Ética e poder político do saber médico Teresa Rocha Homem Nota introdutória A história da medicina tem-se debatido com duas questões fundamentais com implicações éticas e políticas no diagnóstico e tratamento médicos: as relações e as fronteiras entre o espaço do “corpo” da doença enquanto configuração espacial dos sintomas e sinais e o espaço do “corpo” do homem doente como materialização somática dessa espacialização mais ampla; a compreensão desta sintomatologia na relação médico-doente fundamental para o diagnóstico, prognóstico e tratamento da doença. O espaço da configuração da doença sempre foi mais amplo do que o da sua localização. A coincidência exacta entre ambos, ou seja, do espaço do “corpo” da doença e do “corpo” do homem doente, é um dado histórico e transitórico que só foram sobrepostos na experiência médica da medicina do século XIX e na sobrevalorização da anatomia patológica. Um elemento importante e revelador de tal facto é a relação histórica entre a medicina classificatória e a medicina de localização. A medicina classificatória, ou seja, o agrupamento dos sintomas e sinais em grupos nosológicos, sempre foi mais ampla e livre do que a de localização dos sintomas ou sinais no corpo humano. E ela precedeu a medicina de localização, o método anátomo-clínico, tornando-o historicamente possível. Da Nosologie de Sauvages (1761) à Nosographie de Pinel (1898), a regra classificatória em grupos ou quadros nosológicos de uma organização hierárquica em famílias, géneros e espécies, ou seja, de grupos de doenças, domina a teoria médica e mesmo a sua prática. Tal como Gilibert dizia “nunca tratem uma doença sem se assegurarem da espécie”1. E é nesta organização classificatórica que se encontra um poder, um pleno direito e uma ética de uma lógica imanente do pensamento médico no agrupamento dos sintomas e sinais localizados no corpo do homem doente. À maneira da árvore genealógica que ultrapassa a comparação e o parentesco, o quadro nosológico implica uma figura das doenças diferente do encadeamento de causas e efeitos, ou seja, do encadeamento cronológico dos acontecimentos e do seu trajecto visível no corpo humano. E é este poder político subjacente à regra classificatória que demarca as fronteiras entre a medicina classificatória e nosológica e a medicina de localização. Na medicina do século XIX e com a sobrevalorização da anatomia patológica como fundamento da doença nos tecidos mortos, assiste-se a uma simbiose dos quadros nosológicos com a localização somática da doença. Há uma transição do poder político para esta unidade nosológica e sintomática no corpo do doente. Esse espaço de organização define um sistema de relações, subordinações, divisões e semelhanças, entre os dois modos de expressão dos sintomas e sinais, ou mais precisamente, entre a expressão somática dos sintomas ou sinais e o orgão ou sistema a que eles pertencem. Há uma relação entre dois planos: um vertical, em que os sintomas e sinais somáticos se sucedem no tempo por episódios de uma forma assimétrica quer no tempo quer em relação ao sistema ou orgão a que pertencem e um horizontal, em que há uma homologia segundo uma simetria perfeita entre o sintoma ou sinal particular e o sistema geral em que ele se inscreve. Como exemplo, “a febre, “afluência de frio e de calor sucessivo”, pode desenvolver-se em um só episódio ou em vários (...) o catarro está para a garganta assim como a disenteria está para o intestino”2. E estas relações constituem a configuração primária da doença. A relação desta configuração primária da doença a nível dos sintomas e sinais particulares e sistemas ou orgãos a que estes pertencem com o organismo como espaço onde se inscrevem todas estas relações constitui a configuração secundária da doença. A relação entre a doença e a sociedade constitui a configuração terciária da doença. A compreensão e demarcação das fronteiras entre estes diferentes domínios evoluiu ao longo da história da medicina, desde a Antiguidade até à reforma na Revolução Francesa com a introdução da experiência clínica como abertura destas relações ao estudo do doente nos hospitais e instituições públicas do saber médico. Com a Revolução Francesa, a atitude médica deixa de ser uma procura das essências da doença, imutáveis e independentes do homem doente 1 2 Michel Foucault, Naissance de la Clinique (Paris: Presses Universitaires de France, 1972), p. 2. Idem, p. 3. 2 para uma procura dos sintomas e da doença no corpo do homem doente. Uma atitude fundamental na conduta ética e política face ao doente enquanto ser humano. Este pequeno texto tenta expôr alguns aspectos interessantes da história da experiência médica e seus métodos com particular ênfase para o nascimento da clínica médica na Revolução Francesa do século XVIII no livro Naissance de la Clinique de Michel Foucault. Configuração primária da doença Na medicina do século XVIII, a configuração primária da doença, ou seja, as suas manisfestações somáticas, dão-se em uma experiência histórica, contingente, que é diferente do saber filosófico dos seus princípios e causas. O mesmo é dizer, os príncipios e as causas estão intrinsecamente supostos no saber filosófico em oposição a este saber histórico e contingente. Como exemplo, a tosse, a dor lateral, são sintomas circunstanciais e históricos, consequências, da doença pleuresia como inflamação da pleura, enquanto que o questionar acerca da inflamação da pleura consiste no saber filosófico. Porém, esta distinção não é uma distinção entre causa e efeito, entre princípio e consequência. Também não se trata de uma distinção entre o vísível e o oculto, uma vez que muitos sintomas só se tornam visíveis mediante uma história clínica detalhada. O histórico é o sintoma ou sinal que se manifesta num dado momento mas em que não há uma relação temporal e de causa e efeito entre eles. É um espaço de um único plano em que o tempo se aniquila, um espaço de tempo simultâneo. O efeito tem o mesmo estatuto que a sua causa ou o princípio, e o antecedente coincide com a consequência. Há um espaço homogéneo em que eles se misturam, se entrecuzam. Mas, este espaço simultâneo não anula a ordem das relações e a ordem temporal dos sintomas que estão intrinsecamente supostos. Como exemplo, “uma inflamaço local nada mais é do que a justaposição ideal de seus elementos “históricos” (rubor, tumor, calor, dor) sem que esteja em questão sua rede de determinações recíprocas ou seu entrecruzamento temporal”3. Por outras palavras, um sintoma pode surgir primeiro que outro e isto não implica uma relação de causa e efeito entre eles. Há uma reciprocidade e um entrecruzamento temporal entre eles. 3 Idem, p. 4. 3 As doenças com as suas essências próprias, os seus sintomas, afastam-se umas das outras pelo grau da sua semelhança e não pelo afastamento lógico-temporal da genealogia. Há uma semelhança e unidade entre os sintomas de doenças diferentes, as quais distinguem-se por pequenas diferenças nos sintomas ou sinais. Como exemplo, o desaparecimento dos movimentos voluntários e o entorpecimento da sensibilidade interna ou externa é comum à apoplexia, paralisia e síncope. Porém, na apoplexia há perda de todos os sentidos e motricidade voluntária, poupando a respiração e movimentos cardíacos enquanto que a paralisia atinge apenas um sector localizável da sensibilidade e da motricidade e a síncope, apesar de ser geral como a apoplexia, interrompe os movimentos respiratórios. Com estas pequenas diferenças nos sintomas que são diferenças de distribuição dos mesmos, dá-nos a ilusão que se trata de um sintoma na paralisia, um episódio na síncope e um ataque orgâncio e funcional na apoplexia. Contudo, trata-se apenas de analogias de forma de manifestação e distribuição dos sintomas. Quando essas analogias se tornam bastante densas, elas deixam de ser apenas semelhanças e passam a ser uma unidade de essência. Como exemplo, a diferença entre uma apoplexia que suspende de uma só vez a motricidade e as formas crónicas e evolutivas que aos poucos vão atacando todo o sistema motor não é fundamental. Trata-se de uma identidade em que as formas distribuídas no tempo se reunem e sobrepôem. E é nesta analogia que se situa a ordem racional e ontológica das doenças, a ordem geral da natureza que faz com que os sintomas de uma doença surjam e evoluam sempre da mesma forma que é a forma evolutiva própria da espécie da doença. Com a Revolução Francesa, as analogias em que se apoia o olhar clínico são de outra ordem, “consistem nas relações que existem primeiramente entre as partes constituintes de uma única doença, e em seguida entre uma doença conhecida e uma doença a conhecer”4. Assim, a analogia é uma relação de semelhança que desaparece à medida que nos afastamos da identidade essencial. Há uma inversão dos quantificadores. As doenças distinguem-se não pelo grau da sua semelhança mas pelo afastamento logico-temporal da genealogia. Na medicina do século XVIII, o saber médico radicava na procura destas verdades essenciais da doença independentemente do doente, o qual era um mero acidente com as suas idiossincrasias. Assim, a atitude do médico que pretendia conhecer a verdade do facto patológico devia abstrair o doente, ou seja, devia conseguir separar os sintomas que são próprios da doença e que a acompanham de modo necessário dos que são acidentais e próprios das características individuais e acidentais do doente. O doente é paradoxalmente um elemento exterior à doença que sofre e não é a doença que funciona como uma contranatureza em relação à vida mas o 4 Idem, p. 109. 4 doente em relação à própria doença. Do mesmo modo, a relação do médico com o doente e a doença é uma relação de procura da verdade da doença e deve, portanto, colocar o doente entre parêntesis. E isto quer sob o ponto de vista diagnóstico quer sob o ponto de vista terapêutico: “o sucesso da cura depende de um exacto conhecimento da doença5. Assim, a terapêutica só deve ser instituída após um conhecimento da verdade nosológica e não aquando do surgimento da sintomatologia, uma vez que pode perturbar o conhecimento correcto da doença. Também, os acidentes do médico não devem influenciar o conhecimento da essência da doença. Deste modo, o papel paradoxal da medicina consiste em neutralizar estes acidentes, quer do médico quer do doente, visando a configuração ideal da doença, o espaço simultâneo e imóvel da essência nosológica. Daí a estranha característica do olhar médico, porque se dirige ao que é visível na doença, aos sintomas essenciais, a partir do doente que os oculta, mostrando-os. Deste modo, o conhecimento do médico é sempre um reconhecimento desta verdade essencial que se oculta através do doente. O mundo da doença é apenas um episódio do mundo da vida. Estes partilham da mesma racionalidade, ou seja, ajustam-se e sobrepôem-se numa ordem natural que lhes é comum. È a lei da vida que constitui o fundamento do conhecimento da doença. As espécies das doenças são naturais e ideias. Naturais porque elas contêm as verdades essencias das doenças e ideais porque as doenças nunca surgem na experiência sem uma alteração ou distúrbio. A principal perturbação traduz-se no modo idiossincrático da patologia devido aos factores acidentais do doente como a idade, a personalidade, o modo de vida, que acresce à pura essência nosológica. E é através desses factores acidentais que a doença se manifesta na experiência. Com a Revolução Francesa e o nascimento da clínica médica, há uma mudança de atitude quer sob o ponto de vista diagnóstico quer sob o ponto de vista terapêutico. O médico deve procurar os sintomas e sinais no corpo do doente através de uma história clínica detalhada e deve instituir uma terapêutica adequada ao quadro clínico. 5 Idem, p. 7. 5 Configuração secundária da doença A doença que é referenciável no quadro nosológico, aparece através do corpo onde encontra um espaço cuja configuração é inteiramente diferente. Ou seja, ela manifesta-se através das formas visíveis do organismo doente, constituindo a configuração secundária da doença. A doença através dos sintomas atinge um orgão e pode deslocar-se para outro orgão diferente apresentando sintomas diferentes da mesma doença. Assim, a afecção de um orgão não é absolutamente necessária para a classificação de uma doença, ou seja, a doença com os seus sintomas essenciais permanece idêntica a si mesma independentemente do orgão atingido. Há uma liberdade do espaço do “corpo” da doença relativamente ao “corpo” do doente. Como exemplo, uma mesma afecção espasmódica pode originar alterações do fluxo menstrual ou hemorroidal ao nível do baixo ventre, palpitações ao nível do peito e convulsões epilépticas, síncopes ou sono comatoso ao nível da cabeça. Mas a diferença entre a medicina do século XVIII e a da reforma da Revolução Francesa reside no facto de que esta liberdade é autêntica no primeiro caso e aparente no segundo. Por outras palavras, a distinção entre o mundo essencial da doença e o mundo do doente na medicina do século XVIII anula-se com a experiência clínica da reforma da Revolução Francesa.. Também nesta circulação livre da doença no organismo doente, a doença sofre metástases e metamorfoses. Ou seja, o deslocamento remodela-a em parte. Como exemplo, uma hemorragia nasal pode tornar-se hemoptise ou hemorragia cerebral. Porém, subsiste o derrame sanguíneo. A nível das metástases, pode haver uma relação de causalidade e não de parentesco entre as doenças. Uma forma patológica pode originar uma outra diferente e muito distante quer na localização quer no tempo mas no mesmo quadro nosológico. Os deslocamentos da doença podem produzir-se no mesmo indivíduo com o tempo ou em indivíduos diferentes em pontos diferentes. Como exemplo deste último caso, temos que o espasmo é na sua forma visceral principalmente encontrado nos indivíduos linfáticos e na sua forma cerebral nos indivíduos sanguíneos. Com o aparecimento da experiência clínica e a ênfase no estudo do homem doente, a verdade da doença deixa de ser o espaço essencial dos sintomas imutáveis e independentes do doente para uma abordagem da doença do homem doente. Selle dizia que a clínica nada mais era que do “que o próprio exercício da medicina junto ao leito dos doentes”6. A história clínica de Pinel enfatiza o estudo da doença na observação do doente e numa análise detalhada dos 6 Idem, p. 115. 6 sintomas incluindo o seu aparecimento e evolução e a história pregressa e familiar do doente. Mas a observação não é meramente uma experiência. A observação traduz uma leitura plena da verdade do doente enquanto a experiência implica uma interrogação sobre a doença e seus sintomas. A história clínica deve ser uma uma atitude de escuta do doente, uma leitura em que há uma simbiose entre o ver e o escutar. Uma unidade entre o visível e o enunciável. A doença é a totalidade disível em tantas probabilidades quantas se quiser tal como o princípio formulado por Jacques Bernouilli7. E o aparecimento da necessidade do estudo das doenças na autópsia surge com o advento da anatomia patológica com Morgagni e depois Bichat no início do século XIX. A relação entre o “corpo” da doença e o “corpo” do doente deixa de ser uma relação qualitativa para uma fundamentação da doença no estudo dos cadáveres. Configuração terciária da doença A configuração terciária da doença faz-se através das relações da doença com as formas instituicionais, políticas, económicas da sociedade. “Nela, todo um corpo de práticas e instituições médicas articula as espacializações primária e secundária com as formas de um espaço social de que a génese, a estrutura e as leis são de natureza diferente”8. No século XVIII, existe a ideia de uma natureza selvagem da doença que é a sua verdadeira natureza livre de intervenção médica ou outra. Porém, quanto mais complexo se torna o espaço social em que ela está inserida mais ela se desnaturaliza. Temos como exemplo, as doenças nos povos nas sociedades “não civilizadas” cujas doenças eram mais simples e mais necessárias. Com a civilização “a saúde parece diminuir gradativamente9”, as doenças diversificam-se e complexificam-se. Nas sociedades civilizadas, o hospital é um lugar artificial em que a doença corre o perigo de perder o seu aspecto essencial. Ela aí encontra-se e manifestase como complicação hospitalar e o doente perde a sua ligação à família, o lugar natural da doença, e vive numa solidão e desespero. Aspectos que influenciam negativamente a evolução da doença, ou seja, o seu curso natural. Assim, o médico hospitalar só vê doenças distorcidas, alteradas. 7 Cf. idem, p. 113. Idem, p. 16. 9 Idem, p. 17. 8 7 A medicina implica uma especialização livre e sem opressão hospitalar, um lugar onde ela se relaciona com a essência da doença e a desenvolve de modo natural até ao seu fim natural, a morte. A cura não deve perturbar a natureza da doença. Este tema coincide com o problema da assistência. Os doentes internados nos hospitais, lugares geradores de doença, acarretam uma sobrecarga económica para a sociedade tal como as famílias deixadas ao abandono e expostas à miséria e à doença. Seria necessário conceber uma medicina suficientemente ligada ao Estado para que conjuntamente com ele fosse capaz de praticar uma política constante de uma medicina socializada com cuidados gratuitos assegurados por médicos que o governo tutelaria. E, por isso, seria necessário exercer um controlo sobre esses médicos, impedindo os abusos e assegurar uma medicina da percepção individual, da assistência familiar, dos cuidados em domicílio numa estrutura colectiva controlada e cobrindo a totalidade do espaço social. Assim, entra-se numa forma inteiramente nova e mais ou menos desconhecida no século XVIII de uma espacialização institucional da doença em que a medicina das espécies se perderá. Com a reforma da Revolução Francesa, o hospital adquire uma dimensão importante na experiência médica. A atitude terapêutica do século XVIII no seio da família como lugar natural da cura do doente é substituída por uma atitude interventiva nas unidades hospitalares, locais não de causa de doença mas da sua cura. A primeira tarefa do médico é política: “a luta contra a doença deve começar por uma guerra contra os maus governos; o homem só será total e definitavamente curado se for primeiramente liberto”10. E a medicina deve incluir um conhecimento não só do homem doente como também do homem saudável visando o seu bem estar total, orgânico, psíquico e social. Pode dizer-se que até ao final do século XVIII a medicina referiu-se muito mais à saúde do que à normalidade, apoiando-se não numa análise de um funcionamento “regular” do organismo mas sim na procura de um desvio, daquilo que lhe causou distúrbio e no modo como o podia restabelecer. Ao contrário, a medicina do século XIX regula-se mais pela normalidade do que pela saúde, isto é, ela forma os seus conceitos e prescreve as suas intervenções em relação a um tipo de funcionamento ou de estrutura orgânica. Temos a instalação do conhecimento fisiológico no âmago de toda a reflexão médica, conhecimento este considerado até então marginal para o médico e puramente teórico e a transferência dos processos biológicos e da “vida psicológica” do individual para a relação com a sociedade. 10 Idem, p. 36. 8 A nova dimensão do sintoma Como foi referido, na medicina do século XVIII, os sintomas e sinais eram partes essenciais da doença, eram a sua verdade que deveria ser desvelada pelo médico. O sintoma “é a forma como se apresenta a doença: de tudo o que é visível, ele é o que está mais próximo do essencial (...) tosse, febre, dor lateral e dificuldade de respirar não são a própria pleuresia (...) mas formam o “sintoma essencial””11. O essencial nunca se dá aos sentidos. Ele apenas é apreendido através do raciocínio. “O signo anuncia: prognostica o que se vai passar; faz a anamnese do que se passou; diagnostica o que ocorre actualmente”12. Ele anuncia o que é mais longínquo na evolução da doença, o antever do término da vida, da morte. Com a Revolução Francesa, o sintoma adquire outra dimensão. O modelo natural a que a medicina estava sujeita até ao século XVIII ainda não se anulou completamente mas é visto de uma forma diferente. O sintoma e o sinal fazem parte do homem doente e é papel do médico o seu desvelamento no leito do doente. O sintoma tem uma dupla linguagem, dois modos próprios e indissolúveis de ser: a linguagem da visão, do ver e do olhar clínico e a linguagem enunciável, da palavra através do diálogo com o doente. Os sintomas e sinais das doenças são as realidades da doença. Um sintoma é um sinal mas um sinal não é necessariamente um sintoma. O sintoma é a manifestação histórica e contingente da doença enquanto que o sinal é uma manifestação mais ampla que traduz a natureza da doença como conjunto dos sintomas nosológicos. Ele indicia o curso da doença, a sua evolução natural. A atitude do médico clínico consiste em ler esta verdade da doença através do sintoma como sua manifestação no corpo do doente e que constitui a própria essência da doença. Ele deve ler as manifestações sintomáticas, as suas eventuais complicaçoes, a evolução e prognóstico da doença e decidir as atitudes terapêuticas a tomar. Não há diferença entre a teoria e a experimentação. Elas fundem-se numa mesma verdade fundamental que é a verdade da experiência clínica. E esta experiência é feita no hospital com o auxílio de toda uma intervenção do médico e restante corpus médico. O sintoma adquire, assim, uma dimensão social. O sintoma traduz toda uma expressão histórica da doença do doente no contexto da sua história pessoal, familiar e social. 11 12 Idem, p. 98. Idem, p. 98. 9 O médico deve selecionar dentro da diversidade de sintomas que surgem e organizá-los em quadros nosológicos. O método natural da medicina do século XVIII ainda não foi abolido. Ele apenas é utilizado de uma maneira diferente em que os sintomas não são as verdades essencias da doença mas sim as verdades contingentes e constitutivas da própria doença. Há uma transferência do saber do plano ideal, imutável, para o contingente e da experiência. Por outras palavras, o olhar clínico enquanto ver e escutar é a nova realidade nosológica. As epidemias Um aspecto importante da configuração terciária prende-se com as doenças epidémicas ou de carácter endémico. Na medicina nosológica ou das espécies, as noções de constituição, doença endémica e epidemia tiveram um destino particular no século XVIII. A “constituição” de Sydenham é o complexo de um conjunto de acontecimentos naturais como as qualidades do solo, climas, estações, entre outros, que não têm sintomas próprios, não é uma natureza autónoma, mas agrupamentos inesperados de sinais ou de fenómenos mais intensos ou mais fracos num dado local e tempo determinados e em certas condições climatéricas. Como exemplo, a essência da epidemia não é a peste ou o catarro mas sim Marselha em 1721 onde durante o verão se produziu uma epidemia de febres biliosas catarrais complicadas com febres biliosas ardentes durante o outono e que atingiu as crianças. Porém, nem toda a constituição é epidemia. Mas, a epidemia é uma constituição de fenómenos constantes e homogéneos. A epidemia é mais do que uma forma particular de doença e no século XVIII ela é um modo autónomo, coerente e suficiente de ver a doença. “Dá-se o nome de doenças epidémicas a todas aquelas que atacam ao mesmo tempo e com características imutáveis, grande número de pessoas”13. Deste modo não há diferença entre uma doença individual e uma epidemia. Esta última apenas necessita que uma afecção esporádica se reproduza algumas vezes e simultaneamente. E a regularidade dos sintomas não traduz uma ordem natural mas apenas uma constância das causas, a repetição de uma forma particular de afecção. Do mesmo modo, as epidemias podem ser ou não contagiosas e o contágio é apenas uma modalidade da epidemia, não não fazendo parte da sua natureza essencial. 13 Idem, p. 23. 10 No caso de causas que se mantêm no tempo num determinado local e que atingem grande número de pessoas independentemente do sexo, da idade ou personalidade pode falar-se de doenças endémicas. A atitude médica face às epidemias deve ser de uma atitude de assistência e prevenção nos locais epidémicos com equipas médicas e de enfermagem especializadas. Um tipo de medicina comunitária e preventiva, na sociedade, que já começou a institucionalizar-se nos finais do século XVIII com a Revolução Francesa . Uma forma assistencial de intervenção constante, de controlo e coersiva com equipas multidisciplinares em que após uma observação e um estudo detalhado de todo o território em causa incluindo estudos epidemiológicos, climatéricos, entre outros, se estabelecesse um regulamento de saúde comunitário, um estatuto político da medicina com intervenção do Estado e toda a sociedade. O fundamento da anatomia patológica Com o estudo dos cadáveres na anatomia patológica, toda a doença passa a ter um fundamento anátomopatológico ou anatomoclínico. Bichat é estritamente um analista em que a redução do volume orgânico ao espaço tissular é, provavelmente a aplicação analítica mais próxima de seu método matemático. Trata-se de um modo de percepção idêntico ao que a clínica foi buscar na filosofia de Condillac: “a descoberta de um elementar que é, ao mesmo tempo, um universal, e uma leitura metódica que, percorrendo as formas da decomposição, descreve as leis da decomposição”14. A classificação das diferentes patologias em grupos com características anatomopatológicas, com alterações semelhantes, aproxima-se da classificação nosológica nos tecidos mortos. Bichat reencontra “não a geometria dos orgãos, mas a ordem das classificações. A antomia patológica foi ordinal antes de ser localizadora”15. Há uma analogia entre as patologias com manifestações anatómicas semelhantes à maneira dos quadros nosológicos na experiência clínica. 14 15 Idem, p. 141. Idem, p. 143. 11 A antomia patológica mostrava que, se a doença é analisável é porque ela própria é análise e a decomposição ideológica é apenas a repetição na consciência do médico do que se passa no corpo do doente. As alterações são distintas e próprias de cada orgão. Como exemplo, a inflamação da pia-mater torna-a vermelha revelando que ela é inteiramente composta de vasos e a aracnoide é de um branco denso. Mas, embora elas sejam diferentes e distintas e Van Horne as tenha distinguido na segunda metade do século XVII, elas ainda eram confundidas no início do método anátomopatológico. Trata-se de um tipo de análise que tenta reduzir a complexidade funcional a simplicidades anatómicas. Ele concretiza processos que foram abstraídos mas que têm a sua tradução na análise dos tecidos mortos. E esta tradução patológica dos fenómenos vivos apenas é possível porque estes fenómenos são eles mesmos patológicos. É por isso que a análise da antomia patológica mostra que a doença não é um processo passivo mas sim um processo activo que actua no organismo. E Bichat viu na antomia patológica um acontecimento simétrico à descoberta de Lavoisier: “a química possui corpos simples que formam corpos compostos pelas diversas combinações de que são susceptíveis... Da mesma forma, a anatomia tem tecidos que..., por combinações, formam os orgãos”16. A anatomia patológica é uma ciência que tem por objectivo o conhecimento das alterações visíveis que a doença produz nos orgãos doentes, uma confirmação objectiva dos sintomas da doença. É uma aproximação do médico do corpo do doente e da doença, atitude esta implícita na mudança do olhar médico no final do século XVIII com a reforma da Revolução Francesa. Algumas considerações A história da medicina tem-se confrontado com duas questões intimamente relacionadas e com implicações éticas e políticas no diagnóstico e tratamento médicos: as relações e fronteiras entre a medicina classificatória ou nosológica e a medicina de localização; a relação médicodoente e a compreensão da doença no contexto do doente enquanto totalidade bio-psico-social. Na medicina do século XVIII, os sintomas e sinais das doenças eram as essências imutáveis das doenças. E a atitude do médico consistia precisamente na compreensão destas 16 Idem, p. 145. 12 verdades essencias independentes dos acidentes próprios dos doentes. O médico nesta busca da verdade devia colocar o doente entre parentesis. Com a reforma da Revolução Francesa assistese a uma mudança na atitude médica com a introdução da experiência clínica. A atitude do médico clínico passa a ser de uma relação próxima com o doente na tentativa de desvelar a verdade da doença, agora fazendo parte do próprio doente. Por outras palavras, os sintomas e sinais das doenças deixam de ser verdades essenciais e independentes do doente para se situarem no próprio doente. Não deixa de ser curioso verificar que, apesar da ênfase no nascimento da clínica médica com a Revolução Francesa, Foucault não aborda a vertente política intrinsecamente suposta nesta nova atitude médica, no novo olhar clínico. Aspecto que poderá ter consequências importantes não só na relação do médico com o homem mas com a doença e o homem enquanto realidade bio-psico-social com manifestações políticas na sociedade em que vive e de que é parte integrante. O poder político passa a estar intrínsecamente suposto na relação médico-doente e na relação do homem com o “outro”, quer como seu semelhante e por isso com direitos e deveres quer com a doença como manifestação de uma realidade alargada bio-psico-social igualmente com direitos e deveres. Uma atitude ética e política de um olhar atento e interrogativo que emana de uma liberdade do pensar e agir do espírito da Revolução Francesa. A introdução na clínica médica da história clínica com Pinel e a análise anatomopatológica dos orgãos nas autópsias dos doentes constituem dois importantes marcos nesta mudança de atitude na relação médico-doente e na compreensão das doenças com a introdução da experiência clínica. Tal como Didier Eribon refere, com La Naissance de la Clinique de Foucault, a vida, a doença e a morte constituem uma triade técnica e conceptual. A abertura à morte enquanto possibilidade de um poder ser da vida. Actualmente, a doença não se restringe ao seu substracto orgânico dos tecidos analizados na anatomia patológica. A doença é uma totalidade de uma realidade simultaneamente subjectiva e objectiva em todo um contexto bio-psico-social do ser humano mas em que a dimensão da morte é uma dimensão da vida. As relações do doente com a sociedade em que está inserido também chama a atenção para dois aspectos importantes nesta atitude médica: a relação e atitude ética e política do doente com a sua família e o poder político e a ética introduzida com a nova concepção de unidade hospitalar como local de cura da doença. O papel da família como único meio curativo da doença e do doente é substituído depois da Revolução Francesa pela intervenção do hospital e do Estado enquanto entidade reguladora e assistencial ao doente e suas famílias. E o papel preventivo e assistencial dos desejos de uma medicina comunitária também é um importante factor nesta prática médica. 13 Actualmente, a experiência clínica incide fundamentalmente na relação médico-doente, na procura dos sintomas e sinais no doente enquanto totalidade bio-psico-social. O doente não é um elemento exterior à doença, mas ele faz parte integrante da doença de que sofre. E o papel do médico consiste nesta busca da compreensão da doença no doente. A história clínica deve incluir uma análise detalhada da história sintomática do doente enquanto totalidade bio-psico-social e, portanto, toda a sua história pessoal, familiar e social. A medicina não visa apenas o doente mas também o homem saudável numa atitude preventiva do bem-estar do ser humano. Os adventos na fisiologia, na biologia, na psicologia, entre outros, são testemunhos desta atitude da prática médica. Penso que, com o advento das novas abordagens diagnósticas e terapêuticas e com o carácter multidisciplinar das práticas e teorias médicas como os adventos da genética, da biologia, da farmacologia, entre outros, a medicina entra num novo período de mudança no significado e compreensão dos processos fisiológicos, biológicos e psicológicos do ser humano. 14 Referências bibliográficas Michel Foucault, Naissance de la Clinique (Paris: Presses Universitaires de France, 1972). Braunwald et al., Harrison`s Principles of Internal Medicine (New York: McGraw-Hill, 2001). Didier Eribon, Michel Foucault (Paris: Flammarion, 1991). 15