No Boragó,
as lascas de
nata queimada
parecem carne,
mas a vitela
está embaixo,
cozida no leite,
com sabores
dançando entre o
salgado e o doce
A nova cozinha chilena
Com jovens chefs, o Chile vive um momento de intensa
criação usando seus ingredientes mais típicos
m au r o
m a r c e lo
a lv e s
f otos
A r ac e l i
Pa z
/
P r o C h i l e
Chef Rodolfo
Guzmán, do
Boragó: com ele,
dochilena
resort
a Lobby
cozinha
One&Only
se
renovou
Town
aCape
partir
dos
produtos nativos
divulgação
P o r
36
r e v i s t a
g o s t o
m a r ç o
2 0 1 5
r e v i s t a
g o s t o
m a r ç o
2 0 1 5
37
Ninho de codorna
do Boragó feito
com cogumelos
e fibras de pão,
no galho bonsai,
para ser comido
junto com o ovo
de gema líquida
e densa
A
saída de Santiago estava marcada para as 9 da manhã.
Destino: Isla Negra, no litoral
chileno, a cerca de uma hora
da capital, nome evocando o
grande poeta Pablo Neruda,
que ali tinha casa. Mas a viagem não era para visitar a casa-museu onde ele se inspirou para escrever “Canto Geral”,
sua obra mais célebre. No lugar das memórias do poeta, a
presença de um jovem cozinheiro coletando plantas que
cresciam entre as pedras e que, à primeira vista, eram puro
mato. Poderia ser, mas não era. Rodolfo Guzmán exibia
alguns ingredientes incomuns, que fazem parte de seus
menus no restaurante Boragó, eleito em 2014 o quinto
melhor da América Latina pela revista inglesa Restaurant.
Valorizando produtos desconhecidos ou desprezados em
seu país, ele mostrava os rumos da nova cozinha chilena.
“Cheirem e comam, este é o perejil de playa”, dizia
o chef. E um cheiro e gosto de salsinha era perfeitamente sentido naquelas folhinhas verdes diferentes que, por
causa da maresia, já vinham “temperadas” com sal, assim
como os outros matinhos. Aqueles palitos verdes enrugados eram os aspargos do mar, folhas retorcidas lembravam
acelga, outras tinham jeito de manjericão para fazer pesto
38
r e v i s t a
g o s t o
m a r ç o
2 0 1 5
de playa, tubérculos na base das pedras eram rábano selvagem, filetes verdinhos e finos tinham gosto de alho, outros
de coentro e as estranhíssimas algas conhecidas como cochayuyo, longas e feiosamente parecidas com borracha, seriam transformadas por Rodolfo Guzmán em algo parecido com um gostoso palmito. Está em minhas notas: “Uma
das experiências ligadas à gastronomia mais instigantes que
já presenciei na vida”.
Dali, iríamos ainda para outros lugares que exprimem
a impressionante diversidade de um país com território
longilíneo e estreito, sempre com o chef catando, cheirando e experimentando ocorrências da natureza para incluir
em seu cardápio. Seja no Atacama, com sua paisagem
lunar e vegetação raríssima, ou na verdejante região das
Araucanías, mais ao sul, onde chove dez meses ao ano.
No deserto, a pesquisa começa no próprio Hotel Alto Atacama que nos recebe e mantém em seus jardins plantas
usadas há séculos pelos indígenas, como a chañar, que dá
uma espécie de amêndoa boa para licor, doce ou farinha
e a kachiyuyo, folha com um gosto azedinho delicioso. O
hotel, ao lado de San Pedro de Atacama, é base para inúmeras excursões pelo deserto, indo dos inúmeros vulcões,
gêiseres e vales até os famosos salares, lâminas de água salgada a mais de 4 mil metros de altitude onde centenas de
flamingos embelezam a paisagem agreste. Mas o foco da
viagem era a comida e o restaurante Los Senderos, na localidade de Cuyo, atiçou a curiosidade: depois da conversa
com o proprietário Guillermo Vega, indígena que planta
tudo o que é consumido ali e conhece mais de 80 tipos de
milho, comemos carne de llama com quinoa tostada e milho crocante (a carne é tenra e gostosa), mousse de chañar
Depois de
trabalhar no
El Bulli e ter
seu próprio
restaurante em
Tóquio, Francisco
Araya voltou ao
Chile
O salmão frio
com caviar
sobre molho
do missô do
Alegre: diálogo
entre o salmão
do Pacífico e o
molho japonês
e suco de uma variedade local de membrillo (marmelo).
Do deserto, onde a média anual da umidade gira em
torno de 6% e respirar nas alturas é uma dificuldade só
amenizada pelo chá de coca, seguimos para Pucón, com
escala em Santiago. Nessa região pré-patagônica, de impressionante beleza natural, com lagos, muitas espécies
de flores e árvores emolduradas por vulcões nevados, o
contato foi com a culinária mapuche, também fortemente
ligada à terra e preparações à base das diversas variedades
de milho. A maior atração local é o novíssimo Hacienda
Hotel Vira Vira, com 40 hectares de área e que enfatiza
o uso dos ingredientes típicos, com vasta horta própria,
criação de javalis, ovelhas, cabras e gado e uma moderna
queijaria a cargo do suíço Pierre Coulin. Seu restaurante,
chefiado pelo nativo da região José Torres Carrillo e com
estilo consistente da nova cozinha chilena, usa bastante as
frutinhas vermelhas dos bosques e os pinhões das onipresentes araucárias (diferentes das brasileiras). Além da erva
que dá nome ao belo hotel: Vira Vira.
Outro chef que oferece ares renovados à culinária do
Chile é Francisco Araya, que apesar de jovem tem um currículo e tanto: estagiou no espanhol Mugaritz e depois foi
cozinheiro no mítico El Bulli de Ferran Adrià. Em 2012,
uniu-se a dois colegas do El Bulli e montou o restaurante
“81” em Tóquio, juntando ingredientes japoneses e latino-americanos e ganhando uma estrela Michelin logo após o
primeiro ano de funcionamento. Voltou ao Chile em 2014
para chefiar o Alegre, restaurante do Hotel Astoreca, em
Valparaíso. Com enfoque natural nos fabulosos pescados e
frutos do mar do Pacífico logo ali à vista, Francisco Araya
mostra uma técnica refinada e precisa em seus pratos,
como o emblemático salmão frio com caviar sobre molho
de missô e purê de laranja levemente trufado ou o Crudo
de Navajas (ceviche desse molusco) com sal de tangerina
sobre lâmina de abacate. Alta gastronomia.
Em Santiago, os rapazes do descontraído restaurante
99, no mesmo número da rua Andrés de Fuenzalida, no
bairro de Providencia, também estão na onda da novíssima cozinha chilena. Com experiências anteriores em restaurantes do porte do dinamarquês Noma e do espanhol
El Celler de Can Roca, Kurt Schmidt e Ricardo Verdejo
praticam uma culinária que surpreende pela leitura jovial
A viagem de uma semana com
GUSMÁN terminou com jantar
em seu Boragó, no bairro de
Vitacura, em santiago
em pratos como o confit de pato com uma “explosão” de
beterraba, o ovo cozido a baixa temperatura com cogumelos e picles de cebola ou o crème brulée com dentelle de
amêndoas, sorbet e sopa de maçã verde. As sobremesas,
que encantam, estão a cargo de Gustavo Sáez, que passou cinco anos no Brasil e trabalhou no D.O.M. e Maní,
entre outros.
Mas a grande estrela da atual cozinha chilena é mesmo Rodolfo Guzmán. A viagem de uma semana com
ele terminou com jantar em seu Boragó, inaugurado em
2007 na avenida Nueva Costanera, no bairro de Vitacura, depois de cumprir vários estágios em restaurantes de
vanguarda, como o Mugaritz. A decoração é obviamente clean: quem deve cativar os olhos é a comida, não os
r e v i s t a
g o s t o
m a r ç o
2 0 1 5
39
No restaurante
99, pratos joviais
e descontraídos,
como o confit
de pato
quadros. E Rodolfo provoca em cada criação, com design e sabores instigantes, a começar pelo fato de que os
pratos são explicados pelos jovens cozinheiros de sua
brigada, ou por ele próprio, e não pelos garçons. Todo
o incessante trabalho da cozinha é visto através dos janelões de vidro.
Utilizando ingredientes naturais do litoral, dos Andes,
do deserto e das regiões verdes do sul, Rodolfo constrói
uma sequência moderna ancorada em métodos tradicionais de cozimento com pedras vulcânicas e madeiras (“minha cozinha mira o passado para seguir adiante”, diz ele).
Juntando o lúdico ao choque, o chef apresenta um prato
onde lascas escuras parecem carne, mas não são: a carne,
de vitela, está embaixo, cozida no leite, e as lascas foram
feitas com nata queimada revelando toques sutis salgados
e doces. O tartar de cervo da Patagônia, de tempero deli-
cadíssimo, vem encimado por folhinhas verdes – e o que
elas são? A mesma folha que o bichinho come. O nido de
codorniz simula um galho bonsai com um ninho feito de
cogumelos e fibras de pão que é comido junto com o ovo
de gema líquida densa e envolvente, o purê negro de peixe
vem grudado a uma pedra e a salada andina é feita com
folhas da cordilheira que só nascem a mais de 3 mil metros
de altitude. A sobremesa com raros morangos brancos só
é possível ser experimentada dez dias ao ano, tempo da
colheita. Cada prato do menu-degustação é acompanhado por um vinho diferente do país. Rodolfo mantém um
laboratório no andar de cima do restaurante e ali já foram
criados mais de 700 pratos junto com sua talentosa equipe, sempre a partir dos ingredientes da estação, dos mais
óbvios aos impensáveis. Definitivamente ele revolucionou
a nova e surpreendente cozinha chilena.
Restaurante Boragó - Avenida Nueva Costanera, 3467, Vitacura, Santiago, www.borago.cl n Restaurante 99 - Rua Andrés
de Fuenzalida, Providencia, Santiago, www.99restaurante.com n Restaurante Alegre - Hotel Astoreca, Rua Montealegre, 149,
Valparaíso, www.hotelpalacioastoreca.com n Hacienda Hotel Vira Vira - Parcela 22a Quetroleufu, Pucón, www.hotelviravira.
com/pt n Hotel Alto Atacama - San Pedro de Atacama, www.altoatacama.cl n Restaurante Los Senderos de Coyo - Pasaje
Kara-ama s/n, San Pedro de Atacama, e-mail: [email protected]
40
r e v i s t a
g o s t o
m a r ç o
2 0 1 5
Download

A NOVA COZINHA CHILENA