocado no mercado é imediatamente inserido nas coberturas dos planos de saúde, pois esses tipos de item dependem apenas da indicação médica que, como já destacado anteriormente, é altamente influenciada por interesses financeiros de médicos e prestadores. Esse novo rol daria previsibilidade para as operadoras, permitindo uma melhor precificação e planejamentos orçamentários mais precisos, evitando os enormes prejuízos observados recentemente. Sem essas mudanças na regulação e relações da saúde suplementar, dificilmente teremos um futuro com uma saúde privada acessível e de qualidade. No modelo atual, a tendência é de verticalização em massa na tentativa de conter os custos por parte das operadoras, falência de hospitais privados e elitização dos planos de saúde, exatamente o contrário do que deseja o governo brasileiro. CONSIDERAÇÕES FINAIS A abrangência desse trabalho foi frente a apenas dois dos grandes desafios das operadoras de saúde no Brasil. Outros temas também merecem grande atenção, como o atual modelo assistencial da livre escolha, principalmente nas cooperativas médicas, informações na internet que levam beneficiários a pressionar médicos para a realização de métodos modernos de diagnósticos sem necessidade, 18 a chamada “judicialização da saúde”, o envelhecimento da população, entre outros de difícil controle. Os desafios são enormes e não há muito tempo para soluções. Uma inversão de foco da regulação do setor precisa ocorrer imediatamente, procurando a sustentabilidade da saúde suplementar e não apenas a defesa do consumidor, muito importante, mas tratada de maneira inconsequente pela ANS atualmente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAS, Katia. Gestão de Custos em Organizações Hospitalares, 2001. Disponível <http://www.gea.org.br/scf/ABC%20para%20hospitais.pdf> Acesso 22 mai. 2013 ABIMO. 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