"'(EXTQ
[It::= '
-
"5IS..
~",k',
Platão
A
lguém disse que toda a filosofia
- ocidental nada mais é do que
um colossal comentário à obra de
Platão. De fato, este ateniense é o
único .ilósofo que jamais deixou de
ser estudado e pesquisado nos últimos dois milênios e, por isso, pode
ser considerado como um pensador
de perene atualidade.
De origem aristocrática, Platão
vangloriava-se dos antepassados
ilustres e considerava a política como decorrência natural da prática
da filosofia, na medida em que acreditava que o poder devia ser entregue aos mais sábios. Essas ambições não fizeram dele um político apesar de algumas tentativas nesse
sentido -, mas estimularam-no a
criar uma nova instituição social, a
escola filosófica, que, sob a orientação de um mestre, tinha como objetivo formar a fu tura classe diri- Platão (lvltlSeuLOLlvre, Pmis). Replica de Llmoriginal
gente de Atenas. À direção dessa es- do século IV a. C.
cola, chamada Academia - que inicialmente não passava de um simples ginásio próximo aos jardins de Academus +, o filósofo dedicou toda a sua vida, excetuando o tempo gasto em uma
série de mal-sucedidas viagens a Siracusa, buscando a anuência do tirano Dionísio para fundar, na Sicília, um Estado modelo, uma Cidade governada por
um rei-filósofo. Dois fatos marcaram a vida de Platão, inteiramente consagrada ao estudo e à pesquisa: o encontro com Sócrates, quando tinha aproximadamente 20 anos; e, nove anos mais tarde, o dramático processo que resultaria
na condenação à morte do mestre. Sócrates foi tema dos melhores escritos de
Platão e protagonista dos seus 36 diálogos.
Os diálogos de Pia tão são convencionalmente
divididos em nove terralogías: 1) Eutifron,
Apologia c/e Socraies, Criion, Féc/on; 2) CrátUo, Teeteto, Sofista, Poiitico; 3) Pannênic/es, Filebo,
Banquete, Fedm; 4) AIcebiades I e li, Hiparco, Amantes; 5) Teages, Cármides, Laques, Lisis; 6)
Elltidemo, Protágoras, Górgias, Ménon; 7) Hipias menor, Hipias maio,', lon, Iv{enéxeno; 8) Clitófon, Repüblica, Timal, Cntias; 9) lV[inos, Leis, Epinômide, Epístolas.
ILUSTRADA
DE FILOSOFIA
N(~~
~~t~
"'\.
:,~:b1?&;~,~~,,,",.J1V~~~5i:-',.,de.h
>-p~~;.~t~~1~~~~t~Q;~:~~f0~~~~~~~r;.!t~~~l~@~!j~írt~i~~ç~l
i·:,'c,;;',,;;L,'t;:;.;,in-1§h:·Z~i::;;':,\;;;cJ.;í."/"):;';X'i;;",~');j. ··:"c ..';.
'
PLAT ÃO
Atenas, 428-347 a.C
ANTOLOGIA
\jbc.Q..~
62
"",::m
L~.
TAO
'..
~~7:<;;
Como buscar
o que se ignora
',l
o PROBLEMA
Socrates ensinava que sábio é
resolver o problema da origem das idéias, o filosoaquele que sabe que não sabe. Mas..então, corno é _ fo recorre doutrina da reminiscência, segundo a
possível o conhecimento? Se as idéias não nascem
qual conhecer é, para a alma, lembrar o que já sadas experiências sensíveis, de onde se originam?
bia antes de encarnar em um corpo. E a tese central
A TESE
Seguindo o caminho aberto por Parrnênído Platonísmo, sustentada por uma série de dcutrides (ver item l3). Platão exclui a hipótese de que as
nas colaterais, como a crença órfico-pitagórica
da
idéias derivam dos sentidos: elas são pura vi-são in- " . mecempsícose ou transmígracão das almas. O tretelectual, uma representação na tela da mente. Para
cho abaixo foi extraído do diálogo Méllon.
à
o problema: como é possível
conhecer aquilo que se ignora?
o wrENON Mas de que modo buscarás, Sócrates, aquilo que absolu-
tamente ignoras? E das coisas que ignoras, da qual farás objeto de inve.stigação?E se por acaso a encontrares, como saberás que é exatamente a que buscavas, se não a conhecias?
SÓCRATES Compreendo o que queres dizer, Ménon! Vê
que belo argumento erístico estás a propor! O argumento segundo o qual ao homem não é dado buscar o que sabe nem o
que não sabe: o que sabe porque, conhecendo-o, não necessita busca-lo: o que não sabe porque tampouco sabe o que está
buscando.
MÉNON E não.te parece, Sócrates, que este seja um raciocínio bem conduzido?
SÓ,CRATES A mim não parece!
MENON Di.z-me por quê!
Sócrates define o problema
"erístico", ou seja, puramente
retórica e capcioso.
SÓCRATES Certamente! Porque tenho ouvido de homens
e mulheres muito doutrinados em coisas divinas ...
MÉNON O que dizem?
SÓCRA TES Coisas verdadeiras. a meu ver, e belas.
MÉNON Quais? E quem são eles?
Sócrates refere-se às
doutnnas dos órticos.
SÓCRA TES Sacerdotes e sacerdotisas, que se preocupam em
explicar o objeto do seu próprio ministério. E a mesma coisa dizem também Píndaro e muitos outros poetas, os poetas divinos.
E dizem (mas vê se a ti parece que falam a verdade) que a alma
humana é imortal, e que ora ela tem a sua conclusão (a que se
chama morrer), ora renasce, porém jamais é desrruída: eis porque, dizem, é preciso viver do modo mais santo possível...
05 Órficos sustentavam a
imortaíidade da alma e a
metempsicose - ou seja, a
passagem de uma alma
para um novo corpo.
Assim, para a alma imortal e muitas vezes renascida, qlle já
viu todas as coisas deste mundo e do Hades, nada existe que
não tenha aprendido. Não há, portanto, por que se surpreender se pode fazer aflorar na mente o que já conhecia antes 50bre a virtude e todo o resto. Por outro lado, sendo a natureza
toda congenere e tendo a alma tudo aprendido, nada impede
que a alma, recordando (aquilo a que os homens chamam de
aprendizagem) uma única coisa, encontre também todas as outras, desde que seja corajosa e incansável na investigação. Sim,
procurar e aprender são, no seu conjunto, reminiscências.
Para a alma imortal, que Ia
completou inúmeras veZES o ciclo
da Vida, conhecer Significa recordar.
63
,
ANTOLOGIA
ILUSTRADA
DE FILOSOfIA
lIi;;
PLAT
o paradoxo
Ão;~:)i"@r~;~1.mlff~l~i~~f~ii!~~1~~f0~ft~:ri~]~~f.~ji
do conhecimento é,
portanto, (eso/vive/.
Assim, não devemos confiar no raciocínio
erístico:
ele nos
tomaria preguiçosos
e soa agradável somente aos ouvidos das
pessoas sem vigor; o nosso raciocínio,
ao contrário,
toma todos operosos
e dedicados
à pesquisa.
Convencido
de que é o
verdadeiro,
desejo procurar contigo o que é a virtude.
A~.A.M.~.~Sie._-º~L~~.Ml""-~5~~.N(aA
Anamnese,
A Academia platônica, segundo
uma história em quadrinhos
contempordnea.
11
.. VE"J<O FIl-05<)f:O
INõ5GNA t...A VIR'rI,;' P1U'
CON /..'EôEMPIO CHI: CON
L.E PAROL..E. ~L.I UOMINr
NON HANNO 6150CjNO
1/1 PRE:Ce: TTI PER
IMPA ..
~R~
A C4MMINARE SUl...L.A F.:1.TICC5A 5TRA17A
CI-IE: PORrA
MA
DI
AJ.. 8E:Nt:,
QUA/... ..•
l..A PEf<-
VSDt=RS
C.UNo ~E
GORt=.?E ~5RENAM.ENTE,
28
Todo conhecimento
é urna recordaeão
.>
o PROBLEMA o que toma possível o conhecimento? Como conseguimos empregar os conceitos gerais, ou seja, classificar os objetos segundo a
classe a que pertencem?
A TESE O processo que leva à formação dos conceitos não nasce da experiência: de fato, não formamos a idéia de cavalo observando muitos cavalos.
ANTOLOGIA
ILUSTRADA
DE FILOSOFIA
.
em grego, significa recordação, reminiscência. O termo indica a
teoria de origem mítico-filosófica com que Platão tenta explicar o problema
do conceito e do coohecrnento em geral. A alma (a mente humana) não adquire conhedrnentos a partir do exterior, mas recorda, no seu interior, aquilo que outrora adquiriu e depois esqueceu. Retomando a teoria de Pitágoras
da metempsicose, Platão adia que as almas transmigram de um corpo para
o outro, mas antes de ocupar um novo corpo têm a possibilidade de contemplar as idéias, o modelo perfeito das coisas. Este conhedmento, perdido
no esforço do nascimento, é posteriormente despertado pela observação das
coisas. Em outros termos: a percepção do mundo extemo não fomece nenhum conhedrnento, somente um estímulo à recordação: O conhecrrento
dá-se por meio de uma visão intelectual, quando conseguimos reconhecer
na complexidade do mundo real as formas essenciais é prototípicas, ou seja,
as idéias,
A prova é que nada na natureza pode dar origem à
idéia abstrata de semelhança, se bem que obviamente existem coisas que julgamos semelhantes.
Piarão resolve o dilema propondo uma teoria do
lnatísmo: a alma conhece as coisas recuperando a
lembrança adormecida daquilo que viu no mundo
extra terreno antes de reencamar. Em termos mo-
64
PLATÃO
demos, eliminando o componente rrntíco-relígtosc
do pensamento platônico, pode-se dizer que o pensamento se estrutura a partir de esquemas conceí-
tuais inatos, potenciais quando do nascimento e desenvolvidos depois por meio da aprendizagem sensorial. O trecho abaixo foi extraído de Fedo1l.
SI SÓCRATES
Então tens dúvidas em aceitar que o que chamamos aprendizado
seja reminiscência?
SiMIAS
Não é verdade que eu tenha propriamente
dúvidas;
sinto somente
necessidade
de experimentar
eu mesmo o que
estarnos discutindo,
ou seja, recordar-me
... Agora, de bom grado ouviria como poderias demonstra-lo.
SÓCRATES
Eis como: certamente
concordamos
que para recordar alguma coisa é preciso tê-Ia conhecido
anteriormente.
SIMIAS
Sim.
SÓCRATES
Concordamos
também
que se um conhecimento nos chega desse modo é reminiscência
7 E qual é esse
modo? Se alguém vê, escuta ou percebe
alguma
coisa por
meio de qualquer
sensação,
acontece que, além de tomar conhecimento
dessa coisa, vem a sua mente uma outra (da qual
o conhecimento
não é o mesmo). Pois bem: não empregaríamos o termo no seu significado
correto ao dizer, a respeito
dessa outra coisa que lhe veio à mente, que esse alguém se re-
Todo conhecimento é uma
recordação: esta é a tese a
ser demonstrada.
o mecanismo aS5ociativo
entre as idéias baseia-52
na recordação.
cordou?
SÍMIAS
Como
assim?
SÓCRATES
Por exemplo: admites que a noção de homem
é diferente da noção de lira 7
SÍMIAS
Sem dúvida.
SÓCR.A..TES Pois bem: sabes que os enamorados,
se vêem uma lira, um manto ou outro objeto qualquer
de uso habitual
do amado, no momento
em que reconhecem
a lira revêem na
mente a figura do amado, a quem ela pertence?
Isso é reminiscência.
Por exemplo, a recordação
de um homem refere-se
aos seus objetos pessoais.
Ora, esses exemplos
não mostram que a reminiscência
se dá
de duas maneiras, pela via da semelhança
ou pela via da dessemelhança?
Sim. Mas quando alguém se recorda de alguma
coisa pela via da semelhança
não lhe acontece também pensar
que o que despertou
sua lembrança
é ou não é, quanto à semelhança,
de alguma forma a parte faltante etn relação àquela que despertou
a lembrança 7
SÍMIAS Necessariamente.
A associação mental
ds-se por semelhança
ou diferença.
SÓCRATES
Vê se não é assim. Existe algo que afirmamos
ser igual, não é verdade?
E não quero dizer entre madeira e
madeira, pedra e pedra ou outras coisas semelhantes;
mas sim
de uma coisa que está lá, é diferente de todas as outras, mas é
igual em si. Deste igual em si, podemos afirmar que é alguma
coisa ou não é nada?
SÍMIAS
Sim, com certeza.
SÓCRATES
E conhecemos
também o que ela é em si mesma}
SÍMIAS
Sem dúvida.
Cada comparação pressupõe
a existência de um critério
de semelhança .
65
ANTOLOGLA
ILUSTRADA
DE FILOSOfL'\
"'f
ê
"'"
',~
I
PLATÃO
A idéia de semelhança precede
qualquer juizo comparativo.
~
.~
~
SÓCRATES E de onde obtivemos esse conhecimento? Não
o obtivemos daqueles iguais de que falávamos agora, ou seja,
das madeiras ou pedras ou outros objetos quaisquer, vendo que
são iguais? Não fornos induzidos por esses iguais a pensar aquele corno igual, e que, no entanto, é diferente deles? Ou não te
parece diferente? Consideres também esse aspecto. Pedras iguais e madeiras iguais, ainda que sejam as mesmas, não podem
parecer, às vezes. iguais para um, e para outro não?
SÍMIAS Seguramente.
A contradição lógica entre
semelhança e diversidade não tem
origem na experiencia.
.~
~
.:.,
~
;:,
:~
;]
~
~
~
11
~
~
~
~
~
!li
SÓCRATES Diz-me então: o igual em si pode eventualmente parecer desigual, ou seja, uma igualdade que se apresenta
c,?mo desigualdade?
SIMIAS E impossível, Sõcrates.
SÓCRATES De fato, esses iguais e o igual em si não são a
mesma coisa.
SÍMIAS Não são, com certeza, Sócrates.
SÓCRA TES E no entanto não é verdade que foi exatamente
a partir dessas coisas iguais, mesmo se diferentes do igual em
si, que pudestes chegar ao conhecimento desse último?
SÍMIAS É verdade.
SÓCRATES Corno sendo uma coisa semelhante ou dessernelhante daquelas, não é?
SÍMIAS Precisamente.
Osjuizos comparaó'vos If7lplicam o
confronto com um protótipo ideal.
SÓCRATES Porque isso não faz diferença. Basta que tu,
tendo visto urna coisa, consigas, a partir daí, pensar em urna
outra, semelhante ou dessernelhante: foi nesse ponto do processo que se produziu em ti uma reminiscência.
SÍMIAS Certamente.
SÓCRATES Diz-me agora, acontece conosco algo semelhante em relação àqueles iguais que observamos nas madeiras e
nos outros objetos iguais de que falávamos há pouco? Eles nos
parecem tão iguais como exatamente é o igual em si ou faltalhes algo para ser tal e qual o igualou não lhes falta nada?
SÍMIAS Faltam-lhes muitas coisas.
f(
li
~
~
"'i'
~
~
~
'"
~
~
~
.)
~
~
'~
,~
~
1l
.~
:~
'f
;~
"
'f,
~
~
•
"
Reconhecer, identificar uma coisa
pelo que ela é Implica um juizo de
semelhança com um modelo.
A idéia de igualdade também não
pode ser deduzida da simples
confrontação de duas coisas iguaiS.
SÓCRATES [... ] Alguém, tendo visto uma coisa, é levado a
pensar: "Esta coisa que agora vejo tende a ser como uma outra, exatamente como um daqueles seres que existem por si
mesmos, e todavia não consegue se conformar àquela por algumas imperfeições, não sendo portanto igual àquela, e sim
inferior". Pois bem: concordamos que quem pensa assim deve ter formado antes, de alguma maneira, uma idéia daquele
ser ao qual a coisa vista se parece, mas que, em comparação,
se revela defeituosa?
SÍMIAS Necessariamente.
SÓCRA TES E então, dize-me: aconteceu ou não também conosco algo semelhante em relação aos iguais e ao igual em si?
SÍMIAS Com certeza.
SÓCRATES Portanto, necessariamente, devemos ter forma-
ANTOLOGIA ILUSTRADA DE fILOSOFIA
PLATÃO
,~
66
~
~
.~
~
~,
f~
~
i!
::f
~i
(
~
}
do antes uma idéia do igual; ou seja, antes daquele momento
em que, vendo pela primeira vez os iguais, pudemos pensar
. '.' .
que todos eles aspiram a ser corno o igual, mas continuam in-:... ! ( ;:...
:.,"J r \
feriores a ele.
:.;: rPf;Pj':::/'p:f)~~~;
SiMIAS É exatamente isso.
SÓCRA TES E logo estamos de acordo também quanto a esse outro ponto: nada mais pudemos formar a partir desse pensamento nem é possível que se forme, a não ser que vejamos
ou toquemos ou tenhamos qualquer outra sensação; porque
~ \' ~1\0
todas para mim valem agora o mesmo.
,
SÍMIAS Valem o mesmo em relação aquilo que agora quere- /'
mos demonstrar.
".
SÓCRATES Mas, naturalmente, exatamente a partir dessas .
sensações deve-se formar em nós a idéia de que todos os iguais
percebidos por essas sensações aspiram a ser aquilo que o igual é em si e ao qual todavia permanecem inferiores. Como
Rosto de Placclo.
seria possível dizer de outra forma?
SÍMIAS Assim mesmo.
I
'$ ...
".....
-.....
~~
·~t~;;-.jt
\\ ."'. 4/
Ilr,.""
,~:,II
SÓCRATES E, portanto, antes que começássemos a ver e a
ouvir - enfim, a usar os nossos sentidos -, era preciso que já
estivéssemos de posse do conhecimento do igual em si, do que
ele é, para que pudéssemos compará-Ia aos iguais resultantes
de sensações; e pensar que todos estes anseiam ser como ele,
quando no entanto permanecem inferiores ...
A idéia de igualdade precede
todo juizo de igualdade.
Portanto, se é verdade que adquirimos esse conhecimento
antes de nascer e o carregamos conosco ao nascer, isso quer
dizer que antes de nascer e logo depois de nascidos já conhecíamos não somente o igual - o maior e o menor - mas também todas as outras idéias: porque não é sobre o igual que esramos agora raciocinando, mas também sobre o belo em si e o
bom em si, e sobre o justo e sobre o santo, em suma, como eu
dizia, sobre tudo aquilo em que, em nosso discursar, seja perguntando, seja respondendo, colocamos esse selo, que é o "em
si". Disso resulta necessariamente que devemos ter tido conhecimento de todas essas idéias antes de nascer .
SÍMIAS Correto.
As idéias de semelhança, diferença,
igualdade (e todas as outras idéias)
precedem, portanto, a experiência ou seja, são inatas.
SÓCRATES E resulta também (exceto se, uma vez de posse
desses conhecimentos, não os encontremos depois, em nosso
sucessivo renascer, na condição de tê-Ias esquecido) que nesse
nosso perene renascer nunca deixamos de saber e conservamos
esse saber por toda a vida. Porque o saber é isso: adquirido um
conhecimento, conservá-Ia, e não esquecê-Ia. Não é isso, Símias, que chamamos esquecimento, a perda de conhecimento?
SíMIAS É exatamente isso.
A alma imortal conhece
todas as idéias.
SÓCRATES Mas se, ao contrário, adquiridos esses conhecimentos antes de nascer, nós os perdemos nascendo e, depois, valendo-nos dos sentidos relativos a certos objetos, vamos recuperando de cada um deles aqueles conhecimentos
A alma, entretanto, esqueceu
temporariamente as idéias, devido
ao acontecimento dramatico do
nascimento em um corpo.
ó
67
ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FilOSOFIA
.V'\".
f
i
~
PLATÃO
PLATÃÕ"
:~~~~~1:l1~~~:;!~
...
m
~
que tínhamos anteriormente, então isso que nós chamamos
aprender não seria recuperar conhecimentos que já nos pertenceram? E se empregarmos para isso o termo recordar-se,
n~o o empregaremos no seu correto significado?
.
SIMIAS Certamente.
A percepção das coisas
sensíveis,portanto, nada mais
é do que um esdmulo à
reevocação das idéias inatas.
i
!!;
1iI
~
~
~
~
ii
SÓCRA TES De fato, já se demonstrou ser possível que alguém, experimentando
uma sensação em relação a alguma
coisa ao vê-Ia, ouvi-Ia ou percebê-Ia de alguma forma, consiga lembrar-se de uma outra coisa da qual se esquecera, e
que se avizinha à outra por semelhança ou também por dessemelhança. De modo
que, como eu dizia, das
duas uma: ou todos
nós já nascemos conhecendo essas idéias e
conservamos
esse conhecimento por toda a
vida ou então aqueles
que nós dizemos que
aprendem
apenas recordam, e essa aprendizagem é exatamente
reminiscência.
A Academia platônica em uma
ilustração do século XIX.
~
~
~
~
;!Ç
~
I
'"
J~
ir~
I
:~
~
o
:·'~:;
2 e
19:"
~.
~
:;{
destino do filósofo
.~
<1'
:11;
o mito da caverna
t~~~·~:,
~h
o PROBLEMA o que é filosofia? Qual é a tarefa
do filósofo?
A TESE
O trecho abaixo, com o qual tem início
o livro VI! da RepLiblica, é um dos mais famosos
da história da filosofia. A figura do filósofo e as
suas tarefas são delineadas por meio de metáforas.
A caverna escura é o nosso mundo; os escravos
acorrentados são os homens; as correntes são as
paixões e a ignorância; as imagens ao fundo da caverna são as percepções sensoriais; a libertação do
escravo é a ação liberatória da filosofia; a aventuA caverna representa o nosso
mundo, no qual reina a opinião;
as correnres represenram a
ignorância e as paixões.
*g
~
ra do escravo fora da caverna e a experiência filosófica; o mundo fora da caverna corresponde ao
mundo das idéias, o único, verdadeiramente; o
Sol que ilumina o mundo verdadeiro é a idéia do
Bem, que conduz ao conhecimento; o regresso do
escravo é o dever do filósofo de envolver a sociedade na experiência da verdade; a incapacidade
do escravo em readaptar-se à vida na caverna é a
inadequação social dos filósofos;o escárnio do escravo é o destino reservado ao escravo; a morte final do escravo-filósofo é a morte de Socrates.
SÓCRATES Compara a nossa natureza, no que diz respeito à educação e a sua falta, a uma ima~em como esta. No interior de uma morada subterrânea em rorma de caverna, com
uma entrada aberta para a luz, tão ampla que se estende por
todo o comprimento da caverna, imagina ver alguns homens
que ali estão desde criança, acorrentados pelas pernas e pescoço, de modo a ficarem imóveis e poder olhar somente à sua
frente, incapazes, devido ás correntes, de volver a cabeça.
~
~
!J
iªj
~
~;
;j
(3
fj
1
í
n
f:
.~
t
Às suas costas, brilha, alta e longínqua, a luz de um fogo, e,
correndo entre o fogo e os prisioneiros, há um caminho ascendente. Ao longo deste caminho imagina que se construiu um
pequeno muro, como os taparnentos que os rítereiros erguem
à sua frente e sobre os quais exibem os bonecos.
GLA.UCO Estou vendo.
.
...."
I
A luz representa a verdade: o muro,
a separação entre a verdadeira e a
falsa realidade.
SÓCRA.TES Imagina ver, ao longo desse muro, homens
portando todo tipo de objetos que ultrapassam a sua margell1,
como estátuas e outras fígcrasdepedra
e de madeira, de diversas feituras; e, como é natural, dentre esses homens, alguns
falam e outros se calam.
GLAUCO Estranha imagem essa tua, e estranhos prisioneiros.
As estatuas: as coisas do
mundo sensivel.
SÓCRA TES Parecem-se conosco. Crês que tais pessoas
possam ver, antes de si mesmas e dos companheiros, algo mais
do que as sombras projetadas pelo fogo contra a parede da caverna que está à sua frente?
GLAUCO E como poderiam, se são forçadas a manter imóvel a cabeça por toda a sua vida?
SÓCRATES Com os objetos carregados não se passa o mesmo?
GU\.UCO Certamente.
Os prisioneiros vêem somente as
sombras das estátuas...
SÓCRA TES i':-se· ..rquelesprtsíonetrospudessem
conversar
entre si, não crês que diriam serem reais as suas visões?
GLAUCO Obrigatoriamente.
SÓCRATES E se na prisão a parede em frente também produzisse um eco? Sempre que um dos carregadores fizesse ouvir a sua voz, crês que julgariam que fosse outra senão a voz
da sombra que passava?
GLAUCO Não, por Zeus.
SÓCRATES Para essas pessoas, enfim, a verdade não é mais
do que a sombra de objetos artificiais.
GLA.UCO Forçosamente.
. que confundem com a realidade.
SÓCRATES Examina agora como poderiam livrar-se dos
grilhões e curar-se da inconsciência. Admite que acontecesse
com eles um caso como este: que um deles fosse libertado, repentinamente obrigado a levantar-se, a virar a cabeça, a andar
e a erguer o seu olhar para a luz; e que, ao fazer isso, sentisse
dor e o deslumbramento o tornasse incapaz de distinguir os
objetos dos quais antes ele via as sombras.
O verdadeiro caminho do
conhecimento começa
com a libertação dos
grilhões da ignorância.
O que crês que ele responderia, se lhe disséssemos que antes ele via vacuidades desprovidas de sentido, mas que agora,
estando mais próximo daquilo que é e com os olhos voltados
para os objetos reais, pode ver melhor? E se. mostrando-lhe
cada um dos objetos que passam, lhe perguntássemos, obrigando-o a responder o que são] Não crês que ficaria em dúvida e que julgaria mais verdadeiras as coisas que via antes do
que as que lhe são mostradas agora]
GL'\UCO Certamente.
Não mais enganado pela percepção
sensível (as sombras). o filósofo
enxerga a realidade.
.J
ANTOLOGiA [LUSTRADA DE FILOSOfiA
68
~
69
ANTOLOG[A [LL:STRADA De f[LQSOfiA
·r···;'....
",'
-r-
PLATÃO
A verdade é ofuscante; a sua
descoberta pode confundir
temporariamente.
;
li
~
li~
~
f1
I
~
~
·I~~;.
.,
~t
@
~
~
~
SÓCRATE5 Finalmente, acho eu, poderia observar e contemplar o Sol como verdadeiramente é, não as suas imagens
nas águas ou sobre outra superfície, mas o Sol em si, no lugar
que lhe é próprio.
GLAUCO Sim. Falando do Sol, seria possível concluir ser
ele quem produz as estações e os anos, quem governa todas
as coisas do mundo visível e, de algum modo, é a origem de
tudo o que ele e os seus companheiros veriam.
o sábio tem o dever de
comunicar suas descobertas
a toda a sociedade.
Ao sábio, revela-se dificil
comunicar-se com quem não sabe
nada e pensa saber tudo.
~
I~
~
tt
~
~
SÓCRATES Precisaria acostumar-se a isso, creio eu, se quisesse ver o mundo superior. Primeiro observaria as sombras e
depois as imagens dos seres humanos e dos outros objetos refletidas na água, e por fim os próprios objetos; a partir daí, então, voltando o olhar para a luz das estrelas e da Lua, poderia
contemplar mais facilmente durante noite os corpos celestes e
o próprio céu do que o Sol e a luz do Sol durante o dia.
GLAUCO É claro.
o resultado final da dscese
cognitiva é a contemplação do Bem
em sim mesmo (o Sol).
Quem possui o verdadeiro saber
termina marginalizado no mundo
da ignorância.
I
SÓCRA.TES E se o obrigássemos a olhar a própria luz, não
lhe doeriam os olhos e não procuraria fugir em direção aos objetos cuja visão pode sustentar? E não os julgaria efetivamente mais claros do que aqueles que lhe foram mostrados?
GLAUCO É assim.
5ÓCRATES E se, depois, o arrastássemos dali à força, obrigando-o a subir o caminho rude e íngreme, e não o soltássemos ames de arrastá-Ia até a luz do Sol, não sofreria e não se
agastaria por ser assim constrangido? E chegando à luz, por
estarem seus olhos ofuscados, não poderia ver nenhuma das
coisas que agora são ditas verdadeiras.
GLAUCO Não poderia, de fato, não repentinamente.
A posse da verdade produz um
rápido acréscimo do saber, uma
ascensão ci verdade.
PLATÃO
~
~
SÓCRATES E ao lembrar-se da primeira morada e do saber
que lá possuía, dos companheiros de prisão, não achas que se
sentiria feliz com a mudança e sentiria pena deles?
GLAUCO Certamente.
5ÓCRATE5 Quanto às honras e aos elogios que talvez trocassem entre si, e às recompensas reservadas àqueles que, com
maior perspicácia, observavam os objetos que desfilavam e melhor se lembravam quais passavam antes, quais vinham depois
e quais seguiam ao mesmo tempo - adivinhando, portanto,
qual seria o próximo -, julgas que ele invejaria os prisioneiros
e cobiçaria as honras e o poder que recebiam? Ou ele estaria
na condição descrita por Homero e preferiria "servir a alguém
como camponês, por salário, um homem sem riqueza", e padecer tudo, a ter aquelas opiniões e viver daquele modo?
GLAUCO Eu também penso assim: aceitaria sofrer tudo antes de viver daquele modo.
SÓCRl-l.TES Reflete agora sobre outro ponto. Se o nosso homem descesse de novo e voltasse a ocupar o mesmo assento,
não teria os olhos cobertos de trevas, vindas de onde havia Sol?
m
~~
"1
s
~
'&~-
.~
~
..~
~
li
~
~
~
iI
~
~
1
,,~
l
~
~
:I
1
j
.~
~.
GLAUCO Sim, certamente.
SÓCRA TE5 E se tivesse novamente que discernir aquelas
sombras e competir com aqueles que permaneceram prisioneiros, antes que sua vista ofuscada voltasse ao normal? E se esse período de readaptação fosse longo?
Não seria ele, então, objeto de riso? E não se diria que ele
regressa da sua subida com os olhos arruinados e que assim
não vale a pena tentar subir? E se alguém tentasse soltar aqueles prisioneiros e levá-Ias pa-ra dma,não
o matariam, tlItvez:,
se pudessem agarrá-Io e rnatã-Io?
GLAUCO Certamente.
o filósofo não se sente à vontade
no mundo das sombras (a vida
cotidiana) e é muitas vezes
desajeitado.
SÓCRATE5 Toda essa imagem, meu caro Glauco, deve ser
aplicada ao que dissemos antes: devemos comparar o mundo
conhecível à visão possível na prisão, e a luz do fogo que está
lá dentro à luz do Sol. Se por acaso considerares que a ascensão e a contemplação do mundo superior equivalem à elevação da alma ao mundo íntelígtvel, não chegarás a uma conclusão muito diferente da minha, já que desejas conhecer a minha opinião.
o ponto fundamental consiste em
abandonar o mund6 sensivel (a
caverna) pelo mundo inteligivel.
o
deus sabe se ela é verdadeira. Eis o meu parecer: no mundo conhecivek-a idéia -dc -Bem;difíctl de enxergar-éo limite'
extremo do Bem; e, uma vez avistada, a razão nos leva a considerá-Ia a origem de tudo o que é reto e bom; no mundo visível, ela produz a luz e o soberano da luz. No inteligível. ela
mesma confere, como soberana, verdade e inteligência. E
quem quiser se comportar com sabedoria, em particular e em
público, precisa vê-Ia .
GLAUCO Tanto quanto possível, eu também estou de acordo.
SÓCRATE5 Concorda comigo também sobre esse outro
ponto e não te surpreendas que aquele que se elevou a tal altura não queira se ocupar dos assuntos humanos, mas que a sua
alma seja continuamente estimulada a viver na altura. É natural que seja assim, se também para isso vale a imagem anterior.
GLAUCO É natural.
SÓCRATE5 E acreditas que podemos nos surpreender se alguém, passando ..das vísões.dívínas às coisas humanas, fizer
um péssimo papel e parecer totalmente ridículo, por ter a vista ainda ofuscada? E se, antes mesmo de se acostumar novamente com as trevas circundantes, for obrigado a discutir nos
tribunais, ou em outro lugar qualquer, sobre as sombras da
justiça ou sobre as imagens que dão origem a essas sombras, e
a lutar contra a interpretação dada a esses problemas por
quem nunca viu a justiça em si?
GLAUCO De fato, não nos pode surpreender.
SÓCRA TE5 Mas uma pessoa sensata se lembraria de que os
olhos estão sujeitos a dois tipos de perturbações, por dois motivos diferentes: passar da luz às trevas e passar das trevas à luz.
Uma vez de posse da verdade,
filósafo~lJoderá regressar ao
mundo sensível, enxergando a
verdadeira realidade.
'0
o filósofo deve fugir à tentação de
se apartar do mundo.
Apesar da dificuldade em viver no
mundo, o filósofo possui a força
interior da verdade.
~
~
ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA
70
.~
71
ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FlLOSOf[A
PLAtAo
PLATÃO
E se pensasse que o mesmo vale para a alma, quando visse uma alma perturbada e incapaz de ver qualquer coisa não começaria a rir como uma tola, mas procuraria saber se, vindo de uma vida mais luminosa, ela estaria cega por estar desacostumada; ou se, passando da ignorância para uma situação mais luminosa, ela estaria ofuscada por muita luz. E assim diria uma,
feliz com a sua condição e com a vida que leva, tendo pena da
outra. E, se quisesse rir, o seu riso seria menos ridículo do que
aquele que agrediria a alma que vem do alto, da luz.
GLAUCO O que dizes é correto.
~ROS·AMOR _._
__._
__
!li
J'!!j,
~
~
~
I
~
!ti
~
r
~
$
~
~
~
.
Os antigos viam no Eras (a tradução grega de amor) uma força natural e primordial, relacionada não somente à atração sexual, mas
também à amizade e à política. Com efeito, Erótico é propriamente tudo aquilo que une, que harmoniza os contrastes sem negá-Ias,
que consegue manter juntas coisas diversas entre si.
("l
I
li
!\1
t~
i(l!
o corpo
I
é o obstáculo
~
~
~
ao conhecimento
o PROBLEMA Sob que condição é possível alcançar a verdade? Qual e:o valor da dimensão corporal do homem? Em que relação devem ser pensados espírito e corpo)
A TESE Se na Idade Media Piatão foi interpretado
no sentido religioso e visto até mesmo como um
precursor do Cristianismo, isso se deve a textos como o que está abaixo, que emana uma espírituaiiÉ o vínculo com o corpo que
impede o espírito de
conquistar a 'Ierdade.
Instintos, emoções e doenças
constituem obstáculos à
racionalidade.
Agressividade sOCIale guerra são
conseqüências das paixões..
dade ascética. O corpo, e tudo o que ele significa
(percepção, paixão. instinto, emoção), deve ser
anulado para que a razão seja exercitada. Tudo
aquilo que não é pura espiritualidade racional pode ser descrito em termos de patologia da alma. Importantes para a história da filosofiaocidental, essas teses rompem os limites da tradição platônica
(O trecho abaixo foi extraído de Fédon.)
Parece existir um atalho que nos leva, por meio do raciocínio, a esta consideração: enquanto tivermos corpo e nossa alma estiver unida a esse elemento maléfico, jamais alcançaremos completamente aquilo que ardentemente desejamos, ou
seja, a verdade.
<ll
Efetivamente, o corpo, pela sua necessidade de alimento,
cria para nós infinitas preocupações; além disso, quando as
doenças advêrn, elas tolhem a busca do ser. A carne nos domina com os seus amores, encantos, receios, as suas muitas quimeras, de bolhas de ar, e assim realiza-se plenamente o dito de
que é por sua causa que se introduz em nós a obstinada e contínua negação de pensar.
Guerras, revoltas, batalhas, são todas provocadas pelo corpo e seus desejos. Todas as guerras encontram a sua origem na
cobiça de riquezas que somos forçados a buscar devido ao corpo, visto que somos escravos a seu serviço.
i
i
~
Mas o pior de tudo é que, mesmo se nos é concedido um
pouco de calma, de liberdade do corpo, e nos dedicamos à reflexão, ele se manifesta a cada momento enquanto pensamos,
provocando confusão e desordem. E ao fim, por sua culpa, não
conseguimos distinguir a verdade.
A dimensão corporal continua
dominante mesmo quando em
descanso e na imobilidade.
Temos assim uma demonstração realista de que, se alguma
vez quisermos lançar um olhar límpido sobre alguma coisa, teremos que nos separar do corpo e contemplar somente por
meio da alma as coisas em si mesmas. E apenas em um-determinado tempo, parece, poderemos ter o que desejamos e afirmamos amar - ou seja, o saber intelectual -, e esse tempo é o
tempo da morte, não o da nossa vida.
o abandono da corporeidade exige
exercício e esforço.
A lógica o confirma. Se não é dado compreender claramente nada sob o peso da carne, não é possível adquirir a visão das
coisas, ou então essa visão está reservada para depois da morte, pois somente então a alma estará sozinha consigo mesma,
separada do corpo. Parece que, durante a vida, estaremos mais
próximos da verdade quanto mais limitarmos o contato com
o corpo, salvo nos casos de extrema necessidade.
Se o abandono do corpo é a
condição de acesso a verdade,
é preciso desejar a morte.
Não nos deixaremos contaminar pela natureza do corpo,
mas, ao conrrano.ideste nos.manteramos.apanadcs
enquanto
a propría divindade dele não nos libertar. Somente assim, limpos, livres da insensatez do corpo, entraremos em contato com
seres de igual pureza, e conheceremos tudo o que é simples,
aquilo que certamente é a própria verdade.
o corpo é impuro, irracional,
contamina dor.
i*
I
I
~
@
!~
<.!j?
~
,~
'.
'~
:::;
.~
:!"
:l
~
1~1
i
:~
A Academia platônica: mosaico
da época )'omana, con.servado
no MLtSeLl Nacional de
Ndpoles.
.•
,~
-~
~
~
'.j
.~
ANTOLOGLA [LUSTRADA DE FILOSOFLA
72
73
ANTOLOG[A
[LUSTRADA DE fILOSOFIA
rI
··~·
'::f ~.~i.~~r'"
.,' i,':
.;.
-(.".
"
': ..
i ~'
PLATÃO
3
í:íll~~
_f ~
.'"
"'"
o PROBLEMA Quantos e quais são os gêneros sexuais? Por que existe uma atração sexual entre
pessoas do mesmo sexo?
A TESE Por meio da narração de um mito, em estilo irônico, írreverente e espirituoso, Platão argumenta que os gêneros sexuais dos antigos homens
esfélicos não eram dois, mas três: o masculino, o
feminino e o androgíno, um ser dotado de órgãos
sexuais masculinos e femininos. A história do nasOriginariamente, a espécie
humana era dividida em três
gêneros sexuais.
o terceiro
gênero era andrógino,
era macho-fêmea.
Esses seres onginários possuíam
todos os órgãos em duplicata,
inclusive 05 genitais.
Se o Sol é o simbolo do macho e a
Terra o da fêmea, então a LUâ pode
simbolizar o andrógino.
O desafio dos homens
originários a deus: um tema
presente em muitos mitos.
ANTOLOGIA
!LUSTRADA DE FILOSOfIA
I
~
Os gêneros sexuais
eram três
I
cimento da sexualidade atual, o mito da separação
do homem originário em dois troncos, por vontade de um deus ciumento, é usada por Platão para
demonstrar a legitimidade da atração entre homens. O amor homossexllal é antes preferível ao
heti,rossexual, porque não voltado à procriação e,
portanto, mais inclinado a um desenvolvimento
no sentido puramente espiritual. (O texto abaixo
foi extraído de Banquete).
ao O que deveis começar a aprender diz respeito à natureza originária dos seres humanos e à sua evolução, porque num passado distante a nossa natureza não era exatamente como hoje,
mas se apresentava de modo diferente. Em primeiro lugar, a
espécie humana era constituída de três gêneros, e não somente de dois, como agora: o macho e a fêmea. Existia um terceiro gênero que participava de ambos, do qual ainda se conserva o nome, apesar de ele mesmo ter desaparecido.
Naquele tempo, o andrógino existia verdadeiramente como
gênero distinto, de nome e de fato. Participava dos outros dois,
do macho e da fêmea; hoje, o que resta dele é apenas um nome, considerado mais como um insulto.
Em segundo lugar, cada um desses seres formava um bloco
único, com dorso e flancos arredondados; tinha quatro mãos
e pernas em igual número; além disso, tinha dois rostos idênticos, sobre um pescoço também arredondado, mas somente
urna cabeça emoldurava os rostos, opostos um ao outro; as
orelhas eram quatro, os geníraís, duplos, e todo resto como se
pode imaginar partindo desses dados. Quanto à andadura, podiam seguir eretos, como hoje, na direção que quisessem, ou
ainda, quando andavam depressa, girando como os acrobatas
quando dão cambalho tas, rodando e apoiando-se alternadamente nas extremidades, que à época eram oito.
Ora, se os gêneros assim conformados eram três, a razão é
que, originariamente,
o macho descendia do Sol, a mulher,
da Terra, e o gênero que continha um e outro descendia da
Lua, uma vez que a Lua participa do Sol e da Terra ao mesmo tempo.
Compreensivelmente,
eram esféricos e andavam em círculos, pois pareciam com os seus genitores. Dotados de força e
vigor extraordinários, eram muito arrogantes. Por isso, prepararam um assalto aos deuses, e o que Homero narra sobre
Efialtes e Oto - que teriam tentado escalar o céu - se refere
àqueles homens e a sua intenção de destronar os deuses.
74
.~
~
~
~
~
~
;;li
s
i
~.
~
ll1
i~~
lt
i
~
~
j
~
-}.\:
'li
@
~
~
~.
~
~
l'(
~
,;;
:e1t
it
!~
fi
I
~
;~
'í(,{
;!
;J
.~
.~
~~
~
~~
~
.,
~
~
~
~
,<~,
'~
PLATÃO
Se 05 deuses não aniquilaram a
Então, Zeus e os outros deuses perguntaram-se o que fazer,
espécie humana foi por uma
pois estavam em grande dificuldade: de fato, não podiam maconveniência egoística.
tar os homens, e aniquilar a espécie, fulmínando-os como haviam feito com os Gigantes, porque isso significaria para eles
a perda das honras e dos sacrifícios provenientes dos homens; ,
mas tampouco podiam deixar passar tanta impudência ..
"Creio", disse Zeus depois de muito refletir, "ter encontrado um meio que nos permita, ao mesmo tempo, deixar sobreviver os homens e dar um basta a sua intemperança. tornando-os mais fracos. Agora, cortarei em dois cada um deles e, assim, além de mais fracos, eles se tornarão também mais úteis,
pois dobrarão de número. Além do mais, andarão sobre dois
pés, em posição ereta. Entretanto, se continuarem impudentes e não quiserem ficar tranqüilos, cortarei-os mais urna vez
em dois, de modo a fazê-ias andar sobre uma perna só, aos pulinhos", concluiu. Dito isso, cortou os homens em dois, como
aqueles que cortam as sorvas para conservá-Ias ou aqueles que
cortam os ovos com um fio ...
05 homens esféricos originários
foram separados em duas partes.
Depois que a natureza do homem foi assim duplicada, cada
metade, tendo saudade da sua outra metade, a buscava; abraçavam-se, ficando agarradas urna à outra e, pelo desejo de
fundir-se em um único ser, morriam de fome ou de inércia,
porque se recusavam a fazer qualquer coisa uma sem a outra.
Além disso, quando urna metade morria e a outra lhe sobrevivia, esta procurava uma outra metade e a ela se agarrava, seja
quando encontrava urna metade de mulher de um ser inteiro
mulher (a referida metade sendo precisamente o que hoje chamamos mulher), seja quando encontrava uma metade de homem. E, deste modo, a espécie humana estava se extinguindo.
O instinto sexual é o desejo de
recompor a unidade originária.
E assim Zeus, apiedando-se, imaginou um outro artifício e
deslocou os genitais para a parte da frente (de fato, até então,
tinham-nos também na pane externa, mas não era unindo-se
entre si que procriavam e se reproduziam, mas com a terra, como as cigarras). Deslocou, como dizíamos, os genitais para a
parte dianteira e, por meio desses, permitiu que a procriação
fosse o resultado de uma relação, que se completava na fêmea
pela ação do macho.
Acertos oportunistas tornaram
possível a conjunção sexual.
O propósito era que, se no abraço um homem deparasse
com uma mulher, haveria concepção e continuação da raça
humana.
Se, no entanto, um macho deparasse com outro macho, também alcançaria satisfação no arnplexo e voltaria as suas atividades - vale dizer, a ocupar-se dos outros aspectos da vida. Assim, desde esses tempos longínquos ganhou vida no homem
o amor pelos seus semelhantes: é o amor que restaura a nossa
primitiva natureza, aquele amor que quer fazer de dois seres
somente um, que pretende curar a natureza humana.
75
O papel reprodutivo
; macho-fêmea.
da conjunção
o papel da conjunção
macho-macho.
ANTOLOGIA
ILUSTRADA
DE FILOSOFIA
!':~-
PLATAO
A atração heterossexual é própria
das metades do andrógino
originário.
PLATAo
Cada um de nós é, portanto, a parte complementar de um
homem porque foi cortado, como se faz com os linguados, de
um ser único, a fim de obter dois. Por conseguinte, cada qual
está sempre em busca do seu complemento. Assim, todos os
homens, que são a parte cortada do gênero misto que então se
chamava androgíno, desejam as mulheres, sendo desse gênero que derivam, na sua maioria, os adúlteros; igualmente, vêm
desse mesmo gênero todas as mulheres que gostam de homens, as adúlteras.
Uma !ésbica deriva do corte de um
ser original duplamente fêmea.
No entanto, as mulheres que resultam do corte praticado na
mulher primitiva não têm qualquer interesse pelos homens,
mas voltam-se principalmente para as mulheres, e é desse gênero que provêm as rnbades.
Um homossexual provém do corte
de um primitivo ser macho-macho.
Por fim, todos aqueles que resultam do corte praticado sobre o macho original desejam os machos e, desde meninos, como fragmento do macho primitivo, amam os homens, experimentam prazer em deitar-se ao seu lado e ficar entre seus braços: entre os meninos e os adolescentes, são os melhores em
absoluto, porque são, por natureza, mais audazes.
o 'Ialor positivo
da atração
en Ire machos.
A relação entre machos, não
'Ioltada a reprodução, ultrapassa
a dimensão sexual
ANTOLOGIA ilUSTRADA DE FILOSOFL~
É verdade que há quem sustente que são uns despudorados,
mas isso é falso, pois não é por falta de pudor que assim se
comportam, mas por serem corajosos, ousados e terem um
temperamento viril ligam-se a quem lhes é semelhante. Isso
pode ser provado de modo eficaz: ao amadurecer, somente os
homens que têm essa natureza sabem tratar dos assuntos de
Estado. E mais, depois de adultos, amam os meninos e, pela
sua natureza, não pensam em casar-se nem em gerar filhos,
mas é a lei que os obriga a isso - por eles, ficariam felizes em
passar a vida lado a lado, sem se casar. Portanto, um tal indivíduo é igualmente levado a amar os meninos e a enamorar-se
dos amantes, ligando-se sempre ao que lhe é afim.
E assim, quando encontra a outra metade de que estarnos Ialando; aquele que ama os meninos, mas pode ser também
qualquer outro, sente-se a partir daquele momento misteriosamente tomado por um forte sentimento de afeto, de intimidade e de amor, e recusa-se, por assim dizer, a separar-se
do outro, mesmo que por pouco tempo. E, no entanto, aqueles que passam a vida lado a lado, do início até o fim, são pessoas que não saberiam sequer dizer o que esperam umas das
outras. De fato, ninguém diria que é a recíproca satisfação sexual, ou seja, que essa é a razão do prazer que cada um deles exnerírnenta em viver ao lado do outro com tanta interisidad~ e generosidade. É evidentemente outra coisa a que a
alma de cada um aspira, algo que não sabe dizer com palavras, um desejo do qual tem quase que uma intuição oracular e do qual fala por meio de enigmas.
76
Imaginem que estivessem deitados no mesmo leito e que
diante deles aparecesse Efesto, com os seus instrumentos na
mão, perguntando: "Homens, o que desejais conseguir um do
outro?" E se, diante da sua dificuldade em responder, continuasse: "Dizei, é disto que tendes vontade, de unir-vos um ao
outro o máximo possível, de modo a não vos soltardes mais,
nem de dia, nem de noite? Se é isso o que quereis, não terei
a menor dificuldade em vos fundir e em fazer de vós, em vez
de dois, como sais, um todo único, partilhando da mesma
existência por toda a vida, como se fostes uma só pessoa, e,
depois da morte, lá embaixo, na morada de Hades, em vez de
dois continuaríeis a ser um só, compartilhando até mesmo a
morte. Vede bem se é isso que desejais apaixonadamente
e se
vos parece que experímentareis satisfação conseguindo que
tal se cumpra". Não haveria quem, temos toda certeza, ouvindo essa proposta, recusasse ou manifestasse desejo diferente. Eles pensariam, certamente, ter ouvido a manifestação
do que desejavam havia muito tempo: unir-se ao amado, fundir-se com ele e, assim, de dois que eram, tornar-se um só.
No ãmago da atração sexual existe
sempre a nostalgia da unidade
originária do ser humano.
Platão, retratado com as
feições de Leonardo (Rafad,
Escola de Acenas, 1512).
E eis a razão disso: a nossa natureza primitiva era aquela que
eu disse, e nós éramos um todo único. Assim, é ao desejo e à
busca dessa totalidade que se dá o nome de amor. Em outras
palavras, antes, como eu disse, éramos um ser único, mas agora, por causa do nosso comportamento arrogante, a nossa unidade foi partida pelo deus, do mesmo modo que os espartanos
romperam a unidade arcádica.
o amor
Há que se temer, se não nos comportarmos modestamente
aos olhos dos deuses, de encontrarmo-nos, mais uma vez, cortados em dois, e que nos caiba andar por aí, como personagens
representados de perfil em baixo-relevo sobre as estelas, serrados ao meio ao longo da linha do nariz, tornados semelhantes a astrágalos que se partem em dois.
A possível punição da
arrogãncfa humana: uma
ulterior diVisão do corpo.
é desejo de unidade
Quem ama ~eseja ~,
O
,
que !Y\\a!Otem
'~~
~~,
o
o que é o arnor?
mito do nascimento de Eras é usado
por Piatão para ilustrar a característica fundamental do amor: a insuficiência. Ama-se quando
se deseja algo que não se tem e por isso o amor pode ser considerado fllósofo. De fato, assim como amor não tem a beleza. mas a deseja, o filósofo anela a sabedoria sem possuí-Ia. Portanto. o amor é
essencialmente uma necessidade não satisfeita, a
percepção da falta de alguma coisa essencial para
'.
.,
J~,'r"J\'ll
~~
a própria cornpletude. O BanqLLere. texto do qual
foram extraídas as passagens abaixo. apresenta uma estrutura particular. Em vez de usar a costumeira forma de diálogo, PIatão imagina que os comensais façam. por turnos, um elogio do amor.
Imagina também que Sócrates prefira não apresentar um discurso próprio. mas reproduzir as palavras que ouviu de Diotima, uma sacerdotisa estrangeira dotada de extraordinários poderes. É um
modo de destacar a importância do problema.
PROBLEMA
A TESE
O
77
ANTOLOGIA
ILUSTR.-\DA DE ('ILOSOFIA
o Amor é filho de Pobreza e
de Expediente.
o vinculo entre Amor e Beleza.
o Amor
nasce da necessidade
e do deseio.
o Amor é ativo e arroiado.
A dupla origem do Amor explica a
sua natureza contraditória.
~*~t~~
':~~7.1Jj~~1~ft~~'~:~;t%~:·rtft\~#~r~~~~~;~;~i~;~~?
.~.,o
""~t
PLATÃO
':.!
~
~
"DIOTIMA Os demônios são em grande número e muito diferentes entre si. Eras é um deles.
SÓCRATES É filho de que pai e de que mãe?
DIOTIMA Na verdade, é uma história muito longa, mas contarei assim mesmo. Deves saber que no dia em que nasceu
Afrodite os deuses deram uma festa e, entre os convidados,
estava Poros, o Expediente,
filho de Métis , a Prudência.
Quando terminaram de jantar, como o banquete havia sido
suntuoso, chegou Pênia, a Pobreza, com a intenção de mendigar, e postou-se junto à porta. No entre tempo, Poros, que
se ernbebedara de néctar (porque o vinho ainda não existia),
adentrou ao jardim de Zeus e, entorpecido pela embriaguez,
adormeceu. A essa altura, Pênia, que não tinha qualquer recurso, teve a idéia de ter um filho de Poros, e deitou-se ao seu
lado: assim, ficou grávida de Eras.
Foi esse o motivo pelo qual Eras tomou-se o companheiro
e servente de Afrodite: por ter sido concebido durante os festejos pelo nascimento da deusa, orienta o seu amor para o belo, sendo bela a própria Afrodite.
Eis, então, o destino que coube a Eras, como filho de Poros e Pênia. Em primeiro lugar, é sempre pobre e está longe
de ser delicado e belo, como imagina a maioria das pessoas;
pelo contrário, é rude e intratavel, sempre descalço e sem
morada fixa; dorme sobre a terra nua e sem cobertas, deitado sob o céu aberto, junto aos umbrais das portas ou nas
ruas ... tudo isso porque, partilhando da natureza da mãe,
convive com a indigência.
Mas, em compensação, conforme a natureza do pai, espera
a ocasião favorável para lançar mão sobre as coisas boas e belas, porque é corajoso e impulsivo, veemente; hábil caçador,
sempre a tramar alguma armadilha; pensador apaixonado, é
capaz de encontrar soluções brilhantes para safar-se, e passa
todo o seu tempo amando a sabedoria; é experiente em sortilégios, na preparação de filtros mágicos, como um sofista.
Além disso, a sua natureza não é mortal nem imortal: às vezes, no mesmo dia, quando o seu fazer chega a bom termo, é
como uma flor, cheio de vida; outras vezes, ao contrário, moribundo; mas eis que novamente volta a viver graças à natureza paterna, mesmo se aquilo que conseguiu lhe escapa invariavelmente das mãos. Desse modo, Eras nunca é pobre, nunca é rico, sendo, por outro lado, um meio caminho entre a sabedoria e a ignorância.
.~
I
~
~
~
-PlATÃO
bedoria e não desejam se tornar sábios; o que é verdadeiramente insuportável na ignorãncia é o fato de que alguém, que
não é belo nem bom e tampouco inteligente, se julgue adequadamente dotado: o problema é que quem não se considera desprovido de alguma coisa tarnpouco sente desejo daquilo que
não acredita necessitar.
E
II
.~
.~
~
~
~
i
.~
I
~
;5,
~
í!!
~
I
a-
ir,
I
~
$
t
.~
;.;;
fj
:~
:~
"
J~~
4
(
J
:'i
I
A sabedoria não está cercada por
ignorantes nem por aqueles que
se acreditam sábios.
Vejamos como são as coisas. Entre os deuses não há nenhum que se empenhe na busca da sabedoria, nenhum que
queira se tornar sábio, porque já o é. Por outro lado, não se
empenha na busca da sabedoria qualquer outro que já seja sábio. Mas também os ignorantes, por sua vez, não amam a sa-
'.~
~~
o andrógino platônico, com
quatro braços, quatro pernas e
dois sexos, em uma imagem
alqLltmica do secuío XVI.
;~
,~
,i
i
~
~
.~
ANTOLOGLA [LUSTRADA DE FILOSOFIA
78
~
79
ANTOLOGIA
[LUSTRADA DE FILQSOft.-'.
~••:<,~::::- ,
PLATÃO
Somentequemama secoloca em
umadimensãoinvestigativa.
"PlATÃO
SÓCRATES Mas então, Diotima, quem são aqueles que se
empenham na busca da sabedoria, se não são os sábios nem os
ignorantes?
DIOTIJv[A Isso é claro até para uma criança! São aqueles que
se encontram a meio caminho desses dois extremos, entre os
quais deve estar Eras. De fato, a sabedoria também se inclui na
categoria das coisas mais belas, e Eros está orientado para o belo; daí decorre, necessariamente, que o Amor é amante da sabedoria e, sendo amante da sabedoria, é um meio-termo entre
o homem sábio e o ignorante. E a causa de ele reunir em si ambos os aspectos deve ser buscada novamente no seu nascimento, pois seu pai é sábio e dispõe de inúmeros recursos íntelectuais, enquanto a mãe não é sábia e é desprovida de recursos.
E essa, portanto, caro Sócrates, a natureza desse demônio.
A.~M~ _.._ _.._.............
..
_
_
_
tíruições, nas leis, nas ciências, O amor passional,
mesmo precisando ser superado para se alcançarem formas cada vez mais elevadas de espiritualidade, pode ser de alguma forma justificado como
~Q$lA.P..Y\:r.Ô~lÇA,.._
. ._._._
.._
~ DlOTIMA Nesses mistérios do amor, Sócrates, tu também
podes ser iniciado. Quanto aos mistérios mais profundos e ao
nível mais alto da revelação - se forem seguidos meticulosamente os graus intermedíãrios, esses mistérios são a meta final do que foi dito antes -, não sei se estão ao teu alcance.
Todos amam, mas poucos
sabem o que é o amor e
para onde ele leva.
o amor pode nascercomo
enamoramento, atração por
um belo corpo.
iI
Na verdade, é preciso que aquele que retarnente se encaminha em direção a essa meta comece desde jovem a voltar-se
para a beleza dos corpos e, se o caminho indicado por quem
lhe serve de guia estiver correto, a amar somente um corpo belo e para ele produzir belos discursos. Mas depois deve entender que a beleza que reside naquele determinado corpo é
irmã da beleza que reside em um outro e que, se pretende buscar a forma sensível do belo, seria uma loucura não considerar única e idêntica a beleza que reside em todos os corpos.
I
~
Entendendo isso, deve -amereodoses-corpes-belose
atenuar
a intensidade do seu amor por um único corpo, corpo este que
já pode desdenhar e levar em menor conta.
-O amor dey.:: cl:e;;"ilr a cor:templai
beleza em todos os axpos ...
Em seguida, dará maior valor à beleza que reside nas almas,
e não no físico, e, assim, se houver beleza de alma em alguém
que não seja propriamente um Iúlgido exemplo de flor de juventude, ficará feliz em amá-Ia, em cuidar dele, em fazer para
ele aqueles discursos que tornam melhores os jovens, de modo a ser levado, agora, a amar o belo que reside nas ocupações e nas regras da vida, e a perceber a sua própria afinidade
com todas elas, até chegar a considerar a beleza física como
coisa de pouca importância.
...até conceber a beleza em sentido
espiritual.
Depois das ocupações da vida, deve ser orientado em direção aos conhecimentos, para que perceba agora a beleza do saber e, voltando o olhar para a esfera agora ampla do belo, sem
mostrar mais um apego exclusivo, como um escravo, à beleza
de um rapaz, de um homem em especial ou de uma ocupação,
eleve-se da baixeza e da mesquinhez -de tal servidão -e,-dedicando-se principalmente à contemplação do imenso oceano
do belo, produza um grande número de belos discursos e su- .
blimes pensamentos rrrsptradcs por 'um mnor 'desinteressado
pela sabedoria, até que, tornando-se mais forte e seguro, perceba finalmente um único conhecimento que se refere ao belo, do qual te direi agora. Tu, porém, esforça-te em dedicar toda a atenção às minhas palavras.
o amor consegue discernir a beleza
em toda realidade.
~
~
1$
~
I
I
~
.
Literalmente, o termo grego psiché, traduzido para o latim como
anima, significa vento, sopro vital. Indica o princípio que dá a vida
e está presente em todo ser vivo (não somente no homem, portanto, mas também nos animais), do qual se separa somente no momento da morte. Platão define a alma como aquilo que tem condições de se mover por si só: incorpórea, imaterial, imortal. Mesmo
sendo uma substância simples e unitária, a alma é subdividida no
seu interior em três partes: a racional está localizada no cérebro; a
irascfvel(ímpeto), no peito, e a concupiscível (apetite), no ventre.
Esse estreito vínculo com o corpo, que se renova a cada ciclo vital
segundo o princípio da metempsicose,
impede que a alma realize
plenamente a própria natureza espiritual. E o motivo pelo qual o filósofo deseja morrer, ou seja, separar-se da prisão corpórea.
I
~
~
~
~
I
~
_
~
~
~
Na linguagem comum, o termo idéia indica genericamente um conteúdo qualquer da mente. Para Platão, no entanto, a idéia possui
uma realidade própria em si mesma, é eterna e imutável, existe antes mesmo de ser pensada por uma mente. É o modelo único e perfeito de tudo quanto em nosso mundo é múltiplo e imperfeito. A
idéia de cão, por exemplo, constitui o seu protótipo ideal, a partir
do qual decidimos a cada vez se um determinado animal pode assim ser chamado. Platão fornece uma descrição mítica como moldura para essa teoria, imaginando um mundo das idéias no hiperurânio, ou seja, um lugar extraterrestre visitado pelas almas durante a transmigração de um corpo para outro.
iai
I
~
~
ti
.~
I
@
~
~ffil..
~I~{IA escala
'j
de graus
:iI~ de Eras
o PROBLEMA o amor é positivo mesmo quando
se manifestacomo paixão, enamoramento, desejo
sexual?
A TESE Todosos possíveis tipos de amor, segundo Platão,estão dispostos ao longo de uma escala
ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA
80
~
~'
hierárquica. No nível mais baixo está o enamoramente pela beleza de um corpo, mas logo percebemos que a beleza é a mesma em todos os corpos
e acabamos por amar a beleza em si, a apreciá-Ia
em todas as suas manifestações: na alma, nas ins-
o início de um possível percurso de crescimento
espiritual. A exemplo do trecho anterior, Sócraies
reproduz as palavras que ouviu de Oiotima, a sacerdotisa estrangeira.
~
.~
n
~
~
Efetivamente, aquele que foi cuidadosamente orientado no
caminho da instrução amorosa ate conternplaros
objetos belos como uma escala, ao chegar ao fim do seu aprendizado terá
o ápice da ele'façãoerótica
confere a possede uma
ciência da beleza em si.
~.
~
i
81
ANTOLOGIA
[LUSTRADA DE fiLOSOfiA
J
-
- ..
PLATÃO
.~
a visão resplandecente de uma beleza admirável por sua própria natureza, aquela beleza, ó Sócrates, em vista da qual se
desdobraram todos os nossos esforços anteriores: uma beleza
que, antes de tudo, é eterna, que desconhece nascimento e
morte, que não aumenta nem diminui; e, em segundo lugar,
que não e bela quando vista de um lado, e feia do outro, que
não é maior em um certo tempo, e menor em outro, nem bela em uma determinada relação, e não em outra, nem bela aqui, e feia acolá, bela para alguns, e feia para outros.
Existe uma idéia de beleza em si,
sem objerivação.
Os graus da beleza formam
uma escala contínua.
Portanto, o enamoramento
também pode ser o inicio de
um percurso positivo.
o amor pela beleza em si produz
uma qualidade melhor de homem.
Os tons fortemente místicos com
que Piatão descreve o resultado
da asceseerótica nesse elogio do
amor ,~da beleza foram
retomados pelo Cristianismo e
por Plorino (ver item 52).
ANTOLOGIA
[LUSTRADA DE fILOSOfIA
PLATAO
"1a~
E a beleza tampouco se apresentará como um rosto, por
exemplo, como mãos ou qualquer outra pane do corpo; nem
sob a aparência de um discurso ou de um conhecimento; nem
como existente em algum lugar, em um objeto distinto, por
exemplo, em um ser vivo, na terra, no céu ou em qualquer outra coisa: apresentar-se-a como ela mesma, em si mesma, para ela mesma, na unicidade e na eternidade que lhe pertencem.
Enquanto todas as outras coisas belas participam dela de modo tal que, quando nascem ou deixam de viver, ela não denota aumento ou diminuição, e de forma alguma se altera.
Assim, quando alguém, ao elevar-se deste mundo por meio
de um reto amor pelos jovens, começar a distinguir esse belo,
terá então quase alcançado o ápice da ascese. Este é, portanto,
o caminho certo a ser seguido em direção à disciplina do amor, sozinho ou orientado por alguém: o ponto de partida são
as coisas belas deste mundo, o ponto de chegada é o belo, até
o qual subimos com a ajuda de, por assim dizer, degraus.
Partimos assim de um único corpo belo, passamos a dois e
depois a todos os corpos belos; dos corpos belos elevamo-nos
às belas obras e das belas obras aos belos conhecimentos, até
que, partindo dos belos conhecimentos,
chegamos enfim
àquele conhecimento que não é outro senão o belo em si mesmo. Assim, no último degrau, alcançaremos o puro belo.
É neste momento da vida, caro Socrates, mais do que em
qualquer outro, que vale a pena estar vivo: na contemplação
do belo em si! E se um dia te acontecer de conternplã-lo,
concluirás que ele não é comensuravel com o ouro ou uma
veste suntuosa, nem com meninos ou jovens atraentes, cuja
visão hoje te deixa estupefato e disposto (tu e tantos outros),
se isso fosse possível, a ficar sem comer nem beber, para dedicar-se exclusivamente a conternpla-los e a permanecer em
sua companhia.
.
o que pensar então da condição do homem que tivesse chegado a contemplar o belo em si mesmo, puro, imaculado, integro, e que, livre do peso da carne, das cores dos homens e
de todas as outras vaidades mortais, pudesse ver em si mesmo o belo divino, na unicidade da sua forma? Pensas talvez
que pudesse ser vazia a vida de um homem cujo olhar se vcl82
~
~
i
~
~
II
tasse àquele sublime objeto, que pudesse contempla-lo com
os meios necessários para tal, que vivesse em união com ele?
Não acreditas que somente então, quando visse o belo com os
meios mediante os quais ele é visível, poderia dar à luz não
fantasmas de virtude, porque não é um fa-ntasma isto 'Com que
entrou em contato, mas a verdadeira virtude, porque terá entrado em contato com o real? Ora, aquele que gera e faz crescer a verdadeira virtude não merece talvez ser amado pelos
deuses? E não é a ele, mais do qu.e.a qualquer outro no mundo, que compete tomar-se imortal?
~
~
;
.',
~
~
~
~
~
~
~
Quando o de!ir3o é
um dom divino
...
.~
~
~
I
o PROBLEMA .o·que é a loucura? Todas as formas
de loucura são patológicas? O amor é loucura?
A TESE Nesse trecho, extraído de Fedm, Platão
afirma que a paixão amorosa exclui a reflexão racional e, portanto, é uma forma temporária de
loucura. Por outro lado, nem sempre a loucura
deve ser considerada danosa. Existem tipos de
loucura positiva, como o da profetiza de Delfos,
i
Cl
,.
.~
~
ili
;;;;
~
~
~
~
,<,
~
~
~
~
~i
~
~
11;
s~
~~
,-,;
'-~
~
~
~
;
.iâ
~
~
~t
I
~
1~
·1'1.f!'l';~!
:J~
o oráculo capaz de predizer o futuro: se não conseguimos atribuir um sentido às suas frases desconexas, é somente porque não conseguimos entender a língua pela qual falam os deuses. A loucura pode ser uma forma de participação no
mundo divino, e o amor, mesmo o passional e
ernotivo, é sempre um bem, o início do caminho
do conhecimento. (ver item 33)
Não é verdadeiro o argumento de que se deve preferir uma
pessoa que não ama a um enamorado, sob o pretexto de que
um delira, e o outro e são e sábio.
O amor é uma forma positiva
de loucura.
Isso estaria certo se o delírio fosse invariavelmente um mal;
no entanto, as maiores dádivas resultam exatamente do estado de delírio, que nos é concedido por dom divino.
Existem formas benéficas
de loucura.
De fato, a profetiza de Delfos e as sacerdotisas de Dodona,
nesse estado de exalração, obtiveram para a Grécia muítos beneficíos, tanto para 05 indivíduos quanro.para .a .cornunidade,
enquanto a~ lúcidas fizeranl'pouco ou nada. Portanto, não temamos o delírio pelo que é nem nos deixemos confundir pelo argumento que manda preferir um amigo lúcido em lugar
de um apaixonado.
A capacidade profética é um
exemplo de loucura positiva.
Mas essa teoria será vitoriosa somente depois de demonstrar
que o amor não é enviado pelos deuses ao enamorado e ao
amado em seu próprio benefício. Compete a nós demonstrar
o contrário, ou seja, que essa espécie de delírio é a maior felicidade concedida pelos deuses.
Q":<
o delírio amoroso pode ser
uma dádiva divina.
Af',.:Tf"'Ilnr:lá
n
r
rc-r-n e r-i c rve
Clr("lcnÕ:ltI