Horus Vital Brazil: suas paixões, a psicanálise e a SPID Leila Bittencourt Brazil / João Rodolfo do Prado No sete de maio deste ano, o doutor Horus faria 80 anos de vida. No dia seis, a h umanidade lembra os 150 do nascimento de Freud. Sem dúvida, me u pai estaria m uito co ntente co m est a d upla comemoração. A ssim, an tes d e m ais nada p reciso ag radecer à S PID pela sen sível p ercepção d e ap roximar est as d uas datas. A final, manter a palavra dele em circulação é sustentar seu objetivo maior a t ransmissão d a psicanálise -, o q ue co ncretizou t anto p ela v ida institucional, como por seu ensinamento e publicações. Neste co ntexto, d ou esp ecial i mportância à d ivulgação d e su a obra entre os estudantes e o s p sicanalistas m ais jovens, q ue não tiveram contato, ou o t iverem durante muito pouco tempo, com o D r. Horus. Para todos nós, mas principalmente para eles, é que pensei em falar um pouco do t rabalho de le, q ue s e confunde c om s uas pa ixões. E esta, p rovavelmente, é a l embrança mais f orte: seu p rofundo am or, sua t ransbordante p aixão, p or u m t rabalhar q ue acab ou p or se converter em prática psicanalítica, esforço de todos os dias que só se interrompeu poucos dias antes de sua morte. Não ser á ex agero d izer: q uando se t ornou i mpossível t rabalhar, e trabalhar n este caso era ex atamente t ransmitir a p sicanálise, encerrar seu último curso, o desejar se tornou seu desafio final. Meu desafio, aqui e agora, é co nseguir chegar ao final deste escrito. Num o utro l ugar t alvez f osse m ais f ácil, m as nesta en cruzilhada d e destinos as co isas f icam co mplicadas. A final, f alo co mo p sicanalista, que h omenageia o co lega t ão er udito e d e u ma sen sibilidade c línica extraordinária; f alo t ambém co mo m embro d a S ociedade d e Psicanálise Iracy Doyle; e ainda mais difícil, como filha que foi única por mais de 20 anos (e tenho uma irmã que também é filha única...), que cr esceu en tre tantos l ivros ( nos últimos t empos, m eu p ai f alava de seu a mor p elos l ivros e q ue n ão co nseguia p arar d e co mprá-los pelo p razer d e t ê-los), o uvindo m úsica b arroca ( mais r ecentemente ele se d edicava ao ch orinho) n um ambiente que ch eirava a Half an d Half e outros fumos para cachimbo. Mas falar do trabalho do doutor Horus é tocar na marca do pai. Afinal ele nasceu dentro do Instituto Butantã, criado por seu pai, Vital Brazil Mineiro d a Ca mpanha, para p ermitir su as p esquisas ci entíficas e a produção de soro anti-ofídico. Já em Niterói, no Instituto Vital Brazil, ele t rabalhou e d esenvolveu t rabalhos d e p esquisa ai nda m uito jovem. N aquele t empo, porém, el e t inha duas p aixões: ser g eólogo (como acab ou sen do seu h eterônimo, J oão N avarro) e est udar filosofia. Mas o c aminho q ue t rilhou f oi o da Medicina. Pr etendia s er mé dico sanitarista, ma s s eu pr imeiro e mprego i mportante f oi di rigir um hospital em C olatina, E spírito S anto, t endo co mo p arceiro outro recém-formado, Carlos Augusto Bittencourt Silva, o g rande amigo de toda a v ida, assi m co mo Hé lio P ellegrino. A s co ndições er am m uito precárias - tanto as d o h ospital, co mo as p articulares -, ma s f oi um tempo de treinamento, estudo, experimentação. Nos seus últimos tempos de vida, meu pai gostava muito de lembrar as dificuldades e as vitórias naquele precário hospital. Chegou mesmo a dizer que era o trabalho do qual mais se o rgulhava. Talvez porque ali p udera d esenvolver su as q ualidades m aiores: est udar m uito, investigar, o usar, co rrer o s r iscos d as av enturas d o sab er, ab rir caminhos para uma vida melhor daquela gente necessitada, aprender e ensinar fazendo. Estas car acterísticas v ão en contrar u m cam po f értil em seu t rabalho seguinte, co mo m édico d a Aeronáutica. V ale dizer, q ue aí h ouve o cruzamento de duas paixões: a medicina (naturalmente investigativa) com a a viação, q ue el e t ivera d e ab andonar d epois d e m uito treinamento n o a eroclube d e N iterói, n ão se m v iver an tes f ortes emoções. E m esp ecial, u ma p ane so bre a b aía d e G uanabara, q ue exigiu perícia para a p lanagem até a pista do aeroporto em Charitas. Esta h istória el e se mpre co ntou co m i ndisfarçável o rgulho e m erece lugar especial numa família que tem pelo menos outros dois pilotos. Na A eronáutica, o nde t inha a i ncumbência d e av aliar o s p ilotos, el e encontrou t oda u ma p arafernália p ara t estes p sicológicos q ue praticamente não era utilizada. Aí, por conta própria, enfrentou pilhas de m anuais e ac abou est abelecendo as b ases d e u m ser viço d e avaliação psicotécnica. Sua atividade acabou influenciando a d iversos colegas, que, como ele, foram depois para o mundo psicanalítico. Na verdade, quem talvez possa ajudar a contar melhor esta história é o Samuel Faro, hoje o participante mais antigo da SPID. Ao fazer estas rememorações, creio ser necessário dizer que eu nasci quando m eu p ai t inha ap enas 20 an os. A ssim, d esde C olatina p ude compartilhar d e t odos esses av anços e seu s i nevitáveis tropeções. E tinha dez anos quando, no final dos anos cinqüenta, ele foi fazer sua formação n o Willi an Wh ite I nstitute, e m N ova Y ork, u m m omento crucial para o então Instituto de Medicina Psicológica. Nesta al tura, é p reciso voltar at rás alguns an os. Q uando t omou a decisão d e se t ornar p sicanalista, Ho rus p rocurou Ir acy Do yle, s ua primeira psicanalista. Ela fundara o IMP e iniciara a f ormação de um primeiro gr upo de mé dicos - Hélio P ellegrino, H élio T olipan, I van Ribeiro, E dson L annes, en tre o utros. S ua m orte r epentina cr iou um impasse, r esolvido co m a decisão d e q ue m eu p ai i ria t erminar a formação em N ova Y ork, j untamente co m U rano A lves e M agdalena Pimentel, f icando o d outor Jaime P ereira g arantindo a ex istência d o IMP. U rano e M agdalena f icaram p ouco t empo n os E stados U nidos, mas m eu p ai co nclui seu s estudos e d esenvolveu su a an álise co m Clara Tompson e Gerard Chrzanowski. A p assagem p elo W illiam A llanson f oi cr ucial p ara o p ercurso psicanalítico d e m eu p ai. Ele co ntava q ue a i nstituição, n aquele momento, v ivia u m m omento d e f ortes em bates t eóricos, m ediados com sabedoria e ef iciência por Clara Tompson. Isto lhe deu a cl areza de que a psicanálise não só não era feita de caminhos fechados, mas principalmente e xigia de cad a p sicanalista a montagem, a construção, d e u ma p ráxis, m antendo i ndissolúvel a d ialética en tre prática e t eoria. O utra m arca d efinitiva d este t ipo f oi a o pção p elo pluralismo, co m a o pção p ela cr iatividade i ndividual s e o pondo à figura de mestres e de escolas. De volta do Rio de Janeiro, Horus centraliza a reabertura do IMP, que logo g anha esp aço no am biente p sicanalítico b rasileiro. P or c onta da ênfase só cio-histórica, al icerçada n o p ensamento d e au tores co mo Sullivan e E rich F romm, o I MP f ica c onhecido c omo “c ulturalista”. Para el e, o essen cial er a s ustentar o p ensamento p sicanalítico t al como fora inventado por Freud, o que o levou a se p osicionar contra os fisicalismos e os reducionismos do modelo médico. Assim, g anha esp ecial i mportância ( tanto n a su a o bra, c omo p ara a psicanálise b rasileira) seu p rimeiro t rabalho i ndividual p ublicado no Brasil: “A m etapsicologia - um en saio cr ítico”, q ue est á n o p rimeiro volume da série Conscientia, publicado pela Editora Vozes em 1974. Meu pa i era o o rientador ed itorial d a co leção, i naugurada co mo o tema “A psicanálise em crise”. Vale destacar que, nesta época, ele também concebe a revista Tempo Psicanálico, u m d e seu s maiores orgulhos e q ue h oje l ança seu trigéssimo sétimo número. O t om d o t rabalho ap arece l ogo n a ab ertura d a ap resentação d o volume, feita por Hélio Pellegrino: “O inconsciente é, fora de dúvida, a coisa freudiana por ex celência”. E m ais ad iante el e afirma: “ Nos dias que correm, a espécie de consciência que se arroga a virtude de um sab er sem cr ítica e s em d úvida, a r espeito d e si própria e d o mundo, descai inevitavelmente e se t ransforma em ideologia ou, - o que dá n o me smo - num e sforço d e f alsa racionalidade e d e f also conhecimento, so b cu jo v éu en cobridor se o cultam t odas aq uelas forças que pr etendem ne gar no ho mem s ua di gnidade, a utonomia e liberdade.” O ar tigo d e m eu p ai m ostra u ma f orte i nflexão d e seu pensamento. Ao m ontar u ma perspectiva d a t eoria p sicanalítica, el e se al ia aos críticos d e u m m odelo “ biológico, f isicalista e m ecanicista, q ue se define n a t eoria d a l ibido em s ua f orma ort odoxa”, o q ual t eria funcionado “ como um bl oqueio a o de senvolvimento d a p sicanálise como ci ência”. Os en traves p rincipais ser iam o s p onto d e v ista econômico e, p rincipalmente, o g enético. A saí da d este m odelo se faz, en tão, p or u ma p erspectiva est rutural, p rogressivamente se considerando as r elações o bjetais co mo d efinidoras de um “ campo alteritário d eterminante”, o que l evaria ao “ fato d a si gnificação”. O trabalho, após d estacar u ma sér ie d e au tores, co mo K aren Ho rney, Harry S tack S ullivan e F airbain, faz en tão u ma ap resentação d o pensamento d e J acques L acan, a partir de su as r elações co m a antropologia de Levy Strauss e a linguística de Saussure. Este t exto - simples, d idático - abre u ma l onga e ár dua p rodução, que v ai s e m aterializar em dezenas de ar tigos e t rês l ivros, t odos voltados para a c onstrução d e u m p ensamento vol tado p ara a transmissão d a p sicanálise. N esta t arefa, o t rabalho d e meu p ai se desdobra e m do is a mplos movimentos, s empre t endo a S PID c omo núcleo p rodutor, m as est imulador da t roca e d a am pliação d a psicanálise. Um desses movimentos é a b usca de uma integração internacional, o que se co ncretiza n a f undação d o In ternational F ederation o f Psychoanalitic S ocieties, d a q ual p articipou i ntensamente e p ara a qual p rocurou at rair e co nstruir p arcerias co m o utras i nstituições brasileiras. Além de ter participado de inúmeros fóruns internacionais da IF PS, meu pai foi f igura cen tral na m ontagem e r ealização d o oitavo fórum, realizado em 1988 no Copacabana Palace, que continua entre um dos maiores e mais importantes encontros internacionais de psicanalistas realizados no Brasil. O ou tro movimento foi m uito m ais t rabalhoso e vi sou dialetizar e aprofundar o rigor dos fundamentos institucionais da SPID. Assim, a reforma est atutária d e 1982 r epresentou u m avanço c onceitual n o campo d a f ormação p sicanalítica, com p rofundas al terações n a relação saber/poder, expressas principalmente pela extinção da figura do an alista d idata. Cerca d e 20 an os m ais t arde, u m l ongo p rocesso de r eformulação contou co m su a participação at iva, esp ecialmente nos debates em encontros e assembléias. A cam inhada d e H orus V ital Br azil, d a q ual destaquei a penas al guns marcos, m e i nspira co mo p sicanalista e m e e nche d e orgulho co mo filha, uma filha que procurou estar ao seu lado ao longo de cinqüenta anos e t antos an os. A ssim f oi em N ova Y ork, como em t antas f érias de f im d e an o p assadas ar rumando a b iblioteca d o IM P, ai nda na antiga se de d a R io Br anco. E t ambém, co mo n ão p oderia d eixar d e ser, em m uitas discussões e em bates, q uando co mecei, t ambém, a participar da Sociedade. No seu último ano de vida, todas essas trilhas foram retomadas, em longas co nversas e em discussões so bre o f uturo. P rimeiro a necessidade de terminar e publicar o que seria seu último livro sobre psicanálise e, t ambém, seu p rimeiro l ivro d e p oesias. Dep ois a necessidade imperiosa de participar da festa de casamento da minha irmã m ais n ova, Liana. Dep ois, ai nda m ais, as co nversas so bre o curso q ue d aria n o p rimeiro semestre de 2005, que m uitas vezes se desdobravam n o q ue d iscutiria n o sem estre seg uinte. L ongas conversas, esperanças, muita coragem. Aquele último ano começou às sete e meia da manhã de 29 de junho. Estava na cozinha da casa do meu pai, esperando para irmos ao PróCardíaco fazer os exames que acabariam fechando o diagnóstico. Ele entra um pouco abatido, mas sempre pontual e elegante. E me saúda com uma frase da vida toda e que nunca consigo esquecer: - Oh, meu bem! Você já está aí? E acrescenta: - Olha que coincidência a p oesia que saiu ontem na revista da Folha de São Paulo. É uma tradução, mas é a melhor possível. E começa a d eclamar, com o mesmo vigor e e ncantamento com que recitava Shakespeare, arriscava-se numas árias de ópera, enfrentava tangos. No final, nós dois chorávamos. Foi nosso último choro juntos. A poesia, de Dylan Thomas, chamava-se Não vás tão docilmente. E merece ser relida: Não vás tão docilmente nesta noite linda: Que a velhice arda e brade ao término do dia; Clama, clama contra o apagar da luz que finda. Embora o sábio entenda que a treva é bem vinda Quando a palavra já perdeu toda a magia, Não vai tão docilmente nessa noite linda. O justo, à última onda, ao entrever, ainda, Seus débeis dons dançando ao verde da baía, Clama, clama contra o apagar da luz que finda. O louco que, a sorrir, sofreia o sol e brinda, Sem saber que o feriu com a sua ousadia, Não vai tão docilmente nessa noite linda. O grave, quase cego, ao vislumbrar o fim da Aurora astral que o seu olhar incendearia, Clama, clama contra o apagar da luz que finda. Assim, meu pai, do alto que nos deslinda, Me abençoa ou maldiz. Rogo-te todavia: Não vás tão docilmente nessa noite linda, Clama, clama contra o apagar da luz que finda. Leila Bittencourt Brazil membro associado e João Rodolfo do Prado é membro psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle A responsabilidade dos artigos assinados é dos seus autores. OBS.: Não houve revisão para este texto.