Anais
Seminário naCional
Mesa BRasil sesC
Segurança alimentar
e nutricional:
desafios e estratégias
1a edição
Rio de Janeiro, 2010
Serviço Social do Comércio
seRViÇO sOCial DO COMÉRCiO
Presidência do Conselho Nacional
antonio oliveira Santos
Departamento nacional
Direção-Geral
maron emile abi-abib
Apoio técnico-científico
Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade
manoel Thedim
maurício Blanco
Divisão Administrativa e Financeira
João Carlos Gomes roldão
Divisão de Planejamento e Desenvolvimento
edição
Assessoria de Divulgação e Promoção/Direção-Geral
luís Fernando de mello Costa
Christiane Caetano
Divisão de Programas Sociais
Coordenação editorial
álvaro de melo Salmito
rosane Carneiro
Consultoria da Direção-Geral
Edição e revisão
Juvenal Ferreira Fortes Filho
Gerência de Saúde
irlando Tenório moreira
Grupo Gestor do proGrama mesa Brasil sesC
Coordenação
Claudia márcia ramos roseno
Assessoria técnica
Duas Águas Editoração e Consultoria
Cláudia Sampaio
ieda magri
Projeto gráfico
ana Cristina Pereira (Hannah23)
Diagramação
Susan Johnson
ana Cristina Corrêa Guedes Barros
roberta de Vilhena Pires
Apoio técnico dos Departamentos Regionais do SESC
Teresa Cristina Carvalho dos anjos
Coordenadora do Programa mesa Brasil SeSC/al
luciana oliveira de azevedo nascimento
Coordenadora do Programa mesa Brasil SeSC/SC
Publicação do Seminário nacional mesa Brasil SeSC,
realizado em 8 e 9 de outubro de 2008 em Brasília.
Seminário Nacional Mesa Brasil SESC (2010: Rio de Janeiro, RJ)
Anais Seminário Nacional Mesa Brasil SESC: segurança alimentar e nutricional:
desafios e estratégias. 1. ed. -- Rio de Janeiro: Serviço Social do Comércio, 2010.
182 p. ; 21 cm.
Bibliografia: No final de alguns artigos
ISBN 978-85-89336-43-7
1. Segurança alimentar. I. Título.
CDD 363.192
Apresentação do Presidente do Conselho Nacional do SESC
07
Apresentação da Direção-Geral do Departamento Nacional do SESC
09
Introdução
10
Artigos
A expansão da oferta e a melhoria da distribuição de alimentos
Eliseu Roberto de Andrade Alves 30
Cenário da pobreza e da fome no Brasil
Ricardo Paes de Barros 38
O novo cenário da pobreza, da desnutrição e da fome no Brasil:
implicações para políticas públicas
Carlos Augusto Monteiro 46
Desafios para uma política de segurança alimentar e nutricional integrada
Walter Belik
58
Insegurança alimentar no contexto brasileiro
Renato Maluf 70
Algumas notas sobre segurança alimentar e comércio internacional
Marta dos Reis Castilho
80
Avanços recentes e ameaças à segurança alimentar mundial
Ricardo Abramovay 88
Desperdício de alimentos: de que se trata, afinal?
Mauricio Teixeira Leite de Vasconcellos
98
A dimensão nutricional do Bolsa Família
Eduardo Rios-Neto
110
Impactos do Programa de Aquisição de Alimentos no campo produtivo e social
Silvio Isopo Porto Sumário
120
Agricultura familiar: novas estratégias de financiamento
Porfírio Silva de Almeida
128
O papel do biodiesel no desenvolvimento brasileiro
Jorio Dauster
138
A dimensão da segurança alimentar nos programas de redução da pobreza
Wanda Engel
144
O fortalecimento da segurança alimentar nas políticas sociais
Crispim Moreira
152
Políticas sociais e desenvolvimento: desafios de uma agenda integrada
Ricardo Manuel dos Santos Henriques 158
A dimensão social da segurança alimentar
Paul Singer 170
Fome, ética e assistência
Danilo Santos de Miranda
Anexo: Programação do Seminário Nacional Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias 174
178
Segurança alimentar
e nutricional:
desafios e estratégias
6
Prezado leitor
serviço social do Comércio |
7
É com enorme satisfação que apresentamos a publicação Segurança alimentar
e nutricional: desafios e estratégias, fruto do Seminário nacional mesa Brasil
SeSC, realizado em Brasília em outubro de 2008.
o mundo contemporâneo impõe a segurança alimentar e nutricional como condição sine qua non para caracterizar as nações modernas no século XXi. a
sociedade brasileira está plenamente consciente de que esse é um dos mais
importantes fatores de desenvolvimento socioeconômico do país.
Tradicionalmente, o empresariado do comércio no Brasil assume – das mais diversas formas – sua responsabilidade neste tema e entende que é tarefa de
todos contribuir de forma efetiva para superar seus desafios. Seja com iniciativas individuais, seja por meio das suas instituições sociais, o empresário, independentemente da sua região e atividade, tem colaborado para consolidar
a segurança alimentar e nutricional no Brasil. É árdua tarefa para a sociedade
prover condições sustentáveis de longo prazo que permitam enxergar o futuro
com otimismo.
neste sentido, inspira-nos especial orgulho a contribuição do mesa Brasil SeSC.
a arquitetura do Programa promove, entre muitos outros objetivos, a articulação e mobilização dos atores em torno desta questão. Dentre os resultados
mais expressivos ressalta-se a redução do desperdício nas diversas fases da
cadeia alimentar.
o mesa Brasil SeSC enfrenta com visão inovadora o debate democrático e plural
sobre os desafios da segurança alimentar e nutricional. o presente volume é o
resultado desse anseio da instituição.
Boa leitura!
Antonio Oliveira Santos
Presidente do Conselho nacional do SeSC
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
9
Decorridos sete anos do lançamento nacional do Programa mesa Brasil SeSC,
pode-se afirmar que ele veio ocupar um espaço importante na agenda da promoção da segurança alimentar e nutricional dos brasileiros em situação de
pobreza e exclusão.
não obstante a complexidade e abrangência das suas ações assistenciais e educativas, o SeSC assumiu a difícil tarefa de promover o Seminário nacional mesa
Brasil SeSC – Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias com o
objetivo de promover uma reflexão articulada sobre a segurança alimentar e
nutricional nos cenários nacional e internacional.
Congregando não apenas um conjunto de especialistas, mas também atores em
todos os níveis, foram abordados temas que reforçam a concepção multifacetada da fome, promovendo uma ampla interlocução entre as políticas de segurança alimentar – pautados na qualidade, quantidade, regularidade e dignidade no
acesso aos alimentos – e as políticas de assistência social, que reconhecem a
alimentação como um direito social garantido constitucionalmente.
Trazer estas questões à tona, além de oportuno, dado o cenário anunciado da
crise dos alimentos, foi estratégico no enfrentamento dos desafios que levam à
formulação de políticas e programas em prol daqueles que vivem em situação
de insegurança alimentar. esta publicação se propõe, assim, a aprofundar teorias, confrontar pontos de vista e instigar reflexões a partir do conjunto de textos
apresentados no Seminário.
Maron Emile Abi-Abib
Diretor-Geral do Departamento nacional
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
10
Seminário naCional
Mesa BRasil sesC
Segurança alimentar e
nutricional: desafios e
estratégias
Introdução
serviço social do Comércio |
11
Desde meados dos anos 60, o Brasil tem se engajado de forma inequívoca no esforço global
de combate à fome. o primeiro momento desta
trajetória foi a assinatura do Pacto internacional
dos Direitos econômicos, Sociais e Culturais
(Pidesc), em 1966. nas décadas posteriores, o
país renovou esse compromisso permanentemente, não apenas marcando presença nos
mais diversos foros internacionais e regionais
sobre o tema, mas também introduzindo de
forma prioritária a questão da fome e da segurança alimentar na agenda pública do estado e
ampliando este debate na sociedade civil.
após a redemocratização do país, em 1988, o combate à fome e à desnutrição ganhou um caráter
transversal, permeando praticamente todas as
políticas setoriais: saúde, educação, cultura,
preservação do meio ambiente e, naturalmente, políticas de combate à pobreza. atualmente,
uma proporção significativa de programas sociais específicos tem desenvolvido tecnologias
que visam à redução dos níveis de desnutrição,
seja por meio da distribuição de comida e da
ampla difusão de práticas adequadas de consumo e de tratamento dos alimentos, seja por
meio do desenho de processos de redução do
desperdício em toda a cadeia alimentar.
a acumulação de conhecimento do setor público
nessas áreas tornou necessários a criação e o
desenvolvimento de arcabouços institucionais
participativos em todos os âmbitos do estado.
na estrutura vertical do setor público brasileiro funcionam hoje conselhos de segurança
alimentar nas três esferas (federal, estadual e
municipal). estas entidades têm o papel não só
de sensibilizar a população para uma das manifestações mais hediondas da pobreza, mas
também o de ser o espaço de articulação de soluções eficazes, que frequentemente precisam
ter um caráter local.
na estrutura horizontal do estado, órgãos intersetoriais com diversos formatos e os mais variados
instrumentos foram desenvolvidos desde a década de 90. muitos tiveram vida efêmera, outros
foram aperfeiçoados. na verdade, trata-se de
um processo de experimentação institucional,
na busca permanente de ajustes para se enfrentar com sucesso o desafio do combate à fome e
à desnutrição.
assim, em 19951 se constituiu o Comunidade Solidária, ao mesmo tempo em que se extinguia
o Conselho nacional de Segurança alimentar
(Consea), criado em 1993. este é um capítulo
importante na história institucional do combate
à fome no âmbito do estado. Se o Consea teve
o mérito de introduzir o combate à desnutrição
e à miséria na agenda da Presidência da república, o Comunidade Solidária tornou viável a
ação do governo federal, ao introduzir conceitos
instrumentais como parcerias, solidariedade e
descentralização. o Comunidade Solidária foi
inovador no desenho de uma metodologia de
gerenciamento das ações públicas com base na
integração e na descentralização das ações de
governo e na abertura à participação e à parceria
da sociedade. o objetivo comum era o de buscar
as soluções mais adequadas para a melhoria das
condições de vida das populações mais pobres.
as propostas do Consea e do Comunidade Solidá1 embora o Comunidade Solidária tenha sido criado por
meio do Decreto 1366 de 12/01/1995, desde 1993 vinha sendo
discutido e em 1994 algumas ações já tinham sido realizadas,
como apontado por Peliano et al (1995) em texto disponível no
site http://www.ipea.gov.br/pub/ppp/ppp12/parte2.pdf.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
12
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Introdução
ria já adotavam uma visão multidimensional e
abrangente da segurança alimentar. nas palavras da então Secretária executiva do Comunidade Solidária, ana Peliano:
o combate à fome e à pobreza passa pela estabilidade
da moeda, pelo crescimento econômico e pela redistribuição da renda nacional. Passa também pela prioridade conferida às áreas de saúde e educação, como políticas essenciais para a promoção da cidadania e inclusão
social. Passa igualmente pela política de assistência social voltada para a garantia dos mínimos sociais, para
o atendimento das necessidades básicas, em especial
dos segmentos mais vulneráveis da população brasileira. e, finalmente, passa pela implementação de uma estratégia de ação que possa trazer benefícios imediatos
para a parcela da população que não usufruiu os benefícios do crescimento do país. Tal estratégia reveste-se
do reconhecimento de que o combate à pobreza não se
esgota no âmbito restrito das ações sociais. mas não é
cabível imaginar que milhões de brasileiros indigentes
possam continuar aguardando os resultados de uma
nova fase de desenvolvimento. eles demandam providências imediatas que só terão eficácia se adotadas de
forma continuada e conjunta, mediante união de esforços do governo e da sociedade.
assim, a dimensão nutricional do combate à fome
é apenas um dos elementos da estratégia proposta. a dimensão assistencial, a necessidade
de iniciativas de caráter estrutural e o caráter
emergencial da distribuição da renda como instrumento de acesso ao alimento já estavam sendo pensados em 1995. Deve-se sublinhar que
os elementos macroeconômicos, como a estabilidade da moeda e o crescimento econômico,
visam incorporar à segurança alimentar fatores
que influenciam diretamente a produção e o comércio da produção agrícola.
em 2003, o Programa Fome Zero introduziu novos
determinantes no debate público sobre a fome,
com a intenção de acrescentar ferramentas inéditas ao desenho e à implementação de políticas
públicas neste campo. alguns pontos fortes do
Fome Zero foram a promoção de um movimento
de empoderamento das organizações da sociedade civil e o apelo ao setor privado para contribuir
na luta contra a fome e a insegurança alimentar.
Como toda iniciativa pública de caráter abrangente e complexo, o programa acumulou uma
série de sucessos e de dificuldades. a mobilização efetiva dos diversos segmentos da sociedade
rapidamente se constituiu em um ativo de grande relevância. assim, a sociedade organizada
passou a atuar não apenas no âmbito nacional
ou regional, mas também nos territórios locais.
serviço social do Comércio |
Por meio do Fome Zero, a provisão de acesso a
alimentos ganhou novas dimensões, como dinamização da agricultura familiar, melhora dos
mecanismos de distribuição e transporte e convocação dos representantes da sociedade civil
e do setor privado para construir uma rede de
proteção social capaz de identificar os bolsões
de vulnerabilidade nutricional em todo o país.
Cristalizou-se, assim, um novo patamar, mais abrangente e profundo, das políticas sociais ligadas à
segurança alimentar. Hoje, elas assumem um
caráter de promotoras do desenvolvimento das
economias locais, das zonas rurais, das regiões
metropolitanas, das populações tradicionais e
das áreas geográficas assoladas pela desnutrição.
no setor público, uma das sinergias mais importantes do Programa Fome Zero deu-se com o
Programa Bolsa Família. este, como se sabe,
surgiu em 2003, quando nele foram fundidos
muitos dos programas públicos federais de
transferência de renda. os ótimos resultados
do Bolsa Família, em termos de redução da
pobreza e da extrema pobreza, são de amplo
conhecimento público. na área educacional,
atribui-se ao programa o maior acesso à educação Fundamental das crianças entre 7 e 14
anos de idade. o impacto do Bolsa Família no
nível nutricional dos beneficiários, entretanto,
ainda é pouco conhecido, mesmo pelos pesquisadores.
em termos da coordenação e da articulação das
várias entidades públicas envolvidas de alguma
forma com o combate à fome e com a segurança alimentar, diversos desenhos institucionais já
foram testados. a configuração definitiva, que
ainda prevalece, alocou a responsabilidade de
articulação geral ao ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (mDS). este,
por sua vez, criou, através da lei nº 11.346/06,
lei orgânica de Segurança alimentar e nutricional (losan), o Sistema de Segurança alimentar e nutricional (Sisan). a losan “dispõe sobre
as condições para respeitar, proteger, promover, prover e monitorar a realização do direito
humano à alimentação adequada por meio da
instituição do Sistema nacional de Segurança
alimentar e nutricional” (Presidência da república, 2006). a nova lei, portanto, consolida uma
definição bastante ampla do conceito de segurança alimentar.
o Sisan é composto por órgãos e instituições das
diversas esferas públicas, por fundações mantidas pelo Poder Público, pelos Conselhos de
Segurança alimentar e nutricional em todas as
esferas, e por organizações privadas, com e sem
fins lucrativos. o mDS, como órgão responsável por executar e supervisionar a estratégia do
Fome Zero, preside a Câmara interministerial
composta por 18 ministérios. esta Câmara é
responsável pela elaboração e coordenação da
Política nacional de Segurança alimentar e nutricional (San).
a descrição de alguns momentos de inflexão
histórica da segurança alimentar e nutricional,
feita nas páginas anteriores, permite identificar um traçado institucional de consolidação
e também põe em relevo a complexidade da
agenda neste setor. esta consolidação acarretou a incorporação gradual de temas que, de
forma direta ou indireta, compõem o quadro
da segurança alimentar e nutricional: o papel
dos diversos atores, as parcerias com a sociedade civil, a eficiência e a eficácia das políticas públicas, a coordenação e a articulação
de entidades públicas, a produção agrícola,
a distribuição e o acesso ao alimento de boa
qualidade, as iniciativas estruturantes, os direitos individuais, o comércio internacional e
o desenvolvimento tecnológico, entre outros.
este amplo e diversificado conjunto de temas
dá uma amostra da riqueza e da complexidade
do debate.
Toda esta miríade de temas indica claramente
que a discussão séria não pode mais se ater
apenas à questão do acesso e do aproveitamento dos alimentos. Dessa forma, o Serviço
Social do Comércio (SeSC), que desenvolve a
maior rede nacional de programas de combate
à fome, denominada mesa Brasil SeSC, realizou em Brasília, nos dias 8 e 9 de outubro de
2008, o Seminário Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias.
o Seminário foi desenhado com o objetivo ambicioso de incorporar o maior número possível
de dimensões, de tal forma que se pudesse ter
o quadro mais completo possível sobre a situação atual e os desafios futuros da segurança
alimentar no Brasil.
Diante de um amplo leque de alternativas para o
formato do Seminário, optou-se por uma abordagem conceitual em três estágios:
1) discussão do instrumental técnico e das
informações disponíveis sobre os diversos
aspectos da segurança alimentar;
2) a demanda e a oferta de alimentos, em um
conceito mais amplo;
3) a dimensão social da segurança alimentar.
Uma vez definida a estrutura do Seminário, procurou-se reunir as personalidades mais destacadas – especialistas e representantes do poder
público e do setor privado – em cada um dos
temas, cujos textos resultantes de suas participações constam nesta publicação.
Visamos, nesta apresentação, dar conta da riqueza do debate do Seminário, assim como extrair
algumas trajetórias para o futuro, levando em
conta particularmente os desafios do Programa
mesa Brasil SeSC. a próxima seção apresenta
os aspectos principais da discussão conceitual
sobre o que é fome, sobre a quantificação da
demanda por alimentos e sobre a eficácia dos
principais programas de transferência de renda
na redução da desnutrição. ainda na segunda
seção, há uma reflexão sobre o papel do setor
público no combate à fome e na garantia da segurança alimentar no Brasil.
a terceira seção aborda a oferta de alimentos em
termos nacionais e globais, e analisa os fatores
que podem vir a alterar a sua disponibilidade no
futuro, tais como as condicionantes da produção mundial, o comércio internacional, os biocombustíveis e o financiamento das atividades
agrícolas. Todos esses fatores afetam a oferta e
a disponibilidade de alimentos no Brasil e nos
países em geral.
a quarta seção, finalmente, sintetiza os aspectos
mais importantes da dimensão social da segurança alimentar. nela, mostra-se como o acúmulo de capital social, a promoção do direito à
alimentação e o fortalecimento das redes institucionais podem ser desenvolvidos por intermédio de programas e iniciativas de redução da
desnutrição. Um olhar atento a esses aspectos
pode ter enormes consequências no alcance e
no impacto de programas como o mesa Brasil
SeSC.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
13
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Introdução
II
A demAndA por segurAnçA AlImentAr e
nutrIcIonAl
14
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
em 1996, foi adotado na Cúpula mundial da alimentação, promovida pela organização das nações Unidas para agricultura e alimentação (Fao), o conceito
de segurança alimentar. ele foi definido, como se poderá conferir adiante,
no texto de Walter Belik, como a situação na qual “toda pessoa, em todo
momento, tem acesso físico e econômico a alimentos suficientes, inócuos
e nutritivos para satisfazer suas necessidades alimentares e preferências, a
fim de levar uma vida saudável e ativa”. ressalte-se que esse conceito vai
além do acesso à alimentação, ao se referir ao acesso permanente a uma
alimentação adequada.
Posteriormente, em 2004, na Segunda Conferência nacional de Segurança
alimentar e nutricional, realizada em olinda, foi aprovado no Brasil o conceito de Segurança alimentar e nutricional (San), que “é a realização do
direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade,
em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades
essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que
respeitam a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis”.
este conceito de San avança em relação ao da Fao, já que incorpora o direito
básico à alimentação sem comprometer outros direitos previamente garantidos e também inclui dimensões culturais, sociais, ambientais e de saúde,
que ampliam o conceito, tornando-o multifacetado e plurissetorial.
na origem, o direito à alimentação é um direito social básico, assegurado pelo
inciso 1° do artigo XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um
primeiro problema que surge quando se aborda esta questão é o de que, embora o direito à alimentação seja universal, e deva ser estendido à população
como um todo, alguns grupos se encontram em situações mais vulneráveis
e, portanto, devem ser alvo de políticas públicas mais focalizadas.
Um dos desafios de uma estratégia de segurança alimentar é justamente o de
definir quais são esses grupos. Quem e quantas são as pessoas em situação
de insegurança alimentar no Brasil? Trata-se de assegurar o direito à alimentação, o direito à alimentação adequada, ou o direito à alimentação adequada
de forma sustentada? Qual o patamar que define uma crise de segurança
alimentar? existem várias abordagens para identificar uma população em
situação de insegurança alimentar. Dependendo do método utilizado, o diagnóstico, os resultados e as intervenções decorrentes poderão diferir de forma
significativa.
o Seminário indicou que os argumentos conceituais e empíricos são igualmente relevantes para responder às perguntas acima. no primeiro caso, definir
de forma conceitual o número de pessoas que passam por uma situação de
vulnerabilidade nutricional apresenta dois pontos nevrálgicos: a) desnutrição
não é apenas o resultado da falta de acesso ao alimento ou da sua baixa qualidade, mas decorre também da falta de educação alimentar adequada; b) a
relação entre renda e desnutrição parece não ser tão óbvia.
no caso da estimativa empírica da demanda por alimentos, os instrumentos
públicos disponíveis hoje apresentam sérias deficiências metodológicas e
pecam pela falta de informações sobre as redes informais de solidariedade
em torno do alimento.
Introdução
serviço social do Comércio |
demanda por alimentos: conceitos
15
nas exposições de Walter Belik (Unicamp) e de Carlos augusto monteiro (USP),
apresentou-se um diagrama, aqui reproduzido, que ajuda a discutir a fome
conceitualmente. Parte-se do conceito mais amplo de insegurança alimentar,
que abrange populações em risco, e chega-se finalmente ao núcleo duro, que
seria o círculo da fome. Um aspecto importante, e que foi objeto de amplo
debate durante o Seminário, é a relação entre pobreza e fome: no diagrama,
todas as pessoas que passam fome são pessoas em situação de pobreza
(seja esta absoluta ou relativa).
a fome, porém, é parte do fenômeno mais amplo da desnutrição. neste caso,
não se trata somente da falta de acesso à alimentação, mas também da falta
de acesso à alimentação adequada. a alimentação inadequada caracteriza-se
tanto pela obesidade, que afeta apenas uma pequena parcela da população
em situação de extrema pobreza, quanto pela insuficiência na ingestão de
nutrientes, que atinge não somente os extremamente pobres, mas também
os que estão fora desta situação.
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Introdução
Diagrama 1:
insegurança alimentar
iNseguRaNÇa aliMeNtaR
Fonte:Takagi & Graziano da
Silva, 2004.
DesNutRiÇãO
OBesiDaDe
pOBReza
extReMa
fOMe
assim, a partir desse diagrama, surgem quatro constatações, que indicam o
quão complexa é a definição de grupos de pessoas assoladas pela fome, pela
desnutrição e pela subnutrição:
a) a fome refere-se primordialmente à falta de acesso a alimentos e, em
segundo lugar, a deficiências na alimentação;
b) a fome é um fenômeno exclusivo da população em situação de extrema pobreza;
c) a fome e a obesidade são fenômenos de desnutrição;
d) a obesidade atinge essencialmente a parcela da população que não
está em situação de extrema pobreza.
o primeiro ponto reflete certo consenso de que a fome deve ser entendida
como falta de acesso ao alimento e deficiência na alimentação. Carlos augusto monteiro dividiu a fome em fome total e fome parcial ou oculta. a fome
total refere-se à inanição – isto é, a falta pura e simples de alimentos. Já a
fome parcial é aquela na qual há falta permanente de determinados elementos nutritivos e, portanto, ela é muito relacionada à desnutrição.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
16
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Introdução
Há, entretanto, obstáculos que praticamente impossibilitam a mensuração direta do número de
pessoas que passam por um quadro de desnutrição. nas palavras de monteiro:
as dificuldades técnicas em se medir de forma confiável
a ingestão alimentar habitual dos indivíduos e suas
correspondentes necessidades energéticas tornam
difícil, se não impossível, a mensuração direta e precisa
da extensão da fome ou da deficiência energética
crônica em uma população. Dois fatores dificultam a
avaliação da ingestão calórica dos indivíduos: a grande
variabilidade na ingestão diária de calorias em um
mesmo indivíduo, o que torna necessário estender a
avaliação por um grande número de dias, e a virtual
inexistência de métodos de avaliação que não interfiram
com o padrão de ingestão alimentar, sobretudo quando
o indivíduo é estudado por um longo período de tempo.
não menos complexa é a determinação da necessidade
real de energia de cada indivíduo, havendo novamente
que considerar as amplas variações individuais
decorrentes de variações genéticas, variações do estado
fisiológico (gestação, lactação) e variações do padrão
de atividade física.
os dois fatores mencionados por monteiro explicam parcialmente porque é útil olhar para a renda quando se discute a fome. Como as pessoas
que passam fome são aquelas que não possuem
acesso aos alimentos, uma forma de se pensar
o assunto é, evidentemente, avaliar se a renda é
suficiente para a alimentação.
Quando ela não é teoricamente suficiente, chega-se ao grupo definido como o dos extremamente pobres. o trabalho de ricardo Paes de
Barros (ipea), porém, colocou em questão essa
identidade simples entre falta de renda para se
alimentar e fome. Definindo a fome como a falta de alimentos em quantidades que possam
satisfazer as necessidades nutricionais de um
indivíduo por um mês, ele nota que passariam
fome aquelas pessoas que não possuem renda
suficiente para adquiri-los, ou seja, as pessoas
que possuem renda mensal abaixo do custo da
cesta básica (segundo o estudioso, r$ 88 per
capita).
entretanto, observou Paes de Barros, quando se
leva em consideração que as pessoas possuem
outras necessidades além da nutricional, e que
o gasto com alimentação estimado representa
aproximadamente 36% do total da renda dos
10% mais pobres, o montante de renda necessário para as pessoas se alimentarem deveria ser
bem maior, equivalente a r$ 243 mensais. isso
significa, em outras palavras, que o número de
pessoas com fome superaria em muito o daque-
serviço social do Comércio |
las que moram em famílias com renda per capita
mensal inferior a r$ 88.
assim, o número de pessoas que passam fome
pode estar subestimado, caso se faça uma
associação direta com o número de extremamente pobres. a fome, portanto, não seria um
fenômeno exclusivo daquelas pessoas em situação de extrema pobreza. mas Paes de Barros
apresentou um argumento adicional, que torna
ainda mais complexa e sutil a sua análise do fenômeno da fome no Brasil. os indicadores antropomórficos, mesmo se considerando os seus
problemas e imprecisões (objeto de outras apresentações no Seminário), indicam que a fome e
a desnutrição no Brasil não devem superar os
10% da população. estão, portanto, muito abaixo do número de pessoas que vivem em famílias
com renda per capita de até r$ 243, que abrange
cerca de 40% da população. este fato, para Paes
de Barros, sugere que o papel das redes formais
(das quais a maior é o mesa Brasil SeSC) e informais de suporte alimentar e nutricional no país
têm um peso muito significativo na redução da
fome e da desnutrição.
resumindo os argumentos, é possível afirmar que
as famílias extremamente pobres ou próximas
da pobreza podem enfrentar uma situação de
fome dependendo dos seguintes fatores:
a) a porcentagem alocada da renda monetária para a compra de alimentos;
b) a capacidade de ter acesso a alimentos
por outros meios além da disponibilidade de
renda monetária, como as redes de solidariedade alimentar e nutricional;
c) a eficiência de cada família para aproveitar os alimentos disponíveis, seja através de
(a) ou de (b).
os três fatores acima possuem um impacto significativo não somente para se calcular o número de pessoas que efetivamente se encontram
numa situação de vulnerabilidade nutricional
severa, mas também para definir os formatos e
a abrangência das políticas públicas e dos programas públicos e privados de combate à fome.
Dessa forma, para se identificar de maneira
mais precisa e verossímil o número de pessoas
com fome, é preciso levar a sério e mapear os
mecanismos de solidariedade que operam na
sociedade na distribuição de alimentos, para
além das iniciativas públicas.
não apenas grandes programas formais com formatos semelhantes ao do mesa Brasil SeSC,
mas também outras intervenções informais po-
dem estar contribuindo para aliviar a demanda
insatisfeita por alimentos. o volume dessas iniciativas pode ser significativo – tanto no número
de beneficiados quanto no impacto na redução
da desnutrição –, dado que a fome mobiliza de
forma mais dinâmica as ações de solidariedade
social do que, por exemplo, a insuficiência de
renda. em outras palavras, as pessoas e a sociedade em geral tendem a ser mais ativas no alívio
do espetáculo degradante da fome do que na assistência em relação a outras carências típicas
da pobreza e da extrema pobreza.
assim, uma tarefa importante para o futuro em
curto prazo é a de coletar e sistematizar as informações sobre as redes de assistência alimentar: o número de beneficiários atendidos, a
natureza da iniciativa, o tipo de instituições que
promovem essas ações, as modalidades da distribuição dos alimentos, entre outros aspectos.
o conhecimento aprofundado dessas questões
pode vir a se constituir em fator crucial para o
desenvolvimento e fortalecimento do Sisan, assim como para sua articulação eficiente com o
conjunto de políticas e programas públicos.
a eficiência de cada família em aproveitar os alimentos disponíveis está ligada ao conceito de
nutrição. aqui, entra-se no também complicado
terreno da definição de termos como nutrição,
subnutrição e desnutrição. Carlos monteiro define a nutrição como um complexo processo de
etapas que tornam viáveis a sobrevivência, o
crescimento, o desenvolvimento e a reprodução
do indivíduo, e no qual a ingestão de alimentos é
apenas a primeira delas. a nutrição, neste enfoque, só se conclui com a absorção dos nutrientes presentes nos alimentos pelo organismo. o
termo desnutrição refere-se, portanto, a distúrbios determinados pela ingestão insuficiente
de alimentos ou por doenças que tornem insuficientes a ingestão ou a absorção (neste tipo de
abordagem, exclui-se a obesidade).
monteiro acrescentou que a população vulnerável
à fome define-se por um conjunto de carências:
insuficiência de renda, acesso deficiente a serviços de saúde, problemas de saneamento básico, más condições habitacionais, exposição à
degradação ambiental e pouca educação.
o pesquisador não discutiu apenas a desnutrição
da população vulnerável à fome, mas a ótima
nutrição para todos. a população brasileira também encontra problemas relacionados ao consumo excessivo e desequilibrado de alimentos.
Sinais desse tipo de desequilíbrio são os dados
referentes à obesidade, que é o segundo fator de
mortes no Brasil, à pressão alta, que é o terceiro
e está ligado ao consumo excessivo de sódio, e
ao colesterol alto, que é o quinto fator de mortes, ligado ao consumo de gordura de origem
animal e de alimentos processados.
Belik levou em conta todas as dificuldades apontadas por monteiro e Paes de Barros, ao abordar
a definição de quem passa fome e de quem tem
problemas nutricionais com a seguinte recomendação:
essas situações diversas mostram que o caminho é o de
desenvolver alguns indicadores que possam dar conta
de explicar a maioria dos fatores de risco, identificando
claramente o que denominamos anteriormente de
núcleo duro da pobreza extrema e da insegurança
alimentar. esses indicadores devem reunir informações
da renda familiar, saúde, educação, condições de
moradia e percepção de segurança alimentar.
essa recomendação derivou de uma constatação
que ficou clara diversas vezes durante o Seminário: a insegurança alimentar é um fenômeno
complexo e multifacetado para o qual ainda não
se obteve um consenso amplo em termos de
definição, de estabelecimento de indicadores e,
consequentemente, do cálculo efetivo do número de pessoas vulneráveis. esta falta de convergência na definição e na forma de medir transmite-se, irremediavelmente, ao planejamento e
à montagem de iniciativas e intervenções para
combater a fome e as carências nutricionais.
resumidamente, a dificuldade de definir o inimigo torna mais difícil a tarefa de combatê-lo.
o exemplo do Programa Bolsa Família é muito pedagógico em demonstrar esse problema, como
ficou evidente na apresentação de eduardo
rios-neto (CnPD), pesquisador dedicado nos
últimos anos a avaliar os efeitos do programa.
rios-neto mostrou as dificuldades da avaliação de
impacto do Bolsa Família, mencionando problemas metodológicos como a inexistência de aleatorização dos beneficiários. isso significa que
não é possível comparar grupos selecionados
para serem beneficiários do Bolsa Família na situação em que um deles é sorteado para ingressar efetivamente no programa e o outro não, de
tal forma que este último sirva de grupo de controle perfeito. na impossibilidade de assim proceder, até por conta de restrições éticas colocadas
pelos gestores do Programa, restou o enorme
desafio de constituir um controle adequado, o
que significa trabalhar com os chamados grupos
de tratamento, ou seja, buscar na população que
não foi selecionada para o Bolsa Família pessoas que tenham características as mais similares
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
17
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Introdução
18
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Introdução
possíveis com aquelas que o foram. esta é, sem
dúvida, uma dificuldade para se mensurar o impacto real do Programa. Feitas estas ressalvas
sobre o alcance técnico do seu trabalho, riosneto apresentou dois resultados centrais e interrelacionados das suas pesquisas:
a) os beneficiários do programa mostraram,
consistentemente, um diferencial positivo
nas despesas com alimentos quando comparados com os não beneficiários; isso indica que o programa tem o impacto desejável
de prover recursos para a complementação
do orçamento de alimentação das famílias;
b) não foi possível, entretanto, identificar
diferenciais significativos nos valores antropométricos entre beneficiários e não beneficiários; nesse caso, e até de forma aparentemente contraditória com o item a, não surge
o efeito esperado de melhora nos indicadores que medem a fome e a desnutrição entre
os beneficiários do Bolsa Família.
mesmo levando-se em conta os problemas metodológicos que podem ter influenciado as duas
conclusões anteriores (e cuja discussão foi
parte importante da apresentação do próprio
rios-neto), os resultados reforçam os questionamentos e as perplexidades já mencionados
nos trabalhos de monteiro e Paes de Barros.
em primeiro lugar, a insuficiência de renda não
se mostra um indicador fidedigno do número
de pessoas que se encontram na condição de
fome, já que não se registraram diferenças significativas entre os beneficiários do Bolsa Família que recebem transferência e populações de
características semelhantes que não recebem.
em segundo, os resultados apresentados têm
uma implicação importante de política social: a
falta de diferença significativa nos indicadores
antropométricos dos dois grupos sinaliza que
programas de transferência de renda podem
não ser os mais eficazes no combate à fome.
essa constatação, por sua vez, fortalece a visão de
Crispim moreira, representante do ministério do
Desenvolvimento Social, sobre a efetividade das
principais ações que integram o Fome Zero. elas
não se baseiam apenas na transferência de recursos, como o Programa Bolsa Família e o Programa nacional de alimentação escolar (Pnae),
mas também incluem ações de incentivo ao agricultor familiar, como o Programa nacional de
Fortalecimento da agricultura Familiar (Pronaf)
e o Programa de aquisição de alimentos (Paa).
esses últimos têm sido de extrema importância
essencialmente no nordeste, cuja agricultura
serviço social do Comércio |
familiar representa 83,3% dos estabelecimentos
rurais nordestinos e 82,9% da ocupação da mão
de obra, como mostram os dados apresentados
por Porfírio Silva de almeida, do Banco do nordeste.
Um último ponto de destaque, do qual tratou maurício Vasconcellos (iBGe), é o conhecimento sobre a eficiência de cada família em aproveitar os
alimentos disponíveis. É uma questão ligada diretamente a uma das diretrizes estratégicas do
mesa Brasil SeSC, que se apropria de alimentos
que seriam desperdiçados na cadeia alimentar
para combater a fome dos seus beneficiários.
Todo o conjunto de ações do mesa Brasil SeSC
volta-se para o objetivo de reduzir o desperdício
na oferta, na distribuição, no tratamento domiciliar e no consumo de alimentos. assim, o Programa capta parte dos estoques excedentes da
produção agrícola e de alimentos produzidos industrialmente; reduz o desperdício de alimentos
na distribuição e comercialização; e desenvolve
um conjunto de ações educativas que contribui
para o processamento do alimento e dissemina
práticas adequadas de alimentação.
iniciando suas ações nutricionais em 1947, para
seu público específico – os trabalhadores de comércio –, o SeSC passou a desenvolver, a partir
da década de 90, uma série de iniciativas neste
campo, voltadas ao público mais geral. o modelo Colheita Urbana foi adotado em 1997 e foram
implantados bancos de alimentos no rio de Janeiro, no Ceará e em Pernambuco, entre 2000
e 2001. em 2003, foi lançado o Programa mesa
Brasil SeSC, uma rede nacional de solidariedade contra a fome e o desperdício de alimentos.
entre fevereiro de 2003 e dezembro de 2008, foram distribuídos 108.425.300 kg de alimentos,
beneficiando 1.175.528 pessoas, amparadas por
5.554 entidades assistenciais. Para isso, foi fundamental o compromisso social de participação
no programa de 3.324 doadores.
o mesa Brasil SeSC, portanto, tem muito a ganhar, em termos de eficiência do Programa,
com o conhecimento aprofundado das diversas
formas do desperdício alimentar no Brasil. essa
foi uma das constatações feitas por mauricio
Vasconcellos na sua apresentação “Desperdício
de alimentos: de que se trata, afinal?”, da qual
recortamos um fragmento:
a quantificação do volume de desperdício na cadeia
produtiva é um elemento importante para as políticas
de abastecimento e para a avaliação nutricional
embutida nas pesquisas mundiais de alimentos (...).
o conhecimento do volume de desperdício durante o
consumo (em residências e em serviços de alimentação)
permite estimar a quantidade de energia e nutrientes
não ingerida, aperfeiçoando as estimativas sobre o
estado nutricional da população. (...) ou seja, a coleta
e distribuição pelo Programa mesa Brasil SeSC dos
alimentos que seriam desperdiçados pode crescer até
o limite do desperdício total de alimentos produzidos,
desde que o programa seja capaz de apropriar-se de
todos esses alimentos, evitando que se transformem
em desperdício. assim, o conhecimento desse limite
permitiria avaliar a eficácia do Programa e planejar
metas para seu crescimento.
o conhecimento de todas as formas de desperdício, segundo Vasconcellos, envolve etapas
desde a pré-colheita de produtos agrícolas (não
pertinente para os objetivos do presente documento) até o momento do consumo. Dois eixos
são particularmente importantes:
a) o desperdício a partir da pós-colheita até
o consumo: armazenamento nas diversas fases, transporte, comercialização no atacado,
comercialização no varejo, compra, conservação no domicílio, preparação dos alimentos e o próprio ato de consumir;
b) o desperdício gerado pelos próprios padrões de consumo e pelas exigências comerciais do agronegócio: padrões de industrialização, de embalagem dos produtos etc.
assim, o desafio é tentar mensurar o volume e o
conteúdo calórico e energético do desperdício,
utilizando os instrumentos disponíveis. É mais
uma tarefa, portanto, que demanda uma análise
empírica da questão alimentar no Brasil.
demanda por alimentos: aspectos
empíricos
Saúde (omS); e bases de dados do instituto Brasileiro de Geografia e estatística (iBGe), essencialmente da Pesquisa nacional por amostra de
Domicílios (Pnad) e da Pesquisa de orçamento
Familiar (PoF). Também foram mostrados indicadores da Pesquisa nacional de Demografia e
Saúde (PnDS), realizada em 2006, e de outras
pesquisas. À diversidade de fontes de dados somou-se a variação dos anos e dos períodos das
estimativas.
o que se depreende das apresentações é que
os indicadores antropométricos são utilizados
quando se deseja medir a subnutrição ou desnutrição, enquanto os indicadores de renda e
de disponibilidade de alimentos estão mais relacionados à fome propriamente dita. em alguns
casos, os mesmos indicadores foram medidos
a partir de bases de dados diferentes. e houve
até situações nas quais com as mesmas bases
de dados foram encontradas estimativas diferentes.
Segundo Walter Belik, “começando pelos indicadores de caráter antropométrico ou de perfil
clínico, observa-se que uma redução nos indicadores de pobreza extrema não se refletiu diretamente sobre uma queda de indicadores como a
desnutrição crônica infantil ou mesmo a subnutrição (medida pelo indicador de disponibilidade
da Fao)”.
Belik definiu, como objetivo a ser perseguido, o
desenvolvimento de um sistema de indicadores
que possa dar conta de explicar a maioria dos
fatores de riscos nutricionais. ele teria de revelar, portanto, a interação de dimensões como
renda familiar, saúde, educação, condições de
moradia e indicadores antropométricos.
a existência de diversos conceitos para um mesmo fenômeno faz da sua medição um desafio,
já que diferentes dimensões pedem diferentes
indicadores. em relação à fome e às questões
nutricionais em geral, observam-se basicamente quatro categorias de indicadores: os que se
referem à renda; os antropométricos, como adequação da altura à idade, do peso à altura, e o
índice de massa corporal; a disponibilidade de
alimentos por pessoa; e, finalmente, a insegurança alimentar.
essa multiplicidade refletiu-se na diversidade de
fontes de dados utilizadas pelos palestrantes.
Foram apresentados indicadores da organização das nações Unidas para a agricultura e
alimentação (Fao); da organização mundial de
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
19
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Introdução
III
cenárIo e perspectIvAs dA ofertA de
AlImentos no BrAsIl
20
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
a alta recente dos preços dos alimentos, em 2007 e 2008, levantou temores
sobre uma possível crise global na oferta de comida. a alta foi determinada
essencialmente pela queda dos estoques globais, e é amplamente sabido
que esses preços são determinados no mercado internacional. assim, as flutuações no âmbito internacional provocam tendências similares de preços
no mercado doméstico. a questão que surge, portanto, é a de saber quais são
as implicações dessa alta dos preços para a segurança alimentar e nutricional, especialmente no Brasil.
Introdução
Como lembrou marta Castilho (UFF), o comércio internacional é um dos determinantes da quantidade de alimentos ofertados domesticamente. o mercado
global pode complementar a oferta doméstica de alimentos, ou auxiliar no
escoamento de excedentes. os preços de alimentos no mercado doméstico,
portanto, refletem os preços internacionais, convertidos pela taxa de câmbio,
e as tarifas da política comercial.
em sua apresentação no Seminário, marta Castilho explicou que uma das atribuições da política comercial é a de minimizar os efeitos das flutuações dos
preços internacionais nos preços domésticos. as políticas comerciais utilizam tarifas aduaneiras ou barreiras não tarifárias (como restrições quantitativas, por exemplo). Dessa forma, pode-se encarecer o produto estrangeiro,
protegendo o produtor doméstico, mas também restringindo as possibilidades de compra dos consumidores.
medidas de proteção à produção local foram utilizadas intensamente no pósguerra, para estimular a produção regional. o objetivo era o de manter a segurança alimentar por meio da estabilização da oferta doméstica e da garantia de rendimentos para os agricultores dos países em situação de risco.
no Seminário, o modelo atual de comércio internacional foi amplamente questionado. Diante de uma possível crise global da oferta de alimentos (o Seminário foi realizado em um momento em que os preços das commodities ainda
estavam próximos ao seu pico), vários conferencistas defenderam a revisão
das bases do comércio internacional nesse setor, consideradas excessivamente liberais.
nesta seção, o objetivo é o de analisar a evolução da oferta de alimentos e
as perspectivas de médio e longo prazo dos preços e das quantidades no
cenário nacional e mundial. entender os determinantes do mercado global
de alimentos e suas interações com o mercado doméstico é importante para
avaliar os impactos na segurança alimentar e nutricional no Brasil, o que
também será aqui tratado. e há ainda o debate sobre os biocombustíveis,
que podem gerar mudanças na produção agrícola e levar ao encarecimento
global da comida. Por fim, discute-se o papel do financiamento das atividades agrícolas.
evolução da oferta de alimentos: preços e quantidade
os preços internacionais dos alimentos apresentaram um crescimento acentuado de 2003 até 2008 com a forte volatilidade de alguns produtos agrícolas. mesmo com o recuo das commodities desde o início da crise financeira
global, no segundo semestre do ano passado, alguns analistas consideram
que o mundo estava rumando para uma grande crise mundial de alimentos
serviço social do Comércio |
em meados de 2008. o processo foi interrompido pela desaceleração global, mas suas causas
estruturais ainda podem estar presentes. neste
caso, a crise de alimentos pode reaparecer no
momento em que houver uma retomada da economia mundial.
Há, portanto, uma importante discussão sobre o
tema, que poderia ser sintetizada nas seguintes
perguntas: a) Trata-se realmente de uma crise
estrutural? b) existe uma tendência de médio e
longo prazo de elevação do patamar dos preços,
ou simplesmente se verificou, no movimento de
2003 a 2008, o retorno a um nível anterior de preços? c) Quais fatores explicam a forte elevação
dos preços? d) Qual o papel da estrutura atual
do comércio internacional na tendência de preço dos alimentos e, portanto, qual é o espaço e
a efetividade da intervenção estatal?
renato maluf (Consea), na sua palestra, sublinhou que a expectativa é de que os preços se
estabilizem num nível mais alto do que aquele
que prevaleceu por algumas décadas até 2003,
uma vez que se atinja um novo equilíbrio depois
do boom, cujo auge se verificou em 2008, e da
correção que se segue. não se sabe qual será
a nova estrutura de preços relativos no setor de
alimentos quando se alcançar esse novo patamar. ele nota ainda que, mesmo que a correção
atual esteja devolvendo parte do sobrepreço
atingido no pico do boom, em partes, a elevação
de preços a partir de 2003 foi efetivamente uma
recuperação de perdas reais sofridas pelos produtos agrícolas no passado.
Já eliseu alves (embrapa) previu que aquela alta
era apenas transitória, e que os preços tenderiam a se estabilizar, e até mesmo a cair. ele
acrescentou que, analisada numa perspectiva
histórica, a elevação até meados de 2008 não
foi tão acentuada. alves argumentou que o salário mínimo no Brasil tem se elevado a um ritmo
muito mais acelerado do que o preço da cesta
básica. isso significa, portanto, que o encarecimento dos alimentos é mais uma percepção do
consumidor no momento e no local da compra,
e não um aumento em relação aos preços da
economia como um todo.
alves também lembrou que, antes do aumento recente dos preços dos alimentos, houve, a partir
da década de 70, um longo decréscimo, que representou uma transferência real de renda para
os consumidores. essa queda dos preços agrícolas decorreu do crescimento da produtividade da agricultura brasileira e de outros grandes
produtores de commodities, processo iniciado,
no caso nacional, em 1975. apesar da alta desde 2003, os preços já estiveram em patamares
mais elevados, como ocorria, por exemplo, em
1975.
Por outro lado, continuou alves, há uma crença generalizada de que não deve ocorrer uma
interrupção dos ganhos de produtividade decorrentes do avanço tecnológico na produção
agroindustrial, o que indica uma continuidade
da redução de preços como tendência de longo
prazo.
esta visão foi questionada por ricardo abramovay (USP), em sua apresentação no Seminário,
como fica evidente no seguinte trecho:
(...) são claros os sinais de esgotamento das bases
técnicas sobre as quais se apoiou o imenso sucesso
da revolução Verde, que responde por parcela muito
significativa da redução da fome no mundo nos últimos
anos. a energia barata que permitiu a ampliação sem
precedentes das safras está em claro processo de
esgotamento.
a revolução Verde, por ele mencionada, foi a combinação de avanços tecnológicos e investimentos que permitiu um vasto aumento na produção agrícola nos países subdesenvolvidos. ela
se caracterizou, principalmente, pela invenção
e disseminação de novas sementes e práticas
agrícolas, com a intensiva utilização de sementes melhoradas (particularmente as híbridas),
insumos industriais (fertilizantes e agrotóxicos),
mecanização e diminuição do custo de manejo.
em outras palavras, a revolução Verde é fruto
do uso intensivo da tecnologia no plantio, na irrigação e na colheita.
esse aumento de produtividade, no entanto, teve
custos ambientais pesados. Para abramovay,
as bases técnicas daquela revolução não serão
suficientes para reagir, em termos de ampliação
da produtividade e de barateamento dos produtos, ao aumento populacional esperado até
2050. a principal proposta por ele apontada para
enfrentar esse desafio está na intensificação da
abordagem ecológica na produção agrícola. isso
significa redirecionar a pesquisa e a tecnologia
do setor, buscando combinar os avanços na
preservação ambiental com o aumento da produtividade. nessa visão, a produção não poderá
mais se apoiar na energia fóssil e no consumo
de água em alta escala. Trata-se de mobilizar o
capital humano e político hoje empenhado na
causa ecológica para a resolução simultânea
do problema de garantir a oferta adequada de
alimentos.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
21
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Introdução
22
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Introdução
Diante do desafio dessa oferta em um mundo de
população crescente, e que aumenta seu consumo per capita, existem os que enxergam a utilização de sementes transgênicas como forma
consistente de elevar o rendimento da produção
agrícola, sobretudo em ambientes ecologicamente frágeis. essa solução, porém, enfrenta
dois obstáculos principais: o primeiro é a forte
oposição aos organismos geneticamente modificados, por causa da redução da diversidade
genética e do controle que um reduzido número
de grandes corporações exerce sobre os transgênicos; o segundo é o fato de que, embora
representem economia no uso de agrotóxicos
e água, os transgênicos ainda exigem grandes
volumes de fertilizantes, cujo custo tende a crescer com a alta das matérias-primas (interrompida com a crise econômica global, mas que pode
ser retomada, se for um fenômeno estrutural).
em relação à questão específica da tendência dos
preços dos alimentos, maluf ressaltou a impossibilidade de se fazer prognósticos robustos:
avaliações ficam ultrapassadas em poucos dias. Dois
meses atrás, o quadro poderia ser sintetizado como
uma conjuntura – de fato, não apenas uma conjuntura,
pois era uma tendência que já vinha de alguns anos – de
crescimento bastante significativo da demanda mundial
por alimentos, associado a uma elevação acelerada dos
preços. (...) Com a atual crise financeira é possível que
se assista a uma desaceleração da economia mundial,
afetando o emprego e a renda e consequentemente a
demanda por alimentos e os programas sociais.
marta Castilho sublinhou que essa volatilidade é
resultado também da especulação nos mercados internacionais, que influencia os preços das
commodities e as taxas de câmbio, ambos determinantes para o preço doméstico da alimentação. assim, segundo o pesquisador, a incerteza
gerada pela volatilidade dos preços tem sido um
dos fatores que explica a atual crise internacional de alimentos.
as exportações são outra variável importante quando se pensa nos possíveis impactos na segurança alimentar. os preços internacionais, notou
Castilho, determinam a parcela da produção nacional que será dirigida aos mercados externos.
Com a possibilidade de vender sua produção no
exterior, o produtor somente a ofertará no mercado doméstico se puder obter preço semelhante
ao do mercado internacional. assim, face a uma
elevação dos preços internacionais, ou bem ele
passa a privilegiar as exportações, ou então repassa o aumento para o mercado doméstico.
serviço social do Comércio |
determinantes dos preços dos
alimentos
em relação às causas da alta dos preços verificada até o ano passado, houve certo consenso
entre todos os participantes. a causa mais citada é o crescimento de países emergentes como
a China, o Brasil e a Índia, que fez com que a
população mais pobre passasse a comer mais
e melhor, pressionando a demanda global por
alimentos e seus insumos.
outra causa importante é a elevação do preço do
petróleo, que incide no custo dos fertilizantes e
dos transportes. Uma consequência adicional
do encarecimento do petróleo é tornar mais
atraente a produção dos biocombustíveis. o
crescimento da exploração desses substitutos
do petróleo tem sido apontado também, embora
em menor grau, como causa do aumento dos
preços dos alimentos. Há, finalmente, as mudanças climáticas, que (possivelmente) ao tornarem mais frequentes e imprevisíveis fenômenos extremos como secas e chuvas abundantes,
também teriam sido limitadoras da produção
agrícola nos últimos anos.
Sobre o crescimento da produção de biocombustíveis, notou-se que, embora nos estados Unidos
se tenha incentivado a substituição de culturas
agroalimentares pelo milho para produção de
etanol, no Brasil não parece ter ocorrido o mesmo tipo de processo com a cana-de-açúcar. a
exceção, no caso brasileiro, como apontado por
eliseu alves, foi alguma substituição do plantio
de milho por cana-de-açúcar, mas que não parece ter elevado significativamente o preço do
cereal. o que ocorreu de forma mais intensa no
Brasil nos últimos anos, segundo o especialista, foi a substituição de diferentes lavouras, inclusive a cana-de-açúcar, pela soja – o que, obviamente, não afeta negativamente a oferta de
alimentos.
em relação aos movimentos especulativos e financeiros, a constatação mais relevante foi a
de que os principais produtos agroalimentares,
como trigo, milho e soja, se converteram em
commodities. Como tal, viraram alvo da especulação financeira global, tornando-se sujeitos às
flutuações do mercado. a todos esses fatores
somam-se as quebras de safras ocorridas em
várias partes do mundo, possivelmente ligadas
a fenômenos climáticos.
Se, na visão dos participantes, todos esses fatores contribuíram conjuntamente para a alta dos
preços dos alimentos, o aumento da demanda
(na esteira do crescimento econômico de grandes países emergentes) e a alta do preço do
petróleo foram apontados como as principais
causas. eliseu alves, porém, foi o único para
quem apenas a elevação do petróleo pode ser
considerada uma causa dominante. o encarecimento do petróleo, ele observou, incidiu sobre
os custos dos fertilizantes, dos transportes e da
infraestrutura, levando os produtores a planejar
seus negócios com mais cautela, o que reduziu
o ímpeto de crescimento da oferta.
Todos esses fatores foram agravados pelo fato de
que, face ao momento de crise que teve sua culminância em meados do ano passado, muitos
países restringiram suas exportações, reduzindo
ainda mais a oferta internacional de alimentos.
oferta de alimentos e crise de
insegurança alimentar no Brasil
a alta dos preços de alimentos afeta os países de
diferentes formas, que variam de acordo com o
seu grau de desenvolvimento. a crise tem um
impacto maior nos países mais pobres ou com
um contingente maior de pessoas pobres. essas nações, de forma geral, exportam bens primários, mas são importadoras de alimentos, o
que as torna mais vulneráveis ao aumento dos
preços. Já os países ricos reagem à alta liberalizando as importações de alguns produtos para
ampliar a demanda doméstica.
em relação aos países de renda média, há vários
que, como o Brasil, são grandes exportadores
de alimentos e vêm aumentando sua produtividade, o que reforça ainda mais sua posição de
celeiros da humanidade.
esta força do Brasil como produtor agropecuário
leva a uma percepção de que a alta internacional dos preços dos alimentos é uma grande benesse para o país. Quando se considera
a segurança alimentar, porém, a ideia de que
aquilo que é bom para o agronegócio também
é bom para o Brasil se complica. embora não
tenha havido no Brasil uma crise de oferta quantitativa de alimentos, mesmo no momento mais
crítico do ano passado, isso não significa que a
segurança alimentar esteja assegurada, e muito menos a soberania alimentar. Como já ficou
evidente em outras seções deste documento, a
produção total de alimentos de um país, mesmo
que em teoria suficiente para alimentar toda a
sua população, está longe de significar a inexis-
tência de fome ou da desnutrição; o grande entrave à segurança alimentar reside basicamente
no acesso aos alimentos.
renato maluf destacou que, embora no Brasil os
impactos da inflação internacional de preços tenham sido atenuados quando comparados com
outros países e embora não tenha havido desabastecimento, o custo de aquisição da cesta básica, segundo dados do Dieese, aumentou nas
principais capitais estaduais entre 27% e 52%
nos dozes meses encerrados em maio de 2008.
o aumento dos preços no início de 2008 atingiu essencialmente a população de baixa renda,
cujo gasto proporcional com alimentos é maior.
marta Castilho, por sua vez, ressaltou que o comércio internacional pode ser um fator preponderante na segurança alimentar, como complemento à produção nacional. mas ela faz uma
importante ressalva:
(...) para que se garantam os objetivos de segurança
alimentar (e também de segurança dos alimentos),
é necessário que se reconheçam as limitações do
mercado e dos objetivos puramente econômicos de
eficiência produtiva no que se refere às questões de
abastecimento e de acesso aos alimentos.
Já ricardo abramovay defendeu a regulação no
âmbito nacional, pois não se pode confiar unicamente no comércio internacional para garantir
a segurança alimentar. ele explicou que existem
no Brasil ao menos dois modelos de agricultura,
ambos integrados nas cadeias agroindustriais e
participantes do processo de exportação: o agronegócio (ou agricultura patronal) e a agricultura
familiar, que é muito heterogênea. abramovay
enfatizou, referindo-se principalmente à agricultura familiar, que não é o agronegócio brasileiro como um todo que se beneficia da inserção
no mercado mundial na forma como ela ocorre
atualmente. essa opinião é compartilhada por
maluf, como mostra o seguinte trecho de sua
apresentação:
estudos mostram estarem elas [as exportações]
também sob controle de um reduzido número de
grandes empresas e corporações, como ocorre em
todos os componentes do sistema alimentar global
(insumos agrícolas, industrialização de alimentos,
distribuição-varejo).
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
23
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Introdução
Iv
A dImensão socIAl dA segurAnçA
AlImentAr
24
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
a última seção deste documento está voltada para aquele que talvez represente o maior desafio atual para as iniciativas de combate à fome e de
garantia da segurança alimentar no Brasil – a inter-relação com o conjunto
das políticas sociais. a ideia chave é fazer do direito à alimentação um
alicerce da questão global da emancipação e da superação da pobreza,
levando-o além do imprescindível e fundamental atendimento da necessidade orgânica de nutrição.
Introdução
os três palestrantes convidados para discutir o tema – Wanda engel (instituto
Unibanco), Paul Singer (mTe) e ricardo Henriques (BnDeS) – trouxeram à
tona três pontos cruciais da assistência social moderna, e que estão profundamente ligados, seja por sua presença ou ausência, à história da questão
social na sociedade brasileira:
a) a evolução dos programas sociais, em termos de instrumentos, abrangência e objetivos estratégicos;
b) o fortalecimento da sociedade civil, por meio do adensamento do tecido social;
c) a transformação do acesso ao bem-estar social em um processo emancipatório por meio do qual populações carentes e marginalizadas levem-se
ao patamar de plena vigência de direitos individuais e sociais, que seria,
afinal, estendido a todos os brasileiros.
essa visão moderna de intervenção social, integrando todas essas dimensões, quebra a velha dicotomia entre assistência social e assistencialismo.
a apresentação de Wanda engel foi pedagógica na sua proposta de superar
esse dilema:
longe de pensar que existe uma dicotomia entre dar o peixe e ensinar a pescar, para
as pessoas que vivem na extrema pobreza não há dúvidas de que é preciso dar o peixe,
ensinando a pescar. É absolutamente importante oferecer programas de proteção social.
esses programas não podem ser desqualificados sob o título de assistencialismo, uma
vez que sem eles torna-se muitas vezes impossível começar qualquer processo de
desenvolvimento humano, social e econômico. Tais políticas podem ser classificadas
como assistencialistas caso se transformem num fim em si próprias e não no ponto de
partida de um processo de desenvolvimento.
Para ilustrar seu ponto de vista, Wanda engel descreveu as cinco gerações
ou etapas de programas sociais referindo-se a uma evolução histórica orgânica, que precedeu sua análise e classificação. o quadro a seguir (extraído
da apresentação da pesquisadora) sintetiza a evolução das políticas sociais
a partir de variáveis como foco, proteção social, desenvolvimento humano,
desenvolvimento social e demandas específicas.
serviço social do Comércio |
Cinco gerações de programas de redução da pobreza
foco
proteção
social
Desenvolvimento
Humano
Distribuição de
alimentos
indivíduo
Segurança
alimentar
Saúde
Transferências
não
condicionadas
indivíduo
renda mínima
Transferências
condicionadas
Família
renda mínima
Saúde e
educação como
condicionalidades
mercado consumidor
- aB
- Sistema integrado
de informação de
Beneficiários (SiiB)
Família
- renda mínima
- acesso
prioritário a
programas
assistenciais
- Saúde e
educação como
condicionalidades
- acesso prioritário
a programas de
educação, saúde e
habitação
acesso prioritário
a programas de
capacitação, geração
de renda, inserção no
trabalho e crédito
- aB
- SiiB
- Sistema integrado
de informação sobre
Programas e
Serviços (SiiPS)
- Promotor de
famílias
Família e
território
- renda mínima
- acesso
prioritário a
programas
assistenciais
- Saúde e
educação como
condicionalidades
- acesso prioritário
a programas de
educação, saúde e
habitação
- acesso prioritário
a programas
- Projetos produtivos
locais e infraestrutura
Programas
integrais de
desenvolvimento
familiar com
transferência
condicionada
Programas
integrais de
desenvolvimento
familiar e
comunitário com
transferência
condicionada
Desenvolvimento
econômico
25
Desenvolvimento
social
Demandas
específicas
Sistema distributivo
agências bancárias
(aB)
mercado consumidor
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Introdução
Fortalecimento
da família
- Fortalecimento da
família
- Fortalecimento
das organizações
de base: Plano de
Desenvolvimento
local
- aB
- SiiB
- SiiPS
- Promotor de
famílias
- agente de
desenvolvimento
comunitário
É importante notar que as três últimas etapas mudam o foco do indivíduo para
a família, dentro da visão de que a superação das condições de pobreza é
uma tarefa a ser perseguida no universo das inter-relações familiares. num
passo além, os programas de última geração já incorporam a dimensão da
territorialidade, na qual se trabalha a coletividade na sua inserção específica
– geográfica e socioeconômica – no resto da sociedade.
Paul Singer reforçou esta visão:
Quando a família se dissolve – hoje há uma crise familiar no mundo inteiro, não é só no
Brasil – as grandes vítimas são as crianças. Temos que tentar fortalecer os laços afetivos
no seio das famílias, fazer com que a revolução feminina – uma das grandes revoluções
da nossa época – contribua para o fortalecimento da família.
esse tipo de reflexão, que foge à pauta convencional da proteção social, é uma
mostra da grande evolução recente do tema. o que era visto como uma simples questão de acesso a alimentos caminhou para a garantia de uma renda
mínima (sem dispensar a primeira etapa), e para o acesso prioritário a programas assistenciais. as dimensões familiar e territorial fecham esse ciclo.
na verdade, à medida que diminui o número de pobres, a população que
permanece nesta condição é crescentemente aquela mais desprovida das
ferramentas da cidadania, e a que mais demanda uma visão holística de política social para atingir a sua emancipação.
Wanda engel notou que o desenvolvimento social não era uma dimensão presente nas três primeiras gerações de programas. na quarta geração, a dimensão social finalmente aparece, mas ela ainda se limita a uma extensão
próxima ao indivíduo: a do fortalecimento da família. É somente na quinta
e última geração que surgem temas como o fortalecimento do tecido socioeconômico das comunidades, a consolidação das suas organizações de base
e os planos de desenvolvimento local. o mais interessante, porém – e fundamental para a reflexão dos gestores e participantes do mesa Brasil SeSC –,
é que os programas de segurança alimentar, que ainda são percebidos às vezes
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
como iniciativas da primeira geração, podem perfeitamente se integrar numa estratégia global de política social de quinta geração. Como observou Wanda engel:
26
Programas de segurança alimentar poderiam contribuir para o incremento do capital
social dos grupos mais pobres caso incluíssem ações de fortalecimento da família,
qualificação de instituições intermediárias (prestadoras de serviços sociais) e
fortalecimento das organizações de base local. Por outro lado, poderiam promover um
aumento da coesão social entre grupos de diferentes contextos socioeconômicos se
previssem ações de fomento da responsabilidade social como doação de alimentos e
trabalho voluntário.
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Introdução
Fica claro, portanto, que uma das tarefas que se impõem, para programas ligados ao combate à fome e à garantia da segurança alimentar, é identificar e
intensificar, nas suas muitas ações, as características de quinta geração. ou,
em outras palavras, buscar os caminhos, já existentes de forma potencial ou
efetiva no interior dos próprios programas, que levam a uma visão totalizante
e emancipatória de política social.
na ótica integrada dos objetivos estratégicos de uma política social moderna
dissolvem-se naturalmente os dilemas anteriormente mencionados, como
assistencialismo versus intervenções de caráter estrutural, ou transferência
de renda versus distribuição direta de complemento alimentar.
De forma muito complementar à apresentação de Wanda engel, ricardo Henriques (BnDeS) abordou as ações de fomento da responsabilidade social, o
trabalho voluntário e o fortalecimento de redes sociais. Segundo Henriques,
“a reflexão sobre a política social no Brasil, considerando, entre outras, as
áreas de segurança alimentar, educação, assistência social, saúde, saneamento, meio ambiente e transporte, deve remeter inicialmente às alternativas
sobre o modelo de desenvolvimento do país”. ao colocar a política social não
como acessório, mas como parte central do desenvolvimento econômico,
Henriques pôs em primeiro plano a necessidade de se reformular e ampliar a
esfera pública para adequá-la ao atendimento daquele objetivo.
a premissa inicial do argumento de Henriques é simples. Um modelo de desenvolvimento que exclui uma parcela significativa da população do direito à
segurança alimentar e de uma série de outros direitos básicos da cidadania é
simplesmente um modelo falho. assim, é impossível imaginar que a inclusão
social possa ser um processo paralelo e acessório a um modelo fundamentalmente excludente. o erro básico está no modelo e não haverá medida paliativa que substitua a tarefa incontornável de reformá-lo para inserir no seu
âmago uma estratégia social que garanta a inclusão de todos no círculo dos
direitos básicos da cidadania.
Para que isso ocorra, entretanto, é preciso não apenas que existam programas
e políticas sociais integrados. É necessário que entrem na pauta do governo
e da sociedade questões como territorialização da política social e preservação e fortificação do tecido social. É preciso também atrair e constituir novos
atores, que se engajem e reforcem a estratégia comum de combate à pobreza
e às suas diversas carências específicas. no âmbito do setor público e das
diversas organizações privadas e da sociedade civil que participam desse
esforço comum, algumas das principais fragilidades, observou Henriques,
são a fragmentação, o isolamento setorial e a sobreposição das inúmeras
iniciativas de políticas e programas sociais. essas falhas estão na origem de
gargalos estruturais, que prejudicam a agilidade e a qualidade da implementação de programas e políticas.
as considerações de Henriques são um útil pano de fundo para discutir as
potencialidades de programas como o mesa Brasil SeSC:
Colocado em perspectiva histórica, o mesa Brasil SeSC deve pensar sua expansão em
um cenário de médio e longo prazos. Há que se colocar a questão sobre qual a principal
serviço social do Comércio |
meta a ser perseguida. a disjuntiva inicial parece ser entre priorizar o aumento da escala
e da cobertura do programa ou consolidar um desenho institucional que conceda maior
autonomia e sustentabilidade para os objetivos do programa.
27
Henriques deixou clara sua preferência pela segunda alternativa:
o cenário de intervenção no médio prazo deveria, portanto, estar orientado para
aproveitar a tecnologia social de sensibilização e mobilização desenvolvida pelo
programa e a importante cobertura territorial das redes instaladas em 290 municípios
como base de uma maior integração com outros programas nessa área. o principal
desafio seria, portanto, reorientar essa tecnologia social no sentido de contribuir para
uma maior coordenação entre distintos programas, atores e instituições envolvidos na
pauta de segurança alimentar.
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Introdução
as reflexões de Wanda engel e ricardo Henriques sobre a integração das políticas sociais e a constituição do espaço público em torno do direito básico
à alimentação apontam caminhos para os programas ligados à segurança
alimentar. Fica evidente que muitas dessas iniciativas dispõem hoje de uma
infraestrutura institucional e territorial e de um acúmulo de experiência que
habilitam os seus gestores a torná-las parte de uma agenda integrada de segurança alimentar e nutricional nas localidades onde estão presentes. essa
agenda, por sua vez, pode se integrar a uma estratégia globalizante de emancipação social.
Um tema correlato é a ampliação do espaço público, que não se restringe apenas à incorporação de outros atores e de seus objetivos na agenda pública da
segurança alimentar e nutricional. a construção desse espaço público ampliado, com múltiplos atores, deve ser acompanhada da transformação das
políticas públicas de viés assistencialista e compensatório em ações emancipatórias, nas palavras de Paul Singer. ele mostrou, em sua apresentação, que
esse é justamente o objetivo último do Conselho nacional de economia Solidária e do Grupo de Trabalho amazônico, entre outros movimentos sociais:
Talvez o trabalho essencial no combate à pobreza, para eliminá-la de vez, seja uma luta
de resgate humano. os pobres estão acostumados a essa condição, sobretudo os pobres
hereditários. Da grande maioria dos pobres, no Brasil, o pai, o avô, o bisavô já eram pobres.
então, cria-se uma cultura de aceitação, de resignação e até de crença de que somos
inferiores mesmo, porque não fomos à escola e por isso não temos conhecimentos. É
uma ideia falsa. mas está lá. então, dar a essas pessoas a oportunidade de acreditarem
em si é absolutamente essencial.
Sem a transformação mencionada por Singer, se corre o risco de agravar uma
contradição descrita por Belik em sua apresentação:
Há uma evidente contradição no desenho das políticas públicas voltadas para a garantia
dos direitos sociais. (...) a revisão das políticas sociais colocou para dentro do estado,
através de reformas constitucionais ou outros processos, uma série de direitos que
haviam sido conquistados pela população ou por categorias sociais isoladas ao longo
das décadas passadas. em um contexto de fragilidade financeira e ruptura social, como
o da década de 90, a política social reaparece de forma precária – e não mais universal,
privilegiando a extrema focalização dos benefícios. nesse contexto, os direitos sociais se
concretizam de forma mercantilizada, vigiada pelo estado e em troca de condicionais.
De um lado rompe-se com os preceitos de atendimento de direitos, em que a política
seria executada para todos os cidadãos de forma individual e sem contrapartidas. De
outra parte, as políticas de focalização imprimiram maior eficiência ao estado, o que
acabou por garantir a inclusão, em termos concretos, de um maior número de famílias
sob o guarda-chuva dessas mesmas políticas.
Para Singer, a economia solidária é uma etapa natural no processo de emancipação. Dessa forma, é um caminho que pode ajudar a romper a dicotomia
entre o ideal da universalização e a necessidade da focalização. o represen-
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
tante do mTe frisou que o empoderamento da família não é viável sem o fortalecimento simultâneo da comunidade de que ela é parte. assim, a focalização na família pode se ampliar para a abordagem da comunidade integrada
ao seu território, preenchendo as lacunas de cidadania no tecido geográfico
e social, a caminho da universalização.
28
Segurança
alimentar e
nutricional:
desafios e
estratégias
Singer notou que a Secretaria nacional de economia Solidária (Senaes) possui
um programa de desenvolvimento de comunidades pobres, o Brasil local, que
atua por meio de agentes de desenvolvimento solidário. É um programa que
trabalha com o conceito de endodesenvolvimento, ou seja, o desenvolvimento
de dentro para fora, e não de fora para dentro. os agentes de desenvolvimento
são responsáveis pela articulação dessas comunidades com o resto do país.
Introdução
Como já mencionado, o conjunto de fatos e análises desta seção oferece muito
material para as reflexões do mesa Brasil SeSC e dos programas sociais em
geral. Combinados com o conteúdo das outras seções, forma-se um amplo painel sobre a segurança alimentar – inserida no desafio mais amplo da política
social –, do qual se podem extrair eixos estratégicos para se pensar os rumos
de médio e longo prazo de cada programa.
Um dos elementos mais constantes, e marcantes, de todas as apresentações é
o caráter multifacetado da questão social. É impossível se pensar em combate à fome ou emancipação social se não forem colocados juntos, e de forma
integrada, aspectos como cidadania e direito básico à alimentação, adensamento do tecido social e das relações institucionais, consolidação da autonomia e da autossustentabilidade de redes e instituições, inclusão social e
educação. Todos esses temas estão, sem sombra de dúvidas, profundamente
implicados em um programa como o mesa Brasil SeSC.
o Seminário organizado pelo SeSC procurou contribuir para o debate sobre segurança alimentar, buscando – de forma estruturada – uma visão abrangente
do tema, que se expandisse além dos objetivos imediatos de programas como
o mesa Brasil SeSC. Do debate, surgiram lições importantes que são um subsídio muito útil para a reflexão futura não só sobre o mesa Brasil SeSC, mas
também sobre a segurança alimentar em geral e sobre a política social em seu
sentido mais amplo. Também é evidente, por outro lado, que dois dias de debates revelaram saudáveis dissensos e perplexidades, como seria de se esperar
de uma discussão madura em uma sociedade democrática e plural.
Caracterizar uma situação de vulnerabilidade alimentar revelou-se uma tarefa
complexa, para a qual uma abordagem adequada não pode prescindir de
uma trabalhosa diversidade de prismas e enfoques. É um caso típico em
que simplificar não é necessariamente o melhor caminho. entre as muitas
dificuldades da tarefa, estão a definição do que se entende como fome, a
quantificação e a identificação das pessoas expostas a esta vulnerabilidade
e o mapeamento das suas características. Tudo isso é importante para detectar as causas da insegurança alimentar e combatê-la. essa é uma agenda,
aliás, que engatinha – não há clareza ainda nem mesmo sobre a natureza
dos instrumentos de medição do fenômeno, cujos alcance e qualidade são
extremamente discutíveis.
Um segundo eixo de reflexões dirigiu-se ao comércio internacional de alimentos. aqui, a questão central é como o papel crescente do mercado externo e a
especulação financeira a que ele está submetido afetam o mercado interno e,
consequentemente, a segurança alimentar. o novo cenário de mercados de
alimentos crescentemente globalizados apresenta-se quase como uma rup-
serviço social do Comércio |
tura em relação ao passado, indicando a provável ocorrência de mudanças
estruturais. Há, contudo, elementos conjunturais envolvidos, ligados às enormes oscilações da economia global. É preciso cautela antes de saltar para
conclusões muito definitivas sobre o papel das transformações do comércio
internacional na segurança alimentar dos países. a recente crise econômica global, por exemplo, pode criar sérias restrições à demanda mundial por
alimentos, ajudando a atenuar – de forma perversa, sem dúvida – a crise de
oferta que se configurava em meados de 2008.
29
os avanços tecnológicos da revolução Verde, ao incrementarem a produtividade, contribuíram para tornar viável o grande aumento per capita de consumo de alimentos das últimas décadas. agora, porém, essa revolução esbarra
numa nova agenda que não pode ser mais ignorada. Já não é possível pensar
em agronegócio sem levar em conta a preservação do meio ambiente e o
desafio de conciliar a produção de alimentos com a de biocombustíveis.
ao reconhecer o direito humano à alimentação, inserindo o beneficiado no
conjunto de direitos da cidadania, os programas de segurança alimentar ultrapassam seus limites tradicionais, e vão além do essencial atendimento da
necessidade orgânica da nutrição. Qualquer reflexão mais profunda sobre o
tema precisa incorporar a visão mais ampla da questão social, como discutido na seção anterior. É um debate no qual entram temas como os distintos
papéis do estado, da sociedade civil e do setor privado, com o reconhecimento mútuo de que a tarefa não pode recair apenas em um único ator.
o Seminário assumiu o objetivo estratégico de promover um grande encontro
de visões, de olhares disciplinares, de atores e de temas. Dissensos e consensos foram permanentemente estabelecidos ao longo de dois dias de intenso
trabalho. É bom que assim seja, pois esta é a verdadeira contribuição para
um debate constante e enriquecedor em médio e longo prazos.
Para dar condições de uma reflexão autônoma e mais aprofundada para os
interessados, a seguir publicamos na íntegra os textos das apresentações de
cada um dos palestrantes, que generosamente se dispuseram a sistematizálas para publicação neste livro.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
30
* engenheiro agrônomo com mestrado e doutorado em economia
rural pela Purdue University, USa. É pesquisador da embrapa,
atuando na área de política agrícola, desenvolvimento institucional e
economia de produção e recebeu diversos prêmios e condecorações,
dentre os quais Doutor Honoris Causa, da Purdue University,
Distinguish international alumnus, da national association of the
State Universities and lasnd Grant Colleges e Prêmio Frederico de
menezes Veiga, da embrapa. Foi Diretor Presidente da embrapa e
Presidente da Codevasf.
A expansão da
oferta e a melhoria
da distribuição de
alimentos eliseu roberto de Andrade Alves*
serviço social do Comércio |
31
A produção de alimentos no Brasil
as pesquisas na área da agricultura existem
exatamente para fundamentar o incremento
da produtividade, ajudar a conquistar áreas
que antes não eram usadas para produzir
alimentos – como são os casos do Cerrado e
da região amazônica – e contribuir para que
o aumento da produção no Brasil tenha um
excedente, que é encaminhado ao mercado
internacional e que traz uma quantidade enorme de divisas, desempenhando um papel fundamental: ajudar o crescimento da indústria e
do setor de serviços, alimentando bem o povo
brasileiro.
Portanto, a agricultura tem o papel de alimentar o
povo brasileiro, sobretudo os mais pobres, e tem
também o papel de ampliar as exportações brasileiras, que são importantíssimas, no momento, para o desenvolvimento econômico e social
do Brasil.
É importante investir na produção de alimentos
no Brasil porque temos uma grande quantidade de recursos naturais e temos uma população
importante no meio rural. a competência dessa
população é que faz a produção acontecer. recurso natural, convenhamos, não produz nada.
Analisando por diversas vias o que
estamos chamando de crise
ta uma parte enorme do seu orçamento para
comprar comida. Portanto, o aumento dos preços dos alimentos significa uma transferência
de renda às avessas, enquanto baixá-lo significa uma transferência de renda importante
para os mais pobres. Possivelmente, grande
parte dos ganhos que estamos tendo em transferência de renda, no Brasil, se deve ao grande
crescimento da produtividade da agricultura
brasileira que vem, a partir de 1975, incrementando sua produtividade e trazendo uma oferta
de preços de alimentos decrescente para a sociedade brasileira.
os preços de alimentos, no Brasil, não são mais
formados no mercado brasileiro, são formados
no exterior, primeiro, para os produtos exportados como soja, milho, carne etc. Já no caso de
um produto como o feijão, por exemplo, podese questionar: se o Brasil não exporta feijão, por
que o mercado internacional é tão importante?
acontece que a soja pode ser plantada no lugar
do feijão. então, o feijão, para poder ser plantado no Brasil, tem que competir com a soja, tem
que competir com o milho e com o trigo. e essa
competição é que, via um mecanismo indireto,
faz com que os produtos não exportados pelo
Brasil passem a depender também do mercado
internacional.
ao observarmos o Gráfico 1, teremos a percepção da crise de alimentos por parte dos consumidores:
Quem sofre mais com a subida dos preços dos
alimentos é a população mais pobre, que gas-
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Gráfico 1 - Percepção da crise de alimentos pelos consumidores
Índices de preços reais da cesta básica
32
1,10
1,00
0,90
Fonte: Dieese 2008.
Elaboração: Embrapa
Índice (1975 = 1)
A expansão
da oferta e a
melhoria da
distribuição de
alimentos
evolução dos preços
reais da cesta básica no
município de São Paulo
(1975 = 1)
0,80
0,70
0,60
0,50
0,40
1975
1978
1981
1984
1987
1990
1993
1996
1999
2002
2005
2008
em 1975 os preços eram muito altos. Houve enorme crise de alimentos. Como
consequência do enorme investimento que o Brasil fez em pesquisa não só na
embrapa, mas também nas universidades e institutos de pesquisa, esses preços começaram a cair de maneira significativa. Percebemos que em 2005-8, em
consequência da crise do petróleo, esses preços começaram a subir novamente,
mas estão muito longe do que foram em 1975. Portanto, essa enorme queda de
preços da cesta básica foi transferida para os consumidores brasileiros e para os
consumidores de outros países para os quais o Brasil exporta alimentos. esses
ganhos atestam a importância fundamental do aumento da produtividade da
agricultura: ganhos permanentes de preços, no sentido de preços mais baixos,
só podem ocorrer em consequência do aumento da produtividade.
Gráfico 2 - Crise dos alimentos: índice de commodities agrícolas
CrB Foodstuffs
Food-index (1947 = 100)
(monthly close) January 1947 - March 2008
500
© Commodity Research Bureau
450
400
350
300
250
200
150
100
50
1947
1951
1955
1959
1963
1967
1971
1975
1979
1983
1987
1991
1995
1999
2003
2007
esta é outra forma de ver a mesma coisa para as commodities agrícolas, só que
pelo lado dos produtores. Há muita oscilação nesses preços e novamente uma
subida, a partir de 2003, também com a crise do petróleo. essa subida de preços é entendida como a real crise nos alimentos. ninguém sabe se isso vai
continuar, mas os preços dos alimentos já estão se estabilizando ou caindo. o
Gráfico 3 mostra como os trabalhadores percebem a crise dos alimentos:
serviço social do Comércio |
Gráfico 3 - Percepção da crise de alimentos pelos trabalhadores
Salário mínimo nominal e corrigido para agosto de 2008
33
Fonte: MTE pelo Ipeadata.
* Corrigido pelo IGP-DI da FGV.
500
450
400
350
300
Reais
250
200
150
nominal
Ago/2008*
100
50
jul/08
jul/07
jan/08
jul/06
jan/07
jul/05
jan/06
jul/04
jan/05
jul/03
jan/04
jul/02
jan/03
jul/01
jan/02
jul/00
jan/01
jul/99
jan/00
jul/98
jan/99
jul/97
jan/98
jul/96
jan/97
jul/95
jan/96
jan/95
0
na linha verde está o salário real dos trabalhadores. na linha preta está o salário nominal. o salário nominal está crescendo, mas os salários reais não
cresceram muito. Começaram a crescer substancialmente e permanentemente no governo do Presidente lula. no Gráfico 4 vemos a variação entre a
cesta básica e o salário mínimo:
Gráfico 4 - Percepção da crise de alimentos pelos trabalhadores
Salário mínimo e cesta básica em reais de agosto de 2008
500
Fonte: TEM e Dieese,
pelo Ipeadata.
* Valores corrigidos pelo
IGP-DI da FGV.
450
400
350
300
Reais
250
200
150
100
Cesta básica
Sal. Mínimo
50
jul/08
jul/07
jan/08
jul/06
jan/07
jul/05
jan/06
jul/04
jan/05
jul/03
jan/04
jul/02
jan/03
jul/01
jan/02
jul/00
jan/01
jul/99
jan/00
jul/98
jan/99
jul/97
jan/98
jul/96
jan/97
jan/96
jul/95
jan/95
0
É possível observar que o salário mínimo está subindo muito mais do que a
cesta básica. e, portanto, há um ganho substancial para os trabalhadores
brasileiros em consequência do crescimento da produtividade da agricultura
brasileira.
o consumidor não está preocupado com o preço real, que é deflacionado por
um índice de preços apropriado. Procura-se manter o poder de compra de
uma cesta básica de mercadorias. o preço nominal do boi gordo, por exemplo, está subindo. então, os consumidores enxergam, quando vão comprar
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
A expansão
da oferta e a
melhoria da
distribuição de
alimentos
no supermercado, o preço nominal. mas o preço real, se levarmos em conta
o salário dos consumidores, não está subindo, está decrescendo, como podemos observar no Gráfico 5:
34
Gráfico 5 - Percepção da crise de alimentos pelos consumidores
Preços recebidos pelos produtores de boi gordo
A expansão
da oferta e a
melhoria da
distribuição de
alimentos
nominais e corrigidos
para agosto de 2008
100
90
Fonte: FGV. Disponibilizado em
www.Ipeadata.gov.br
(acesso em 29/09/2008).
* Valores corrigidos pelo IGP-DI
da FGV.
80
70
60
R$/Arroba
50
40
30
20
nominal
Ago. 2008*
10
jul/08
jul/07
jan/08
jul/06
jan/07
jul/05
jan/06
jul/04
jan/05
jul/03
jan/04
jul/02
jan/03
jul/01
jan/02
jul/00
jan/01
jul/99
jan/00
jul/98
jan/99
jul/97
jan/98
jul/96
jan/97
jul/95
jan/96
jan/95
0
no final de 2006-7 há uma subida. É um período pequeno para se caracterizar
uma crise, mas essa subida é caracterizada pela televisão brasileira, pelos
meios de comunicação do mundo inteiro como uma crise de alimentos. É
preciso lembrar, no entanto, que antes dessa subida houve um decréscimo
enorme, que representou uma transferência de renda para os consumidores.
agora nós estamos tendo o efeito contrário, os consumidores estão devolvendo um pouco para os produtores. então, quando se ouve falar em crise
de alimentos, significa que os preços que os consumidores estão pagando
nos supermercados estão subindo. não quer dizer que esses preços, comparados ao acréscimo de todos os preços da economia, estejam realmente
subindo. Portanto, a crise de alimentos tem uma interpretação no lado real da
economia e tem uma interpretação psicológica, que representa o fato de os
consumidores estarem sentindo, no supermercado, a subida dos preços.
o que faz o preço do alimento subir?
a demanda tem que deslocar para cima mais do que a oferta. isso em escala
mundial. Se a demanda não subir mais do que a oferta, o preço do alimento
também não sobe. os países pobres da áfrica, e, principalmente, os casos
da Índia e da China, tremendamente populosos, começaram a ficar ricos. o
povo começou a consumir mais, então houve uma subida na demanda de
alimentos. nos países ricos, quando a renda sobe, o consumo de alimentos
não aumenta porque o estômago tem uma capacidade limitada de consumir.
os ricos já estão consumindo tudo o que poderiam nos seus países. Portanto,
o aumento de renda num país rico não traz um aumento consequente de consumo. mas esse aumento de renda em países pobres como a Índia, a China, a
ásia, de um modo geral, e também no Brasil, com a distribuição de alimentos
incentivada pela política do Presidente lula, esse aumento de renda traz um
efeito dramático no incremento da demanda.
serviço social do Comércio |
o efeito da demanda nós não negamos, existe, mas não é o efeito dominante. o
efeito dominante é a crise do petróleo, que aumentou consideravelmente os
custos dos alimentos e, em consequência, os produtores foram muito mais
cautelosos em planejar a expansão da produção. a oferta passou a crescer
menos do que a demanda e o preço dos alimentos subiu. mas não subiu de
maneira tão dramática, como podemos imaginar. e os gráficos anteriores
mostraram isso.
35
A expansão
da oferta e a
melhoria da
distribuição de
alimentos
A crise do petróleo
estamos realizando uma pesquisa na embrapa para saber quanto 10% no aumento do preço do petróleo – e, portanto, de fertilizantes – traz ao aumento do
preço da soja, do milho etc. Por enquanto nós terminamos o caso da soja. e
10% no aumento do preço de fertilizante traz um incremento de 8% no preço
da soja. Se o preço dos fertilizantes subir, também o preço dos alimentos
sobe. É uma relação direta.
em outra pesquisa que fizemos, percebemos que o cultivo de cana-de-açúcar
no Brasil só substituiu o milho. o que substitui lavouras aqui no Brasil é a
soja. a expansão da soja está substituindo todas as outras lavouras, inclusive
a área de cana-de-açúcar, como podemos observar pelos dados do Quadro 1:
Quadro 1 - Área de grãos (arroz, feijão, milho, trigo e soja) e de
cana-de-açúcar e relação de áreas de cana e grãos
anos
Cana-de-açúcar
grãos
Cana / grãos (R$)
1990
4.272.602
34.168.384
12,60
1991
4.210.554
34.250.049
12,28
1992
4.202.604
34.506.341
12,15
1993
3.253.702
32.282.680
11,07
1994
4.345.260
36.998.000
12,67
1995
4.559.062
35.998.000
12,87
1996
4.750.296
31.827.278
15,02
1997
4.224.084
33.030.050
14,57
1998
4.985.819
31.873.822
15,74
1999
4.898.844
33.890.117
14,48
2000
4.204.611
34.883.183
13,85
2001
4.957.837
34.883.193
13,85
2002
5.100.405
37.507.887
13,80
2003
5.371.020
41.822.105
13,00
2004
5.631.740
44.468.689
12,55
2005
5.805.518
44.523.506
13,04
2006
6.144.286
43.225.212
14,21
2007
6.652.472
42.877.258
15,57
2008
7.819.165
44.848.587
16,99
este quadro mostra, primeiro, que a participação da área de cana-de-açúcar na
área total cresceu. os números em destaque são os picos de crescimento, e
com eles podemos observar que em 2008 não há diferença muito grande de
um pico de 1996. Portanto, a área de cana não está aumentando mais do que
a área de lavouras no Brasil. inicialmente, a área de cana expandiu mais do
que a área da lavoura, mas, nos últimos anos, a área de cana está, basicamente, acompanhando a área de lavoura.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Pelos Gráficos 6 e 7, percebemos como o petróleo e a cesta básica estão subindo na mesma proporção:
36
Gráfico 6 - Evolução dos preços do petróleo e dos alimentos
(jan/ 1980 a abril/ 2008)
Fonte: FMI
250
Alimentos
Petróleo
Índice (2005 = 100)
200
150
100
50
08
07
n/
ja
06
n/
ja
05
n/
ja
04
n/
ja
03
ja
n/
02
n/
ja
01
n/
ja
00
n/
ja
99
n/
ja
98
n/
ja
97
n/
ja
96
n/
ja
95
n/
ja
94
n/
ja
93
n/
ja
92
n/
ja
91
n/
ja
90
n/
ja
89
n/
ja
88
n/
ja
87
ja
n/
86
n/
ja
85
n/
ja
84
n/
ja
83
n/
ja
82
n/
ja
81
n/
ja
n/
ja
ja
n/
80
0
Fonte: FMI
Gráfico 7 - Evolução dos preços da cesta básica (SP) e do petróleo
1975=1
Fonte: Dieese e BP
nota: Preços de 2008
referentes ao mês de julho
3,5
3,0
Cesta básica (SP)
Petróleo
2,5
Índice (1975 = 1)
2,0
1,5
1,0
0,5
Fonte: DIEESE e BP
08
20
07
20
06
20
05
20
04
03
20
02
20
20
01
20
00
20
99
19
98
97
19
96
19
19
95
19
94
19
93
19
92
91
19
90
19
19
89
19
88
19
87
19
86
85
19
84
19
19
83
19
77
19
81
19
80
79
19
78
19
77
19
19
76
19
75
-
19
A expansão
da oferta e a
melhoria da
distribuição de
alimentos
Nota: Preços de 2008 referentes ao mês de julho.
Há uma coincidência muito grande na variação do preço do petróleo e na variação do preço dos alimentos. isso dá a entender que a crise de alimentos foi
basicamente produzida pelo incremento do preço do petróleo, que agora já
está caindo. o preço de todas as carnes, por exemplo, apesar de todos estarem falando na crise de alimentos, até 2007, decresceu.
Como disse, o preço dos fertilizantes é tremendamente dependente do preço
do petróleo. Vejamos, pelo Gráfico 8, o que aconteceu com o preço dos fertilizantes e do petróleo:
serviço social do Comércio |
Gráfico 8 - Evolução recente nos preços internacionais do petróleo
KCL
URÉIA
MAP
37
TSP
1200
Fonte: Empresas do setor, Secex e
preços do mercado. Manipulação
dos dados: AMA
1100
1000
A expansão
da oferta e a
melhoria da
distribuição de
alimentos
900
800
600
500
400
300
200
100
n/
m 02
ar
/
m 02
ai
/0
ju 2
l/0
se 2
t/
no 02
v/
ja 02
n/
m 03
ar
/
m 03
ai
/0
ju 3
l/0
se 3
t/0
no 3
v/
0
ja 3
n/
m 04
ar
/
m 04
ai
/0
ju 4
l/0
se 4
t/0
no 4
v/
ja 04
n/
m 05
ar
/
m 05
ai
/0
ju 5
l/0
se 5
t/
no 05
v/
ja 05
n/
m 06
ar
/
m 06
ai
/0
ju 6
l/0
se 6
t/0
no 6
v/
ja 06
n/
m 07
ar
/
m 07
ai
/0
ju 7
l/0
se 7
t/
no 07
v/
0
ja 7
n
m /08
ar
/0
8
0
ja
US$/T
700
Um está acompanhando o outro. Portanto, o preço do petróleo sobre, fazendo
subir os preços dos fertilizantes, dos transportes, da infraestrutura e aumentando o custo de produção. Com custo de produção mais alto, os produtores
vão planejar a sua produção de tal modo a reagirem com mais cautela, reduzindo não a oferta, quantitativamente, mas reduzindo o ímpeto de crescimento da oferta. e esse ímpeto pode ser menor que o da demanda, como
aconteceu recentemente, forçando a subida de preços.
nesse período grande, de 1975 até 85, houve um crescimento fantástico da
agricultura brasileira e mundial, que se transferiu em ganhos para os consumidores e, principalmente, para os consumidores de renda mais baixa.
o crescimento da produtividade não se deve à expansão da fronteira agrícola,
nem mesmo no Brasil, mas, basicamente, ao incremento da produtividade,
o que é sinônimo de tecnologia. Portanto, foi a tecnologia que trouxe esse
grande benefício para a sociedade brasileira: alimentos mais baratos e competência nas exportações, o que resultou em ganhos para os consumidores.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
38
* Pesquisador do instituto de Pesquisa econômica
aplicada (ipea), desde 1979, no campo de desigualdade social, educação, pobreza e mercado de trabalho
no Brasil e américa latina. Doutor e pós-doutor em
economia pela Universidade de Chicago (eUa), pesquisador e professor visitante do Centro de Crescimento
econômico, da Universidade de Yale (eUa).
Cenário da pobreza e da
fome no Brasil ricardo paes de Barros*
serviço social do Comércio |
39
Tradicionalmente, o trabalho de todos os que estudam as questões sociais no Brasil tem sido
o de tentar explicar por que certos problemas
sociais são mais graves do que deveríamos esperar, dada a riqueza do país. ao invés de tentar
explicar e argumentar por que a fome no Brasil
é maior do que se deveria esperar, vamos discutir quase o oposto: como conseguimos ter níveis
de subnutrição e fome relativamente baixos,
dado o nível de desenvolvimento de nosso país?
embora ainda não tenhamos acabado com a
fome, o desempenho ao longo dos últimos anos
tem sido bastante favorável, nos colocando com
um resultado considerado bom, em relação ao
nível de desenvolvimento econômico atual. o
objetivo desta breve nota é identificar os fatores
por trás desse bom desempenho e argumentar
o que fazer para reforçá-lo.
A pobreza no Brasil resulta da má
distribuição e não da escassez de recursos
a argumentação de que no Brasil não deveria
existir fome pode ser muito simples. o custo de
uma cesta básica, segundo a metodologia do
ipea e da Cepal, é de cerca de r$ 88 por pessoa
ao mês. isso é o que alguém precisaria para satisfazer suas necessidades nutricionais durante
um mês.
a renda per capita apropriada para as famílias é de
r$ 533, ou seja, seis vezes o custo da cesta básica. isso quer dizer que o volume de recursos que
o Brasil precisa para alimentar todas as pessoas
é 17% da renda que temos. a renda brasileira
daria para alimentar uma população seis vezes
maior do que a sua população, obviamente, se
toda essa renda fosse gasta com alimentação.
Portanto, se temos um problema de fome, esse
não se deve à falta de recursos, mas à má distribuição dos mesmos.
alguns podem dizer que esse resultado indica
apenas que as famílias têm renda. mas existem alimentos no país em quantidade suficiente para alimentar toda a população? Um cálculo simples mostra que o custo da cesta básica
é de mais ou menos r$ 88. Se considerarmos
que o preço ao produtor é a metade do preço
ao consumidor, o custo da cesta ao produtor
seria de r$ 44. Com uma população de 182 milhões, o Brasil precisaria produzir, por ano, 96
bilhões de reais em produtos agropecuários.
Produzimos 157 bilhões de reais. esta é uma
estimativa rápida que mostra um excedente de
40% da produção agropecuária brasileira.
assim, se o país possui uma renda seis vezes maior
do que o necessário para alimentar a população,
e uma produção agropecuária duas vezes maior,
como podemos estar discutindo fome?
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
A distribuição de renda e a fome
40
o Brasil reduziu dramaticamente a desigualdade de renda nos últimos seis
ou sete anos e, consequentemente, a pobreza extrema. a primeira meta de
desenvolvimento do milênio, que exige que a extrema pobreza seja reduzida
à metade até 2015, já foi cumprida em 2006, quase dez anos antes da data
comprometida internacionalmente.
Cenário da
pobreza e da
fome no Brasil
no entanto, continuamos sendo extremamente desiguais.
o Gráfico 1 mostra todos os brasileiros alinhados, como se o Brasil tivesse
100 pessoas. Quando observamos a pessoa 50, sua renda é igual a aproximadamente r$ 300. ou seja, embora nossa renda média seja quase r$ 600,
metade da população vive com menos que r$ 300.
Gráfico 1 - Distribuição das pessoas segundo a renda domiciliar
'per capita': Brasil, 2007
Estimativas produzidas com
base na Pesquisa Nacional por
Domicílio (Pnad) 2002-3
Renda domiciliar per capta (reais por mês)
1000
900
800
700
600
500
400
300
200
100
0
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
Centésimos da distribuição
ainda mais grave é que 10% da população possui renda inferior aos r$ 88
(custo da cesta básica). Uma conclusão precipitada seria assumir que 10%
da população brasileira têm fome.
mas o pobre não tem apenas uma única necessidade: a fome. Possui várias
outras. Deve pagar aluguel, transporte, vestir-se etc.
o Gráfico 2 é um passeio pela distribuição de renda brasileira, do mais pobre
ao mais rico. o resultado estudado é a porcentagem da renda que uma pessoa gasta com alimentação. À esquerda, temos os mais pobres, e à direita,
os mais ricos. os mais ricos gastam 10% de sua renda com alimentação. os
mais pobres estão gastando, hoje, 36%. isso quer dizer que mesmo os pobres
só gastam um terço de sua renda com alimentação. logo, para conseguir
gastar r$ 88 com alimentação, a renda total da pessoa deve ser no mínimo
r$ 243.
serviço social do Comércio |
Gráfico 2 - Gasto com alimentos como porcentagem do gasto
total por centésimos da distribuição das pessoas segundo o
consumo 'per capita'
41
Estimativa produzida com base
na Pesquisa de Orçamento
Familiar (POF) 2002-3
Porcentagem do gasto total com alimentos (%)
40
35
30
25
20
15
10
5
0
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
Centésimos da distribuição
logo, o problema é bem mais grave porque, em vez de nos perguntarmos quantas pessoas vivem abaixo de r$ 88, o relevante é saber quantas vivem abaixo
de r$ 243. isso quer dizer que 40% da população brasileira, em princípio, não
têm renda suficiente para satisfazer suas necessidades nutricionais, quando
levamos em consideração todas as outras necessidades da família. outra
conclusão precipitada é a de que neste país 40% da população têm fome.
Surpreendentemente, os dados sobre fome indicam que menos de 10% da população enfrentam esse problema. os vários indicadores de subnutrição têm
ordem de magnitude igual a 6 ou 7%. em sociedades onde não há fome, por
exemplo, o índice de desnutrição infantil está em torno de 3%. então, na verdade, estamos de três a quatro pontos percentuais acima do desempenho de
uma população bem alimentada. afinal, em qualquer que seja a população
bem alimentada, sempre existirão algumas pessoas que, por algum motivo,
estarão com peso ou altura abaixo do normal.
Como conseguimos isto? e o mais impressionante aparece ao se avaliar o contexto internacional.
A fome no contexto internacional
o Gráfico 3 relaciona uma medida de subnutrição e o grau de extrema pobreza de um país (definido como insuficiência de renda). Quanto mais
alto o grau de extrema pobreza, maior tende a ser a subnutrição. a linha
apresentada é a norma internacional. note que, de acordo com ela, um
país com 30% de extrema pobreza deve apresentar 37% de subnutrição.
Da mesma forma, um país com 20% de extrema pobreza deve ter 32% de
subnutrição.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Cenário da
pobreza e da
fome no Brasil
Gráfico 3 - Relação entre a proporção de crianças abaixo da altura
recomendada e a porcentagem de pessoas em famílias com renda
'per capita' abaixo da linha de extrema pobreza
42
Fonte: Estimativas produzidas
com base no Human Developed
Report (2007-2008) Pnud
Universo: Países no mundo para
os quais há dados disponíveis no
HDR
50
Porcentagem de crianças abaixo da
altura recomendada(%)
Cenário da
pobreza e da
fome no Brasil
45
40
35
30
Brasil
Predito
25
20
15
Brasil
Observado
10
5
0
0
5
10
15
20
25
30
35
40
45
50
Porcentagem de pessoas em familias extremamente pobres (%)
o Brasil apresenta extrema pobreza igual a 7%. Com isso, se esperaria um índice de subnutrição igual a 20%, mas nosso desempenho é inferior a 10%.
a questão fundamental para a política de combate à fome e à subnutrição é:
como um país com uma distribuição de renda tão desigual, que leva 40% da
população a não ter recursos para comprar os alimentos dos quais precisa,
tem um nível de subnutrição abaixo de 10%?
políticas redistributivas da renda não são iguais às políticas de
combate à fome
Como conseguimos equacionar o problema nutricional, sem termos equacionado o problema da distribuição de renda?
existem várias possíveis explicações. Uma delas é que existe, no Brasil, uma
enorme quantidade de redes de solidariedade operando, sendo as pessoas
muito mais propensas à doação de alimentos do que de renda. É muito mais
fácil uma família um pouco menos pobre convidar outra mais pobre para
almoçar do que transferir-lhe alguma renda.
Talvez tenhamos redes de solidariedade muito mais fortes e, às vezes, invisíveis,
extremamente locais e informais. Definitivamente, não temos essas mesmas
redes na redistribuição da renda. Como consequência, a distribuição de renda é muito mais desigual do que a de alimentos.
o Gráfico 4 mostra que entre os 10% mais pobres, o grau de subnutrição,
medido pela relação peso e idade, é de 8%. estamos falando algo muito
impressionante: 92% das pessoas que vivem com renda abaixo de r$ 90
não são subnutridas. Como isso pode ter acontecido? essas pessoas não
compraram a comida que consomem, mas esta lhes apareceu de alguma
maneira.
serviço social do Comércio |
Gráfico 4 - Grau de subnutrição por décimos da distribuição de
renda: peso em relação à idade
43
Estimativa produzida com base
na Pesquisa de Orçamento
Familiar (POF) 2002-3
9
8
Grau de subnutrição (%)
7
6
5
4
3
2
1
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Décimos
renda
per
capita
Décimosda
dadistribuição
distribuiçãodada
renda
per
capita
Parte dessas políticas no país está mapeada, mas talvez o sucesso seja tão
grande que um conjunto delas permaneça informal e invisível.
É possível acabar com a subnutrição transferindo renda às pessoas mais
pobres. mas, como tentei argumentar, o pobre tem muitas outras necessidades. Para acabar com a subnutrição simplesmente transferindo renda,
temos que elevar a renda de cada pessoa a r$ 240. o Gráfico 5 mostra que
dois terços dos nossos subnutridos não são extremamente pobres. logo,
acabar com a extrema pobreza não vai tocar em dois terços dos desnutridos. Por quê? Porque eles já estão um pouco acima da extrema pobreza.
Gráfico 5 - Porcentagem acumulada de crianças com peso em
relação à idade por décimos da distribuição de renda:
Brasil, 2002-2003
Fonte: estimativa produzida com
base na Pesquisa de Orçamento
Familiar (POF) 2002-3
100
90
Porcentagem de crianças
80
70
60
50
40
30
20
10
0
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
Décimos da distribuição da renda per capita
Décimos da distribuição da renda per capita
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Cenário da
pobreza e da
fome no Brasil
Quem são os subnutridos?
44
Há uma certa especulação sobre quem são os subnutridos no Brasil. Parto do
suposto de que os subnutridos são aqueles que não têm acesso às redes
de solidariedade, que, por alguma razão, estão desvinculados, sem capital
social.
Cenário da
pobreza e da
fome no Brasil
É bom chamar a atenção para o fato de que o aumento da renda no Brasil é de extrema importância e ajudará muito no combate à fome. mas
demonstramos historicamente que não precisamos esperar por esse aumento para acabar com a fome. aliás, nós estamos acabando com ela
mais rapidamente do que com a pobreza entendida como insuficiência de
renda. Contudo, vale ter em vista que simplesmente aumentar um pouco a
renda das pessoas pode não acabar com a subnutrição. ou seja, se quisermos atacar a fome apenas com transferências de renda, tem que ser um
aumento substancial. Vinte reais a mais não farão a diferença, mas r$ 200.
a alternativa é reforçar as redes de solidariedade, de tal maneira a atacar
o problema diretamente.
Quando chegamos aos níveis de subnutrição que temos hoje no Brasil, ficamos
com a seguinte ideia: onde existem alimentos, a população está sendo mais
ou menos solidária. Portanto, o nosso problema de fome fica espacialmente
centrado em alguns locais. nas áreas em que há um problema crônico de
alimentos, onde todos são pobres, será mais difícil criar uma rede de solidariedade. ou seja, cada vez mais, a fome e a subnutrição no Brasil estarão
presentes em enclaves.
principais conclusões
a primeira conclusão é que pequenas transferências de renda sempre ajudam
e sempre vão ajudar, mas não vão resolver o problema da fome. É importante
aumentar o valor do benefício de programas como o Bolsa Família, e é também fundamental aumentar sua cobertura, mas sem esperar que a fome seja
largamente combatida.
além disso, deve-se melhorar o sistema de seleção de beneficiários para
o combate à fome. Como a renda ainda não está muito proximamente
relacionada à subnutrição, não se pode basear o processo de seleção de
beneficiários puramente no critério de renda. É claro que, entre os pobres,
o nível de subnutrição é mais elevado. mas, como procurei mostrar, muitos dos extremamente pobres não têm problema de subnutrição. logo,
o critério de seleção, em alguma medida, tem que estar relacionado diretamente com a subnutrição. Daí a importância de se aproveitarem as
complementaridades entre cadastros que cobrem a população pobre no
Brasil, como o Siab (preenchido pelo agente Comunitário de Saúde) e o
Cadastro Único. o Siab apresenta informações sobre subnutrição com
frequência muito maior e, portanto, permite identificar mais facilmente as
famílias em risco.
Uma terceira conclusão é que, apesar de termos uma grande quantidade de
brasileiros (quase 40%) que, considerando todas as suas necessidades básicas, não têm condições de comprar o que precisam para se alimentar, o
nível de subnutrição de nossa população é muito baixo. note também que o
grau de subnutrição no Brasil é inferior ao que se deveria esperar de um país
com nosso nível de extrema pobreza, definida como insuficiência de renda.
isso quer dizer que existem, portanto, alternativas eficazes a programas de
transferência de renda.
serviço social do Comércio |
Talvez a grande razão por detrás da subnutrição abaixo do esperado em nosso
país é que contamos com um conjunto grande de redes privadas, locais e
muitas vezes informais, de proteção social, que podem ser uma alternativa
eficaz, comparada às transferências de renda governamentais. É importante
que façamos um mapeamento dessas redes.
45
Cenário da
pobreza e da
fome no Brasil
Que política teremos que fazer daqui para frente? em que medida desejamos
uma política única e ampla, que vá substituir essas redes informais? ou será
melhor ter uma política de combate à fome e à subnutrição que, ao invés de
substituir essas redes locais, venha a complementá-las?
Uma vantagem dessas redes é que elas têm mais informação do que qualquer outro programa sobre quem são exatamente as pessoas que precisam
de atendimento, quem são as pessoas em risco de insegurança alimentar. É
difícil, para um programa nacional ou estadual, identificar tal população. a
dificuldade, contudo, é que os beneficiários não sabem se estão recebendo
apoio como um direito ou um favor. então, a grande solução é aproveitar essas redes, dando-lhes apoio técnico, potencializando-as de tal maneira, que
elas sejam um instrumento e um mecanismo que possa levar o direito à segurança alimentar a todos os brasileiros.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
46
* Professor Titular do Departamento de nutrição da Faculdade de Saúde Pública
da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenador Científico do núcleo de
Pesquisas epidemiológicas em nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo
(nupens/USP). É editor Científico da Revista de Saúde Pública, integra o comitê
da organização mundial da Saúde (omS) para implementação da Global Strategy
on Diet, Physical activity and Health e a força tarefa da oPS para eliminação das
gorduras trans nas américas. É também bolsista de produtividade científica do
CnPq nível ia e membro da academia Brasileira de Ciências, com graduação em
medicina, doutorado em Saúde Pública pela USP e pós-doutorado no instituto de
nutrição Humana da Columbia University.
O novo cenário da
pobreza, da desnutrição
e da fome no Brasil:
implicações para políticas
públicas carlos Augusto monteiro*
serviço social do Comércio |
47
a dimensão da fome e da desnutrição e as medidas mais eficazes para lutar contra esses problemas têm sido objeto de intensa e tradicional
polêmica no Brasil. Parte dessa polêmica pode
ser creditada ao esforço insuficiente empregado no entendimento da natureza e conceituação
desses dois problemas e à frequente impropriedade de se considerá-los equivalentes entre si
e, ainda, como meros sinônimos da pobreza.
outra razão para os comuns desacordos nessa
matéria poderia ter raízes na não consideração,
por parte de alguns interlocutores do debate,
dos resultados de abrangentes inquéritos nutricionais realizados no Brasil ao longo das três
últimas décadas.
este texto pretende contribuir para um melhor entendimento da dimensão e das possíveis soluções para a fome e a desnutrição no Brasil. inicialmente, procuraremos esclarecer a natureza
distinta de cada um desses problemas e o que
os distingue conceitualmente da pobreza. a seguir, examinaremos as alternativas disponíveis
para operacionalizar os conceitos de pobreza,
desnutrição e fome, em estudos empíricos que
buscam aferir a frequência desses problemas
na população. Finalmente, apresentaremos resultados e análises de inquéritos recentes que
permitem estimar a frequência, distribuição e
evolução da pobreza, da desnutrição e da fome
em nosso meio. este texto atualiza ensaios anteriores sobre o mesmo tema, apresentados
em dois seminários sobre fome, desnutrição e
pobreza, organizados pelo instituto de estudos
avançados (iea), da Universidade de São Paulo
(USP), em 1994 e 2003, e publicados em números especiais da revista do iea em 1995 (monTeiro, 1995) e 2003 (monTeiro, 2003).
definindo pobreza, desnutrição e fome
Dos três problemas, a pobreza talvez seja o mais fácil de definir. De modo bastante simples, pode-se
dizer que pobreza corresponde à condição de não
satisfação de necessidades humanas elementares como comida, abrigo, vestuário, educação,
assistência à saúde, entre várias outras. a desnutrição ou, mais corretamente, as deficiências
nutricionais – porque são várias as modalidades
de desnutrição – são doenças que decorrem do
aporte alimentar insuficiente em energia e/ou
nutrientes ou, ainda, com alguma frequência,
do inadequado aproveitamento biológico dos
alimentos ingeridos – geralmente motivado pela
presença de doenças, em particular doenças infecciosas. Semanticamente, poderíamos também
incluir entre as modalidades de desnutrição, ao
lado das deficiências nutricionais, os distúrbios
nutricionais decorrentes da ingestão excessiva
ou desequilibrada de energia e/ou nutrientes, em
particular a obesidade, problema crescente no
país. não o faremos para não tornar este texto
demasiado extenso e complexo. remetemos os
leitores interessados na dimensão, distribuição
social e tendência secular da obesidade no Brasil
a outro texto: monTeiro et al, 2007.
a fome é certamente o problema cuja definição
se mostra mais controversa. Haveria inicialmente que distinguir a fome aguda, momentânea,
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
da fome crônica. a fome aguda equivale à urgência de se alimentar, a um
grande apetite, e não é relevante para nossa discussão. a fome crônica, permanente, a que nos interessa aqui, ocorre quando a alimentação diária, habitual, não propicia ao indivíduo energia suficiente para a manutenção do
seu organismo e para o desempenho de suas atividades cotidianas. nesse
sentido, a fome crônica resulta em uma das modalidades de desnutrição: a
deficiência energética crônica.
48
O novo cenário
da pobreza, da
desnutrição e da
fome no Brasil:
implicações para
políticas públicas
Para Josué de Castro, um dos maiores estudiosos do problema da fome no
mundo, a fome crônica poderia ser subdividida em fome total ou inanição e
fome parcial ou fome oculta, a primeira caracterizada pela falta absoluta de
alimentos e a segunda por dietas suficientes em quantidade, mas permanentemente deficientes em nutrientes específicos (CaSTro, 1965). a fome total
de que fala Josué de Castro corresponderia, grosso modo, à deficiência crônica de energia, enquanto a fome parcial ou oculta corresponderia à desnutrição ocasionada por deficiências dietéticas específicas. esta não abrangeria,
portanto, casos de desnutrição ocasionados por doenças e aproveitamento
biológico deficiente da alimentação ingerida, condições muito frequentes,
sobretudo, nos primeiros anos de vida.
a diferenciação entre fome (ou fome total, na terminologia de Josué de Castro), desnutrição e pobreza ficará possivelmente mais clara através de exemplificações. Um indivíduo pode ser pobre sem ser afetado pelo problema da
fome, bastando que sua condição de pobreza se expresse por carências
básicas outras que não a alimentação – o instinto de sobrevivência do homem e de todas as outras espécies animais faz com que suas necessidades
alimentares tenham precedência sobre as demais. a situação inversa, ocorrência da fome na ausência da condição de pobreza, não ocorre, ou ocorre
apenas excepcionalmente e por tempo limitado por ocasião de guerras e
catástrofes naturais. Fome e desnutrição tampouco são equivalentes, uma
vez que, se toda fome leva necessariamente à desnutrição – de fato, a uma
modalidade de desnutrição: a deficiência energética crônica – nem toda deficiência nutricional se origina do aporte alimentar insuficiente em energia,
ou, sendo mais direto, da falta de comida. ao contrário, são causas relativamente comuns de desnutrição, sobretudo na infância, o desmame precoce,
a higiene precária na preparação dos alimentos, o déficit específico da dieta
em vitaminas e minerais e a incidência repetida de infecções, em particular
doenças respiratórias, gastrenterites e parasitoses intestinais. ainda que
também não equivalentes, os terrenos da pobreza e da desnutrição são os
que mais se aproximam, sobretudo no caso de crianças, pois o bom estado
nutricional na infância pressupõe o atendimento de um leque abrangente
de necessidades humanas, que incluem não apenas a disponibilidade de
alimentos, mas também a diversificação da dieta, condições salubres de
moradia, o acesso à educação e a serviços de saúde, entre outras. ainda
assim, a presença da pobreza torna mais frequente, mas não compulsória,
a presença da desnutrição na criança, sendo extremamente importante a
modulação que pode ser exercida por programas bem planejados de assistência integral à saúde infantil. em suma, embora igualmente graves e
indesejáveis e ainda que compartilhem causas e vítimas, fome, desnutrição
e pobreza não são a mesma coisa. a Figura 1 procura representar espacialmente os domínios próprios e comuns desses três problemas em uma
população hipotética.
serviço social do Comércio |
Figura 1 - Pobreza, desnutrição e fome
49
Pobreza
O novo cenário
da pobreza, da
desnutrição e da
fome no Brasil:
implicações para
políticas públicas
Fome
Desnutrição
Aferindo a extensão da pobreza, da desnutrição e da fome em
uma população
Definições operacionais de pobreza geralmente levam em conta a renda (monetária e não monetária) das famílias e uma linha de pobreza (nível crítico de
renda) baseada no custo estimado da aquisição das necessidades humanas
básicas. Contabilizam-se como pobres as famílias cuja renda seja inferior à
linha da pobreza. Quando a linha da pobreza se baseia apenas no custo da
alimentação, fala-se em pobreza extrema ou indigência (roCHa, 2000).
Como a maioria das doenças, as deficiências nutricionais podem ser diagnosticadas por meio de exames clínicos e laboratoriais. Por serem biologicamente
mais vulneráveis a diversas deficiências nutricionais, as crianças são habitualmente escolhidas como grupo indicador da presença de desnutrição na
população, admitindo-se que o percentual de crianças com retardo de crescimento, uma das primeiras e mais precoces manifestações de desnutrição na
infância, propicie uma excelente indicação do risco de deficiências nutricionais a que está exposta uma coletividade (WHo, 1995).
as dificuldades técnicas em se medir de forma confiável a ingestão alimentar
habitual dos indivíduos e suas correspondentes necessidades energéticas
tornam difícil, se não impossível, a mensuração direta precisa da extensão da
fome ou da deficiência energética crônica em uma população. Dois fatores
dificultam a avaliação da ingestão calórica dos indivíduos: a grande variabilidade na ingestão diária de calorias em um mesmo indivíduo, o que torna
necessário estender a avaliação por um grande número de dias, e a virtual
inexistência de métodos de avaliação que não interfiram com o padrão de ingestão alimentar, sobretudo quando o indivíduo é estudado por um longo período de tempo. não menos complexa é a determinação da necessidade real
de energia de cada indivíduo, havendo novamente que considerar as amplas
variações individuais decorrentes de variações genéticas, variações do estado fisiológico (gestação, lactação) e variações do padrão de atividade física.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
a organização das nações Unidas para alimentação e agricultura (Fao) estima anualmente, para todos os países em desenvolvimento, a proporção da
população cuja alimentação diária não atenderia aos requerimentos energéticos. essa proporção é utilizada frequentemente como indicadora da
magnitude da fome ou da deficiência crônica de energia nos países. entretanto, quando se atenta para como essa estimativa da Fao é calculada, facilmente se conclui que se trata de um indicador extremamente impreciso
e, portanto, de pouca utilidade. Para chegar à proporção da população cuja
alimentação não atenderia aos requerimentos energéticos diários, a Fao se
baseia em estimativas sobre o número de habitantes de cada país, o total
diário de calorias disponíveis para consumo, a forma pela qual esse total
calórico é distribuído entre os habitantes e os requerimentos energéticos
desses habitantes. exceto talvez pelo número de habitantes de cada país, as
demais estimativas estão sujeitas a grande imprecisão. a estimativa sobre
a disponibilidade de calorias é baseada em informações fornecidas pelos
países sobre produção, exportação e importação de alimentos e em estimativas de desperdícios ao longo da cadeia produtiva. a estimativa sobre
como a disponibilidade total de calorias é distribuída entre os habitantes de
cada país, mais do que imprecisa, é inadequada, na medida em que se baseia em indicadores da distribuição da renda no país. ou seja, assume que
a distribuição de calorias em cada país segue o padrão de distribuição da
renda nacional. Finalmente, na maioria dos países, a ausência de inquéritos sobre os padrões de atividade física da população implicam estimativas
grosseiras dos requerimentos energéticos.
50
O novo cenário
da pobreza, da
desnutrição e da
fome no Brasil:
implicações para
políticas públicas
Uma alternativa para aferir na população a frequência e distribuição da deficiência crônica de energia ou da fome (ou, ainda, da fome total de Josué
de Castro) consiste em se avaliar as reservas energéticas dos indivíduos, o
que se consegue, de modo prático, avaliando-se a relação entre peso e altura. neste caso, admite-se que o percentual de indivíduos com insuficiente
relação peso/altura, portanto emagrecidos, expresse razoavelmente bem a
magnitude da deficiência crônica de energia na população. essa alternativa
será a que utilizaremos na seção seguinte deste texto.
A dimensão da pobreza, da desnutrição e da fome no Brasil
a Tabela 1 apresenta estimativas do instituto de Pesquisa econômica aplicada
(ipea) sobre a frequência e distribuição da pobreza no Brasil, tendo como
base a Pesquisa nacional por amostragem de Domicílios (Pnad), de 2007.
Tais estimativas consideram todas as fontes de renda declaradas pelas famílias e levam em conta linhas de pobreza construídas com base no custo de
vida estimado para as distintas regiões do país. Duas linhas de pobreza são
consideradas: a linha de pobreza e a linha de pobreza extrema. a linha de
pobreza extrema (ou linha de indigência) corresponde ao custo estimado das
necessidades de uma pessoa com a aquisição apenas de alimentos. a linha
da pobreza corresponderia à aquisição de todas as necessidades básicas de
uma pessoa e, em termos práticos, é definida como duas vezes o valor da
linha de pobreza extrema.
Segundo as estimativas do ipea, haveria 17,2% de famílias pobres no Brasil,
sendo 6,1% extremamente pobres. Tanto a pobreza como a pobreza extrema
se mostram de três a cinco vezes mais frequentes nas regiões norte e nordeste, se comparadas às regiões Sudeste, Sul e Centro-oeste (Tabela 1).
serviço social do Comércio |
Tabela 1 - Proporção de famílias pobres ou extremamente pobres,
segundo macrorregião: Brasil, 2007
Região
% de famílias pobres*
% de famílias extremamente
pobres**
norte
28,9
9,5
nordeste
35,5
14,0
Sudeste
9,1
2,9
Sul
9,2
2,7
Centro-oeste
8,4
2,7
Brasil
17,2
6,1
51
* renda per capita
inferior a duas vezes
a linha de pobreza
extrema.
** renda per capita
inferior à linha de
pobreza extrema, a qual
corresponde ao custo
em cada região brasileira
de uma cesta de
alimentos necessária
para uma pessoa.
Séries históricas sobre a frequência da pobreza no Brasil indicam declínios substanciais nos anos 70 e estagnação ou declínios muito lentos nas décadas de
80 e 90. Já a concentração de renda, das mais elevadas do mundo, pouco se
modifica ao longo dessas três décadas (PaSTore et al, 1983; ToloSa, 1991;
roCHa, 2001). na década de 2000, sobretudo a partir de 2003, observa-se acentuado declínio da pobreza em todas as regiões brasileiras. entre 2003 e 2007,
segundo estudo do ipea, a frequência de famílias brasileiras pobres é reduzida
de 26,7% para 17,2% e a de famílias extremamente pobres de 10,5% para 6,1%.
o índice de Gini, que mede a concentração da renda, declina de 59,4 em 2001
para 54,5 em 2007, caindo em média 0,7 ponto ao ano, o que supera a velocidade de queda da concentração da renda registrada em países desenvolvidos no
período de construção dos seus estados de bem estar social (SoareS, 2008).
estudiosos do assunto atribuem a três fatores a melhoria recente na distribuição da renda e a redução da pobreza no Brasil: a reativação da economia e a
consequente queda no desemprego, aumentos no valor real do salário mínimo
e a intensificação dos programas de transferência de renda (neri, 2007).
Fonte: Ipeadata
(www.ipeadata.gov.br,
acesso em 08/12/2008).
Conforme mencionado, por serem mais vulneráveis a deficiências nutricionais, as crianças constituem o grupo indicador preferencial para o estudo
da presença da desnutrição em uma população. admite-se que a proporção
de crianças menores de cinco anos com valores muito baixos de alturapara-idade ou de peso-para-altura (valores aquém de dois desvios-padrão dos
valores esperados em crianças adequadamente alimentadas e saudáveis)
retrate, não apenas a prevalência da desnutrição na infância, mas também
a dimensão global que o problema da desnutrição alcança na sociedade.
importa esclarecer que crianças com alturas ou pesos tão baixos quanto os
referidos são encontradas em populações bem nutridas, mas em proporção
não superior a 2-3%, correspondendo, neste caso, à fração normal de crianças geneticamente pequenas ou magras (WHo, 1995).
a Tabela 2 apresenta estimativas sobre a frequência e distribuição de indicadores antropométricos do estado nutricional infantil no Brasil tendo como
base a Pesquisa nacional de Demografia e Saúde da Criança e da mulher
(PnDS), 2006-7. Crianças com valores muito baixos de altura-para-idade,
indicativos de formas de desnutrição de longa duração, correspondiam, em
2006-7, a 7% da população infantil brasileira, portanto ainda três vezes mais
frequentes do que a proporção esperada quando são ótimas as condições
de alimentação e saúde da população. Crianças com valores muito baixos
de peso-para-altura foram encontradas com frequência inferior a 2%, denotando a virtual ausência de formas graves de desnutrição, em geral associadas à perda aguda de peso.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
O novo cenário
da pobreza, da
desnutrição e da
fome no Brasil:
implicações para
políticas públicas
Tabela 2 - Prevalência de desnutrição na infância segundo
macrorregião e classe de poder aquisitivo: Brasil, 2006-7
52
Fonte: Monteiro et al. (2009a).
% de crianças < 5 anos com déficit
de altura-para-idade
% de crianças < 5 anos com déficit
de peso-para-altura
norte
14,7
0,5
nordeste
5,8
1,6
Sudeste
5,6
1,5
Sul
8,5
1,9
Centro-oeste
5,5
0,9
a, B ou C1
3,7
1,1
C2
6,1
1,5
D
9,6
1,7
e
10,9
1,5
Brasil
7,0
1,4
Região/classe
O novo cenário
da pobreza, da
desnutrição e da
fome no Brasil:
implicações para
políticas públicas
Região
Classe
a distribuição regional do déficit de altura-para-idade indica prevalência de
desnutrição substancialmente maior na região norte (14,7%) e valores semelhantes (entre 5% e 8%) nas demais regiões do país, incluindo a região
nordeste (5,6%). em nenhuma região brasileira a frequência de déficits de
peso-para-altura ultrapassou 2%.
a distribuição dos déficits de altura-para-idade segundo classes de poder aquisitivo indica diminuição do risco de desnutrição com o aumento do poder
aquisitivo das famílias (3,7% nas classes a, B e C1 a 10,9% na classe e). em
nenhuma classe de poder aquisitivo a frequência de déficits de peso-paraaltura chegou a 2%, confirmando a não relevância populacional de formas
graves de desnutrição infantil no Brasil.
estimativas extraídas de um banco internacional de dados sobre crescimento
infantil, compilado pela omS, indicam que a prevalência de 7% de crianças
com déficit de altura-para-idade no Brasil é menor do que a observada em
países com nível de desenvolvimento econômico semelhante (como o Uruguai, onde a prevalência de déficits de altura é de 13,9%) ou mesmo superior (como a argentina, onde a prevalência de déficits de altura é de 8,2%).
(Cf.: Global Database on Child Growth and malnutrition, em: www.who.int/
nutgrowthdb/database/countries/en).
a tendência secular da desnutrição na população brasileira de crianças menores de cinco anos tem sido objeto de estudos e análises graças à disponibilidade de inquéritos antropométricos nacionais realizados no país desde meados da década de 70. Com base nesses inquéritos, tendências declinantes
na prevalência de crianças de baixa estatura foram identificadas entre 1975 e
1989, entre 1989 e 1996 e entre 1996 e 2006-7. o declínio foi particularmente
intenso no último período, quando alcançou uma taxa média de redução de
6,3% ao ano (contra 5% e 5,7% ao ano, nos dois primeiros períodos, respectivamente). a redução na prevalência da desnutrição foi particularmente intensa entre as crianças da região nordeste e entre famílias das de menor poder
aquisitivo (classes D e e), o que contribuiu para a redução substancial das
desigualdades regionais e socioeconômicas na prevalência da desnutrição
(monTeiro et al, 2009a).
serviço social do Comércio |
os fatores responsáveis pelo declínio da desnutrição infantil, nos intervalos
de tempo delimitados pelos inquéritos realizados no Brasil desde 1975, não
são imediatamente comparáveis em função das diferentes estratégias analíticas empregadas para sua identificação e da desigual disponibilidade
de dados nos períodos correspondentes. De qualquer modo, o declínio da
desnutrição no período 1975-89 foi atribuído essencialmente a progressos
moderados na renda familiar e à excepcional expansão da cobertura de
serviços públicos de educação, saneamento e saúde (monteiro et al, 1992).
melhoria na escolaridade das mães, maior acesso a cuidados básicos de
saúde e expansão da rede pública de abastecimento de água foram considerados os fatores mais relevantes para o declínio da desnutrição no período 1989-96, cabendo, novamente, papel modesto ao aumento da renda
familiar (monTeiro et al, 2000).
53
O novo cenário
da pobreza, da
desnutrição e da
fome no Brasil:
implicações para
políticas públicas
Um detalhado estudo dos fatores responsáveis pelo excepcional declínio da
desnutrição infantil entre 1996 e 2006-7 atribuiu cerca de dois terços do
declínio da desnutrição a melhorias, por ordem de importância, na escolaridade das mães, no poder aquisitivo das famílias (sobretudo das mais
pobres), no acesso à assistência à saúde e nas condições do saneamento
(monTeiro et al, 2009b).
Conforme referido anteriormente, a aferição da dimensão da fome ou da deficiência energética crônica em uma população poderia ser feita a partir da
avaliação das reservas energéticas dos indivíduos ou, mais especificamente,
a partir da proporção de indivíduos emagrecidos. embora a deficiência energética crônica seja um evento essencialmente familiar, acometendo simultaneamente crianças e adultos, sua aferição se torna mais específica quando feita sobre indivíduos adultos; crianças podem responder à deficiência
energética com a redução do crescimento linear, enquanto adultos sempre
respondem com o emagrecimento. Consideram-se magros os adultos que
têm relação peso/altura (Índice de massa Corporal) inferior a 18,5 kg/m2. em
populações onde se sabe não existir fome, adultos magros não ultrapassam
3% a 5% da população, considerando-se proporções acima desses valores
como indicativas de risco de deficiência energética crônica. a omS classifica
proporções de adultos magros entre 5% e 9% como indicativa de baixa prevalência de déficits energéticos, o que justificaria a necessidade de monitorar
o problema e estar alerta para sua eventual deterioração. Proporções entre
10% e 19% caracterizariam prevalência moderada da deficiência energética
crônica enquanto proporções entre 20% e 29% e proporções iguais ou superiores a 40% caracterizariam, respectivamente, prevalências altas e muito
altas (WHo, 1995).
a Tabela 3 apresenta estimativas sobre a frequência e distribuição da prevalência da deficiência energética crônica em mulheres adultas brasileiras entre
20 e 49 anos de idade, conforme a mesma pesquisa (PnDS 2006-7).
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Tabela 3 - Prevalência de deficiência crônica de energia em
mulheres de 20 a 49 anos segundo macrorregião e classe de poder
aquisitivo: Brasil, 2006-7
54
O novo cenário
da pobreza, da
desnutrição e da
fome no Brasil:
implicações para
políticas públicas
Fonte: Monteiro et al. (2009a).
Região/classe
% de mulheres com iMC < 18,5 kg/m2
Região
norte
2,8
nordeste
4,8
Sudeste
4,3
Sul
2,9
Centro-oeste
3,8
Classe
a, B ou C1
2,9
C2
5,0
D
5,4
e
4,7
Brasil
4,0
em 2006-7, mulheres magras correspondiam a 4% do total da população feminina, proporção compatível com o intervalo de variação esperado para o
indicador em populações teoricamente não expostas à deficiência energética
crônica (3% a 5% de indivíduos magros). a estratificação regional do indicador não aponta qualquer região onde a proporção de mulheres magras exceda os 5%. nas classes de menor poder aquisitivo (classes D e e), a proporção
de mulheres magras fica em torno de 5%. a situação brasileira se mostra,
portanto, muito distinta da situação encontrada em países onde a deficiência energética crônica é reconhecidamente endêmica como Haiti, etiópia e
Índia, onde a proporção de indivíduos emagrecidos na população adulta se
aproxima de 20%, 40% e 50%, respectivamente (WHo, 1995).
inquérito realizado em 2002-3, em amostra probabilística da população adulta
masculina e feminina do Brasil, já indicava baixa proporção de indivíduos
magros e reduzida exposição da população à deficiência crônica de energia.
apenas entre mulheres da região nordeste e entre mulheres de famílias de
muito baixa renda, a proporção de indivíduos magros excedia o limite esperado, situando-se entre 6% e 8% (iBGe, 2004). Conforme se depreende das
estimativas apresentadas para 2006-7, a situação de alguma exposição à deficiência crônica de energia foi inteiramente corrigida neste período.
conclusões e implicações
em 2007, a condição de pobreza, medida pela insuficiência de renda, foi encontrada em cerca de 17% das famílias brasileiras, disseminando-se por todas
as regiões do país, mas afligindo, em particular, a região norte (mais de
um quarto de famílias pobres) e, ainda mais, a região nordeste (mais de
um terço de famílias pobres). a pobreza extrema alcançava cerca de 6% das
famílias brasileiras, novamente afligindo mais as regiões norte e nordeste.
em 2006-7, a desnutrição, medida pelo déficit de altura-para-idade, alcançava
serviço social do Comércio |
7% das crianças brasileiras, sendo mais frequente nas classes de menor poder aquisitivo (11% na classe e) e na região norte (15%), mas não na região
nordeste (6% de crianças desnutridas). no mesmo período, a fome ou a deficiência energética crônica, medida pela depleção de reservas energéticas na
população adulta, não alcançou relevância populacional em nenhuma região
brasileira ou classe de poder aquisitivo.
55
O novo cenário
da pobreza, da
desnutrição e da
fome no Brasil:
implicações para
políticas públicas
Séries históricas de indicadores da pobreza indicam declínio do problema na
década de 1970, acompanhando o crescimento exuberante da economia,
mas sem redução da enorme concentração da renda nacional. nas décadas de 80 e de 90, há declínios muito modestos, ou mesmo estagnação
da pobreza, acompanhando o crescimento econômico medíocre do país,
novamente, sem mudanças substanciais na distribuição da renda nacional.
a partir de 2000, sobretudo a partir de 2003, há intensa redução da pobreza
no Brasil, desta vez acompanhada de diminuição na concentração da renda
nacional.
indicadores antropométricos da desnutrição, estimados a partir de inquéritos
realizados na segunda metade do século XX, apontam declínio do problema
entre 1975 e 1989, e entre 1989 e 1996; o primeiro atribuível a aumentos modestos na renda dos mais pobres e à ampliação da escolaridade das mães e
da cobertura de serviços de saúde e saneamento; o segundo atribuível quase
que exclusivamente à ampliação da escolaridade materna e da cobertura de
serviços básicos. o inquérito realizado em 2006-7 evidenciou aceleração do
declínio da desnutrição infantil no período 1996-2007, com reduções particularmente intensas na região nordeste e nas classes de menor poder aquisitivo. neste período, o declínio da desnutrição deveu-se à combinação entre
forte aumento do poder aquisitivo dos estratos mais pobres da população
e forte expansão da escolaridade das mães e da cobertura de serviços de
saúde e saneamento. mantidas as tendências do período mais recente, em
mais uma década o problema da desnutrição infantil poderia ser considerado
controlado no Brasil.
inquéritos realizados no Brasil desde meados da década de 1970 sugerem que
o problema da deficiência crônica de energia, medida a partir da proporção
de adultos emagrecidos, nunca tenha alcançado magnitude elevada em nosso meio, sendo que no período mais recente (1996-2007) desaparecem os
indícios da exposição (reduzida) ao problema antes existentes na região nordeste e nos estratos mais pobres da população.
as diferenças identificadas na magnitude, distribuição e evolução da pobreza,
da desnutrição e da fome confirmam a natureza distinta desses problemas,
tal como sustentado na introdução deste trabalho, ao mesmo tempo em que
determinam implicações importantes na definição de prioridades, conteúdos, escalas e alvos para políticas públicas.
ações governamentais específicas de combate à pobreza devem continuar a
receber máxima prioridade no país e devem continuar a perseguir essencialmente o aumento da renda dos mais pobres. ações que permitam a manutenção do crescimento econômico com melhor distribuição de renda e que
levem à criação de empregos são vistas, ao lado dos programas de transferência condicionada de renda, como soluções consensuais para o aumento
da renda dos mais pobres no Brasil.
ações que sigam combatendo eficientemente a pobreza serão obviamente de
enorme valia para a luta contra a desnutrição infantil. entretanto, a experiência brasileira e a de outros países em desenvolvimento indicam que o prosseguimento da melhoria na escolaridade das mães e a universalização ainda
não alcançada do acesso a serviços de saneamento e cuidados básicos de
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
saúde, incluindo o monitoramento do estado nutricional infantil e a detecção
e correção precoces da desnutrição, serão essenciais para se alcançar a definitiva erradicação do problema (GilleSPPie et al, 1996; SmiTH & HaDDaD,
2000; monTeiro et al, 2000; monTeiro et al, 2009b).
56
ações específicas de combate à fome, em particular ações de distribuição de
alimentos, como as desenvolvidas com grande destaque em 2003, no início
do Programa Fome Zero, não encontram respaldo na realidade epidemiológica atual do país e, como tal, deveriam ser empregadas de modo excepcional
e focalizadas apenas quando houvesse evidência de sua real necessidade
(por exemplo, em períodos de seca prolongada em algumas regiões do país).
essa recomendação não se aplica à distribuição gratuita de alimentos visando outras finalidades que não o combate à fome, como para evitar o desperdício de alimentos que de outro modo seriam descartados ou para estimular
a ingestão de alimentos saudáveis consumidos de modo insuficiente pela
população (como frutas e hortaliças). a distribuição indiscriminada de alimentos, ao contrário do que talvez indiquem o senso comum e a indignação
justificada diante de uma sociedade ainda tão injusta e plena de problemas
como a brasileira, implicaria consumir recursos que poderiam faltar para
ações sociais mais bem justificadas e mais eficientes. a distribuição gratuita
de alimentos processados de baixo valor nutricional, situação infelizmente
não rara em nosso meio, contribui, ademais, para a destruição de culturas
alimentares tradicionais e para a indução de hábitos alimentares não saudáveis na população.
O novo cenário
da pobreza, da
desnutrição e da
fome no Brasil:
implicações para
políticas públicas
serviço social do Comércio |
referências
57
CastRO, J. Geografia da fome. são paulo: Brasiliense, 1965.
gillespie, s. R.; MasON, J. B.; MaRtORell, R. How nutrition improves. geneva: aCC
/sCN, 1996. (state-of-the-art. Nutrition policy Discussion paper, 15).
O novo cenário
da pobreza, da
desnutrição e da
fome no Brasil:
implicações para
políticas públicas
iBge. Coordenação de Índices de preços. Pesquisa de orçamentos familiares 2002-3:
análise da disponibilidade domiciliar de alimentos e do estado nutricional no Brasil. Rio
de Janeiro, 2004.
MONteiRO, C. a. a dimensão da pobreza, da fome e da desnutrição no Brasil. Estudos
Avançados, são paulo, v. 9, n. 24, p. 195-207, 1995.
______.______. Estudos Avançados, são paulo, v. 17, n. 48, p. 7-20, 2003.
MONteiRO, C. a. et al. avaliação antropométrica do estado nutricional de mulheres em
idade fértil e crianças menores de cinco anos. in: BeRQuÓ, e.; gaRCia, s.; lagO, t.
(Org.). Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS –
1996). Brasília: Ministério da saúde, 2009. No prelo.
MONteiRO, C. a. et al. Causas do declínio da desnutrição infantil no Brasil, 1996-2007.
Revista de Saúde Pública, são paulo, v. 43, n. 1, 2009.
MONteiRO, C. a. et al. evolução da mortalidade infantil e do retardo de crescimento nos
anos 90: causas e impacto sobre desigualdades regionais. in: MONteiRO, C. a. (Org.).
Velhos e novos males da saúde no Brasil: a evolução do país e de suas doenças. são
paulo: Hucitec: Nupens, usp, 2000. p. 393-420.
MONteiRO, C. a. et al. Nutritional status of Brazilian children: trends from 1975 to 1989.
Bulletin of the World Health Organization, geneva, switzerland, v. 70, n. 5, p. 657-666,
1992.
MONteiRO, C. a.; CONDe, W. l.; pOpKiNs, B. M. income specific trends in obesity in
Brazil: 1975-2003. American Journal of Public Health, New York, N.Y., v. 97, n. 10, p.
1.808-1.812, 2007.
NeRi, M. C. (Coord.). Miséria, desigualdade e políticas de renda: o Real do lula. Rio de
Janeiro: Cps, iBRe, fgV, 2007.
pastORe, J.; zYlBeRstaJN, H.; pagOttO, C. s. Mudança social e pobreza no Brasil.
são paulo: fipe: pioneira, 1983.
ROCHa, s. Opções metodológicas para a estimação de linhas de indigência e de pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: ipea, 2000. (texto para discussão, 720).
ROCHa, s. pobreza no Brasil. O que há de novo no limiar do século xxi ? Economia - Revista da Anpec, Niterói, v. 2, n. 1, p. 73-106, jan./jul., 2001.
sMitH, l. C.; HaDDaD, l. Overcoming child malnutrition in developing countries. Washington: international food policy Research institute, 2000. (food, agriculture, and the
environment. Discussion paper, 30).
sOaRes, s. s. D. O ritmo de queda na desigualdade no Brasil é adequado?: evidências
do contexto histórico e internacional. Brasília: ipea, 2008. (texto para discussão, 1.339).
tOlOsa, H. C. pobreza no Brasil: uma avaliação dos anos 80. in: VelOsO, J. p. R. (Org.).
A questão social no Brasil. são paulo: Nobel, 1991.
WORlD HealtH ORgaNizatiON. Physical status: the use and interpretation of anthropometry. geneva, 1995. (technical Report series, 854).
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
58
* livre docente em economia pela Universidade estadual de Campinas
e professor associado do instituto de economia da Unicamp, com
graduação em administração de empresas e mestrado em economia
aplicada à administração, ambos pela escola de administração de
empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, e doutorado em
Ciência econômica pela Unicamp. realizou estudos de pós-doutorado
na Universidade de londres e na Universidade da Califórnia em Berkeley.
É conselheiro do núcleo de estudos e Pesquisas em alimentação,
foi membro do Conselho nacional de Segurança alimentar e Diretor
Superintendente da onG empresarial ação Fome Zero entre 2003 e 2006.
atualmente é conselheiro do Banco de alimentos da associação Prato
Cheio de São Paulo.
Desafios para uma
política de segurança
alimentar e nutricional
integrada Walter Belik*
serviço social do Comércio |
59
Desde a realização da Cúpula mundial da alimentação, promovida pela organização das nações
Unidas para a agricultura e alimentação (Fao),
em 1996, em roma, e que contou com quase
duas centenas de países participantes, o mundo
discute a possibilidade de erradicar totalmente
a fome do nosso planeta. na ocasião, os países
participantes assinaram um compromisso visando reduzir o número de pessoas subnutridas
pela metade até o ano de 2015. nessa reunião,
consagrou-se também a utilização do conceito
de Segurança alimentar e nutricional como elemento de política pública no combate à fome.
Segundo documento elaborado durante o encontro, definiu-se assim a Segurança alimentar e
nutricional de uma população: “quando toda
pessoa, em todo momento, tem acesso físico
e econômico a alimentos suficientes, inócuos
e nutritivos para satisfazer suas necessidades
alimentares e preferências quanto aos alimentos a fim de levar uma vida saudável e ativa”.
observa-se, portanto, que a definição é feita em
aspecto condicional, verificada ao nível de cada
indivíduo e situada em várias dimensões: disponibilidade de alimentos, acesso aos alimentos,
forma de utilização e estabilidade ao longo do
tempo.
o termo Segurança alimentar já vinha sendo utilizado por alguns países desde o pós-guerra, levando-se em conta os aspectos macro das sociedades que nos anos 50 entraram em um período
de paz, em situação de total vulnerabilidade no
que dizia respeito às suas fontes de suprimento
alimentar. nos anos 70, o conceito foi adotado
pela Fao e outros organismos internacionais,
incorporando-se a ele aspectos domiciliares e
da situação nutricional do próprio indivíduo.
Paralelo a esse movimento, em 1976, praticamente todos os países representados na onU firmaram o Pacto internacional dos Direitos econômicos Sociais e Culturais (Pidesc) reconhecendo o
“direito fundamental de toda pessoa estar protegida contra a fome”1. esse pacto representou o
maior avanço em termos de reconhecimento de
direitos desde a Declaração dos Direitos do Homem de 1948. até o ano de 2006 um total de 153
países já haviam ratificado o Pidesc e alguns deles haviam desenvolvido leis e decretos regulamentando o direito humano à alimentação.
a participação do Brasil nas negociações internacionais da Cúpula de 1996 e no reconhecimento do direito humano à alimentação se dá
em um contexto de grande efervescência. após
vinte anos de regime militar e um longo período
de redemocratização, o país entra nos anos 90
disposto a olhar para as suas mazelas, entre estas, a fome e a pobreza. em 1992 é lançada a
ação da Cidadania Contra a Fome e a miséria
pela Vida, a campanha de Betinho, que mobiliza a sociedade brasileira e reúne as mais diversas correntes políticas e religiosas. em 1993 o
governo federal lança o primeiro programa de
combate à fome e se instala pela primeira vez
o Conselho nacional de Segurança alimentar
e nutricional (Consea). Várias iniciativas são
tomadas no âmbito da sociedade civil visando
acabar com a fome, inclusive os primeiros bancos de alimentos a se instalarem no país. em
2001, o instituto Cidadania lança o “Programa
Fome Zero – uma proposta de política de segu1
artigo 11, parágrafo 2 do Pidesc. Vale mencionar que no
parágrafo 1 se “reconhece o direito de toda pessoa ter um
nível de vida adequado para si e sua família, inclusive uma
alimentação adequada”.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
rança alimentar” que se transforma em política pública com a posse do novo
presidente em 2003. nesse ano, toma posse também uma nova composição
do Consea, estrutura essa que passa a ser reproduzida nos níveis estadual
e municipal por todo o Brasil. em 2006 se aprova no Congresso nacional a
lei orgânica de Segurança alimentar (losan), que embora sancionada pelo
Presidente da república, até o momento não foi regulamentada pelo seu conselho de ministros.
60
Desafios para
uma política
de segurança
alimentar e
nutricional
integrada
a nova lei brasileira e outras que surgiram em países latino-americanos (argentina, equador e Guatemala) incorporaram os dois elementos mencionados
anteriormente: o conceito de direito humano à alimentação e o reconhecimento da alimentação como um direito. É nesse contexto que se colocam os
desafios para o pleno atendimento de uma política integrada que possa dar
conta dos vários aspectos envolvidos na questão da segurança alimentar e
nutricional.
conceitos envolvidos
Parece ser fundamental definir exatamente o nosso objeto de estudo. Por
um lado, estamos tratando de uma política que possa atender a um direito
universal, extensível a todos os brasileiros. Por outro, estamos nos referindo a um conjunto de cidadãos em situação emergencial que deveriam ter
prioridade no propósito de uma política. observa-se que pode haver uma
contradição entre esses dois elementos: os direitos são universais, mas as
políticas podem ser focalizadas nos públicos em situação de maior vulnerabilidade.
nesse sentido, temos que admitir que determinadas políticas devam ser vistas
como emergenciais e transitórias, atendendo às situações de maior vulnerabilidade, extinguindo-se logo em seguida. outras políticas, de alcance mais
geral, precisam ser permanentes, garantindo direitos, além de estarem acessíveis a toda a população, sem qualquer condicionalidade. o diagrama apresentado em seguida ilustra como se daria o funcionamento de uma política
voltada para atender às situações emergenciais e, ao mesmo tempo, garantir
direitos.
Figura 1 - Conceitos envolvidos em uma política pública
Fonte:Takagi & Silva, 2004.
iNseguRaNÇa aliMeNtaR
DesNutRiÇãO
OBesiDaDe
pOBReza
extReMa
fOMe
serviço social do Comércio |
observa-se que o que denominamos de fome é o chamado “núcleo duro” da
pobreza extrema e da insegurança alimentar. a garantia dos direitos sociais,
entre eles o direito à alimentação, se coloca em um plano superior atendendo
a toda a sociedade. Porém existem grupos em situação de risco que exigem
programas diferenciados. o que denominamos de segurança alimentar deve
abarcar todas as situações de risco, desde os que passam fome até aqueles
que são obesos, não vivem na pobreza extrema mas têm sérios problemas de
avitaminose e falta de nutrientes.
61
Desafios para
uma política
de segurança
alimentar e
nutricional
integrada
existem vários métodos que podem ser empregados para identificar uma população em situação de insegurança alimentar. Dependendo do método utilizado chegaremos a um resultado distinto e, portanto, a um diagnóstico diverso,
levando a que se prescrevam intervenções de política de cunho diferenciado.
em resumo, se utilizarmos estatísticas de indigência e pobreza para avaliar
a situação de insegurança alimentar da população, estaremos trabalhando
com indicadores de renda e, portanto, o remédio prescrito para combater a
pobreza vai ser a política de transferências de renda. o mesmo se pode afirmar com relação à situação de desnutrição, cujos indicadores são o Índice de
massa Corporal (imC), ou subconsumo de alimentos (em termos individuais),
ou a disponibilidade de alimentos, calculada pela Fao para o coletivo de uma
nação. Da mesma forma, podemos utilizar a chamada percepção de insegurança alimentar e construir um indicador com base na escala Brasileira de
insegurança alimentar (ebia), utilizada pelo iBGe na Pesquisa nacional por
amostra de Domicílios (Pnad) de 2004. no caso de utilização de qualquer um
desses indicadores, a política pública recomendada engloba o aumento da
produção de alimentos, mudanças na comercialização ou mesmo uma política ativa de saúde preventiva entre a população mais carente.
a Tabela 1 nos mostra as dificuldades que existem para eleger os públicos prioritários que deverão merecer a atenção dos programas sociais. nessa tabela se
observa que qualquer que seja o indicador escolhido irão ocorrer problemas de
focalização e os números tomados como base para a aplicação das políticas
podem apresentar diferenças enormes dependendo do método utilizado.
Tabela 1– Estimativa de públicos objetivos para programas
sociais: Brasil, 2004
levantamento
estimativa
Comentários
Déficit de Peso pelo Índice
de massa Corpórea
5,4% da população ou 3,8
milhões de pessoas com
idade superior a 20 anos
(PoF 2003)
não mede a pobreza e nem
a segurança alimentar. Só
pode ser aplicado à população
adulta. não leva em conta
problemas de avitaminose. não
trata do acesso aos alimentos.
Disponibilidade de alimentos
inferior ao mínimo de
1.900 kcal/dia (famílias)
Famílias com rendimento até
um salário mínimo per capita,
44,1% ou 77,6 milhões de
pessoas que consomem até
1.724 kcal per capita dia no
domicílio (PoF 2003)
Dificuldades de
contabilização. não leva em
conta a questão do acesso aos
alimentos.
Disponibilidade de alimentos
inferior ao mínimo de
1.900 kcal/dia (crianças)
3,7% de crianças desnutridas estimativa com base em
e 6% da população subnutrida indicadores secundários de
em 2003-05 – 11.7 milhões de renda.
pessoas (Fao)
Fonte: dados do autor.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
62
Desafios para
uma política
de segurança
alimentar e
nutricional
integrada
levantamento
estimativa
Comentários
insegurança alimentar
39,8% da população ou 72,1
milhões. Com insegurança
alimentar Grave: 7,7% da
população ou 13,9 milhões de
pessoas (Pnad 2004)
indicador objetivo com
o propósito de avaliar a
vulnerabilidade da população
à fome.
linha da Pobreza de r$ 120
per capita/ mês
25,4% da população ou 46,1
milhões de pessoas (Pnad
2004) entre aquelas que
declararam renda
Condicionada às diferenças
de valores de cestas de
consumo regionais. Deve
incluir a produção para o auto
consumo nas áreas rurais e a
economia com casa própria.
linha da indigência de US$
1,00 per capita/ dia
5,3% da população ou 9,6
idem, levando-se em conta
milhões (Pnad 2004) entre
também as dificuldades
aquelas que declararam renda oferecidas pela flutuação do
câmbio.
Um exame sumário da Tabela 1 apresenta diferentes estimativas para o público
alvo de uma política focalizada no combate à fome. Se tomarmos as estatísticas disponíveis da Pnad 2004, Pesquisa de orçamentos Familiares (PoF) de
2003, ou mesmo da Fao de 2003, vamos encontrar valores que variam de 46,1
milhões a 15,8 milhões de pessoas. Tudo vai depender do indicador utilizado
para a estimativa e do grau de gravidade a ser pesquisado.
políticas públicas e cidadania
Há uma evidente contradição no desenho das políticas públicas voltadas para
a garantia dos direitos sociais. Passado o período populista dos estados corporativistas dos anos 40 e 50, a américa latina só voltou a rediscutir os seus
instrumentos de política social nos anos 90 (ivo, 2006). a revisão das políticas
sociais colocou para dentro do estado, através de reformas constitucionais
ou outros processos, uma série de direitos que haviam sido conquistados
pela população ou por categorias sociais isoladas ao longo das décadas passadas. em um contexto de fragilidade financeira e ruptura social como o da
década de 90, a política social reapareceu de forma precária, e não mais
universal, privilegiando a extrema focalização dos benefícios.
nesse contexto, os direitos sociais se concretizaram de forma mercantilizada,
vigiada pelo estado e em troca de condicionalidades. De um lado rompeu-se
com os preceitos de atendimento de direitos, em que a política seria executada para todos os cidadãos, de forma individual e sem contrapartidas. De
outra parte, as políticas de focalização imprimiram maior eficiência ao estado, o que acabou por garantir a inclusão, em termos concretos, de um maior
número de famílias sob o guarda-chuva dessas mesmas políticas.
os organismos internacionais como o Banco mundial e o BiD, patrocinadores
dessa nova política social, costumam atribuir ao contexto dos anos 90 como
o de disseminador de uma nova geração de programas sociais. os elementos
básicos dessa nova política seriam os mecanismos diretos de transferência
de rendas e o desenvolvimento do capital humano. os programas seriam trabalhados sob uma base territorial, sob fiscalização de conselhos da sociedade civil e indicadores de acompanhamento. entretanto, no que diz respeito à
execução desses programas propriamente ditos, surge uma série de problemas descritos na literatura como a “captura dos recursos pelo poder local”,
serviço social do Comércio |
a falta de efetiva base territorial de apoio, a falta
de investimentos públicos complementares e
mesmo o efeito nulo desses programas no curto prazo, principalmente diante de baixas taxas
de crescimento econômico regional ou nacional
(cf.: GimeneZ, 2005; TakaGi, 2006, orTeGa &
menDonça, 2007).
Do ponto de vista da política de distribuição de
renda e de redução da pobreza, as transferências de renda condicionadas estão cumprindo o
seu papel. Já se podem observar alguns ganhos
significativos no Brasil e em outros países da
américa latina, que também foram beneficiados com o crescimento econômico e com a alta
dos preços das exportações. Contudo, considerando os indicadores de subnutrição da Fao, ou
mesmo o conjunto de indicadores subjetivos de
segurança alimentar, esse progresso é muito
mais lento.
Um exemplo concreto dessa imobilidade da redução da insegurança alimentar pode ser vista
no acompanhamento dos indicadores das metas e objetivos do milênio. o objetivo número
um do milênio, acordado na Conferência do
milênio por todos os países participantes, era
o de reduzir pela metade, até o ano de 2015,
a proporção de pessoas com fome e em situação de pobreza absoluta. esse objetivo guarda
uma semelhança com o objetivo estabelecido
na Cúpula mundial de alimentação de 1996,
que pretendia reduzir pela metade o número
de pessoas subnutridas até 2015. Tomando-se
como base as estatísticas de 1992, e utilizando
esses números para 1996, se considerou que
haveria um total mundial de 823 milhões de
indivíduos (20%) da população em situação de
subnutrição. no balanço de 2006, ultima edição do levantamento que a Fao realiza a cada
ano, encontra-se a estatística de 2003 mostrando que, após cinco anos do compromisso do
milênio, o nosso planeta convivia ainda com
820 milhões de subnutridos (17% da população), situação ainda muito distante das metas
de 410 milhões para 2015 (Fao, 2006).
apesar dos problemas, a américa latina tem
apresentado progressos, embora ainda esteja
bastante longe das metas fixadas para 2015. em
1992 a Fao estimava um contingente de 59,4 milhões de subnutridos na região (13%). em 2003
essas cifras haviam se reduzido para 52,4 milhões (10% da população). Dadas as dimensões
das suas populações, Brasil, Colômbia, méxico
e Venezuela reuniam 50% a mais dos subnutridos estimados pela Fao em 2003. no entanto, a
situação mais grave era a do Haiti, onde 47% da
população estava em situação de subnutrição
em 2003. evidentemente, a atualização dos dados de países como Brasil, méxico e Colômbia,
para 2007 ou 2008, deverão mostrar progressos
enormes tendo em vista o período de crescimento econômico e de implementação das políticas
de transferência de renda.
Uma bem-sucedida política de transferências
de renda representa um enorme alívio em
termos de pobreza, mas não se traduz diretamente em uma melhora dos indicadores de
segurança alimentar. Começando pelos indicadores de caráter antropométrico, ou de perfil clínico, observa-se que uma redução nos indicadores de pobreza extrema não se refletiu
diretamente sobre uma queda de indicadores
como a desnutrição crônica infantil ou mesmo a subnutrição (medida pelo indicador de
disponibilidade da Fao). Cruzando-se essas
informações verificamos também que, curiosamente, países com o mesmo nível de pobreza extrema apresentam enormes disparidades
em termos de subnutrição e desnutrição. Para
o ano de 2005 a Cepal (2007b, 31) nos informa que países como equador e nicarágua,
por exemplo, possuem a mesma porcentagem
de pobreza extrema na população (42%) com
níveis de subnutrição de 5% e 27%, respectivamente. Da mesma maneira, Paraguai, Bolívia
e Haiti possuem os mesmos níveis de pobreza
extrema (cerca de 30%), e as taxas de desnutrição crônica infantil são de 10%, 26% e 49%,
respectivamente.
política social e situação
macroeconômica
o crescimento dos últimos anos no Brasil, e principalmente na américa latina, levou a resultados
importantes em termos de redução da pobreza extrema na nossa região. novos empregos,
criados a partir do crescimento econômico, geraram novas oportunidades de trabalho e mais
arrecadação de impostos, favorecendo o gasto
social. entretanto observa-se que os próximos
anos serão de reversão do crescimento devido
aos efeitos da crise financeira internacional
desencadeada neste ano. a recessão mundial
deverá impactar diretamente nos preços das exportações e na demanda dos países desenvolvidos, diminuindo as possibilidades de dar seguimento ao processo de redução da pobreza.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
63
Desafios para
uma política
de segurança
alimentar e
nutricional
integrada
Como vimos anteriormente, não há uma relação direta e unívoca entre pobreza
e segurança alimentar, portanto mesmo com a redução da pobreza podemos
observar a permanência de alto nível de insegurança alimentar. Um exemplo
dessa situação foram os efeitos decorrentes da alta dos preços dos alimentos
durante os anos de 2007 e parte de 2008 na situação de insegurança alimentar das famílias. Segundo estimativas (cf. SeanaUer & SUr, 2001: 31), se os
preços agrícolas se mantivessem elevados, em torno de 20% sobre a base
atual até 2025, teríamos um acréscimo no número de pessoas subnutridas da
ordem de 440 milhões, o que aponta no sentido totalmente inverso das metas
fixadas pelos objetivos do milênio.
64
Desafios para
uma política
de segurança
alimentar e
nutricional
integrada
a melhor forma de combater os impactos na segurança alimentar, causados
por flutuações nos preços dos alimentos ou outras causas, seria a de trabalhar em uma política completa de segurança alimentar, levando-se em
conta não só os aspectos diretos do combate à pobreza, como também programas específicos de alimentação e combate à fome. Uma política social
mais abrangente abarcaria programas específicos de alimentação. no campo estrutural, trata-se de promover programas de produção, principalmente
da agricultura familiar, programas de segurança e qualidade dos alimentos,
reforma agrária nas áreas ociosas, manutenção de estoques de segurança
evitando oscilações nos preços dos alimentos ao consumidor, entre outros.
no campo específico da alimentação, deve-se fazer um esforço no sentido de
intensificar a gestão de programas de alimentação escolar (até o ensino médio), alimentação para população em situação de risco através de restaurantes populares, distribuição de alimentos pela ação dos bancos de alimentos,
combate à desnutrição infantil e outros programas voltados para públicos
específicos. em termos locais também há muito o que fazer, desenvolvendo
programas de agricultura urbana, novos sistemas de abastecimento e parcerias com supermercados para a comercialização de produtos regionais e
alimentos sazonais. enfim, trata-se de estruturar uma rede mais ampla de
programas que possa dar sustentação às políticas sociais.
na américa latina o volume de gastos em programas sociais ainda é baixo em
alguns países, mas vem aumentando a cada ano. estimativas da Cepal (2005)
demonstram que o gasto médio por habitante na nossa região é de apenas
US$ 440, sendo que o Brasil é um dos países nos quais o gasto per capita é o
mais elevado: US$ 860. Considera-se como nível ideal um montante equivalente a 15% do PiB para o gasto social, o que vem sendo atingido pelo Brasil
nos últimos anos. o nosso problema é que uma parte importante desse gasto
refere-se a pagamento de benefícios da previdência, aproximadamente um
terço do gasto social.
Tecnicamente o gasto para o pagamento de aposentadorias não poderia ser
considerado gasto público, uma vez que o governo estaria apenas devolvendo
à sociedade o que havia sido recolhido pelos contribuintes durante a sua vida
ativa. Todavia uma parte importante dos fundos da previdência vai para o pagamento de benefícios para trabalhadores que não contribuíram diretamente
com recolhimentos. esse é o caso dos mais de oito milhões de trabalhadores
rurais que não recolheram diretamente contribuições e que foram beneficiados pela Constituição Brasileira de 1988. infelizmente, nesse caso, o uso de
fundos da previdência pela população mais pobre acaba sendo amplamente superado pela destinação das aposentadorias para a população de renda
mais elevada, o que é natural dada a maior contribuição dos estratos de renda
mais elevada.
nos últimos cinco anos, o Brasil e a américa latina viveram uma situação
excepcional em termos macroeconômicos. Provavelmente diante da crise
financeira internacional de 2008, deveremos interromper um ciclo de cres-
serviço social do Comércio |
cimento em que o PiB per capita superou os 3%. Somente nos anos 70, durante o período do “milagre”, esses países cresceram a taxas tão elevadas. a
situação geral de indicadores positivos nos permite entrar em um período de
turbulência em situação privilegiada em termos de américa latina, pois: i) o
crescimento médio do PiB esteve dois pontos percentuais acima da média
mundial desde 2003; ii) quase todos os países estão praticando um superávit
primário e, para a média da região, ele esteve em 2% do PiB; iii) houve uma
melhora das contas fiscais (dívida pública abaixo de 40% do PiB para a média
da região); iv) o desemprego caiu, de forma inédita, ficando abaixo dos 9%
nos últimos três anos; v) o valor dos produtos exportados teve um aumento
de 36% entre 2000 e 2006.
65
Desafios para
uma política
de segurança
alimentar e
nutricional
integrada
em resumo, podemos observar que as condições macroeconômicas dos últimos anos prepararam as bases e favoreceram a possibilidade de se aprofundarem os investimentos sociais, reformulando sua destinação e, ao mesmo tempo, complementando os programas de transferência de renda com
programas voltados para a alimentação. não se trata de aumentar a carga
tributária para gastar mais (embora a arrecadação de impostos seja extremamente baixa em alguns países latino-americanos), e sim gastar promovendo
a rede de proteção social e de segurança alimentar a que nos referimos2.
elementos para uma análise multidimensional
Tendo constatado que a pobreza pode se apresentar de inúmeras maneiras e
que a situação de insegurança alimentar pode ser uma das manifestações
desse nível de pobreza, vamos avançar no sentido de estabelecer alguns elementos que possam dar conta de determinar os fatores de risco. Como vimos,
uma família pode possuir renda que, teoricamente, garanta sua habilitação
para o consumo de alimentos, mas, por meio de levantamentos de campo,
chegamos à conclusão de que existe um estado de insegurança alimentar.
Da mesma forma pode ocorrer que a família tenha acesso aos alimentos,
mas, devido às condições de saúde, ou mesmo à falta de informação sobre
esses alimentos, ocorrerem casos de desnutrição.
essas situações diversas mostram que o caminho é desenvolver alguns indicadores que possam explicar a maioria dos fatores de risco, identificando
claramente o que denominamos anteriormente de “núcleo duro” da pobreza
extrema e da insegurança alimentar. esses indicadores devem reunir informações da renda familiar, saúde, educação, condições de moradia e percepção de segurança alimentar3.
a Tabela 2 apresenta um conjunto desses indicadores, destacando-se a situação nos quatro primeiros decis da população brasileira, segundo a amostra
da onad, ou seja, entre os 40% mais pobres da base da pirâmide. essas informações são comparadas com o último decil, os 10% do topo da pirâmide
de renda brasileira. Para efeito de comparação acrescentamos também o 1%
dos mais ricos e mais pobres da população.
na média da américa latina a carga tributária tem girado em torno de 17% do PiB, o que é muito
abaixo dos 41% da União européia, 36% da oCDe e 26% dos estados Unidos. o Brasil é considerado
um caso excepcional com uma carga que supera os 30%, mas países como a Guatemala, Haiti,
equador ou Venezuela possuem uma carga tributária que se mantém há quatro décadas abaixo dos
10% do PiB (Cepal, 2007).
2
3
Para identificar melhor as condições de moradia, o iBGe trabalha na Pnad com o nível de carências
do domicílio. reconhece-se seis tipos de carências: 1) material não durável nas paredes, 2) material
não durável no teto, 3) mais de uma pessoa por quarto, 4) falta de acesso a água corrente, 5) falta de
acesso a esgoto, 6) falta de acesso a eletricidade.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Tabela 2 - Indicadores sociais: Brasil, 2004
66
Fonte dos dados brutos:
Pnad, 2004.
Décimos da distribuição de renda
Características
1-
1+
1º
Desafios para
uma política
de segurança
alimentar e
nutricional
integrada
2º
3º
Urbana Urbana
4º
10º
Urbana
Urbana
Urbana
Zona mais frequente
rural
rural
Proporção de domicílios na
zona urbana
0,40
0,40
0,48
0,51
0,54
0,55
0,50
Proporção de domicílios na
zona metropolitana
0,15
0,14
0,18
0,22
0,25
0,42
0,46
Proporção de domicílios na
zona rural
0,45
0,46
0,34
0,27
0,22
0,03
0,03
rendimento per capita médio
10,30
37,10
71,21
97,89
128,03
número médio de carências
2,15
2,05
1,42
1,12
0,89
0,10
0,05
número médio de crianças
com até 5 anos que não
frequentam escola ou creche
0,92
0,83
0,62
0,52
0,46
0,22
0,21
número médio de crianças
de 6 a 14 anos que não
frequentam escola ou creche
0,12
0,11
0,07
0,05
0,05
0,00
0,01
Proporção de pessoas sem
instrução
0,41
0,35
0,23
0,18
0,14
0,00
0,00
Proporção de pessoas da cor
branca ou amarela
0,25
0,27
0,31
0,37
0,40
0,78
0,83
Valor observado da
proporção de famílias em
insegurança alimentar (leve,
moderada ou grave)
0,914
0,850
0,712
0,603
0,524
0,049
0,005
Valor estimado da
probabilidade de a família
estar em insegurança
alimentar
0,977
0,875
0,718
0,602
0,503
0,035
0,011
1.382,45 3.632,98
observa-se pela Tabela 2 que há uma profunda desigualdade entre os estratos de renda mais baixa da população e o topo da pirâmide. as famílias de
renda mais baixa estão localizadas em zonas rurais ou em zonas urbanas
não metropolitanas, ao contrário das famílias mais ricas, domiciliadas nas
grandes cidades. entre os 10% mais ricos apenas 3% vivem na zona rural.
o rendimento familiar per capita dos mais pobres (estrato dos 10% mais pobres) é 134 vezes menor que o rendimento dos 10% superiores. entre as seis
carências pesquisadas, o número máximo encontrado, que está obviamente
no estrato de renda mais baixo, é apenas de duas carências. a questão da
educação também tem relevo: nos estratos de renda mais baixa há um contingente importante de crianças (até 5 anos) fora da creche e sem receber
serviços de saúde. a média é de quase uma criança por família no estrato
mais baixo, chegando a uma média de quase 0,5 criança no quarto decil. a
serviço social do Comércio |
situação é um pouco melhor com as crianças em idade escolar. a partir do
quarto decil, o número de crianças fora da escola é praticamente zero por
família, e o mesmo se pode afirmar em relação à proporção de pessoas sem
instrução, que chega a 35% no primeiro estrato. outra constatação é a de
que os domicílios mais pobres possuem uma esmagadora maioria de componentes na raça negra e parda, enquanto nos domicílios mais ricos a cor
predominante é a branca ou amarela.
67
Desafios para
uma política
de segurança
alimentar e
nutricional
integrada
Toda essa situação se reflete nos indicadores de segurança alimentar. entre
o 1% das famílias mais pobres, a porcentagem de domicílios considerados
em situação de insegurança alimentar atinge 91%, em comparação com o
1% mais rico. Calculando-se todos esses componentes, verificamos que a
probabilidade de um domicílio estar em situação de insegurança alimentar
é de 98% entre o 1% mais pobre, decrescendo à medida que melhoram as
condições de moradia, educação e renda. ainda assim, até o quarto decil,
a probabilidade de encontrarmos um domicílio em situação de insegurança
alimentar era maior que 50%.
na Tabela 3 mostramos o cruzamento das informações de segurança alimentar
(grave, moderada ou leve) com a linha de pobreza, medida a partir de meio
salário mínimo corrente na data de realização da pesquisa. observa-se que
o Brasil possuía um total de 13,6 milhões de indivíduos em situação de insegurança alimentar grave, dos quais um total de 9,6 milhões estava abaixo
da linha de pobreza (70,5% do total). Tomando-se os indivíduos das famílias
consideradas em situação de insegurança alimentar moderada, e os estratos
até três vezes a linha de pobreza, vamos identificar um contingente de 27
milhões de indivíduos, aos quais podemos denominar de “núcleo duro da
pobreza extrema e insegurança alimentar”.
Tabela 3 - Pobreza e segurança alimentar: Brasil, 2004
pobres
De 1 a 2 vezes
a linha de
pobreza
De 2 a 3 vezes
a linha de
pobreza
Mais de 3
vezes a linha
de pobreza
Fonte dos dados brutos:
Pnad, 2004.
total
Números absolutos (1.000)
Sa
11.601
24.069
20.713
49.875
106.257
ia leve
11.196
11.097
5.087
4.507
31.887
ia moderada
13.716
7.823
2.219
1.364
25.122
ia Grave
Total
9.643
2.888
752
387
13.670
46.156
45.877
28.771
56.133
176.937
Números Relativos (%)
Sa
10,9
22,7
19,5
46,9
100,0
ia leve
35,1
34,8
16,0
14,1
100,0
ia moderada
54,6
31,1
8,8
5,4
100,0
ia Grave
70,5
21,1
5,5
2,8
100,0
Total
26,1
25,9
16,3
31,7
100,0
a Tabela 3 nos indica que um total de 15,2% da população brasileira, ou 27 milhões de indivíduos, necessitariam de uma atenção especial propiciada por
programas públicos de combate à pobreza e à fome. Para esses indivíduos, a
simples transferência de renda através de programas como o Bolsa Família
não é suficiente, pois o nível de carências é elevado e a capacidade desses indivíduos de saírem da pobreza é bastante limitada, dado o seu grau de
instrução, atividade econômica exercida e localização do domicílio, também
com limitadas oportunidades econômicas (cf. Belik, 2007).
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
observa-se pela Tabela 3 que a pesquisa estimou também que 70,6 milhões de
brasileiros se declararam em situação de ia (grave, moderada ou leve), o que
representa quase 40% da população. São pessoas que encontram dificuldade
no seu dia a dia para conseguir alimentos, principalmente para a alimentação das crianças. Considerando que o Direito Universal à alimentação pode
e deve ser exercido a qualquer momento, o estado não pode desconsiderar
a enorme parcela de cidadãos que necessitam de apoio direto para comprar
gêneros mais baratos, garantir uma alimentação saudável nas escolas e no
trabalho, além de receber apoio direto em momentos de maior dificuldade.
68
Desafios para
uma política
de segurança
alimentar e
nutricional
integrada
conclusões
Vimos neste trabalho que o desenho de uma Política de Segurança alimentar
e nutricional passa por diversas dificuldades e que, em muitos casos, nosso
objeto de estudo acaba sendo trocado por outro. Com isso não se atinge o
verdadeiro objetivo de uma Política de Segurança alimentar e nutricional,
que é o de garantir o exercício do direito humano à alimentação.
a fome enquanto representação de uma situação de dificuldades está muito
clara para o cidadão comum. no entanto, quando se passa a uma observação de caráter científico ou como objeto de política pública, torna-se muito
difícil seguir em frente. Por esse motivo, tomou-se o conceito de Segurança
alimentar e nutricional, da forma como este foi definido na Cúpula mundial
da alimentação da Fao, como objeto principal de política pública. essa tarefa
foi facilitada pela Pnad-iBGe 2004 que aplicou sobre uma amostra de domicílios a escala Brasileira de insegurança alimentar (ebia), de modo a medir a
percepção das famílias diante desse problema.
o cruzamento dessas informações com outras referentes à renda das famílias
e outros dados sobre condições de moradia, saúde e educação nos permitiram identificar aquele que denominamos de “núcleo duro da pobreza extrema e insegurança alimentar”. Um exercício utilizando os resultados da
ebia e a linha de pobreza mostra que haveria um contingente de 27 milhões
de pessoas em situação de extremo risco. Para este grupo seriam dirigidas
prioritariamente as políticas de alimentação, embora o acesso ao alimento
barato e saudável devesse ser um direito garantido pelo estado.
em termos de américa latina, o Brasil vai caminhando rapidamente para o
atendimento desse direito, mas o mesmo não se verifica em toda a região. o
presente artigo destaca o fato de que em termos macroeconômicos e dentro
de uma perspectiva de médio e longo prazos vivemos um período de bons
resultados, o que permitiria à maior parte dos países elevarem o seu gasto
social, promovendo uma verdadeira rede de proteção social em apoio à produção e ao acesso aos alimentos.
serviço social do Comércio |
referências
69
BeliK, W. políticas públicas, pobreza rural e segurança alimentar. in: fagNaNi, e.,
pOCHMaNN, M. (Org). Mercado de trabalho, relações sindicais, pobreza e ajuste
fiscal. Campinas: Cesit, instituto de economia, unicamp, 2007. p. 180-195. (Debates
contemporâneos).
Desafios para
uma política
de segurança
alimentar e
nutricional
integrada
COHÉsiON social: inclusión y sentido de pertenencia em america latina y el Caribe. santiago, Chile: Cepal, 2007. (lC/g2335). Disponível em: <http://www.oei.es/quipu/cohesion_social_ Cepal.pdf>.
COMissãO eCONÔMiCa paRa a aMÉRiCa latiNa. Panorama social da América Latina. santiago, Chile, 2005.
CONfeReNCia De altO NiVel sOBRe la seguRiDaD aliMeNtaRia MuNDial: lOs
DesafÍOs Del CaMBiO CliMÁtiCO Y la BiOeNeRgÍa, 2008, Roma. Aumento de los
precios de los alimentos: hechos, perspectivas, impacto y acciones requeridas. Chile:
faO, 2008. Disponível em: <http://www.fao.org/fileadmin/user_upload/foodclimate/HlCdocs/HlC08-inf-1-s.pdf>.
fOOD aND agRiCultuRe ORgaNizatiON. The state of food in the world. Roma, 2006.
giMeNez, Denis M. as agências multilaterais e o gasto social. Carta Social e do Trabalho,
Campinas, p. 17-25, set./dez. 2005. Disponível em: http://www.eco.unicamp.b/cesit/boletim/versao_ integral4.pdf>.
HeRNÁNDez, s. p. et al. Hambre y cohesión social: cómo revertir la relación entre inequidad y desnutrición en américa latina. santiago, Chile: Cepal: faO: pMa, 2007. Disponível
em: < http://www.pensamiento ibero americano.org/ xnumeros/1/pdf/pensamientoiberoamericano-38.pdf>.
iVO, a. B. l. a. Reconversão da questão social e a retórica da pobreza nos anos 1990. in: CiMaNDaMORe, a.; DeaN, H.; siQueiRa, J. (Org.). A pobreza do Estado: reconsiderando
o papel do estado na luta contra a pobreza global. Buenos aires: Clacso, 2006. p. 61-85.
ORtega, a. C.; MeNDONÇa, N. C. estratégias de desenvolvimento rural no Brasil: continuidades e rupturas. in: ORtega, a. C.; alMeiDa filHO, N. (Org.). Desenvolvimento territorial, segurança alimentar e economia solidária. Campinas: alínea, 2007. p. 93-119.
seNaueR, B.; suR, M. ending global Hunger in the 21st century: projections of the number
of food insecure people. Review of Agricultural Economics, east lansing, Mi, v. 23, n. 1,
p. 68-81, 2001.
taKagi, M. A implantação da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil:
seus limites e desafios. 2006. tese (Doutorado)-instituto de economia, unicamp, Campinas, 2006.
taKagi, M.; silVa, J. g. da. fome zero: política pública e cidadania. in: eNCONtRO NaCiONal De eCONOMia pOlÍtiCa, 9., 2004, uberlândia, Mg. são paulo: sbep, 2004. Disponível em: <http://www.sep.org.br/ artigo/ixcongresso 50.p pdf?>.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
70
* Professor do Programa de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
agricultura e Sociedade, da Universidade Federal rural do rio de Janeiro
(CPDa/UFrrJ), onde coordena o Centro de referência em Segurança
alimentar e nutricional (San). É o atual Presidente do Conselho nacional
de Segurança alimentar e nutricional (Consea). economista por formação,
com mestrado e doutorado em economia pela Unicamp e autor dos livros:
Economic development and the food question in Latin America. Food policy;
Reestruturação do sistema agroalimentar: questões metodológicas e de
pesquisa; Abastecimento e segurança alimentar – os limites da liberalização;
Para além da produção: multifuncionalidade e agricultura familiar; Segurança
alimentar e nutricional.
Insegurança alimentar
no contexto
brasileiro renato maluf *
serviço social do Comércio |
71
Para abordar a insegurança alimentar no contexto
brasileiro é obrigatório iniciar tratando do contexto internacional cuja análise está difícil de
ser feita. avaliações ficam ultrapassadas em
poucos dias. Há dois meses, o quadro poderia
ser sintetizado como uma conjuntura – de fato,
não apenas uma conjuntura, pois era uma tendência que já vinha de alguns anos – de crescimento bastante significativo da demanda mundial por alimentos, associada a uma elevação
acelerada dos preços. esse foi o modo como se
expressou o que depois passou a ser chamado
de crise mundial dos alimentos.
o primeiro fator explicativo da crise, ressaltado por
quase todos os analistas, é a expansão econômica dos países emergentes, entre os quais se
destacam a China, a Índia e, em menor grau, o
Brasil. Uma característica importante desse crescimento foi ter sido acompanhado pelo aumento
de poder de compra dos setores mais pobres da
população, por causa de uma combinação de fatores relacionados com a recuperação do emprego e dos salários e com políticas sociais.
aqui já se coloca um ponto de interrogação sobre
a atual conjuntura e perspectivas futuras, pois
não há mais dúvidas de que a recente crise econômica, iniciada como uma crise da bolsa de
valores, assumiu características de uma importante crise de crédito e irá se refletir na desaceleração da economia mundial. Sua profundidade
ainda não é sabida, muito menos sua duração
ou se chegaremos a uma depressão econômica.
o fato é que esse componente de expansão econômica é um dos pontos da avaliação da crise
de alimentos, que precisa ser repensada, pois
devemos assistir a uma desaceleração da economia mundial.
É certo que a demanda por alimentos tem um patamar mínimo abaixo do qual ela só se estabelece em circunstâncias de conflito agudo. então,
embora essa demanda não acompanhe, linearmente, as oscilações da curva de crescimento
do produto, pode-se esperar algum impacto
negativo num ambiente de desaceleração mais
profunda ou de recessão mais grave por suas
repercussões no emprego e na renda, afetando,
consequentemente, a demanda dos alimentos,
mas também pelo que pode vir a comprometer
os programas sociais em curso, cujo papel é
fundamental. Desse modo, cabe perguntar em
que medida a atual conjuntura comprometerá
os avanços que vinham sendo obtidos no acesso à alimentação e, portanto, na promoção do
direito humano à alimentação e, mesmo, se estaremos frente a um retrocesso.
outro fator explicativo da crise mundial de alimentos
é a demanda não alimentar por produtos alimentares, a muito destacada e controversa agroenergia. o exemplo mais evidente da correlação entre
a utilização de bens alimentares para geração de
energia e a segurança alimentar é a produção de
etanol a partir do milho, nos estados Unidos. as
previsões para este ano são de que esse país utilize, para produzir etanol, um volume correspondente a 11% da produção mundial de milho. Trata-se
de um percentual significativo o suficiente para se
imaginar que, certamente, provocará impactos no
mercado desse produto. o exemplo menos evidente dessa correlação, mas não sem repercussões
sobre a segurança alimentar, é o modelo brasileiro
de etanol obtido a partir da cana-de-açúcar, e o uso
da soja para o biodiesel.
esse fator também pode vir a ser objeto de alguma
revisão, em função do contexto internacional.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
72
Insegurança
alimentar
no contexto
brasileiro
embora sem sabermos a extensão da recessão
econômica, algum impacto ela terá na demanda mundial por energia. importa observar, particularmente, o comportamento dos preços do
petróleo, referência principal para a viabilização
de fontes alternativas como a agroenergia. o
etanol se viabiliza como combustível em função
do que se passa com o petróleo. esse é outro
ponto de interrogação.
Contribuíram também para a alta dos preços dos
alimentos as quebras de safra ocorridas em várias partes do mundo, agravadas pelos baixos
níveis dos estoques mundiais. esse foi um fator importante na origem da crise e que pode
manter alguma incidência. Houve também um
componente de elevação nos custos dos produtos agroalimentares relacionado com a alta
nos preços do petróleo, que segue tendo repercussões nos preços finais apesar da recente
redução nesses preços. o petróleo tem pelo
menos duas implicações no custo dos alimentos, a saber, na produção agrícola em função
do elevado uso de agroquímicos e do padrão
de mecanização, e no custo de transporte desses bens. esse último fator se vê agravado por
uma das características do sistema alimentar
mundial que é a tendência de distanciamento,
no tempo e no espaço, da produção e do consumo. isso significa, entre outras coisas, o que
costumamos chamar de passeio das mercadorias. Portanto, o custo de transporte é relevante
e se faz, sobretudo, com derivados do petróleo.
Por fim, um fator com impacto bastante acentuado
na alta de preços: os principais produtos agroalimentares – como trigo, milho e soja, principalmente – se converteram em commodities. essa
palavra, já quase aportuguesada, designa mercadorias que permitem o comércio internacional padronizado e normatizado, são negociadas
em bolsas mundo afora, de modo que os títulos
referentes a essas mercadorias são objetos de
demanda como qualquer outro ativo financeiro.
isso fez com que a alimentação, que sempre foi
de alguma maneira um negócio, virasse objeto de especulação financeira por pessoas que
têm tanto interesse material neste ou naquele
alimento quanto um de nós poderia ter por não
importa que coisa, ou seja, nenhum.
os títulos emitidos com base nesses produtos
agrícolas constituem ativos financeiros cujas
oscilações de valor quase sempre refletem o
que se passa nos mercados dos demais ativos
financeiros, sem correspondência necessária
com o mundo dos bens físicos, embora reper-
serviço social do Comércio |
cuta sobre eles na forma de impactos nos preços dos produtos. Já disse que é preciso cautela
com as previsões, mas não há razão para esperar que retorne a especulação com mercadorias
agrícolas, bastante forte no início de 2008 e cujo
impacto já foi bastante reduzido.
o fato é que, até o ano passado, pela estimativa da
Fao, 75 milhões de famílias passaram a ter dificuldade de acesso à alimentação, juntando-se
aos 850 milhões da estimativa anterior. isso quer
dizer que o primeiro dos objetivos de desenvolvimento do milênio, apesar de modesto, não
só não está sendo cumprido como a situação
mundial voltou a se agravar, ao menos no último
ano. essa é uma média mundial que não reflete
a realidade diferenciada dos países. Já sabemos
que o Brasil e alguns outros países e regiões do
mundo são exceções a esse movimento mais
geral.
as pesquisas mostram que houve intenso processo de elevação dos preços dos alimentos, sobretudo dos lácteos, cereais e oleaginosos a partir
do segundo semestre de 2006. Desde meados de
2008 se observa uma inflexão dessa tendência.
a pergunta é: passado esse momento em que
a especulação financeira contribuiu para engordar a tendência altista dos preços – e parece
que ela sumiu em parte – em qual patamar esses preços irão se estabilizar? Se é que ocorrerá
uma estabilização. Daí decorre uma segunda e
fundamental questão: saber se, como resultado
desse processo, ocorrerá o encarecimento relativo da alimentação. ou seja, se estamos assistindo a uma recomposição de preços relativos
que tornará a alimentação mais cara.
muitos dizem, e é verdade, que uma parte desse
aumento de preços a que assistimos foi uma
recuperação de perdas sofridas pelos preços
agrícolas no passado como reflexo da conhecida tendência secular de queda desses preços em termos reais. no entanto, cabe verificar se essa recomposição de perdas passadas
se manterá e se os alimentos e a alimentação
estarão em outro patamar de preços relativos.
nesse caso, outras questões terão que ser levadas em conta.
estamos presenciando a reconstrução de um padrão de regulação nacional no âmbito agroalimentar. Por caminhos sempre difíceis, custosos
e dolorosos, parece estar se confirmando o que
muitos de nós dizíamos já no início dos anos 90:
que o comércio internacional não é fonte confiável de segurança alimentar. isso não quer dizer
que se deva desprezar ou desconhecer o papel
do comércio internacional, muito ao contrário.
no entanto, está evidente não haver qualquer
fundamento para as formulações que, equivocadamente, fazem crer na perspectiva de livre comércio, fluxo desimpedido de mercadorias etc.
segundo pesquisa do Dieese, aumentou nas
principais capitais estaduais entre 27% e 52%
nos doze meses encerrados em maio de 2008.
aumento da cesta básica em 52% em um ano
não é nada desprezível.
embora não se trate da mera recomposição do
padrão de intervenção do pós-guerra, os países
que são atores globais (estados Unidos, União
européia, Japão, China e Índia) estão reconstruindo instrumentos de regulação nacional, até
mesmo no interior da europa, tida como contraexemplo da regulação nacional. e parte da referida reconstrução se expressa na construção de
estratégias de segurança alimentar, basicamente na forma de apoio à produção doméstica e,
em alguns casos, na busca de fontes externas
de matéria-prima. a China é o principal exemplo, com uma estratégia bastante evidente de
assegurar fontes externas de matérias-primas,
dado o nível de demanda que se criou por lá.
É verdade também que todos os indicadores de
preços estão mostrando desaceleração, a partir
de julho e agosto. note-se que embora os preços
tenham parado de crescer, do ponto de vista da
população, a alimentação continua cara. retomando uma questão anterior, cabe observar se
estamos assistindo a uma recomposição de preços relativos com o encarecimento da alimentação, ou se a interrupção da alta virá acompanhada de um recuo dos preços aos patamares
antes vigentes.
no caso da américa latina e do Caribe, particularmente do mercosul, todos os países foram afetados pela inflação de preços dos alimentos, embora com intensidades bastante diferenciadas. a
primeira e imediata reação de quase todos foi o
que se chama de desgravação das importações,
isto é, redução de barreiras tarifárias e outros
constrangimentos visando agilizar e baratear as
importações com vistas a enfrentar, imediatamente, problemas de abastecimento interno.
Quanto aos países do mercosul, a discussão envolve outro elemento pelo fato de entre eles estarem os dois principais ganhadores no atual
contexto, como exportadores, que são o Brasil e
a argentina. então, a inserção do Brasil no mercosul está marcada, por um lado, pelo aumento
da sua participação no comércio mundial; por
outro lado, temos iniciativas ainda muito tímidas para pensar estratégias regionais. Já se começam a ter os primeiros sinais de interesse,
por parte dos países da região, na direção de
construir estratégias conjuntas de apoio à produção, de abastecimento e de enfrentamento
de questões que estão no âmbito da segurança
alimentar.
Sobre o Brasil, quero destacar três pontos. em
primeiro lugar, os impactos da inflação internacional de preços foram atenuados quando
comparados com outros países. não chegou a
haver desabastecimento e, muito menos, povo
se mobilizando nas ruas por alimentos, como
aconteceu em vários países. isso não quer dizer, porém, que a alta de preços interna foi desprezível. o custo de aquisição da cesta básica,
o segundo ponto é a integração do país no sistema global. o Brasil é um grande exportador
líquido de alimentos. em 2007, as exportações
agrícolas totais estavam na casa dos US$ 58
bilhões; parte significativa do aumento havido
nas exportações agrícolas mundiais nos últimos
anos concentrou-se na argentina e no Brasil. o
problema, aqui, diz respeito ao discurso hegemônico no país, presente em vários setores de
governo e fora dele, na imprensa etc., que dá a
entender que todos nós, enquanto país, somos
os beneficiários dessa oportunidade única: o
mundo precisa de comida, sabemos produzir e
somos competitivos, então, vamos faturar. Sabemos que não é bem assim.
Trata-se da perspectiva do mercador que quer se
beneficiar da conjuntura para vender mais. É
uma resposta possível que encontra fundamentos na realidade e legitimidade social. nem se
trata de fazer um discurso contrário às exportações, inclusive pelo papel que elas cumprem
no abastecimento de outros países. ressalto, no
entanto, que essa não é a única resposta possível e, mesmo ela, a resposta do mercador, deve
ser olhada com cuidado porque a exportação
não é um negócio que beneficia a todos. estudos mostram estarem elas também sob controle
de um reduzido número de grandes empresas
e corporações, como ocorre em todos os componentes do sistema alimentar global (insumos
agrícolas, industrialização de alimentos, distribuição-varejo).
Uma característica nem sempre destacada é que
temos, no Brasil, ao menos dois modelos de
agricultura, que são o do chamado agronegócio ou agricultura patronal e o do conjunto que
agrupamos na denominação de agricultura familiar. Para além de um modelo de agricultura –
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
73
Insegurança
alimentar
no contexto
brasileiro
74
Insegurança
alimentar
no contexto
brasileiro
de fato se trata de uma categoria sociopolítica –
a denominação agricultura familiar comporta
grande heterogeneidade dentro dela. observese que não estou descrevendo dois mundos
separados, que não se intercomunicam. Parcelas da agricultura familiar estão integradas em
cadeias agroindustriais, muitas participam do
processo exportador. De todo modo, essa característica confirma que a agricultura brasileira,
como as de outras partes do mundo, não é um
conjunto homogêneo que se beneficia, todo ele,
com o atual padrão de inserção internacional de
exportação.
Tomem-se como exemplo as negociações de um
acordo comercial, afinal não concluído, entre
a União europeia e o mercosul, que o Consea
acompanhou. Tivesse o Brasil feito passar a proposta dos grandes exportadores de zerar a tarifa de importação de leite – numa negociação
com o maior produtor mundial de lácteos com
pesados subsídios –, em troca de alguns poucos
percentuais de acesso ao mercado europeu, e a
consequência seria uma espécie de política de
terra arrasada para um grande número de pequenos agricultores produtores de leite no Brasil. esse exemplo mostra que não é uma única
agricultura que se beneficia.
o trigo constitui um caso paradigmático em nosso
país. Por razões que não há tempo para detalhar,
entre as quais se destaca a política de ajuda alimentar e venda subsidiada de excedentes dos
estados Unidos, o trigo se tornou – sem trocadilho – um bem de consumo de massa, apesar de
não estar inscrito entre os produtos que temos
aptidão de produzir e, consequentemente, sem
estar inscrito nos hábitos culturais da população
brasileira em geral até meados dos anos 1950. o
fato é que produtos derivados de trigo são consumidos, regular e massivamente, do oiapoque
ao Chuí. Chegamos perto da autossuficiência
nesse cultivo em 1986, ao custo anual de US$
1 bilhão em subsídios. então, por mais que a
embrapa tenha se dedicado a esse produto, em
2008 tivemos uma produção doméstica que mal
alcançou 50% da demanda, daí que somos importadores líquidos de um produto que, por sua
vez, constituiu um dos alicerces da construção
inicial do mercosul.
resta-me abordar um ponto fundamental, que diz
respeito aos instrumentos de regulação pública
dos mercados e de promoção do acesso aos alimentos. Temos enfatizado no Consea que um
dos aspectos mais graves da atual crise mundial
de alimentos é o despreparo dos governos para
serviço social do Comércio |
enfrentá-la. Duas décadas após o lançamento
do Consenso de Washington e da promoção
(imposição) do que se chamou de ajuste estrutural das economias do Sul, com a liberalização
comercial e desregulamentação dos mercados,
nota-se a reconstrução de um padrão de regulação nacional já mencionado antes. Governos
com um mínimo de senso de responsabilidade
e capacidade político-institucional não deixarão
a segurança alimentar do seu país ao sabor do
que se passa nos mercados mundiais. ocorre
que nem todos os países têm esse poder e capacidade. Há países, sobretudo do Hemisfério
Sul, que ficaram duas décadas desmontando os
instrumentos que tinham.
o Brasil fez isso também, mas é um país com situação diferenciada por ter um marco políticoinstitucional e competência estabelecida para
reconstruir tais instrumentos ou instituir novos.
Tome-se como exemplo o que ocorreu com a estrutura de entrepostos difundida pelo país, sucateada e alienada de qualquer significado como
instrumento de política pública, afora os sabidos problemas de corrupção que enfrentou. nos
últimos anos, os entrepostos se tornaram imobiliárias, agências de aluguel de stands a permissionários, sem funções relevantes em termos de
uma política de abastecimento alimentar, aliás,
inexistente. É possível reconstruí-la, e a Companhia nacional de abastecimento (Conab) tem
programa nessa área. então, nós temos um
marco político-institucional, equipamentos e
investimentos realizados que permitem retomar
o papel regulador e mesmo indutor do estado
brasileiro, claro, na direção de um modelo justo
e sustentável, e não como fez no passado.
infelizmente, isso não é verdade para todos os países, particularmente para aqueles que mal participaram da festa anterior e agora estão tendo
que se defrontar com uma conjuntura em que a
disponibilidade de instrumentos de intervenção
é fundamental. Se alguma cooperação internacional é fundamental nos dias de hoje, é uma
cooperação que contribui para criar capacidades de formulação de políticas públicas, com
participação social. o Brasil tem atuado nessa
direção, felizmente, em alguns programas nos
quais adquirimos alguma competência, sobretudo no campo alimentar e nutricional.
antes de entrar na parte dos desafios, quero
abordar, brevemente, a questão da segurança alimentar e nutricional no Brasil. Um ponto
que considero importante é termos um enfoque
brasileiro de segurança alimentar construído
nos últimos vinte e poucos anos, o que não tem
qualquer sentido xenófobo, já que se alimentou
do debate mundial. essa especificação significa apenas que há particularidades em relação a
outros enfoques, a começar pela denominação
alimentar e nutricional.
essa construção tem duas referências principais.
Primeiro, a segurança alimentar e nutricional
é entendida como objetivo de política pública
orientado por dois princípios: o direito humano
à alimentação adequada e a soberania alimentar. essas referências estão inscritas na lei orgânica que, felizmente, conseguimos aprovar. não
é óbvio ter esse tipo de definição inscrita em
lei, ainda que isso nem sempre assegure muita
coisa. a ideia é que o objetivo da San seja perseguido com políticas orientadas por uma visão
de direito na sua concepção e na maneira de
implementação e que reflita o direito dos povos
decidirem, soberanamente, o que querem fazer
neste campo: como querem e o que querem
produzir como alimentos, como querem consumi-los e que hábitos desejam valorizar.
a segunda característica do enfoque é a intersetorialidade das ações e programas junto à participação social na sua formulação, implementação e monitoramento. Partimos da premissa
de que a condição alimentar e nutricional de indivíduos e de famílias tem múltiplas dimensões
e deve ser tratada dessa forma, atacando-se,
sempre que possível de maneira coordenada e
simultânea, essas múltiplas dimensões. e isso
requer ações integradas, que implicam o difícil
exercício da intersetorialidade. Qualquer pessoa
que já lidou com o governo sabe como é difícil a
construção da intersetorialidade. Para ser justo,
essa dificuldade não é exclusividade dos governos. Qualquer de nós, da universidade, sabe o
que é praticar a interdisciplinaridade. É um desafio muito parecido. em ambos os casos, aliás,
envolvendo compartilhar recursos de poder.
além do caráter intersetorial, nossa construção do
enfoque de San requer, sobretudo, participação
social na formulação das políticas públicas. essa
perspectiva de participação expressa uma tendência que se difundiu no campo das políticas
públicas, terreno no qual o Brasil tem avançado
bastante, acompanhando o que ocorre em várias
partes do mundo.
Falou-se da escala Brasileira de insegurança
alimentar (ebia), que é uma adaptação para o
Brasil do conhecido método desenvolvido na
Universidade de Cornell e utilizada pelo Departamento de agricultura dos estados Unidos. a
primeira e, até o momento, única pesquisa nacional com essa referência foi feita pela Pesquisa nacional por amostra de Domicílio (Pnad) de
2004, e tem esses números: 65,2% de domicílios
são considerados em segurança alimentar; 16%
têm insegurança alimentar leve, quando a qualidade da alimentação começa a se ver comprometida; em insegurança alimentar moderada
temos 12%, quando há restrições quantitativas;
e em insegurança alimentar grave estão 18%,
significando que alguém da família vivenciou
experiência de fome no período considerado
pela pesquisa.
esse é um indicador muito interessante por várias razões. Fazendo uso de uma análise feita
pelas colegas ana Segall e letícia marin leon,
da Unicamp, é possível estabelecer uma comparação, considerando a mesma amostra, entre
a Pnad-2004 e a Pnad-2006, que pesquisou os
domicílios com mulheres em idade fértil. essa
comparação revela um movimento de melhoria
gradativa na direção de condições mais amenas
de insegurança alimentar. assim, a insegurança
alimentar leve nessas famílias cresceu em função da redução da insegurança alimentar moderada e grave. no tocante, especificamente, às
famílias atendidas pelo Programa Bolsa Família,
fica absolutamente evidente a melhoria, com a
insegurança alimentar grave caindo em 25,3%
nos dois anos que separam as duas pesquisas.
ao lado do papel central das políticas sociais,
quero acrescentar o apoio da agricultura familiar. Parte da atenuação do impacto da inflação
internacional no Brasil se deveu ao papel cumprido pela agricultura de base familiar no abastecimento alimentar do país.
esclareça-se que a política social não se resume
ao Programa Bolsa Família. integram as políticas sociais a recuperação do poder de compra
do salário mínimo, cujo impacto foi reforçado
pela recuperação do emprego, a Previdência
Social e os Benefícios de Prestação Continuada,
além de outros. aliás, esse conjunto representa várias vezes o volume dos recursos transferidos pelo Bolsa Família. Por isso, é preciso ter
o cuidado de considerar o conjunto das políticas sociais. ressalte-se que a existência de um
programa como o Bolsa Família é uma questão
de promover direitos (à alimentação e à cidadania), mas não se deve subestimar o papel das
demais políticas mencionadas que, a propósito,
são uma expressão de direitos institucionalizados. Portanto, estão mais protegidas frente às
mudanças de prioridades dos governos.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
75
Insegurança
alimentar
no contexto
brasileiro
76
Insegurança
alimentar
no contexto
brasileiro
o marco institucional que temos trabalhado está
definido na lei orgânica da San (losan) que
prevê a construção de um Sistema nacional de
San. esse sistema se baseia na realização periódica de conferências (nacionais, estaduais e
municipais), um momento fundamental de consulta social, onde as grandes diretrizes são aprovadas. integram-no os Conseas nas três esferas,
com o papel de transformar essas diretrizes em
propostas de governo. a Câmara interministerial de San, na esfera federal, constitui a principal novidade da lei por criar um órgão até então
inexistente, cujo papel é transformar essas proposições em programas públicos. De fato, pode
transformá-los ou não em programas de governo, já que o Consea é um conselho consultivo.
espera-se a criação de órgãos intersecretariais
análogos, nas esferas estadual e municipal.
Costumo dizer que a natureza consultiva do
Consea é o preço da intersetorialidade. o Conselho reúne 19 ministérios e 38 representantes
da sociedade civil, e é presidido por um desses
representantes da sociedade. não haveria como
um Conselho como este impor as suas deliberações sobre outros sistemas de política pública como, por exemplo, o sistema de saúde, que
possui suas próprias instâncias deliberativas
com participação social.
esperamos e estamos neste momento trabalhando na direção da construção dessa mesma estrutura nos estados e municípios. Sem sistemas
estaduais e municipais não existirá um sistema
nacional num país com as características do
Brasil.
Para finalizar, abordarei alguns desafios. Dizer
que se trata de uma crise sistêmica, do sistema alimentar global, pode ser entendido como
um diagnóstico do tipo: “o mundo vai virar de
pernas para o ar”. ainda que não se trate disso,
também não podemos simplificar a discussão
como se fosse um mero desajuste da oferta e
da demanda requerendo mais produção, tendo
países como o Brasil e a argentina – que estão
entre os grandes beneficiários dessa conjuntura
– pensando em fazer mais do mesmo: pisar no
acelerador da produção com mais tecnologia,
mais monocultura, mais agroquímicos, mais
mecanização, mais produtividade por área a
qualquer custo.
está em questão a organização do sistema global
de alimentação atual integrando os países do
mundo. nada contra a integração e o diálogo
entre culturas e países, porém, não é interessante uma integração com significado apenas
serviço social do Comércio |
econômico, assentada na falsa premissa da liberalização comercial. De fato, ela coloca a produção, a distribuição e o consumo de alimentos
no mundo sob controle da regulação privada de
reduzido número de grandes corporações e também das políticas dos principais atores globais.
este é o momento de rediscutir a organização
do sistema alimentar global.
está em discussão também e, principalmente, o
modelo de agricultura que está na base desse
sistema. as razões ambientais invocadas no
questionamento do modelo agrícola nem carecem de muita explicação. Destaque-se a valorização da diversidade e a forma de ocupar o
espaço que remetem, de fato, à própria organização da sociedade. Temos defendido que em
lugar de mais do mesmo precisamos implementar ações, estratégias e políticas que fortaleçam
movimentos em direção contrária. entre elas,
chamo a atenção para a perspectiva de reaproximar a produção e o consumo por meio da
valorização de circuitos regionais de produção,
distribuição e consumo fundados em pequenos
e médios empreendimentos.
o Consea constituiu um grupo de trabalho para
analisar a questão do acesso à água que, para
nós, deve ser entendida como alimento. Para
minha surpresa, constatamos que mais de 50%
do consumo de água no Brasil é de responsabilidade da atividade agrícola. Considerando que
caminhamos na direção de escassez ou de restrição do acesso à água, não é pouca coisa o
que esse dado revela sobre a contradição entre
o modelo agrícola e as perspectivas futuras do
planeta.
o segundo desafio diz respeito ao despreparo
político-institucional dos governos. o Brasil
está tentando construir um Sistema nacional
de San, construção que não está pré-determinada em lugar algum. isto é, há uma lei à qual
os governos e os agentes sociais podem ou não
querer dar consequência prática. Como já disse,
está no plano político-institucional um dos principais desafios. Penso, sobretudo, nos países da
áfrica e em alguns países da américa latina que
estão sob risco de ficar de fora, novamente, do
jogo internacional, jogo que volta a contar com
o fortalecimento de instrumentos de regulação
nacionais.
não nego que fiquei satisfeito com a não-conclusão da rodada Doha da organização mundial
do Comércio (omC), porque nunca achei que os
termos em que ela está sendo conduzida representassem solução para as questões mais rele-
vantes do momento atual. Parece-me ter ficado
evidente que as negociações da omC terão que
ser recontextualizadas, pois o problema não se
limita à suposta intransigência desse ou daquele
país sobre pontos do acordo, como anunciado.
Tome-se a última tentativa de acordo. a recusa
da Índia, em discordância direta com os estados Unidos, em aceitar a fixação de um elevado
percentual de aumento das importações antes
de poder acionar mecanismos de salvaguarda,
significa que ela não abre mão dos instrumentos de proteção da sua agricultura. e isso é o
que todos os países estão fazendo.
o terceiro desafio deriva da acelerada urbanização gerando crescente demanda de alimentos,
com duas implicações: uma no campo da dieta
alimentar e outra na pressão sobre o meio ambiente. o atual modelo de produzir e consumir
alimentos está em questão, também, por essas
razões. Quanto a produção, distribuição e consumo, mencionei antes as cadeias e circuitos
regionais e os modelos agrícolas de base familiar. esta contraposição não pretende reproduzir
a antiga dicotomia atrasado x moderno, mas diz
respeito à maneira de produzir e de se relacionar com a natureza, com os recursos naturais e
com a biodiversidade.
estamos celebrando, em 2008, o centenário do
nascimento de Josué de Castro, esse grande
brasileiro. Para ele, o alimento é o principal elo
do ser humano com o quadro regional em que
vive. Josué dizia, em 1946, que os alimentos são
a principal porta de entrada do estudo da ecologia. relembrei Josué de Castro por causa da
discussão sobre biodiversidade, tema crucial.
a propósito, estudos têm estabelecido interessante correlação entre perfil nutricional, dieta e
biodiversidade para mostrar como o comprometimento da biodiversidade interfere na diversidade da dieta e no perfil nutricional.
não poderia deixar de mencionar a questão das
mudanças climáticas, inclusive em relação ao
ponto anterior extraído de Josué de Castro. Um
dos impactos já esperados das alterações climáticas é uma redistribuição espacial e territorial da produção. isso me leva a perguntar como
fica a relação do ser humano com o ambiente
em que vive num contexto de mutação dessa
grandeza.
Cabe uma observação específica sobre as famílias
mais pobres da população, em relação às quais
seguem se colocando questões de acesso aos
alimentos e de hábitos alimentares. acho que
temos avanços a comemorar, dados os bons re-
sultados que vêm sendo obtidos na ampliação
do acesso aos alimentos no Brasil. Porém, todos
nós sabemos que vivemos numa sociedade que
é uma infernal máquina de geração de desigualdades. e o Brasil sempre foi exemplar na capacidade de gerar desigualdades. então, valorizar o
que vem sendo conseguido não significa desconhecer o papel central de dispor de políticas públicas permanentes, orientadas pelo enfoque de
assegurar direitos, fator crucial para garantir o
acesso à alimentação. Tais políticas devem, preferencialmente, ser acompanhadas de outras
ações que tratem não apenas da emancipação
das famílias em relação à sua dependência da
transferência de renda, mas dos hábitos alimentares. Como revelou a pesquisa recém concluída pelo instituto Brasileiro de análises Sociais
e econômicas (ibase) relacionando o Bolsa Família com o acesso à alimentação, quando as
famílias mais pobres passam a ter acesso à renda elas tendem a reproduzir o mesmo padrão
alimentar daqueles que dispõem de renda que,
como sabemos, está repleto de problemas.
ao final de minha apresentação no Seminário,
recebi uma pergunta sobre quais seriam as alternativas ou as diretrizes de uma reconstrução
regulatória, cuja resposta, por achar pertinente,
reproduzo aqui. o contexto atual dificulta oferecer respostas precisas e envolve alguma especulação. Começo pelo plano internacional. Disse
que as negociações na omC têm que ser recontextualizadas, o que significa supor que a omC
continua sendo um fórum capaz de ordenar os
fluxos internacionais. isso também não está assegurado. o mundo do pós-guerra passou por
um primeiro momento, nos anos 1940-70, que
alguns estudiosos chamaram de regime alimentar do excedente, construído sobre a regulação
nacional e o forte peso das políticas adotadas
pelos estados Unidos e a atual União europeia.
Guardadas as proporções, o Brasil também implementou políticas nacionais ativas de crédito,
envolvendo subsídios e proteção de mercado. a
regulação internacional tinha por base a regulação nacional, de modo que o máximo que se
conseguia era um acordo de tarifas como o Gatt
(acordo geral sobre pautas aduaneiras e comércio), um acordo e não uma organização.
esperava-se que a omC representasse uma etapa
superior das relações comerciais internacionais,
conformando o espaço multilateral necessário
para normatizar as relações comerciais, orientado pela perspectiva de crescente liberalização.
então, foram definidas três referências, no entor-
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
77
Insegurança
alimentar
no contexto
brasileiro
78
Insegurança
alimentar
no contexto
brasileiro
no das quais se dão as negociações de acordos
multilaterais na omC: medidas de apoio doméstico, subsídios à exportação e proteção de mercado. É fato que importantes participantes do
comércio internacional, como o próprio Brasil,
têm um perfil de comércio multilateral. ocorre,
porém, que as relações internacionais não são
assim, elas têm um importante componente bilateral, têm mão e contramão e se constroem
por acordos que envolvem reciprocidade. então,
como estabelecer regras multilaterais para relações que não são apenas multilaterais, mesmo
que os países tenham destinos múltiplos para
suas exportações?
além disso, o sistema alimentar mundial tem
seus principais componentes sob controle de
não mais do que meia dúzia de grandes corporações que controlam os agroquímicos todos,
ou a exportação de grãos, a produção industrial de alimentos ou ainda o varejo. Veja-se o
que aconteceu com a distribuição e o varejo no
mundo, o Brasil incluído, controlado por um reduzido número de grandes redes. esse sistema,
sob forte regulação privada, determina o abastecimento alimentar. note-se que está ocorrendo
com os alimentos o que já é uma característica
típica das relações industriais, a saber, elevado
percentual de transações intrafirmas no plano
internacional, outro elemento que nega o caráter supostamente livre e aberto do comércio
internacional.
Portanto, embora a omC não seja uma experiência
esgotada, ao contrário, ainda envolve elementos
de construção, é claro que ela enfrenta muitas
dificuldades para acordar regras num sistema
com as características apontadas, ao que se
soma a reconstrução de padrões nacionais. Se é
para manter uma instância multilateral, como é
a omC, alguns de seus fundamentos devem ser
revistos, sobretudo agora que os atores globais
estão no centro de uma profunda crise internacional. a maioria dos países deve caminhar na
direção de reconstruir instrumentos nacionais,
embora não seja uma reconstrução do padrão
de proteção do pós-guerra.
isso coloca a necessidade de se retomar a discussão sobre abastecimento alimentar, e será
muita irresponsabilidade se o Brasil não reconstruir uma política nacional de abastecimento. o
Consea já propôs isso várias vezes, com a perspectiva de promover o acesso à alimentação
adequada e saudável simultaneamente à promoção de formas de agricultura familiar. a receita mais do mesmo tem fôlego curto.
serviço social do Comércio |
Há também a questão da integração regional, já
que muitas políticas públicas, bem como as
estratégias dos atores relevantes, é regional. a
integração cumpre papel inclusive no tema do
abastecimento alimentar, porém, até agora pouco avançamos nesse campo. Considero que devemos nos perguntar qual deve ser o papel dos
blocos regionais, em particular o mercosul, nesse reordenamento global.
Chegando, por fim, à implantação do Sistema
nacional de San no Brasil, ela enfrenta alguns
obstáculos. a começar pelo fato de a referência
de segurança alimentar e nutricional no Brasil
ainda estar em construção. Todo e qualquer
objetivo de política pública é passível de várias
acepções, dependendo de quem o está utilizando. nossa construção de San não é unânime
na sociedade, sendo preciso consolidar essa
visão que fala de direito humano, de soberania
alimentar, que privilegia os mais pobres, os pequenos empreendimentos, as produções alternativas, os circuitos regionais etc. ela está na
contramão das proposições dominantes ou hegemônicas.
o segundo desafio, ao lado de criar essa referência, diz respeito à sensibilização dos governantes. não está escrito em lugar algum, com
poder mandatório, que é preciso promover a
San. nós ainda não conseguimos introduzir no
artigo 6º da Constituição Brasileira o direito à
alimentação junto aos demais direitos de todos
os brasileiros e brasileiras. nossa lei, chamada de lei orgânica da Segurança alimentar, de
fato é uma lei ordinária no sentido legislativo
do termo, podendo ser modificada ou mesmo
suplantada por outra lei. esperamos que o Congresso nacional vote uma emenda constitucional com este objetivo, que está tramitando há
uns dez anos ou mais. isso acontecendo, nossa
lei da San passará a regulamentar um princípio constitucional, como ocorre, por exemplo,
com a educação e a saúde. Quer dizer, pode-se
investir mais ou menos em educação e saúde,
pode-se atuar de um modo ou de outro, mas
não se pode deixar de cumprir com o que está
na Constituição.
Veja-se o Consea. ele existiu por dois anos, em
1993 e 1994, e no início do governo de Fernando Henrique Cardoso a experiência foi abortada
dando lugar a outra coisa que foi o Comunidade
Solidária. isso pode acontecer de novo. aliás,
o próprio Presidente da república manifestou
essa preocupação em plenária do Consea. essa
característica revela uma fragilidade institucio-
nal que precisaria avançar na definição constitucional e, a partir dela, criar não uma certeza
de irreversibilidade, sempre difícil, mas ao menos melhores condições de continuidade.
o terceiro desafio é o convencimento dos governadores estaduais. nós estamos neste momento investindo forte nos governos estaduais, começando por despartidarizar a questão da San.
no início dizia-se que era “coisa do lula, do PT”.
acho que já avançamos muito na direção de superar isso. É preciso que todos compreendam
que trata-se de uma questão da sociedade. mais
do que isso, queremos que seja não uma questão de governo, mas sim uma questão de estado, com o mesmo estatuto que outras têm.
Por fim, temos que dar concretude a algumas dessas definições. Por bons e maus motivos, estamos assistindo a uma saída da fome do primeiro
plano do debate nacional. os bons motivos se
devem aos êxitos das políticas; os maus motivos dizem respeito ao reingresso, pelas portas
dos fundos, do economicismo dos anos 1960-70:
crescimento econômico é o que interessa, o resto é o resto. Hoje escutamos falar de Programa
de aceleração do Crescimento (PaC) para qualquer coisa. Um economicismo insuportável volta a ganhar espaço. Temos o desafio não só de
impedir que as questões da fome e da desigualdade saiam de cena, como também acrescentar outras questões. noto que quase um terço
da população norte-americana, país mais rico
do mundo, depende de um programa de ajuda
para ter acesso aos alimentos, o Food Stamp Program. Portanto, não se pode deixar sair de cena
a fome. além disso, temos que trabalhar as referências da alimentação saudável e do alimento
limpo, que permitem dar à segurança alimentar
e nutricional uma tradução mais concreta.
tema nacional de San pode ajudar nisso. ninguém diria que é contrário ao direito humano à
alimentação, o que nos leva a pensar que se trata de um consenso absoluto. no entanto, quando se discute o que quer dizer, concretamente,
materializar esse direito, o dissenso começa a
se estabelecer. esse é outro caminho que o sistema deveria tomar, propondo instrumentos de
exigibilidade do direito à alimentação.
no que diz respeito ao vasto campo das políticas públicas, temos tido conquistas importantes. Várias proposições do Consea têm se
materializado em programas notáveis, como
são os casos do Programa de aquisição de alimentos da agricultura Familiar e dos avanços
esperados com o Projeto de lei do Programa
nacional de alimentação escolar, que aguarda aprovação pelo Congresso nacional. Temos
conseguido construir boas referências, sendo necessário agora dar perenidade às ações
e programas.
nosso irmão mais velho, o Sistema Único de
Saúde (SUS), levou quase vinte anos para ser
construído e, em muitos aspectos, ainda segue em construção. nós não chegamos a ter,
propriamente, um partido da San – como se
dizia haver um partido dos sanitaristas – mas
já há alguma competência estabelecida no
país, nos governos e nos movimentos sociais:
a pesquisa nas universidades aumentou, o
iBGe colocou a San entre seus indicadores
etc. a atual conjuntura internacional também
está contribuindo, infelizmente, por maus motivos. ninguém mais brinca com a questão dos
alimentos e da alimentação. Talvez estejamos,
mesmo, conseguindo construir um campo que
não se reverta. resta ver se a construção do
sistema chegará lá.
no caso do direito humano à alimentação, há que
se traduzir para a população essa ideia e o Sis-
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
79
Insegurança
alimentar
no contexto
brasileiro
80
* Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em economia
(PPGe) e professora adjunta da Faculdade de economia da Universidade Federal Fluminense, com mestrado em economia pela Universidade Federal do rio de Janeiro e doutorado em economia internacional
pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Foi professora
convidada nas Universidades de Paris-Dauphine, Paris-nord e escola
de Ciências Políticas de Paris (Sciences Po). Trabalhou como consultora para diversos organismos nacionais e internacionais, como ipea,
Cepal, iTC (omC/Unctad).
Algumas notas
sobre segurança
alimentar e comércio
internacional marta dos reis castilho*
1
este trabalho contou com o apoio do bolsista de iniciação
científica Bruno Poses.
1
serviço social do Comércio |
81
o comércio internacional ocupa um papel central na questão da segurança alimentar devido
a diversos aspectos. o mais importante é, sem
dúvida, sua relação com as quantidades de alimentos ofertados domesticamente. Diretamente, o mercado internacional pode complementar
a oferta doméstica de alimentos, por meio das
importações, ou auxiliar no escoamento de excedentes de produção via exportações. indiretamente, a quantidade será afetada pelos preços
dos alimentos, que são, em grande parte, determinados no mercado internacional.
os preços dos alimentos no mercado doméstico –
que são negociados como commodities no mercado internacional – refletem em grande medida os preços internacionais, convertidos pela
taxa de câmbio e acrescidos de tarifas e outras
taxas incidentes sobre os fluxos de importação
(no caso das exportações, os impostos têm um
efeito redutor sobre o preço doméstico).
Daí, percebe-se que, pelo lado das importações,
a quantidade adquirida do exterior dependerá
não somente do preço do produto no mercado
internacional, mas também da taxa de câmbio
e da política comercial do país em questão. a
taxa de câmbio, cujo valor depende de outros
tantos fatores que fogem à presente análise e
também à esfera da produção de bens, pode
imprimir uma certa volatilidade e incerteza aos
preços dos alimentos, o que é extremamente
relevante do ponto de vista de segurança alimentar. Já a política comercial pode, através
de tarifas aduaneiras e tantas outras chamadas barreiras não-tarifárias (tais como normas
sanitárias, restrições quantitativas ou medidas
administrativas), encarecer o produto estrangeiro, protegendo, por um lado, o produtor
doméstico mas, por outro, afetando as possibilidades de compra dos consumidores. Veremos adiante como determinadas medidas são
usadas em casos específicos e suas diversas
motivações.
Vale ressaltar que a especulação nos mercados
internacionais de bens e finanças intervém na
formação dos preços internacionais dos alimentos e na taxa de câmbio, agravando o grau de
incerteza e volatilidade mencionados acima. a
especulação tem sido, inclusive, um dos fatores
apontados para explicar a atual crise internacional de alimentos, como veremos adiante.
Pelo lado das exportações, os preços internacionais determinam qual a parte da produção que
será dirigida para os mercados externos. logicamente, o produtor preferirá vender sua produção no mercado onde sua remuneração é maior.
Se ele tem, então, a possibilidade de vender sua
produção no mercado externo, somente ofertará
no mercado doméstico se puder obter preço semelhante àquele vigente no mercado internacional. ou seja, em face de um aumento de preços
internacionais, ou ele passa a privilegiar as exportações ou ele repassa o aumento de preços
para o mercado doméstico.
em suma, esses diversos canais de transmissão
entre os mercados doméstico e internacional fazem do comércio exterior um tema central para
a questão da segurança alimentar, que é muitas vezes apresentado como um dilema devido
principalmente às flutuações de preços e aos
riscos de desabastecimento. Porém, o comércio
exterior não deve ser visto necessariamente em
oposição ao mercado doméstico do ponto de
vista da segurança alimentar: depende de como
o comércio internacional é visto e regulado. as
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
82
Algumas notas
sobre segurança
alimentar
e comércio
internacional
próximas seções tratam de experiências internacionais que mostram como os instrumentos
de política comercial podem auxiliar na garantia
da oferta doméstica de alimentos.
políticas comerciais e segurança
alimentar
os instrumentos comerciais são usados frequentemente com objetivos que pouco tem a
ver com a regulação dos fluxos de comércio e
mesmo com objetivos de política externa. São
mecanismos que podem servir notadamente a
políticas produtivas – industriais e agrícolas –
e macroeconômicas, mas podem ainda servir
acessoriamente à implementação de políticas
sociais, ambientais etc. na realidade, em vários
casos, não é muito claro o objetivo da adoção
de determinados instrumentos comerciais. na
discussão sobre comércio e meio ambiente, por
exemplo, é comum a troca de acusações entre
aqueles que querem usar esses instrumentos
de modo a melhorar a conduta ambiental dos
países e aqueles que são contra, argumentando
que seu uso tem motivação majoritariamente
comercial e de cunho protecionista. isso se deve
à capacidade dos instrumentos comerciais de
aumentar ou diminuir a disponibilidade de bens
e serviços em um país. neste sentido, a política comercial pode ter um papel importante em
uma estratégia de segurança alimentar.
Uma experiência clássica em termos de utilização de instrumentos de política comercial com
objetivos de segurança alimentar é a Política
agrícola europeia (PaC). estabelecida em 1962,
cinco anos depois do Tratado de roma, fundador da Comunidade econômica europeia, esta
política foi um dos pilares de sua construção.
os objetivos de estabilizar a oferta doméstica de
alimentos e garantir o rendimento dos agricultores europeus estavam fortemente motivados
pelo trauma da fome associado às duas guerras
mundiais que assolaram o continente. assim,
houve um entendimento entre os países europeus sobre a mobilização de uma quantidade
significativa de recursos para estimular a produção regional, de modo a evitar que os países
europeus passassem novamente pelas restrições de oferta alimentar que tinham passado
anteriormente.
Diversos autores são unânimes em ressaltar a importância da PaC como fator de coesão dos países europeus durante diversas décadas. Bureau
serviço social do Comércio |
(2002) afirma que esta coesão foi garantida pelos três princípios da PaC: a) unicidade do mercado, responsável pela unificação das políticas
de comércio exterior garantindo a livre circulação interna dos bens agrícolas; b) solidariedade
financeira, que garantia que todos os países deveriam contribuir para o orçamento comunitário; e c) preferência comunitária que valorizava a
produção local relativamente às importações.
atualmente, essa política está sendo questionada
por causa das disparidades entre seus custos e
seus benefícios e também pela incompatibilidade com a liberalização do comércio mundial. De
fato, a PaC absorve cerca de 50% do orçamento
europeu e os efeitos econômicos e sociais a ela
ligados não justificam obrigatoriamente essas
despesas. ademais, o alargamento da Ue para
o leste aumentou significativamente o número
de países que são potenciais demandantes por
recursos.
a PaC combinou, desde sua criação, medidas comerciais para proteção da produção doméstica
e de incentivo à produção. as medidas aplicadas às importações combinam restrições quantitativas, tarifárias, calendários de importação
ou cláusulas sanitárias. o apoio à produção e
à exportação é dado por meio das ajudas diretas e das subvenções associadas às políticas de
preço mínimo e às quotas de produção. atualmente, as medidas de incentivo às exportações
encontram-se restringidas pelos acordos no
âmbito da organização mundial do Comércio
(omC). Vale assinalar que o número e a variedade de instrumentos utilizados é grande e torna
esta política bastante complexa.
os resultados da PaC foram largamente atingidos e manifestaram-se na taxa de penetração
no mercado europeu e no peso da europa nos
mercados mundiais. De fato, a PaC não somente conseguiu eliminar a concorrência exterior
no mercado doméstico, como também criou
excedentes que passaram a ser escoados para
o mercado mundial (muitas vezes, com preços
subvencionados). as exportações de alguns
produtos agrícolas europeus cresceram mais
de 9.000% desde 1962.
Com o passar do tempo e o aumento significativo da produção agrícola europeia, o objetivo de
segurança alimentar foi perpassado por outros
objetivos e, atualmente, a manutenção da PaC
está mais ligada à manutenção da renda dos
produtores e outras razões de cunho político do
que à ameaça de falta de alimentos.
Se o exemplo europeu ilustra sobretudo o uso de instrumentos de política de
importação para garantir os objetivos de segurança alimentar, um caso mais
recente e próximo ao Brasil é um bom exemplo de intervenção governamental do lado das exportações a fim de garantir a oferta doméstica de alimentos.
Trata-se da imposição de impostos sobre as exportações proposta pelo governo argentino em 2008.
83
Algumas notas
sobre segurança
alimentar
e comércio
internacional
o crescimento recente dos preços internacionais das commodities tem induzido a um forte aumento das exportações de diversos países exportadores
desses produtos. a argentina, que é um importante exportador de determinadas commodities – sobretudo, cereais, oleaginosas e carnes – teve um
aumento de 116% em suas exportações entre 2002 e 2007. o governo argentino viu neste aumento uma fonte de aceleração da inflação – por meio
do repasse dos fortes aumentos de preços para o mercado doméstico, e de
desabastecimento desse mercado – o que, além do problema de segurança alimentar, reforça a circular inflacionária. assim, o governo argentino
propôs a imposição de impostos de 35% a 40% sobre as exportações de
soja e de 32 a 39% sobre as exportações de girassol. ao reduzir os preços
percebidos pelos exportadores, o governo pretendia atacar os dois problemas mencionados anteriormente (inflação e desabastecimento do mercado
doméstico) e, adicionalmente, tentar reverter o processo de “sojificação”
– ou seja, da expansão da monocultura da soja – no campo argentino. Vale
assinalar que o cultivo da soja representa atualmente mais de 75% da área
cultivada na argentina (dados de 2007), em contraposição a um percentual
de 38% em 2000 e 9,5% em 1980. o processo de expansão do cultivo da soja,
além dos problemas ambientais e sociais dele decorrentes, torna a economia argentina bastante dependente das exportações de um único produto e
reforça os dois outros problemas apontados.
a recepção dos agricultores às propostas governamentais foi péssima e levou
ao bloqueio de estradas, de manifestações na cidade e de boicote no fornecimento de alimentos.
A crise internacional de alimentos e a situação brasileira
os instrumentos de política comercial podem, como visto, ser utilizados de
forma a minimizar as flutuações da oferta doméstica de alimentos face às
flutuações de preços internacionais. esse tema tem sido debatido de forma
mais intensa no último ano devido à recente alta dos preços dos produtos
agrícolas e de outras commodities no mercado mundial. esta alta vem sendo chamada – não de forma consensual – de crise internacional de alimentos. Segundo a organização das nações Unidas para agricultura e alimentação (Fao), esta alta caracteriza não somente uma crise, como também
esta crise se mostra mais duradoura, volátil e abrangente (em termos de
produtos) do que outros movimentos de alta dos preços de alimentos observados no passado.
Como se pode ver a partir do Gráfico 1, os preços internacionais de determinados produtos agrícolas apresentaram a partir de 2006 um crescimento acentuado e, no caso do açúcar, fortes flutuações. esse crescimento tem graves
consequências para os países que são importadores de alimentos e tem levado diversas agências internacionais, notadamente a Fao, a classificar a
situação como calamitosa para uma série de países pobres. em seu relatório
World Food Situation, de 2007, a Fao alerta que cerca de 37 países correm
risco de passar fome nos próximos anos.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Gráfico 1 - Evolução dos preços internacionais de alimentos
84
(Índice base: média
1998/2000 =100)
Algumas notas
sobre segurança
alimentar
e comércio
internacional
350
300
Fonte: FAO, database. Elaboração
própria.
250
200
150
100
50
2000
2000
2000
2000
2000
2000
2000
Alimentos (média)
Carne
Leite e derivados
Cereais
Óleos e gorduras
Açúcar
2000
2000
as causas apontadas para esta alta dos preços são múltiplas. em primeiro lugar, o crescimento econômico dos países emergentes tem feito com que sua
população coma mais e melhor. o fato de comer mais implica em uma maior
demanda por alimentos. o fato de comer melhor significa um maior consumo de proteína animal – somente na China, segundo artigo do Banco internacional de Desenvolvimento (BiD), de 12/8/2008, o consumo per capita de
carne bovina subiu 40% – o que aumenta ainda mais a demanda por cereais
utilizados na produção de carne.
em segundo lugar – e este assunto tem sido bastante polêmico – encontra-se
o crescimento da produção de biocombustíveis. em alguns países, como os
eUa, o crescimento do preço do etanol e a concessão de subsídios governamentais à produção de biocombustíveis têm incentivado a expansão da
produção do milho (em substituição a outras culturas) e sua maior utilização
na produção de etanol (com prejuízo para o seu uso para consumo humano
ou animal). Se fenômeno similar tem sido observado com a colza na europa,
ele, no entanto, não diz respeito a todos os países e, em particular, ao Brasil,
visto que a produção brasileira de cana voltada para a produção de etanol
não parece ter afetado negativamente a oferta de alimentos.
em terceiro lugar, as mudanças climáticas têm afetado, segundo alguns especialistas, o rendimento da agricultura. o advento de catástrofes naturais, com
evidentes efeitos sobre os preços dos alimentos, tem sido mais frequente. os
preços do trigo e do arroz, por exemplo, sofreram impacto direto das secas na
austrália e na China e de passagem de ciclone em Bangladesh.
Uma quarta causa apontada é o aumento do preço do petróleo, que acaba por
encarecer os fertilizantes e elevar os custos de transporte. adicionalmente,
torna a produção dos biocombustíveis mais atrativa.
em quinto lugar, diante das restrições e problemas enfrentados no que se refere
à oferta de alimentos, alguns países têm adotado restrições às exportações,
contribuindo ainda mais para a diminuição da oferta internacional e para o
aumento dos preços.
em sexto lugar, aparecem os movimentos especulativos e financeiros. De fato,
parece haver nesta escalada de preços dos alimentos um componente espe-
serviço social do Comércio |
culativo importante: os investidores estariam, diante da valorização do dólar
norte-americano e do aprofundamento da crise financeira norte-americana,
buscando rentabilidade em ativos reais como alimentos e metais. além disso,
atualmente o comércio internacional está profundamente ligado ao mercado
financeiro – alguns autores dizem existir uma “financeirização” do comércio
de mercadorias e, por consequência, dos alimentos –, o que torna o comércio
de alimentos mais sujeito a ataques especulativos.
85
Algumas notas
sobre segurança
alimentar
e comércio
internacional
a ênfase dada a cada um desses fatores difere segundo os autores, e o agravamento da crise financeira internacional no segundo semestre de 2008 não só
inverteu a tendência altista dos preços das commodities, como também invalidou ou reduziu a importância de alguns fatores aqui explicitados. o que fica
evidente, no entanto, é que alguns fatores são de longo prazo e, mesmo que
sua influência esteja por ora minimizada, devem ser considerados em uma
análise de maior fôlego. esse é o caso do crescimento do setor de biocombustíveis, das mudanças climáticas e das relações entre mercado financeiro
e formação dos preços dos alimentos.
a crise alimentar tem afetado os países de forma bastante díspar, sendo os
países pobres importadores de alimentos os mais vulneráveis. os países desenvolvidos são aqueles que menos devem sentir os efeitos das altas dos
preços, embora alguns deles (Ue) tenham reagido muito rapidamente à alta
de determinados produtos liberalizando as importações.
Dentre os países em desenvolvimento, existem dois grupos com percepções
diferentes da escalada de preços dos alimentos. De um lado figuram os mais
pobres, que são em sua maioria importadores de alimentos e exportadores
de bens primários. Sua receita exportadora, resultante da venda de bens de
baixo valor agregado (mesmo na cadeia alimentar), nem sempre aumenta no
mesmo ritmo que suas despesas com alimentos, cujos preços têm crescido
significativamente.
o outro grupo é formado pelos países de renda média – Brasil inclusive – que,
por sua vez, são grandes exportadores de alimentos. estes países, ao longo do
tempo, têm aumentado a produtividade da sua produção e avançado no sentido de incrementar o grau de elaboração dos produtos. a produção de produtos
agrícolas com características de maior durabilidade ou melhor gosto – ou seja,
um produto diferenciado – permite também auferir maiores ganhos.
o impacto da crise alimentar é tão maior quanto mais pobre for o país, ou o grupo de pessoas pobres dentro de um país. os países mais vulneráveis estão
localizados na áfrica. Seu déficit comercial de produtos alimentares, aliás,
aumentou desde o início dos anos 90: alguns países passaram de exportadores a importadores de alimentos. na américa latina, os mais afetados são os
países da américa Central e Caribe. a posição dos países latino-americanos
é, como assinala Fao (2008b), mais confortável do que no passado, porém
alguns países apresentam um déficit comercial alimentar ou enfrentam uma
forte aceleração dos preços de alimentos afetando as camadas mais pobres
da população. o artigo do BiD citado anteriormente mostra que o aumento do
número de pobres resultante do aumento dos preços dos alimentos é maior
no Haiti, Honduras e Bolívia. no Haiti, o primeiro ministro caiu por conta dos
protestos populares motivados pelo aumento dos preços dos alimentos básicos no primeiro trimestre de 2008.
Como afirmam Silva e Carvalho (2008), “o Brasil tem até se beneficiado dessa
escalada de preços por ser um grande exportador de alimentos, mas isso
não significa que goze de uma situação de segurança e menos ainda de soberania alimentar” (p. 4). o Brasil é um exportador líquido de alimentos e o
aumento dos preços tem tido um impacto positivo sobre a balança comercial
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
brasileira, conforme o Gráfico 2. Do ponto de vista do balanço de alimentos,
a situação brasileira é relativamente confortável.
86
Gráfico 2 - Evolução da balança comercial brasileira de alimentos
nota: os produtos
alimentares
são aqueles
classificados
nos capítulos
compreendidos
entre 02 e 23 da
nCm.
Fonte: WiTS.
elaboração
própria.
50.000
45.000
40.000
35.000
em US$ milhões
Algumas notas
sobre segurança
alimentar
e comércio
internacional
30.000
25.000
20.000
15.000
10.000
5.000
2000
2001
2002
2003
Importações
2004
2005
2006
2007
Exportações
Para apenas um produto o Brasil tem forte dependência das importações: o
trigo, cuja produção doméstica se reduziu drasticamente em virtude dos
acordos do mercosul em prol das importações provenientes da argentina.
Hoje, esse país responde por mais de 70% da oferta de trigo brasileira. recentemente, no bojo dos problemas mencionados acima, a argentina reduziu
fortemente suas exportações de trigo. Diante dessa situação, o governo brasileiro facilitou, através da concessão de quotas de importação com isenção
tarifária, a importação de trigo proveniente de outros países.
Do ponto de vista da inflação, observou-se no primeiro semestre de 2008 o contágio da alta de preços internacionais na inflação doméstica. o impacto deste aumento de preços foi maior para a população de baixa renda, que gasta
proporcionalmente mais com alimentos. Porém, a situação brasileira ainda
é, relativamente aos demais países da américa latina, confortável. Países
como a nicarágua ou a Colômbia viram seus preços crescerem a taxas três
ou quatro vezes maiores que no caso do Brasil, e com disparidades muito
grandes entre os impactos para as classes mais abastadas e aquelas menos
favorecidas (para maiores detalhes, ver Fao, 2008b).
ou seja, o Brasil parece não se deparar com problemas relacionados à oferta alimentar do ponto de vista quantitativo: sua produção de alimentos é
capaz de suprir a demanda doméstica. Porém, isto não garante que todos
os brasileiros tenham acesso à alimentação: como afirmam Silva, Belik e
Takagi (sem data), “o problema da fome, hoje, não é de falta de produção
de alimentos, mas da falta de renda para adquiri-los em quantidade permanente e qualidade adequada” (p. 2). em um país caracterizado por fortes
desigualdades de renda, o problema de segurança alimentar existe em função da impossibilidade de parte significativa dos consumidores ter acesso
aos alimentos.
serviço social do Comércio |
omc e segurança alimentar
87
além das questões relacionadas aos fluxos de comércio de alimentos, discutidas
neste texto, persistem também outras questões relacionadas à regulação dos
mercados internacionais. o comércio internacional de produtos alimentares é
regido pelas normas da omC que, devido aos princípios liberais que a norteiam,
se opõem às intervenções dos governos nacionais com objetivos de garantir
a segurança alimentar. Como argumentam maluf, menezes e marques (2001),
não existe contraposição entre as estratégias de autossuficiência e aquelas que
fazem uso do comércio internacional de alimentos para suprimento dos mercados nacionais (estratégias conhecidas como de autocapacidade alimentar).
Porém, para que se garantam os objetivos de segurança alimentar (e também
de segurança dos alimentos), é necessário que se reconheçam as limitações do
mercado e dos objetivos puramente econômicos de eficiência produtiva no que
se refere às questões de abastecimento e de acesso aos alimentos. isso implica
em reconhecer a relevância das instituições e políticas nacionais e supranacionais capazes de implementar estratégias que valorizem a segurança alimentar
dos países.
Algumas notas
sobre segurança
alimentar
e comércio
internacional
referências
BuReau, J. C. The UE common agricultural policy: enlargement reform of and impacts
on the western hemisphere countries. Washington, D.C.: inter-american Development
Bank, 2002.
CastilHO, M. O sistema de preferências comerciais da União Européia. Rio de Janeiro: ipea, 2000.
CONfeReNCia De altO NiVel sOBRe la seguRiDaD aliMeNtaRia MuNDial lOs
DesafÍOs Del CaMBiO CliMÁtiCO Y la BiOeNeRgÍa, 2008, Roma. Aumento de los
precios de los alimentos: hechos perspectivas impacto y acciones requeridas. Chile:
faO en américa latina y el Caribe, 2008. Disponível em: <http://www.fao.org/fileadmin/
user_upload/ food climate/HlCdocs/HlC08 -inf-1-s.pdf>.
Maluf, R. ; MeNezes, f. Cahiers ‘sécurité alimentaire’. Disponível em:<http://www.
alliance21.org/2003/iMg/pdf/draft_secalim_fr.pdf>. acesso em: 5 ago. 2008.
paÍses precisam gastar mais para evitar que a crise dos alimentos aprofunde a pobreza.
Brasília, Df: BiD. Disponível em: <http://www.iadb.org/news/detail.cfm?language=po
rtuguese&id=4718>. acesso em: 15 nov. 2008.
silVa, C. R.; CaRValHO, M. a. funções de exportação de alimentos para o Brasil. in:
CONgRessO Da sOCieDaDe BRasileiRa De eCONOMia, aDMiNistRaÇãO e sOCiOlOgia RuRal, 46., 2008, Rio Branco, acre. são paulo: iea, puC, 2008.
silVa, J. g.; BeliK, W.; taKagi, M. Para os críticos do Fome Zero. Disponível em:
<http://www.fomezero.gov.br/ download/ 50fomezero2.pdf>. acesso em: 15 nov. 2008.
situaCiÓN alimentaria en américa latina y el Caribe. in: OfiCiNa RegiONal paRa
aMeRiCa latiNa Y el CaRiBe, 2008. Chile: faO en américa latina y el Caribe, 2008.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
88
* Professor titular do Departamento de economia da Fea/USP, coordenador
do núcleo de economia Socioambiental (nesa) e pesquisador do CnPq. Foi professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e conselheiro
científico do Centre international de recherches sur le Développement (Cirad).
É um dos organizadores do Grupo de Sociologia econômica da associação
nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (anpocs).
Avanços recentes
e ameaças à
segurança alimentar
mundial ricardo Abramovay*
serviço social do Comércio |
89
existem falhas de longo prazo no funcionamento do sistema alimentar mundial. a afirmação
é de Joachim Von Braun (2008), diretor do international Food and Policy research institute
(iFPri) de Washington, uma das mais importantes e prestigiosas organizações voltadas ao estudo do tema. Von Braun insiste na necessidade
de coordenação internacional e defende o aprofundamento do livre comércio para enfrentar o
problema.
este texto procura chamar a atenção para dois
elementos centrais daquilo que hoje não mais
se hesita em caracterizar como crise alimentar
mundial. o primeiro deles refere-se ao desmantelamento das formas de intervenção estatal
que caracterizaram a maior parte do século
XX e que foram inauguradas com o new Deal
nos eUa nos anos 1930 e aprofundadas com a
consolidação da Política agrícola Comum europeia, a partir dos anos 1960. o segundo é ainda
mais importante: são claros os sinais de esgotamento das bases técnicas sobre as quais se
apoiou o imenso sucesso da revolução Verde,
que responde por parcela muito significativa da
redução da fome no mundo nos últimos anos.
a energia barata que permitiu a ampliação sem
precedentes das safras está em claro processo
de esgotamento. no entanto, mudar os padrões
produtivos e caminhar em direção a uma “revolução duplamente verde” (SWaminaTHan,
2006; ConWaY, 1997) ou à intensificação ecológica da produção agropecuária (CiraD, 2008)
– conselhos cada vez mais presentes nas organizações internacionais de desenvolvimento –
nem de longe constitui orientação clara quanto
à reorganização do próprio modelo de expansão
da agropecuária no mundo no século XXi.
os pés de barro das vitórias recentes
em 1970, a subalimentação crônica atingia nada
menos que 37% da população mundial (Sheeran,
2008). Hoje, esse total não chega a 15%, embora
represente magnitude absoluta superior a 900
milhões de indivíduos. este número deve estar
crescendo em função da explosão nos preços
alimentares nos últimos meses (SilVa, 2008).
Desde os anos 1970 do século passado, os avanços foram notáveis e não apenas na China e
na Índia, como mostram as informações do
Global Hunger Índex (WieSmann, 2007). a Tabela 1 apresenta a evolução, entre 1990 e 2007,
de um índice que reúne três informações: a)
a proporção de subalimentados na população
total, calculada sobre a base da ingestão insuficiente de calorias na dieta diária; b) a porcentagem de crianças de menos de cinco anos
com deficiência de peso e altura; e c) a taxa de
mortalidade dos que têm menos de cinco anos.
a junção desses três parâmetros é bastante reveladora não apenas das condições alimentares – às quais se voltam habitualmente os documentos da organização das nações Unidas
para agricultura e alimentação (Fao) –, mas
também da saúde em que vive uma população.
o índice varia de zero (condições alimentares
ideais) a um hipotético 100 (em que toda a população estaria em péssima situação alimentar
e de saúde). o relatório considera que um índice de 10 é sério, 20 é alarmante e 30 é extremamente alarmante. a tabela expõe dados de 97
países em desenvolvimento e 21 em transição.
Seus resultados em 2007 estão sintetizados no
mapa 1.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
90
Avanços recentes
e ameaças
à segurança
alimentar
mundial
Ranking
igf
país
1990
2007
1
líbia
2.70
0.87
2.03
Tabela 1
Comparação entre
todos os países
2
argentina
3
lituânia
Índice Global da Fome
4
Romênia
em 118 países
5
Chile
6
letônia
7
ucrânia
8
estônia
Fonte: wiesmann, 2007:9.
serviço social do Comércio |
Índice global
da fome
Ranking
igf
país
Índice global
da fome
1990
2007
60
lesoto
14.93
13.20
16.333
1.10
61
Nicarágua
1.63
62
uzbequistão
13.47
3.96
1.73
63
suazilândia
11.27
4.03
1.83
64
gana
25.43
15.10
1.83
65
Mongólia
19.03
15.30
1.90
66
Myanmar
19.77
15.80
2.03
67
filipinas
21.90
16.23
13.60
14.97
9
Cuba
5.90
2.20
68
guatemala
16.40
16.47
10
uruguai
5.50
2.23
69
sri lanka
24.40
16.90
2.33
70
Djibuti
30.73
17.07
2.50
71
Benin
20.67
17.37
2.63
72
Costa do Marfim
15.33
17.40
11
Rússia
12
tunísia
13
Republica eslovaca
5.23
14
fiji
7.47
2.93
73
Vietnã
27.10
17.70
15
Kuwait
10.20
3.07
74
Namíbia
22.93
17.77
16
Croácia
3.23
75
senegal
20.03
18.00
17
líbano
4.87
3.50
76
Botsuana
18.53
18.03
18
ilhas Maurício
8.43
3.83
77
Mauritânia
25.30
18.10
19
síria
7.30
4.17
78
uganda
21.00
18.57
20
turquia
6.90
4.20
79
gâmbia
1817
18.80
21
egito
8.27
4.27
80
Nigéria
23.77
19.13
22
Macedônia
4.33
81
Camarões
20.67
19.33
23
sérvia e Montenegro
4.47
82
Congo
30.83
19.73
24
Brasil
8.33
4.60
83
Coréia do Norte
16.37
20.00
25
México
7.93
4.67
84
togo
24.20
20.43
26
Jordânia
4.80
4.70
85
timor leste
27
irã
9.37
4.73
86
Quênia
22.03
20.60
28
Bósnia Herzegovina
4.87
87
guiné
29.00
21.77
29
Jamaica
7.30
5.20
88
paquistão
25.73
22.70
30
África do sul
7.17
5.25
89
laos
26.43
23.23
31
Cazaquistão
5.87
90
Nepal
28.33
24.30
24.50
20.97
32
Moldávia
6.03
91
Malawi
33.90
33
trinidad e tobago
8.43
6.30
92
Burkina faso
23.03
24.63
34
paraguai
8.60
6.40
93
zimbábue
21.33
24.83
35
algéria
7.03
6.47
94
Índia
33.73
25.03
36
Malásia
10.07
6.50
95
sudão
25.57
25.60
37
equador
9.93
6.53
96
tanzânia
27.33
26.13
38
Marrocos
8.13
6.83
97
Ruanda
29.90
26.27
39
arábia saudita
7.00
6.90
98
Haiti
35.20
26.97
40
albânia
9.84
7.17
99
guiné Bissau
23.73
27.43
41
geórgia
7.20
100
Camboja
30.73
27.57
27.70
42
Quirquistão
7.33
101
Mali
25.20
43
peru
20.23
7.50
102
Moçambique
45.43
27.97
44
Colômbia
10.23
7.70
103
Bangladesh
36.97
28.40
45
el salvador
11.07
7.90
104
África Central
32.90
29.53
46
Venezuela
7.13
8.10
105
Chade
36.30
29.90
47
China
12.77
8.37
106
tajiquistão
48
azerbajão
8.57
107
Madagascar
30.90
30.73
29.93
49
gabão
11.43
8.67
108
zâmbia
29.43
31.10
50
suriname
12.17
9.03
109
Comoros
26.03
31.47
51
guiana
15.93
31.50
52
turcomenistão
53
panamá
11.80
9.67
110
angola
39.77
10.10
111
iêmen
26.07
31.53
11.07
112
Níger
38.53
32.67
54
indonésia
18.53
11.57
113
libéria
25.87
33.00
55
República Dominicana
14.60
11.83
114
etiópia
45.98
33.67
56
tailândia
18.77
34.97
35.17
57
armênia
58
Bolívia
59
Honduras
12.03
115
serra leoa
12.07
116
eritreia
17.20
12.43
117
Congo
28.23
41.17
15.63
12.50
118
Burundi
32.03
42.37
40.27
Mapa 1
Verde:
10% ou menos
(problemático)
Cinza claro:
entre 10 e 19,9%
(sério)
Cinza-escuro:
entre 20 e 29,9%
(muito sério)
preto:
acima de 30%
(alarmante)
Verde médio:
dados não disponíveis
Verde claro:
GHi não calculado
Fonte: wiesmann, 2007:10.
a Tabela 1 mostra que houve avanço muito significativo na luta contra a fome
global de 1990 para cá. no entanto, a grande maioria dos países onde a fome
era séria, muito séria ou alarmante continua com níveis preocupantes. Um
dos mais espetaculares casos de avanço social foi o do Peru, cujo índice caiu
de 20,2 para 7,5. o avanço da China já vem dos anos 1980 e o progresso entre
1990 e 2007 foi também expressivo. o Brasil, cuja situação em 1990 já o deixava fora dos países seriamente atingidos pela fome, tem melhoria expressiva,
passando de 8,33 para 4,60, o que é inteiramente corroborado pelos trabalhos
recentes de Carlos augusto monteiro (2003, 2008).
É nítida a concentração da fome na áfrica Subsaariana, na Índia e em Bangladesh. São regiões que ainda não atingiram sua transição demográfica. a taxa
de fertilidade total dos países menos desenvolvidos do mundo (boa parte dos
quais encontra-se na áfrica Subsaariana) é de 4,6, contra 1,6 nos países ricos. Como mostra Jeffrey Sachs (2008: 206), quando a taxa de fertilidade total
excede 5, a população praticamente dobra a cada geração. É verdade que a
fertilidade nos países pobres vai cair, mas as previsões atuais são de que apenas em 2050 ela chegará a 2,05. a população africana, que hoje corresponde
a 12% do total mundial, chegará a 20% em 2050 e a 24% em 2070, caso se
mantenham as tendências atuais (SaCHS, 2008: 209).
não há dúvida, como mostra artigo recente de Jared Diamond (2008), que o
consumo dos países ricos é muitas vezes superior ao dos países pobres: a
taxa média de consumo de petróleo e metais bem como a de produção de
lixo, como plástico e gases de efeito estufa, é 32 vezes maior na américa do
norte, na europa ocidental, no Japão e na austrália do que no mundo em
desenvolvimento, por seus cálculos. no entanto, o aumento da renda e do
consumo dos países pobres exerce enorme pressão sobre os recursos necessários à produção. o consumo per capita chinês é onze vezes inferior ao norteamericano: se atingisse o nível dos eUa (e supondo que a posição relativa do
restante dos países se mantivesse intacta), isso significaria um aumento no
consumo de petróleo de 106% e no de metais de 94%. Se o conjunto do mundo em desenvolvimento atingisse hoje o padrão de consumo norte-americano
a pressão sobre os recursos aumentaria onze vezes: seria como se a humanidade se ampliasse para 72 bilhões de habitantes.
em suma, apesar da redução muito significativa da fome no mundo contemporâneo, duas questões centrais permanecem. em primeiro lugar, ainda é imensa a
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
91
Avanços recentes
e ameaças
à segurança
alimentar
mundial
quantidade dos que se encontram em condições muito aquém do mínimo necessário para uma vida digna. Situam-se fundamentalmente na áfrica Subsaariana, na Índia e em Bangladesh. Dada a magnitude dessas populações e
seu atual ritmo de crescimento, é imenso o risco de que a curva de progresso
que marcou as últimas décadas seja revertida. a segunda questão é que tanto a organização dos mercados agrícolas e alimentares quanto, sobretudo,
seus padrões produtivos encontram-se fortemente em cheque. antes de entrar nestas questões, é importante um rápido apanhado a respeito do que é a
crise alimentar mundial hoje e quais são suas principais causas.
92
Avanços recentes
e ameaças
à segurança
alimentar
mundial
As principais manifestações da crise
Quatro elementos básicos caracterizam a situação de crise:
•Explosão e volatilidade dos preços: entre 1974 e 2005 o índice de preços
agrícolas da Fao caiu 75%. De 2005 para cá essa queda foi inteiramente recuperada. Só em 2007, o índice de preços alimentares subiu 40% (BraUn,
2008). Desde 2000 os preços do trigo, da manteiga e do leite triplicaram e
os do milho dobraram. o arroz atingiu níveis sem precedentes. Também aumentaram carne, frango e mandioca. os estoques mundiais de trigo estão
em seu nível mais baixo desde 1978. ao final da safra 2008/2009, as reservas de milho devem ficar aquém do que eram em 1996. nos últimos oito
anos, houve sete em que o consumo de grãos superou a produção. Josette
Sheeran, diretora do Programa alimentar mundial, mostra que de 2002 a
2007 os custos de aquisição do programa aumentaram 50%. De 2007 para
cá subiram mais 50% (SHeeran, 2008: 11). mais grave até que a explosão
é a volatilidade dos preços. existe um forte risco de que, no momento de
comercializar suas safras, os agricultores enfrentem preços deprimidos, e
o declínio nas cotações no segundo semestre de 2008 parece apontar exatamente nesta direção.
•Quedanosestoquesglobais:osestoquesglobaisdetrigoestãoemseunível mais baixo, desde 1978. o ministério da agricultura dos estados Unidos
(Usda) prevê que, no final do ano agrícola 2008/2009, os estoques de milho
reduzam-se como nunca antes de 1996. os estoques de soja declinaram 22%
em 2007, relativamente ao ano anterior (BraUn, 2008: 7).
•Revoltaspopulares:dejaneirode2007ajunhode2008,houveprotestoscontra aumentos de preços alimentares em 50 países (BraUn, 2008: 4).
•Restriçõesàsexportações:Argentina,Índia,Kazaquistão,Ucrânia,Vietnãe
China reduziram suas exportações alimentares. não há qualquer mecanismo
de coordenação entre os grandes países produtores agrícolas para enfrentar
a situação atual de crise.
esta situação deriva da ocorrência conjunta de vários fatores:
•Aumentonoscustosdosinsumosagropecuários:esteécertamenteofator
mais importante e com efeitos de longo prazo mais duradouros. Tudo indica
que foram extintas as condições que permitiram o fornecimento da energia
barata que marcou a expansão das safras no século XX. os preços internacionais médios de fertilizantes fosfatados subiram de U$ 250 em 2007 para U$
1.230 em julho de 2008. os adubos à base de potássio aumentaram de U$ 172
para U$ 500 a tonelada no mesmo período. e a tonelada dos nitrogenados foi
de U$ 277 a U$ 450. mesmo que as cotações do petróleo tenham despencado
do pico a que chegaram no final do primeiro semestre de 2008, há uma forte
alta nas matérias-primas, que atinge de maneira especial fertilizantes, agrotóxicos e os custos dos transportes.
serviço social do Comércio |
•Produção de biocombustíveis a partir de milho: o International Food Policy
research institute (iFPri) estima que 30% do aumento nos preços agrícolas
desde o início de 2007 até meados de 2008 originam-se nos biocombustíveis.
Hoje, nada menos que 30% da produção de milho norte-americano destinase a etanol.
•Aumentonademandaporalimentos:aelevaçãonarendadaChinaedaÍndia
e seu consumo crescente de proteína de origem animal são poderosos vetores para o aumento dos preços. a China, por exemplo, consumiu 2,5 vezes
mais carne em 2005 do que em 1990, três vezes mais leite, 2,3 vezes mais peixe, 3,5 vezes mais frutas e 2,9 vezes mais vegetais frescos (SilVa, 2008). entre
1970 e 2000 o aumento no consumo alimentar mundial era de 1,5% ao ano.
atualmente subiu para 2% ao ano e evans (2008, 3) trabalha com o horizonte
de 2,6% ao ano a partir de 2015. até 2030, a produção agrícola mundial terá
que aumentar 50% e a de carne nada menos que 85%.
•Exposiçãodascommodities agrícolas às flutuações dos mercados financeiros: José Graziano da Silva (2008) mostra que os mercados financeiros são
frequentemente usados para proteger posições de investidores de risco, o
que acaba trazendo consequências para matérias-primas que não guardam
relação direta com a situação de sua oferta real.
•Problemasclimáticos:aindaécedoparasaberseosproblemasclimáticos
que provocaram redução nas safras de importantes produtores como a austrália e a Ucrânia refletem impactos do aquecimento global na agricultura.
De qualquer maneira, eles acabaram por potencializar a atual crise.
dois elementos de longo prazo
nestas condições, a ideia de que liberalizar os mercados (e melhorar as tecnologias atualmente predominantes) é o caminho para tornar apenas episódica a atual crise parece extremamente arriscada. na verdade, os elementos
de crise expostos rapidamente acima e os vetores que a provocam apontam
para dois questionamentos importantes na própria maneira como o sistema
alimentar mundial está hoje organizado.
o primeiro refere-se ao papel do mercado, das organizações privadas e do
estado na construção da segurança alimentar. no início dos anos 1980 a
organização para a Cooperação e Desenvolvimento econômico (oCDe) previa rápida ampliação das capacidades produtivas e apostava que, em pouco
tempo, mais de 30 países abasteceriam o mercado mundial. Hoje as nações
exportadoras não chegam a 10. as reformas das políticas agrícolas dos países desenvolvidos reduziram drasticamente seus estoques.
É verdade que esses estoques contribuíam para desestabilizar os mercados
mundiais. Prejudicavam países mais pobres e representavam altos custos
para os contribuintes. o que a atual crise mostra, no entanto, é que os mecanismos de mercado são nitidamente insuficientes para garantir estabilidade
na oferta. Jean-marc Boussard (1996), ex-presidente da Sociedade Francesa
de economia rural, tem uma hipótese ousada para explicar o fenômeno. Diante de uma demanda rígida e de uma oferta pulverizada, os preços agrícolas, ao
sabor dos mercados, apresentam comportamento necessariamente caótico.
Sem regulação estabilizadora é o próprio abastecimento da sociedade que se
encontra sob risco. não se trata de preconizar a volta aos mecanismos que
marcaram as políticas agrícolas do século XX (preços de garantia, formação
de imensos estoques governamentais, exportações subsidiadas etc.). mas
nada indica que a liberalização dos mercados agrícolas coloque a população
ao abrigo da instabilidade caótica nos preços. namanga ngongi (2008, 20),
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
93
Avanços recentes
e ameaças
à segurança
alimentar
mundial
presidente da aliança para uma revolução Verde na áfrica, mesmo reconhecendo os sérios problemas das organizações de intervenção estatal, manifesta sua indignação diante da atitude da cooperação internacional, desde os
anos 1980:
94
Avanços recentes
e ameaças
à segurança
alimentar
mundial
os programas de ajustamento estrutural desmantelaram várias instituições estabelecidas desde a independência. É verdade que muitas instituições paraestatais eram ineficientes e corruptas; as reservas de segurança alimentar eram usadas para a patronagem
política; a extensão falhava na oferta de serviços e as cooperativas eram politizadas. mas
em vez de melhorar o funcionamento dessas instituições essenciais os doadores e os
países africanos seguiram soluções de mercado que as dizimaram.
o documento de martin khor (2008), diretor da Third World network information
Service on Sustainable agriculture, apresentado na reunião sobre Segurança
alimentar e Biocombustíveis em roma, em junho de 2008, segue o mesmo
pensamento. ele mostra que desde o final dos anos 1970 o Fundo monetário
internacional e o Banco mundial incentivaram os países mais pobres (sobretudo na áfrica) a eliminar os sistemas de sustentação de preços, os subsídios
a fertilizantes e à mecanização e a reduzir as tarifas alfandegárias sobre as
importações alimentares. ele cita o caso de Gana, que viu sua dependência
alimentar em produtos como arroz e tomate ampliar-se e teve devastado seu
setor avícola sob o peso das importações vindas da europa.
o segundo elemento de longo prazo na crise atual é ainda mais importante:
mesmo os mais ardorosos defensores da revolução Verde não hesitam em
reconhecer os limites que ela está atingindo em virtude de sua forte dependência de insumos de origem fóssil, de água, de terras férteis e de formas
de exploração do solo que tendem a reduzir severamente a biodiversidade
e a integridade dos ecossistemas locais. nos estados Unidos, o sistema
alimentar usa mais energia fóssil que qualquer outro setor da economia,
à exceção da indústria automobilística (PollanD, 2008). em 1940, o sistema alimentar norte-americano produzia 2,3 calorias alimentares para cada
unidade de energia fóssil empregada. Hoje são necessárias 10 unidades de
energia fóssil para produzir uma unidade de energia alimentar no sistema
atual (PollanD, 2008). este é um dos fatores que explicam como o custo
de um hambúrguer, um saco de batatas fritas e um refrigerante custem,
nos estados Unidos, o correspondente a menos de uma hora do que ganha um trabalhador pago a um salário mínimo mensal. essa é a base que
permite o consumo médio de 300 gramas de carne por dia no país, como
mostra michael Polland (2008). o mencionado aumento nos preços dos fertilizantes e agrotóxicos é possivelmente um sinal de alarme avisando que as
condições para que este modelo produtivo se generalize vão ficando cada
vez mais distantes.
É sabido que 70% da água no mundo é utilizada para a irrigação. a constatação
de Jeffrey Sachs (2008), um dos mais entusiastas defensores da revolução
Verde, é uma forma de advertência para enfrentar o problema da pobreza:
a tecnologia da revolução Verde permitiu que a Índia escapasse dos ciclos aparentemente
intermináveis de fome e da armadilha da pobreza. Todavia, agora, uma crise hídrica está
se combinando à crescente população do país. as vinte milhões ou mais de perfurações
que hoje bombeiam a água de irrigação para as terras agricultáveis da Índia (em 1960
eram dez mil) estão exaurindo os aquíferos subterrâneos, apresentando reduções dos
lençóis d’água de 100 a 150 metros em alguns locais.
em abril de 2008 foi realizado o international assessment of agricultural
knowledge, Science and Technology for Development (iaakSTD). Do encontro resultou um documento baseado em ampla consulta, envolvendo 400 especialistas, com relatórios submetidos a rigoroso sistema de avaliação pelos
serviço social do Comércio |
pares (peer review), patrocinado por entidades como Fao, Banco mundial,
Unesco, Pnud e omS, entre outros e assinado por 60 governos.
95
os inegáveis progressos da produtividade agrícola que marcaram o século XX,
diz o iaakSTD, beneficiaram de maneira desigual o conjunto da população
do planeta. além disso, esse aumento de produtividade teve um custo ambiental – em termos de solo, água, biodiversidade e mudança climática –
incompatível com o crescimento populacional previsto até 2050. até lá, as
necessidades alimentares vão praticamente dobrar, sobretudo nos países em
desenvolvimento.
Avanços recentes
e ameaças
à segurança
alimentar
mundial
a principal proposta para enfrentar esse desafio crucial está no termo intensificação ecológica. o aumento dos rendimentos terá que ser compatível com a
preservação dos ecossistemas. mais que isso: não poderá apoiar-se na energia fóssil e no consumo de água em larga escala, que acompanhou o uso
de sementes de alta potencialidade durante a revolução Verde. interromper
imediatamente a perda de biodiversidade a que conduziu o crescimento agrícola até aqui é indispensável.
a maneira de levar isso adiante, na prática, não poderia ser mais polêmica. De
um lado estão os que enxergam no uso de sementes transgênicas a única forma consistente de elevar os rendimentos do solo, sobretudo quando se trata
de fazê-lo em ambientes ecologicamente frágeis. Daniel nahom, no recémlançado L’épuisement de la terre, l’enjeu du XXIème Siècle (2008), defende esse
ponto de vista, cujos adeptos enfrentam dois problemas centrais. o primeiro
é a imensa oposição internacional ao uso de organismos geneticamente modificados na agricultura. essa oposição se explica tanto em virtude dos riscos
a que se associam os transgênicos em termos de redução da diversidade
genética da produção agropecuária, como ao controle que sobre eles exercem grandes corporações, que passam a deter um poder ainda maior sobre o
destino da alimentação mundial com a generalização de seu uso. o segundo
problema é que os transgênicos, embora possam representar economia no
uso de agrotóxicos e mesmo de água, não dispensam quantidades enormes
de fertilizantes. Um trabalho recente do Crédit Suisse (2008) mostra que “a
capacidade atualmente anunciada de aumento na produção de nitrogênio
e fósforo será insuficiente para atender à demanda”. ora, prossegue o documento “é nítido que as sementes transgênicas demandam mais nutrientes do solo que as não transgênicas, portanto, mais transgênico, isso pode
significar maior demanda de fertilizantes”, mesmo que a produtividade dos
transgênicos e, portanto, sua capacidade potencial em atender à demanda
global, seja superior às sementes convencionais.
Por outro lado, há os que acreditam que a intensificação ecológica passa pela
diversificação dos sistemas produtivos e pelo esforço crescente de melhorar
a produção por meio da capacidade de imitar o que faz a própria natureza.
os exemplos nessa direção começam a se tornar significativos e, como bem
mostra michael Polland, não se limitam à produção em pequena escala. no
estado de São Paulo, por exemplo, a Fazenda São Francisco produz cana-deaçúcar certificada como orgânica numa superfície de 14 mil hectares dotada de corredores ecológicos e com um nível crescente de preservação da
biodiversidade. o problema é que nos ambientes ecologicamente frágeis e,
sobretudo, em países onde a fome atinge parte considerável das populações
rurais, não há qualquer indício de um horizonte concreto de massificação
dessas modalidades produtivas.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
apesar do imenso progresso no combate à fome nos últimos quarenta anos, o
sistema alimentar mundial apresenta falhas de longo prazo que se exprimem
não apenas na explosão recente dos preços agrícolas, mas no risco de sua
volatilidade. a convicção de que mecanismos de mercado seriam capazes
de contrabalançá-la está fortemente colocada em dúvida. além disso, os padrões técnicos que dominaram a revolução Verde parecem ter atingido seu
ponto de exaustão. a satisfação das necessidades alimentares de uma população que deve crescer ainda à razão de 70 milhões de habitantes por ano
(até 2050) terá que se apoiar num uso muito mais eficiente de energia e água,
quando comparada com as técnicas adotadas na segunda metade do século
XX. os caminhos para essa intensificação ecológica da produção agropecuária não estão claros e será crescente o debate entre os que enxergam neles
o principal meio para o aumento das safras, em oposição aos que procuram
na diversificação da agropecuária e na descentralização dos conhecimentos
técnicos associados a seu progresso os rumos para compatibilizar a preservação dos ecossistemas com a elevação das safras.
96
Avanços recentes
e ameaças
à segurança
alimentar
mundial
referências
BOussaRD, Jean-Marc. When risk generates chaos. Journal of Economic Behavior Organization, amsterdam, v. 29, n. 5, p. 433-446, 1996.
BRauN, Joachim von. Responding to the world food crisis: getting on the right track. in:
iNteRNatiONal fOOD pOliCY ReseaRCH iNstitute. Responding to the global
food crisis: three perspectives. Washington, 2008. p. 1-9. Disponível em: <http://www.
ifpri.org/sites/default/files/publications/ar07essay01.pdf>. acesso em: 28 dez. 2009.
CeNtRe De COOpÉRatiON iNteRNatiONale eN ReCHeRCHe agRONOMiQue pOuR
le DÉVelOppeMeNt. La vision stratégique 2008-2012. paris: Montpellier, 2008.
CONWaY, gordon. The doubly Green Revolution: food for all in the twenty-first century.
londres: penguin, 1997.
CRÉDit suisse. global agricultural productivity – sector Review. How farm commercialization will drive the next decade of growth. Crédit suisse securities, 2008. equity
Research.
DalY, Herman e. Beyond growth: the economics of sustainable development. Boston:
Beacon press, c1996.
DiaMOND, Jared. What’s your consumption factor? The New York Times, New York,
2 Jan. 2008. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2008/01/02/opinion/02diamond.
html?pagewanted=2>. acesso em: 2 fev. 2008.
eVaNs, alex. Rising food prices: drivers and implications for development. Food Ethics:
the Magazine of the food ethics Council, Brighton, v. 3, n. 2, p. 3-4, summer 2008.
iNteRNatiONal assessMeNt Of agRiCultuRal KNOWleDge, sCieNCe aND
teCHNOlOgY fOR DeVelOpMeNt. Executive summary of the synthesis report.
Washington, 2009. Disponível em: <http://www.agassessment.org/reports/iaastD/eN/
agriculture%20at%20a%20Crossroads_executive%20summary%20of%20the%20synthesis%20Report%20(english).pdf>. acesso em: 4 jan. 2010.
serviço social do Comércio |
KHOR, Martin. Rising world prices reinforce need for food security policies. penang:
third World Network, 2008. Disponível em: <http://www.twnside.org.sg/title2/susagri/
susagri046.htm>. acesso em: 2 out. 2009.
97
MONteiRO, Carlos augusto. a dimensão da pobreza, da desnutrição e da fome no Brasil:
implicações para políticas públicas. Estudos Avançados, são paulo, v. 17, n. 48, p. 7-20,
2003.
Avanços recentes
e ameaças
à segurança
alimentar
mundial
_____. O espetacular declínio da desnutrição. O Globo, Rio de Janeiro, 4 jul. 2008.
NaHOM, Daniel. L’épuisement de la terre, l’enjeu du XXIème siècle. paris: Odile Jacob,
2008.
NgONgi, Namanga. policy implications of high food prices for africa. in: iNteRNatiONal
fOOD pOliCY ReseaRCH iNstitute. Responding to the global food crisis: three
perspectives. Washington, 2008. p. 20-28. Disponível em: <http://www.ifpri.org/sites/
default/files/publications/ar07essay03.pdf>. acesso em: 28 dez. 2009.
pOllaND, Michael. farmer in chief. New York Times, New York, 9 Oct. 2008. Disponível
em: <http://www.nytimes.com/2008/10/12/magazine/12policy-t.html>. acesso em: 13
out. 2008.
saCHs, Jeffrey. A riqueza de todos. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2008.
sHeeRaN, Josette. High global food prices: the challenges and opportunities. in: iNteRNatiONal fOOD pOliCY ReseaRCH iNstitute. Responding to the global food crisis: three perspectives. Washington, 2008. p. 11-18. Disponível em: <http://www.ifpri.
org/sites/default/files/publications/ar07essay02.pdf>. acesso em: 28 dez. 2009.
silVa, José graziano da. Crecimiento agrícola y persistencia de la pobreza rural en américa latina. Revista Española de Estudios Agrosociales y Pesqueros, Madrid, n. 218,
2008.
sWaMiNatHaN, Monkombu s. an evergreen revolution. Crop Science, Madison, v. 46, set./
out. 2006. Disponível em: <http://crop.scijournals.org/cgi/content/abstract/46/5/2293>.
acesso em: 10 set. 2009.
WiesMaNN, Doris et al. The challenge of hunger 2007: global hunger index: facts, determinants, and trends measures being taken to reduce acute undernourishment and
chronic hunger. Bonn: Welt Hunger Hilfe, 2007. 55 p. Disponível em: <http://www.ifpri.org/sites/default/files/publications/pubs_pubs_cp_ghi07.pdf>. acesso em: 28 dez.
2009.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
98
* Formou-se em estatística pela escola nacional de Ciências estatísticas (ence).
Doutor em Saúde Pública na escola nacional de Saúde Pública da Fundação oswaldo
Cruz (ensp). Trabalha há mais de 35 anos no iBGe, principalmente com métodos
de pesquisa e técnicas de análise estatística. Consultor da Food and agriculture
organization of the United nations (Fao). Desde 2003, trabalha no Programa de PósGraduação da ence / iBGe. É bolsista de produtividade em pesquisa do CnPq desde
março de 2004.
Desperdício de alimentos:
de que se trata,
afinal? mauricio teixeira leite de vasconcellos*
serviço social do Comércio |
99
o desperdício de alimentos pode ser definido
como as quantidades de alimentos que poderiam ser produzidas somadas às quantidades
de alimentos produzidos que não chegam ao
seu destino final, seja ele a exportação, o consumo intermediário (por indústrias e serviços
de alimentação) ou a ingestão alimentar. neste
sentido, o desperdício alimentar ocorre em todo
o processo produtivo e durante o consumo pela
população.
a quantificação do volume de desperdício na
cadeia produtiva é um elemento importante
para as políticas de abastecimento e para a
avaliação nutricional embutida nas pesquisas
mundiais de alimentos, que são feitas pela
Food and agriculture organization of the United nations (Fao – organização das nações
Unidas para agricultura e alimentação) com
base nas Folhas de Balanço alimentar (Food
Balance Sheets).
o conhecimento do volume de desperdício durante o consumo (em residências e em serviços de
alimentação) permite estimar a quantidade de
energia e nutrientes não ingeridos, aperfeiçoando as estimativas sobre o estado nutricional da
população.
além desses usos, a quantificação do volume de
desperdício de alimentos na cadeia produtiva
e de comercialização é muito importante para
o Programa mesa Brasil SeSC (PmB), porque,
na prática, esse volume representa o limite de
saturação do Programa. ou seja, a coleta e
distribuição pelo Programa mesa Brasil SeSC
dos alimentos que seriam desperdiçados pode
crescer até o limite do desperdício total de alimentos produzidos, desde que o Programa seja
capaz de apropriar-se de todos esses alimentos,
evitando que se transformem em desperdício.
assim, o conhecimento desse limite permitiria
avaliar a eficácia do programa e planejar metas
para seu crescimento.
na literatura científica, os desperdícios de alimentos, observados no processo produtivo, são
chamados de perdas. estas, por sua vez, são
divididas em perdas que existem até a colheita
(alimentos que poderiam ser produzidos, mas
não o foram) e perdas pós-colheita (relativas a
alimentos produzidos que não chegam ao seu
destino final).
na realidade, a literatura trata mais especificamente das perdas pós-colheita, limitando-as
às perdas de transporte e armazenamento, em
função da necessidade de estimar a disponibilidade interna de alimentos e fornecer os dados
para as Folhas de Balanço alimentar.
Diante da quase total escassez de dados sobre
desperdícios (ou perdas), decorrente de vários
problemas de métodos e da ausência de pesquisas ou outras fontes regulares de informação,
não existe uma estimativa precisa do volume de
desperdícios que ocorre no processo produtivo
e durante o consumo alimentar.
além disso, os poucos esforços existentes referem-se basicamente a produtos agrícolas e não
cobririam o interesse do programa, que se tem
beneficiado do desperdício industrial, além do
existente na cadeia de comercialização.
nesse sentido, este texto forçosamente concentra-se nos aspectos relacionados aos métodos
de estimação dos desperdícios e à avaliação
nutricional, apresentando alguns poucos dados
disponíveis.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
100
Desperdício
de alimentos: de
que se trata,
afinal?
As perdas pré-colheita
as perdas pré-colheita não são as mais importantes para o Programa, porque elas ocorrem
entre o momento da semeadura e aquele que
antecede o início da colheita. São provocadas
por adversidades abióticas (principalmente as
de ordem climática), bióticas (relacionadas à
incidência de doenças e pragas nas lavouras),
e por questões de ordem econômica e técnica,
que incluem: (1) baixos preços no momento da
colheita; (2) falta de orientação técnica na semeadura; (3) preparo inadequado do solo; (4) semeadura fora do tempo; e (5) uso de sementes de
baixa qualidade.
Basicamente, essas perdas pré-colheita podem
ser estimadas por meio da perda de área plantada, comparando-se a área plantada com a área
colhida, somada à perda decorrente do declínio
de rendimento (ou produtividade, como alguns
usam).
o iBGe publicou um livro sobre indicadores agropecuários que ilustra bastante bem esses métodos e apresenta dados, para alguns produtos,
das perdas pré e pós-colheita para o período de
1996 a 2003 (iBGe, 2004a).
no entanto, como para o PmB essas perdas não
são aproveitáveis, não cabe aprofundar este
ponto.
As perdas na colheita
as perdas na colheita são consideradas como as
mais importantes em termos quantitativos (JarDine, 2002). Devem-se: “(1) à falta de manutenção das colheitadeiras; (2) à falta de regulagem
ou de ajuste fino das máquinas, que devem ser
feitos no momento da colheita, levando-se em
conta o grau de umidade e o estágio de maturação dos grãos; (3) à idade ou obsolescência
da frota; (4) ao número ainda reduzido de operadores de colheitadeiras devidamente capacitados; e (5) a não observância da velocidade
ideal de operação das máquinas e dos elementos mecânicos mais diretamente responsáveis
por uma proficiente colheita (molinete, barra de
corte, caracol etc.), se bem que, em determinadas situações de anormalidades climáticas, podem ser até justificáveis para se evitar prejuízos
maiores” (iBGe, 2004a: 3).
essas perdas dificilmente poderiam ser usadas
pelo Programa. no entanto, sabemos, desde
1975, quando o iBGe concluiu o estudo nacio-
serviço social do Comércio |
nal da Despesa Familiar (endef) – uma pesquisa
de consumo alimentar e orçamentos familiares –, que muitas famílias vivem recolhendo o
que sobra das colhedeiras e sobrevivem dessa
maneira. não temos dados mais recentes para
saber qual foi o impacto das alterações fundiárias ocorridas, sobretudo com o aumento da
produção voltada para a exportação, sobre essa
estratégia de sobrevivência.
As perdas pós-colheita
Definem-se as perdas pós-colheita como todas as
perdas que ocorrem depois da colheita e até o
fim da cadeia de comercialização. no entanto, a
literatura limita-se às perdas no transporte e na
armazenagem, como já mencionado.
estas perdas são o ponto de maior dificuldade
para a construção de tabelas de suprimento
e utilização (ou Folhas de Balanço alimentar,
como a Fao denomina), em parte pela dimensão
territorial do Brasil, que dificulta a realização de
levantamentos em nível nacional. De fato, Getúlio Pernambuco, da Confederação nacional de
agricultura (Cna), afirma que não existem estatísticas precisas sobre perdas porque não há
levantamentos sistemáticos (JarDine, 2002).
nos estudos de balanço e disponibilidade, 198286 e 1986-90, realizados pela Fundação Getúlio
Vargas (FGV), foram utilizados índices de perdas
pós-colheita para grãos que, provavelmente, necessitam hoje de revisão (FGV, 1988; FGV, 1991).
a própria associação Brasileira de Pós-Colheita
(abrapos) reconhece a escassez de dados sobre perdas pós-colheita e indica que o último
trabalho mais abrangente foi o relatório produzido pela Comissão Técnica para redução das
Perdas na agropecuária, do ministério da agricultura, do abastecimento e da reforma agrária
(CTrPa, 1993). no entanto, o citado relatório é
incompleto pois não são consideradas as perdas durante o transporte (iBGe, 2004a).
É consenso no Brasil que há perdas sérias de soja
durante o transporte e armazenamento deste
produto, bem como de outros grãos (marTinS
& FariaS, 2002). Segundo levantamento da
Cna, o prejuízo com o derrame de grãos, de
uma forma geral, durante o transporte rodoviário, chega a r$ 2,7 bilhões a cada safra, o que
representa 10 milhões de toneladas perdidas
(JarDine, 2002). e o motivo deste problema é
que os caminhões transportam mais carga do
que as carretas comportam, sendo maiores as
perdas ocorridas durante o transporte a longa
distância, que variam entre 5% e 10%, conforme
o produto (JarDine, 2002).
estima-se que cerca de 60% das cargas do agronegócio brasileiro são transportadas por rodovias (Ballan, 2004) e as perdas aumentam porque cerca de 80% das estradas brasileiras estão
em condições inadequadas (REvISTA UPDATE,
2004).
no transporte, “as maiores perdas são as que
ocorrem durante o transporte de longa distância, na maioria das vezes, entre a empresa e
o exportador” (JarDine, 2002: 16). Segundo o
iBGe (2004a), isto ocorre porque cerca de 67%
das cargas brasileiras são transportadas por
rodovias, apesar de não ser o modo de transporte mais vantajoso para longas distâncias,
visto que estudo de viabilidade econômica
aponta o transporte rodoviário como mais adequado para distâncias de até 300 km, o ferroviário para distâncias entre 300 e 500 km, e o
fluvial para distâncias maiores que 500 km.
as perdas de armazenamento, de modo geral, são
devidas à inadequação e falta de manutenção
na rede de armazenagem, além de problemas
de qualificação de mão de obra e, também, de
equipamento:
as perdas na armazenagem decorrem, em geral, da
insuficiência estrutural ou inadequação da rede de
armazenagem, bem como do baixo nível de qualificação
da mão de obra que opera os secadores, as câmaras
de expurgo, os aeradores e outros equipamentos de
recepção, movimentação e conservação dos produtos
nas unidades armazenadoras. no armazenamento da
produção podem ocorrer perdas físicas e perdas na
qualidade do produto. as perdas físicas expressam-se
pela redução do peso dos estoques, principalmente em
razão do ataque de insetos, e pela perda da umidade
dos grãos. Tanto as perdas físicas como as de qualidade
dos grãos estão associadas ao tempo de existência
dos estoques e às condições de armazenamento dos
mesmos (iBGe, 2004a: 3).
lorini (2000) estima que os prejuízos por ataques
de pragas a grãos armazenados chegam a 10%.
as perdas de armazenagem e transporte são
estimadas por alguns índices, calculados com
base em uma “disponibilidade” definida como
a produção, mais o saldo de importação e exportação e o saldo de estoque (estoque no ano
anterior ou inicial de um ano e estoque final),
ou seja:
1. Perda = Disponibilidade x Índice de perda;
2. Disponibilidade = Produção + (importação - exportação) + (estoque final - estoque
inicial).
na realidade, não existe um estudo baseado em
amostra nacional, para estimar, de forma mais
robusta, esses índices de perda. assim, na referida publicação do iBGe, são usados índices de
perdas estabelecidos pela Fao por produto. o
índice de perda da Fao para o arroz (em casca)
é de 10% da disponibilidade; para o trigo (em
grão) é de 5% da disponibilidade; para o milho
(em grão) é de 10% da disponibilidade; e para o
feijão (em grão) é de 3% da disponibilidade. no
entanto, a Fao não calcula perdas para soja e a
publicação do iBGe utiliza um trabalho da FGV
que estima as perdas em 10% (FGV, 1991).
Deve-se registrar que outras fontes de perda são
esquecidas na literatura citada, porque o objetivo é calcular a disponibilidade interna (Di),
entendida como a quantidade de alimentos
com base na qual estimam-se as quantidades
de energia, proteínas etc. que estão disponíveis
para uso do país. É, portanto, uma estatística
importante para que se possa pensar em políticas de abastecimento e de segurança alimentar
e nutricional, mas insuficiente para orientar o
PmB.
De fato, o que interessa ao PmB são as perdas
observadas depois do cálculo da Di, ou seja, as
perdas na comercialização, nos serviços de alimentação e no processo industrial, pois essas
são perdas que podem ser aproveitadas pelo
Programa.
as perdas na cadeia de comercialização, decorrentes da proximidade do vencimento de validade e de alguma perda de qualidade, não são
captadas pelas pesquisas de comércio do iBGe.
estas pesquisas são basicamente econômicas
e não levantam, por exemplo, quantidades compradas, vendidas e mantidas em estoque por
produto. ou seja, não visam ao controle do estoque dos estabelecimentos comerciais, nem à
estimação de suas perdas.
outro tipo de perda não incluída nos levantamentos do sistema estatístico brasileiro é a observada nos serviços de alimentação, que cresceram
extraordinariamente a partir dos anos 90. Tratase das sobras de alimentos preparados que não
podem ser posteriormente aproveitadas.
o processo industrial também tem perdas e não
há dados no iBGe.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
101
Desperdício
de alimentos: de
que se trata,
afinal?
disponibilidade interna
102
a disponibilidade interna (Di) é definida como: o estoque inicial de um ano,
mais a produção, mais a importação, menos a exportação, menos as perdas
pós-colheitas (as de armazenagem e transporte), menos a parcela que se
retira para a semeadura, e menos o estoque final no ano (Quadro 1). ou seja,
a disponibilidade interna corresponde à quantidade que ficou disponível, ao
longo do ano, para a população. mas não exclusivamente para a população
humana. Ficou disponível no país para todos os usos: uso industrial, alimentação animal, alimentação humana etc.
Desperdício
de alimentos: de
que se trata,
afinal?
os estoques inicial e final de um ano podem ser obtidos a partir dos dados da
Pesquisa de estoques, realizada semestralmente pelo iBGe e disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/agropecuaria/estoque/
default.shtm.
a produção pode ser estimada pelo Censo agropecuário, pelo levantamento
Sistemático da Produção agrícola e pelas pesquisas de produção pecuária,
disponíveis em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/agropecuaria/producaoagropecuaria/default.shtm.
os dados de importação e exportação são disponíveis no Sistema alice da Secretaria de Comércio exterior, do ministério do Desenvolvimento, indústria e
Comércio exterior, em http://aliceweb.desenvolvimento.gov.br/.
no Quadro 1, observa-se que o país tinha um estoque inicial de 2.107.997 toneladas de arroz em casca, em 2002. o Brasil produziu, nesse ano, mais de 10
milhões de toneladas, importou e exportou poucas toneladas, teve perdas de
1,25 milhões de toneladas (correspondente a 10% da disponibilidade), reservou 240 mil toneladas para semeadura e obteve uma Di de quase 11 milhões
de toneladas. o estoque final de 2002 é o estoque inicial no balanço de 2003,
e as contas seguem o mesmo método. ainda no Quadro 1, ao dividir a Di pela
população brasileira, obtém-se a disponibilidade interna per capita, no caso
expressa em quilogramas.
Paralelamente, a Pesquisa de orçamentos Familiares 2002-3 (iBGe, 2004b) estimou a compra anual de arroz per capita em 25,55 kg. a diferença entre a Di
per capita e o consumo domiciliar per capita anual, obtido na PoF, pode ser
explicada pelo beneficiamento (reduz o peso pela retirada da casca e polimento) e pelos outros destinos do arroz (serviços de alimentação, indústria,
dentre outros).
Quadro 1 - Exemplo de cálculo da disponibilidade interna (DI)
brasileira para arroz e feijão nos anos de 2002 e 2003
Fontes: IBGE, 2004a e IBGE,
2004b.
arroz em casca (t)
2002
2002
2003
estoque inicial
2 107 997
916 671
38 089
35 059
(+) Produção
10 471 800
10 319 925
3 050 204
3 309 900
836 135
1 596 642
82 428
103 342
44 032
28 580
16 307
3 249
1 245 523
1 197 912
93 581
102 063
(-) Semeadura
240 820
280 999
170 726
171 271
(-) estoque final
916 671
825 535
35 059
42 957
10 966 271
10 500 212
2 854 945
3 128 761
42,70
40,37
16,35
17,69
(+) importação
(-) exportação
(-) Perdas pós-colheita
(=) Disponibilidade
interna
Di per capita (kg)
PoF 2002-2003:
Compras
per capita anual (kg)
serviço social do Comércio |
feijão em grão (t)
2003
25,55
12,39
assim, o dado de Di per capita, em princípio, é bem
coerente e não tem maiores problemas para uso
em políticas de abastecimento. Só que é feito
produto por produto e para alguns produtos.
Para uso na avaliação nutricional, a questão é
mais complicada porque a estimativa necessária é a da ingestão e a estimativa da disponibilidade interna ignora as perdas posteriores que
reduzem a quantidade ingerida. Dentre essas
perdas destacam-se:
1. perdas de comercialização por vencimento da validade ou perda de qualidade, para as
quais não há dados no iBGe;
2. perdas nos serviços de alimentação, tais
como as sobras não reaproveitáveis e as sobras nos pratos dos clientes;
ou subnutrição. Se for maior ou igual a um, então não há subnutrição.
Para a maioria dos nutrientes, a ingestão maior
do que o requerimento não representa problema porque o organismo elimina o excesso. no
entanto, para a energia isto não acontece: o organismo armazena a energia excedente na forma de gordura corporal conduzindo, se mantida
ao longo do tempo, a uma ingestão energética
superior ao requerimento energético, ao sobrepeso e à obesidade.
a discussão dos métodos de avaliação nutricional é feita separadamente para o caso das pesquisas mundiais de alimentos e para pesquisas
domiciliares.
3. perdas do processo industrial, para as
quais não há dados no iBGe;
Avaliação nutricional em nível de país
4. perdas nos estoques domiciliares por vencimento da validade ou perda de qualidade;
o uso da Di para avaliação nutricional foi consagrado nas pesquisas mundiais de alimentos realizadas pela Fao (Fao, 1946; Fao, 1952; Fao,
1963; Fao, 1977; Fao, 1987; Fao, 1996).
5. perdas na preparação e consumo de alimentos no domicílio, para as quais só há dados de 1975, obtidos no endef.
assim, a Di apresenta diversos questionamentos
que praticamente invalidam seu uso para fins
de avaliação nutricional.
o mesmo aplica-se à aquisição de alimentos obtida
pela PoF do iBGe. no entanto, essas informações
continuam a ser usadas para fins nutricionais
com o argumento de que não existe outra informação para avaliação nutricional da população.
Avaliação do estado nutricional
o principal indicador de estado nutricional é a
taxa de adequação, que corresponde à razão
entre a ingestão (expressa em energia, proteína
ou outro elemento nutriente) e o requerimento
nutricional correspondente.
Para tanto, a Di de cada alimento é transformada em energia (kcal) e proteínas, por meio das
tabelas de composição editadas pela Fao, para
obter o total de calorias e proteínas disponíveis
em um país. este total é dividido pela população
do país para calcular a disponibilidade interna
per capita de energia e proteínas do país. a população usada é obtida nas projeções populacionais do escritório de estatística das nações
Unidas (United nations Statistical office).
Como toda medida per capita, o valor obtido difere de habitante a habitante do país e deve ser
entendido como um valor médio. assim, este
cálculo conduz à média de consumo do país e
demanda um tratamento estatístico para poder
ser estimada a prevalência de subnutrição.
a taxa de adequação pode ser calculada para uma
pessoa (ingestão da pessoa / requerimento da
pessoa). Para uma família, a taxa de adequação
corresponde à razão entre a ingestão familiar e
o requerimento familiar. nesse caso, esta razão
não se altera se requerimento e ingestão forem
expressos por pessoa (per capita na família) ou por
adulto-dia. Por extensão, a taxa de adequação da
população de um país corresponde à razão entre
a ingestão per capita e o requerimento per capita.
Como a distribuição de ingestão em energia da
população pertence à família da distribuição
normal, é preciso especificar o segundo parâmetro (o desvio padrão) para definir a distribuição normal aplicável ao país. na ausência desta
estatística para a maioria dos países, a Divisão
de estatística da Fao estima o coeficiente de
variação (CV) da distribuição de renda ou da distribuição de despesas, uma informação conhecida para a maioria dos países por meio de suas
pesquisas domiciliares (amostrais ou o censo
demográfico).
Se a taxa de adequação for menor que um, o requerimento é maior do que a ingestão e, portanto, tem-se uma situação de restrição alimentar
Como CV é uma medida adimensional definida
pela razão entre o desvio padrão e a média de
uma variável, o método usado pressupõe que o
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
103
Desperdício
de alimentos: de
que se trata,
afinal?
desvio padrão (DP) da ingestão de energia é igual ao CV da renda (ou da
despesa) multiplicado pela média de consumo (expressa pela Di per capita).
Dessa forma, pode-se especificar completamente a distribuição normal correspondente ao país (Figura 1).
104
Com os mesmos dados populacionais, a Fao calcula os requerimentos de energia usando as recomendações internacionais para os requerimentos humanos de energia. a média populacional dos requerimentos fornece o valor do
requerimento mínimo (rm) para adequação energética, apresentado na Figura 1. a área sobre a curva à esquerda do requerimento mínimo corresponde à
proporção de pessoas cuja ingestão não seria suficiente para atender a seus
requerimentos. esta proporção é a prevalência de subnutrição, que multiplicada pela população do país estima o número de subnutridos do país.
Desperdício
de alimentos: de
que se trata,
afinal?
Figura 1 - Representação gráfica da curva de ingestão 'per capita'
de um país e da prevalência de subnutrição
nota: esta distribuição
é arbitrária e serve,
apenas, para ilustrar
o método usado.
Para cada país, a
distribuição real tem o
valor da Di como média
e o CV de renda (ou
despesas) determina
sua dispersão. Dessa
forma pode ser
calculada a proporção
de casos abaixo do
rm (prevalência de
subnutrição).
Distribuição
normal
Distribuição
Normal
Prevalência de subnutrição
-4DP
-3DP
-2DP
RM
-1DP
D
+1DP
+2DP
+3DP
+4DP
Disponibilidade interna per capita (DI) e desvio padrão (DP)
Para a sexta Pesquisa mundial de alimentos (Fao, 1996) a Fao utilizou as
recomendações internacionais de 1985, publicadas pela organização mundial de Saúde (Fao/WHo/UnU, 1985). as recomendações atuais foram publicadas pela Fao em 2004 (Fao/WHo/UnU, 2004) e deverão ser usadas
na próxima pesquisa.
o método usado nas pesquisas mundiais de alimentos foi definido por
Sukhatme, um dos pais da amostragem probabilística (SUkHaTme, 1954),
quando chefiou a Divisão de estatística da Fao. esse método não se propõe
a fazer uma avaliação nutricional acurada, mas tão somente dar uma ideia
da tendência da subnutrição nos países.
além dos problemas derivados do uso da Di per capita como proxy da ingestão, existem três outros tipos de problemas: (1) o cálculo do requerimento
mínimo não é acurado porque não se conhece o nível de atividade física e
medidas antropométricas da população; (2) a qualidade da informação que
os países encaminham à Fao afeta diretamente a estimativa da Di; (3) os
sistemas de crítica da Fao, que são concebidos para a assegurar qualidade
dos dados recebidos, impedem alterações acentuadas na produção.
De fato, os dados usados nas Folhas de Balanço alimentar são fornecidos à
Fao por meio de questionários preenchidos pelo(s) órgão(s) de estatística
dos países. no início eram questionários impressos e atualmente são questionários on line. no caso brasileiro, o iBGe preenche esses questionários,
mas temos observado que informações constantes das Folhas de Balanço
serviço social do Comércio |
alimentar não necessariamente são as que foram fornecidas pelo iBGe. a
explicação recebida é a de que o sistema desenvolvido tem muitas críticas
e faz correções que alteram algum dado. o fato é que quando o rendimento
agrícola brasileiro aumentou de forma acelerada, o sistema da Fao não captou o salto de produção de um ano para outro.
105
Desperdício
de alimentos: de
que se trata,
afinal?
Avaliação nutricional das famílias
a única avaliação nutricional das famílias brasileiras com base em de dados
de ingestão de alimentos foi realizada no endef. nessa pesquisa, cerca de 53
mil famílias foram pesquisadas ao longo de sete dias consecutivos, por mais
de 1.200 entrevistadores. em seu método, cada “entrevistador, em princípio,
faz tantas visitas quantas sejam as refeições principais da família para: pesar
os alimentos que serão consumidos na refeição seguinte; pesar os alimentos
comprados no dia, exceto os industrializados que já têm peso líquido na embalagem; e obter o peso dos resíduos, sobras ou desperdícios” (VaSConCelloS
& anJoS, 2001: 582).
nesse artigo, os autores documentam a forma de cálculo da ingestão (em energia ou nutriente) e dos requerimentos, incluindo as escalas para corrigir as
diferenças de ritmo alimentar e presença às refeições (escala de ponderação
das refeições) e para corrigir as diferenças de composição por sexo e idade
(escala de adulto-equivalente).
Para estimar a ingestão alimentar, diversos passos são necessários: (1) calcular o peso da
parte comestível dos alimentos consumidos e desperdiçados, que corresponde ao peso
do alimento tal como é comprado menos o peso dos resíduos não-comestíveis (cascas,
ossos, caroços etc.); (2) transformar os pesos das partes comestíveis em energia e
nutrientes, por meio de tabelas de composição química de alimentos; (3) converter as
preparações culinárias em peso da parte comestível dos ingredientes básicos, por meio
de receitas médias, derivadas das receitas utilizadas pelas famílias e levantadas ao longo
do trabalho de coleta; (4) transformar os pesos de partes comestíveis dos ingredientes
básicos em energia e nutrientes, usando tabelas de composição; (5) agregar os dados
de energia e nutrientes consumidos e desperdiçados no nível familiar, para estimar
a ingestão de energia e nutrientes pela diferença entre consumo e desperdício dos
alimentos (VaSConCelloS & anJoS, 2001: 583).
Para exemplificar o cálculo da ingestão e apresentar estimativas do desperdício
alimentar nas famílias, foi elaborado o Quadro 2. Seus dados mostram que
a quantidade de energia (kcal) dos alimentos desperdiçados representava
uma parcela pequena (2,3%) do total de energia dos alimentos consumidos e
que a maior parte do desperdício observado nas famílias brasileiras em 1975
destinou-se à alimentação de animais.
Quadro 2 - Estimativas do total de energia por adulto-dia,
segundo algumas variáveis
Variáveis
energia por adulto-dia
(kcal)
Fontes: IBGE, 2004a e IBGE,
2004b.
porcentagens
Compras
1 702,93
Consumo
2 816,44
100,0
Desperdício
65,33
2,3
100,0
Dado a animal
32,33
1,1
49,5
Jogado no lixo
25,51
0,9
39,0
7,49
0,3
11,5
2 751,11
97,7
Doação para outra família
ingestão
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Voltando à avaliação nutricional, observa-se que o total de energia comprada
foi inferior ao total de energia ingerida, indicando que o endef captou um
momento em que as famílias consumiram mais de seu estoque de alimentos
do que compraram para sua reposição. nada assegura, no entanto, que a
situação inversa não poderia ser captada em outro momento.
106
Desperdício
de alimentos: de
que se trata,
afinal?
isso mostra que o uso de dados de compras, como os obtidos em uma pesquisa de orçamentos familiares, pode conduzir a uma avaliação equivocada da
situação nutricional das famílias. De fato, para obter a ingestão familiar em
uma pesquisa de orçamentos seria necessário levantar o estoque de alimentos da família, as obtenções (que são os alimentos obtidos por fluxos não
monetários de produção própria, troca, doações e recebimentos em bens) e
usar uma equação de balanço do tipo (que pode ser expressa em energia ou
algum nutriente):
ingestão = estoque inicial + compras + obtenções – desperdícios – estoque
final.
Se as compras e obtenções incluírem a alimentação em casa e fora desta,
será necessário apenas controlar a presença de convidados às refeições (eles
representam alimentos comprados e que não foram consumidos pelos membros da família) para poder relacionar a ingestão familiar com os requerimentos dos que participaram das refeições.
Usar apenas a obtenção de alimentos (compras + obtenções) como proxy da
ingestão significa pressupor que estoque inicial menos estoque final menos
desperdício é igual a zero. Trata-se, portanto, de uma hipótese muito forte que
tem sido justificada pela falta de dados de ingestão.
Como a pesquisa endef foi uma pesquisa de orçamentos familiares e consumo
alimentar, seus dados permitem construir os estimadores de ingestão e de
compras e desenhar os histogramas de frequências (Figura 2).
a Figura 2, cujos histogramas correspondem a classes de 200 kcal, com o ponto médio de uma a cada duas classes indicado, mostra que o estimador de
compras tem uma distribuição concentrada até 3.000 kcal/adulto/dia (85%
das famílias), mas com frequências não ignoráveis acima de 7.000 kcal/adulto/dia e uma forma que lembra mais uma distribuição log-normal do que a
forma normal da distribuição de ingestão por adulto-dia, que concentra cerca
de 70% das famílias entre 1.800 e 3.400 kcal/adulto/dia.
Figura 2 - Histogramas de frequências populacionais dos
estimadores de ingestão e compra
(1000
familias)
(1000
familias)
Fonte: Vasconcellos (2001:167).
Ingestão de energia por adulto-dia (100 kcal)
serviço social do Comércio |
Energia comprada total por adulto-dia (100 kcal)
ao relacionar esse dois estimadores com os requerimentos energéticos, para
estimar a taxa de adequação em energia (Tae), os erros observados no numerador (em função da hipótese de nulidade do restante da equação de balanço)
afetam de forma irremediável as estimativas da prevalência de subnutrição.
107
Para exemplificar esse ponto, foi usado o requerimento energético de manutenção,
que corresponde a 1,4 vezes a taxa metabólica basal (gasto energético diário para
manutenção das funções vitais do organismo) e é adequado para indivíduos sedentários ou com níveis de atividade física muito baixos, permitindo considerar
apenas atividades como vestir-se, lavar-se e três horas de atividades em pé (JameS & SCHoFielD, 1990). esse requerimento de manutenção foi relacionado
aos dois estimadores de consumo (ingestão de energia) e obtenção (compras +
obtenções) de energia, para cálculo da Tae (Quadro 3).
Desperdício
de alimentos: de
que se trata,
afinal?
Quadro 3 - Prevalência de subnutrição energética (TAE < 1), por
décimos de despesa real corrente anual 'per capita', segundo o
estimador usado no cálculo da taxa de adequação de energia
estimador usado no cálculo
da taxa de adequação de energia
Décimos de despesa real corrente per capita anual
1º
2º
3º
4º
5º
6º
7º
8º
9º
10º
ingestão de energia
47,5
36,0
31,3
29,4
26,9
23,3
21,2
17,6
14,7
15,2
obtenção de energia
51,6
48,5
48,0
47,3
49,9
52,4
51,9
53,8
51,2
45,9
os dados do Quadro 3 indicam que à medida que cresce o nível de renda, cai a
prevalência de subnutrição calculada com o estimador de ingestão. Há uma
pequena inflexão no décimo de renda, decorrente de problemas no método
do endef, que não captava de forma acurada a ingestão de famílias com número elevado de refeições feitas fora de casa.
no caso do estimador de obtenção, a prevalência é sempre maior, não apresenta uma tendência marcada e é pouco provável que tivéssemos uma variação
tão pequena na prevalência de subnutrição entre os 10% mais ricos e os 10%
mais pobres do país, o que mostra de forma contundente o erro da hipótese
de nulidade das variáveis desconhecidas (estoque inicial – estoque final –
desperdícios = 0).
conclusões
Do exposto, pode-se concluir que a disponibilidade interna é uma informação
importante para planejar o abastecimento humano, mas não é adequada
para avaliação nutricional, sobretudo porque não se tem informação sobre
os desperdícios que ocorrem na comercialização, na indústria e nos serviços
de alimentação.
os dados econômicos obtidos em uma pesquisa de orçamentos familiares,
como as que o iBGe realiza, apesar de poderem ser expressos em quantidades físicas, não são suficientes para estimar a ingestão nutricional. É preciso
conhecer a variação do estoque familiar de alimentos antes e depois do período de pesquisa na família.
É fato que a existência de dados sobre o desperdício de alimentos e sobre
a presença de convidados, além das informações sobre antropometria e
atividades físicas das pessoas, aprimorariam substancialmente o cálculo
da ingestão e dos requerimentos e, portanto, tornariam a prevalência de
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
subnutrição mais acurada. no entanto, isto implica fazer uma pesquisa
muito mais complexa, incluindo pesquisa de estoques e de uso do tempo
(para atividades físicas).
108
montar um sistema de informações que permita estimar o desperdício de alimentos de forma acurada implica grandes transformações e adições às pesquisas agropecuárias, de indústria, de comércio e de serviços que o iBGe
realiza e, portanto, pressupõe fontes regulares de financiamento ao iBGe.
Desperdício
de alimentos: de
que se trata,
afinal?
Voltando à pergunta do título deste trabalho, conclui-se que desperdício tratase de algo que não se tem como medir com acurácia, por falta de dados.
referências
BallaN, a. i. Demanda por transporte no complexo de grãos e fertilizantes. in: seMiNÁRiO iNteRNaCiONal eM lOgÍstiCa agROiNDustRial, 1, 2004, piracicaba. Anais...
piracicaba: usp, escola superior de agricultura luiz de Queiroz, 2004. Disponível em:
<http://log.esalq.usp.br/home/pt/seminario.php?sh=2004>.
BRasil. Ministério da agricultura, do abastecimento e da Reforma agrária. Perdas na
agropecuária brasileira: relatório preliminar da comissão técnica para redução das
perdas na agropecuária. [Brasília, Df]: Ministério da agricultura, do abastecimento e
da Reforma agrária, 1993.
faO. The fifth world food survey. Rome: faO, 1987.
______. The fourth world food survey. Rome: faO, 1977.
______. The second world food survey. Rome: faO, 1952.
______. The sixth world food survey. Rome: faO, 1996.
______. Tabla de composición de alimentos de América Latina. 2002. Disponível em:
<http://www.rlc.fao.org/es/bases/alimento/default.htm>.
______. The third world food survey. Rome: faO, 1963. (freedom from Hunger Campaign
basic study, 11).
______. World food survey. Rome: faO, 1946.
iBge. Coordenação de agropecuária. Indicadores agropecuários, 1996-2003. Rio de Janeiro: iBge, 2004a. (estudos e pesquisas. informação econômica, n. 3).
iBge. Coordenação de Índices de preços. Pesquisa de orçamentos familiares, 20022003: aquisição alimentar domiciliar per capita - Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro: iBge, 2004b.
iNstitutO BRasileiRO De eCONOMia. Centro de estudos agrícolas. Balanço e disponibilidade interna de gêneros alimentícios de origem vegetal, 1982 a 1986. Rio de
Janeiro: Centro de estudos agrícolas, 1988.
______. Balanço e disponibilidade interna de gêneros alimentícios de origem vegetal,
1986 a 1990. Rio de Janeiro: Centro de estudos agrícolas, 1991.
serviço social do Comércio |
JaMes, W. p. t.; sCHOfielD, e. C. Human energy requirements: a manual for planners
and nutritionists. New York: faO; Oxford: Oxford university, 1990.
109
JaRDiNe, C. perdas: quando a produção não vai para o saco. A Granja, porto alegre, v. 58,
n. 639, p. 12-19, mar. 2002.
JOiNt faO/WHO/uNu expeRt CONsultatiON ON eNeRgY aND pROteiN ReQuiReMeNts, 1981, Rome. Energy and protein requirements: report of a Joint faO/WHO/
uNu expert Consultation. geneva: WHO, 1985. (World Health Organization technical report series, 724). Disponível em: <http://www.fao.org/DOCRep/003/aa040e/aa040e00.
HtM>.
Desperdício
de alimentos: de
que se trata,
afinal?
JOiNt faO/WHO/uNu expeRt CONsultatiON ON eNeRgY aND pROteiN ReQuiReMeNts, 2001, Rome. Human energy requirements: report of a Joint faO/WHO/uNu
expert Consultation. Rome: faO, 2004. (faO, food and nutrition technical report series,
1). Disponível em: <http://www.fao.org/docrep/007/y5686e/y5686e00.htm>.
lORiNi, i. Como manejar as pragas de grãos armazenados. Rio de Janeiro: sociedade
Nacional de agricultura, 2000. Disponível em: <http://www.snagricultura.org.br/artigos/artitec.armazenagem.htm>.
MaRtiNs, C. R.; faRias, R. M. produção de alimentos x desperdício: tipos, causas e
como reduzir perdas na produção agrícola – revisão. Revista da Faculdade de Zootecnia, Veterinária e Agronomia, Uruguaiana, v. 9, n. 1, p. 83-93, 2002. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fzva/article/view/2141/1650>.
paÍs do desperdício. Revista Update, são paulo, n. 403, abr. 2004. Disponível em: <http://
www.amcham.com.br/revista/revista2004-03-15a/materia2004-03-22a>.
suKHatMe, p. V. Sampling theory of surveys with applications. New Delhi: indian society of agricultural statistics; ames: iowa state College press, [1954].
VasCONCellOs, M. t. l. Análise crítica dos métodos de avaliação nutricional de populações, a partir de dados de consumo familiar de energia. 2001. tese (Doutorado)escola Nacional de saúde pública, fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2001.
VasCONCellOs, M. t. l.; aNJOs, l. a. taxa de adequação (ingestão/requerimento) de
energia como indicador do estado nutricional das famílias: uma análise crítica dos métodos aplicados em pesquisas de consumo de alimentos. Cadernos de Saúde Pública,
Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 581-593, maio/jun. 2001.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
110
* Presidente da Comissão nacional de População e
Desenvolvimento (CnPD), professor titular do Departamento
de Demografia e pesquisador do Centro de Desenvolvimento
e Planejamento regional (Cedeplar) da UFmG. Doutor em
Demografia pela Universidade da Califórnia-Berkeley e
pós-doutor pela Universidade do Texas-austin. É membro do
Conselho de Desenvolvimento econômico e Social de minas
Gerais, vinculado à Secretaria de Planejamento e Gestão do
estado de minas Gerais (Seplar).
A dimensão nutricional do
Bolsa Família eduardo rios-neto*
serviço social do Comércio |
111
a avaliação de impacto do Bolsa Família (aiBF),
principal instrumento de avaliação desse programa – encomendada pela Secretaria de avaliação
e Gestão da informação do ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome –, foi realizada em 2005 pelo Centro de Desenvolvimento e
Planejamento regional de minas Gerais (Cedeplar), por meio da Fundação de Desenvolvimento
e Pesquisa (Fundep). e a pesquisa de linha de
base do aiBF, que foi utilizada para a estimação
dos resultados aqui apresentados, representa
uma primeira fase da avaliação, que futuramente deverá ser analisada de forma longitudinal. a
pesquisa de avaliação de impacto foi feita, nacionalmente, em novembro de 2005. Similar a esta,
abrangendo itens relacionados ao Bolsa Família,
é a Pesquisa nacional de Demografia e Saúde
da Criança e da mulher (PnDS), do ministério da
Saúde, realizada em 2006.
o objetivo desta apresentação é expor alguns resultados da aiBF que tenham conexão com a dimensão nutricional. Utiliza-se também a Pesquisa nacional de Demografia e Saúde da Criança
e da mulher (PnDS), do ministério da Saúde,
para contextualizar um ano a mais de resultados e, assim, alimentar o debate. essa pesquisa
contribui na medida em que possui informações
sobre a escala Brasileira de Segurança alimentar (ebia). os paradoxos encontrados em alguns
resultados podem ser efeitos do denominado
“viés de linha de base”, ou da ótima focalização
do Programa Bolsa Família, por isso é preciso
muita cautela na análise e interpretação dos dados aqui apresentados.
a apresentação está dividida em quatro seções. a
primeira aborda alguns conceitos relativos à avaliação de impacto. a segunda apresenta a metodo-
logia de avaliação de impacto utilizada com a aiBF
e alguns resultados sobre variáveis nutricionais,
como gastos com alimentação e desnutrição. a
terceira mostra os resultados obtidos por meio da
PnDS; e a quarta propõe uma conclusão.
Avaliação de impacto: alguns conceitos
os beneficiários de um programa sofrem uma intervenção que afeta uma variável de resultado.
esta variável pode ser a educação, a qualidade
de vida e, no presente caso, o estado nutricional de um indivíduo. Para estimarmos o impacto
desta intervenção seria ideal que pudéssemos
ter um contrafactual, isto é, que pudéssemos saber o que seria do indivíduo caso ele não tivesse
recebido o benefício. Como é impossível saber
o contrafactual, o mais importante da avaliação
de impacto é que haja um grupo de controle. o
impacto da intervenção é a diferença na variável
de interesse entre o grupo de tratamento (que
sofreu a intervenção) e um grupo de controle.
Quando esse grupo de controle é bem feito, gera
o chamado contrafactual.
Por exemplo, na área de mercado de trabalho, avaliávamos um programa de formação profissional, com o acompanhamento do egresso antes
e depois do treinamento, mas não existia grupo
de controle. Se a economia ia bem, o salário do
egresso aumentava e pensávamos que o programa tinha impacto. mas, se havia uma recessão,
o salário do egresso diminuía e a interpretação
natural seria a de que o programa não tinha tido
impacto, e não era isso.
a principal vantagem da avaliação de impacto é gerar um resultado direto, dado pela diferença entre
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
o resultado para o grupo de tratamento e o resultado para o grupo de controle.
mas, na realidade, isso só ocorreria se você tivesse um clone verdadeiro e a única diferença fosse o treinamento. aí sim teríamos o impacto verdadeiro. Como
não podemos clonar os beneficiários, para que seus clones não sofram a intervenção de política pública e se tornem um grupo de controle, temos que ver
quais metodologias científicas são desenvolvidas para resolver este problema,
que é gerar um grupo de controle ou contrafactual. eis aqui alguns métodos:
112
A dimensão
nutricional do
Bolsa Família
•OmétododaAleatorizaçãoemumExperimento;
•OmétododoEscoredePropensãopareadocombaseemvariáveisobserváveis;
•OmétododaDiferençanasDiferençasaplicadoaumExperimentoNatural;
•OmétododaDiferençanasDiferençasaplicadoaumaRegressãodeDescontinuidade.
na avaliação existe um conceito muito importante, o da heterogeneidade não
observada. Por exemplo, observa-se uma pessoa que possui determinada característica, se a pessoa possui esta característica desde a infância (t-1) e a
conserva até idade mais avançada (t), se fizermos o diferencial da característica no tempo t, menos a características no tempo t-1, ela será controlada,
e, portanto, descartada. Daí a necessidade de dois pontos no tempo para a
avaliação de impacto, conforme veremos adiante. o fato da aiBF ter sido realizada apenas em um ponto no tempo (2005) dificulta a identificação do que é
impacto e o que é diferencial entre o grupo de tratamento e o de controle.
Avaliação de impacto do Bolsa família
metodologia
Como a implementação do Programa Bolsa Família não foi realizada de forma
aleatória entre as famílias elegíveis, de modo que o desenho do Programa
não é experimental, a opção foi pelo uso de um método quase experimental.
a técnica escolhida na aiBF foi de Pareamento com escore de Propensão –
Propensity Score Matching (PSm) –, que compara resultados de famílias similares do grupo de tratamento com as dos grupos de comparação. o objetivo
do pareamento é encontrar um grupo de comparação ideal em relação ao
grupo de tratamento, sendo a relação de proximidade entre os grupos medida
em termos das características observadas.
o grupo de comparação é então emparelhado ao grupo de tratamento por meio
do escore de propensão, que representa a probabilidade predita da família
receber o benefício. em seguida estimam-se os efeitos do tratamento (efeito
do programa) por meio da diferença entre os resultados médios dos grupos
emparelhados de tratamento e controle.
os pressupostos desta técnica são: em primeiro lugar, a condição de equilíbrio,
que implica que se a distribuição do escore de propensão (ou seja, da probabilidade de receber o benefício) é a mesma entre as amostras de tratamento e controle, a distribuição de características que determinam esse escore
(essa probabilidade) também é a mesma nas duas amostras. Dessa forma,
as amostras de tratados e controle estão equilibradas, ou balanceadas. o
segundo pressuposto é o do suporte comum, que requer que existam unidades de ambos os grupos, tratamento e controle, para cada característica que
se deseja comparar. isto assegura que para cada família tratada exista outra
família não tratada.
esta técnica é limitada porque estamos assumindo que o grupo de tratamento
só é clone pelas variáveis que conseguimos medir. e, mais ainda, com um
serviço social do Comércio |
ponto só no tempo, o que é um problema sério. É importante dizer que a
pesquisa foi chamada de pesquisa de linha de base, porque ela teria que ter
tido um follow-up, uma pesquisa longitudinal. no entanto, já se passaram
três anos e ela ainda não aconteceu, e não sei qual a possibilidade de esse
acompanhamento ser feito agora, após esse tempo.
113
A dimensão
nutricional do
Bolsa Família
o problema de se trabalhar com um ponto no tempo é que se está medindo um
diferencial que pode ser indicativo de um impacto, mas pode ser um indicativo do que é chamado na literatura de viés de linha de base, ou seja, um diferencial provocado por características não observáveis. Dois pontos no tempo
corrigiriam esse viés. ressalto esse problema porque existem resultados paradoxais que devem ser interpretados com muita cautela. o que se chama de
impactos pode, em grande medida, ser mais diferenciais do que impactos.
na avaliação foram feitos dois grupos de controle: C1, composto por beneficiários de programas que em 2005 concorreram com o Bolsa Família e não
tinham migrado para o Bolsa Família; e C2, composto por famílias que não
receberam benefícios do Bolsa Família e que nunca receberam qualquer outro benefício de programas federais prévios ao Bolsa Família. o grupo de tratamento é composto pelos beneficiários do Bolsa Família.
dimensão nutricional da AIBf
a seguir são apresentados alguns resultados do aiBF em relação à dimensão
nutricional. em primeiro lugar temos o impacto sobre os gastos com alimentos em particular. Depois, apresentam-se resultados antropométricos.
diferenciais sobre os gastos com alimentação
a parte de dispêndios da pesquisa teve uma mensuração de vários gastos, e aqui
se enfatizam as despesas com alimentos, dividida entre alimentos básicos e
não-básicos. a grande diferença entre eles é que os básicos seriam grãos,
cereais, farinhas, legumes, laticínios, verduras e tubérculos; e os não-básicos
seriam carnes, aves, peixes, ovos, açúcares. Vejamos as tabelas com os diferenciais nos valores médios para as variáveis de gasto por faixa de renda.
Tabela 1 - Valores médios para as variáveis de gastos por critério
de renda
Fonte: elaboração própria com
base na AIBF, 2005.
Renda R$ 50,00
Variáveis
tratamento
Comparação 1
Comparação 2
total
Despesa total
5.975,47
6.466,54
8.860,52
8.681,25
alimentação
2.486,81
2.545,02
2.644,21
2.581,49
Renda R$ 100,00
Variáveis
tratamento
Comparação 1
Comparação 2
total
Despesa total
6.548,92
7.258,47
9.288,67
8.114,10
alimentação
2.705,74
2.788,02
2.718,53
2.728,36
Renda R$ 200,00
Variáveis
tratamento
Comparação 1
Comparação 2
total
Despesa total
7.302,21
7.829,44
10.039,23
9.047,15
alimentação
2.891,19
2.952,43
3.054,09
2.581,49
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Tabela 2 - Valores médios para as variáveis de gastos de
alimentação desagregados, por critério de renda
114
Fonte: elaboração própria com
base na AIBF, 2005.
Renda R$ 50,00
Variáveis
A dimensão
nutricional do
Bolsa Família
tratamento
Comparação 1
Comparação 2
total
alimentos
básicos
1.135,90
1.247,25
1.197,88
1.188,83
alimentos nãobásicos
1.088,95
1.088,00
1.088,33
1.088,45
Renda R$ 100,00
Variáveis
tratamento
Comparação 1
Comparação 2
total
alimentos
básicos
1.251,40
1.290,37
1.262,94
1.264,97
alimentos nãobásicos
1.198,26
1.275,41
1.154,49
1.190,41
Renda R$ 200,00
Variáveis
tratamento
Comparação 1
Comparação 2
total
alimentos
básicos
1.336,68
1.376,44
1.447,08
1.410,20
alimentos nãobásicos
1.290,77
1.333,61
1.331,08
1.322,42
a seguir, a Figura 1 apresenta os diferenciais entre o grupo de tratamento e os
grupos de comparação para os gastos domiciliares anuais em 2005, Brasil e
regiões, comparando o beneficiário do Bolsa Família com o não-beneficiário
de qualquer programa. o interessante é que há impactos substanciais no
Brasil na despesa com alimentos e o impacto é maior nos beneficiários de
renda mais baixa. Se tomarmos como exemplo o gasto anual de r$ 388, 22
para uma renda per capita familiar de r$ 50 – de extrema pobreza –, e dividirmos esse valor por 10, é um impacto de r$ 38 para uma renda per capita
familiar de r$ 50. É um diferencial de gasto substancial, mas, novamente,
isso pode ser diferencial, ou pode ser impacto.
Figura 1 - Diferenciais entre grupos de comparações sobre gastos
domiciliares: Brasil e regiões, 2005
Fonte: elaboração própria com
base na AIBF, 2005.
grupos
Corte de elegibilidade até
tratamento e Comparação 1
R$ 200,00
tratamento e Comparação 2
R$ 100,00
R$ 50,00
R$ 200,00
R$ 100,00
R$ 50,00
458,65
Despesas totais
Brasil
-317,41
-81,05
-291,81
-273,44
132,16
Nordeste
-710,06
-521,14
-414,92
81,51
470,15
14,19
Norte/Centro-Oeste
133,18
526,41
468,32
-363,85
329,50
1.296,87
sudeste /sul
-203,64
-200,75
-1.051,39
-703,85
-601,60
-628,94
alimentos
Brasil
-111,25
-11,65
-60,84
146,19
278,12
388,22
Nordeste
-216,61
-96,31
-107,84
142,44
322,12
159,55
Norte / Centro-Oeste
118,95
218,11
8,87
38,86
263,32
588,01
sudeste / sul
-203,64
5,08
-245,71
70,37
143,7
450,51
a Figura 2 mostra os diferenciais entre os grupos para gastos de alimentação
desagregados. Quando separamos entre alimentos básicos e não-básicos, o resultado é robusto tanto para os alimentos básicos, quanto para os não-básicos.
serviço social do Comércio |
Figura 2 - Diferenciais entre grupos de comparações sobre gastos
de alimentação desagregados: Brasil e regiões, 2005
grupos
Corte de elegibilidade até
tratamento e Comparação 1
115
tratamento e Comparação 2
R$ 200,00
R$ 100,00
R$ 50,00
R$ 200,00
R$ 100,00
R$ 50,00
Brasil
-13,05
28,70
-18,62
64,31
106,80
140,62
Nordeste
-51,37
-16,68
-94,94
40,88
134,67
54,92
1.89
68,74
-33,10
36,86
51,90
180,67
-25,01
77,28
-15,17
30,37
105,87
254,09
186,78
A dimensão
nutricional do
Bolsa Família
alimentos básicos
Norte / Centro-Oeste
sudeste /sul
alimentos
Brasil
-68,24
-46,21
-22,95
64,09
129,52
Nordeste
-81,06
-59,46
-23,69
64,01
146,21
53,03
Norte / Centro-Oeste
73,72
68,16
37,40
40,82
118,25
310,03
-168,96
-20,44
-158,87
52,72
69,75
236,36
sudeste / sul
a Figura 3 mostra um ponto interessante, já problematizando a questão da
metodologia. nela podemos ver os valores médios para proporções de gastos
por renda. o coeficiente de engel – que é a proporção de gastos com alimentos na renda ou na despesa total – é um indicador de pobreza. e quando
comparamos o gasto com alimentação, tanto nos grupos em situação de extrema pobreza, como nos grupos em situação de pobreza e abaixo de r$ 200,
sempre a porcentagem de gasto alimentar no grupo de tratamento é maior
do que qualquer um dos dois grupos de controle, usando o mesmo critério
de corte de renda.
Figura 3 - Valores médios para as variáveis de proporções de
gastos por renda: Brasil, 2005
Fonte: elaboração própria com
base na AIBF, 2005.
Renda R$ 50,00
Variáveis
tratamento
Comparação 1
Comparação 2
total
alimentação
0,47
0,44
0,34
0,40
Renda R$ 100,00
Variáveis
tratamento
Comparação 1
Comparação 2
total
alimentação
0,46
0,43
0,38
0,41
Renda R$ 200,00
Variáveis
tratamento
Comparação 1
Comparação 2
total
alimentação
0,45
0,42
0,37
0,40
isso faz com que se levante a dúvida sobre o que é impacto e o que é diferencial. Deixa-se como pano de fundo que, a despeito de toda a polêmica
na imprensa em relação a dados comparativos mundiais, o Programa Bolsa
Família é um programa extremamente bem focalizado. Sem dois pontos no
tempo é muito difícil dizer qualquer coisa sobre impacto, porque é possível
que esse diferencial seja o resultado da boa focalização. nesse caso, ele seria
mais um diferencial de focalização do que o impacto.
essa questão se repete em todos os resultados mostrados aqui, exatamente porque só temos um ponto no tempo e não temos clones do grupo de tratamento.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
diferenciais sobre variáveis antropométricas
116
a parte antropométrica mostrou pouco diferencial. Por isso, foi feito um seminário com vários especialistas na área de nutrição. a Figura 4 apresenta os descritivos de altura-idade (valor-z de altura por idade). Vemos que o valor-z é mais
baixo nos beneficiários do Bolsa Família do que nos grupos de controle. esse
resultado traz de volta a discussão se este é um resultado do impacto do Bolsa
Família, ou o resultado do Bolsa Família está extremamente bem focalizado.
A dimensão
nutricional do
Bolsa Família
Por questão de espaço, não tratamos da focalização neste texto, mas sabe-se que
a focalização do Bolsa Família é maior na extrema pobreza. os gestores do Bolsa
Família notaram, em vários seminários realizados, que é muito mais fácil se identificar uma família que é extremamente pobre, do que uma família que é pobre.
Figura 4 - Descritivos para dados antropométricos entre os grupos
de comparação
Brasil
Fonte: elaboração própria com
base na AIBF, 2005.
altura por idade
T
C1
C2
r$ 200,00
n
2305
1100
2273
valor-z
-0,619
-0,450
-0,355
-0,82 a -0,41
-0,68 a -0,21
-0,58 a -0,13
0,104
0,118
0,115
1948
858
1599
intervalo de confiança
ep
r$ 100,00
n
valor-z
intevalo de confiança
ep
-0,677
-0,533
-0,564
-0,91 a -0,44
-
-0,87 a -0,26
0,119
-
0,156
a Figura 5 apresenta a porcentagem de desnutrição. aqui estamos avaliando
famílias com renda per capita abaixo de r$ 100 e de r$ 200, e como veremos
adiante, são maiores do que os valores observados na PnDS. É como se revertêssemos uma década, nas estatísticas atuais de desnutrição.
Figura 5 - Percentuais de graus de desnutrição entre os grupos
de comparação
Brasil
Fonte: elaboração própria com
base na AIBF, 2005.
altura por idade
C1
C2
2263
1077
2218
r$ 200,00
n
% desnutrição
intervalo de confiança
ep %
13,86
15,50
13,52
9,94 a 17,79
9,55 a 21,44
10,20 a 16,85
1,00
2,10
1,70
% extrema desnutrição
5,33
7,04
7,51
intervalo de confiança
3,37 a 7,29
2,99 a 11,08
4,11 a 10,91
1,00
2,10
1,70
ep
serviço social do Comércio |
T
Brasil
altura por idade
T
C1
117
C2
r$ 100,00
n
1909
8,41
1563
% desnutrição
14,49
16,71
16,85
10,23 a 18,75
-
12,14 a 21,56
ep %
2,20
-
2,40
% extrema desnutrição
5,67
7,33
8,62
intervalo de confiança
3,54 a 7,80
-
4,13 a 13,12
1,10
-
2,30
intervalo de confiança
ep%
A dimensão
nutricional do
Bolsa Família
o escore de Propensão teve o resultado, aparentemente paradoxal, de que os
beneficiários do Bolsa Família possuem um escore z menor do que o grupo de
controle. Se interpretarmos, ingenuamente, ao pé da letra, a conclusão seria
a de que o impacto do Bolsa Família foi negativo na antropometria. Como não
temos dois pontos no tempo, não podemos fazer essa diferença na diferença.
e, mais ainda, não temos a medida do viés de linha de base. então, o impacto
negativo no aiBF pode ser uma limitação dessa pesquisa. Para enriquecer o
debate, apresento a seguir alguns resultados obtidos com a PnDS da Criança e da mulher, realizada em 2006 pelo ministério da Saúde.
resultados da pnds
a PnDS foi realizada em 2006 pelo ministério da Saúde. no questionário, há
uma pergunta sobre o pertencimento ou não do domicílio ao Bolsa Família e, também, uma seção de antropometria e outra de segurança alimentar.
Tentou-se aplicar o escore de Propensão para famílias com renda per capita
abaixo de r$ 200, e testaram-se os diferenciais. aplicou-se o método do vizinho mais próximo. o notável é que se chegou a um diferencial, entre o grupo
de tratamento e o de controle, para as crianças de 6 a 50 meses, idêntico ao
valor que obtivemos no aiBF: menos 0,185 de diferença no escore z. Tirei os
outliers, de acordo com a literatura da PnDS, e fiz o teste.
estes resultados são ainda preliminares, mas mostram alguma robustez. notase que apesar do valor da diferença ser igual, ela não é estatisticamente significante. ou seja, em 2006, o beneficiário do Bolsa Família e o não-beneficiário
não seriam estatisticamente diferentes pelo teste.
Uma segunda pergunta que é feita na PnDS, que não poderia ser feita na pesquisa aiBF, refere-se à segurança alimentar. a segurança alimentar foi medida na PnDS por domicílio. Foi feito o pareamento dos domicílios de tratamento e controle. Há um capítulo no relatório da PnDS sobre a escala brasileira
de insegurança alimentar, escrito por Corrêa Segall e leon marin. o Quadro
1 apresenta uma Síntese da escala Brasileira de medida da insegurança alimentar. as frases têm que somar 15 e, quem obtiver este número, está no
nível mais alto de insegurança alimentar, quem tiver zero está no nível mais
alto de segurança alimentar.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Quadro 1 - Síntese da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar
118
peRguNtas
moradores tiveram preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar ou
receber mais comida ?
A dimensão
nutricional do
Bolsa Família
alimentos acabaram antes que os moradores tivessem dinheiro para comprar mais comida ?
moradores ficaram sem dinheiro para ter uma alimentacão saudável e variada ?
moradores comeram apenas alguns alimentos que ainda tinham porque o dinheiro acabou ?
algum morador de 18 anos ou mais de idade diminuiu alguma vez a quantidade de alimentos nas
refeições ou deixou de fazer alguma refeição porque não havia dinheiro para comprar comida ?
algum morador de 18 anos ou mais de idade alguma vez comeu menos porque não havia
dinheiro para comprar comida ?
algum morador de 18 anos ou mais de idade alguma vez sentiu fome mas não comeu porque
não havia dinheiro para comprar comida ?
algum morador de 18 anos ou mais de idade perdeu peso porque não comeu quantidade
suficiente de comida devido à falta de dinheiro para comprar comida ?
algum morador de 18 anos ou mais de idade alguma vez fez apenas uma refeição ou ficou um
dia inteiro sem comer porque não havia dinheiro para comprar comida ?
algum morador com menos de 18 anos de idade alguma vez deixou de ter uma alimentação
saudável e variada porque não havia dinheiro para comprar comida ?
algum morador com menos de 18 anos de idade alguma vez não comeu quantidade suficiente
de comida porque não havia dinheiro para comprar comida ?
algum morador com menos de 18 anos de idade diminuiu a quantidade de alimentos nas
refeições porque não havia dinheiro para comprar comida ?
algum morador com menos de 18 anos de idade alguma vez deixou de fazer uma refeição
porque não havia dinheiro para comprar comida ?
algum morador com menos de 18 anos de idade alguma vez sentiu fome mas não comeu porque
não havia dinheiro para comprar comida ?
algum morador com menos de 18 anos de idade alguma vez ficou um dia inteiro sem comer
porque não havia dinheiro para comprar comida ?
Foi feito o teste e verificou-se que as famílias do Bolsa Família apresentam
um nível mais alto de insegurança alimentar do que o do grupo de controle,
e essa diferença é estatisticamente significante. mais uma vez, isso tem a
ver com a boa focalização do Bolsa Família. o mesmo teste foi feito para
a insegurança grave. novamente têm-se três pontos percentuais a mais
de insegurança grave nos beneficiários do Bolsa Família vis-à-vis os nãobeneficiários.
Como se tem apenas um ponto no tempo, se pegarmos um programa muito
bem focalizado, em que a insegurança alimentar está caracterizada nesse
foco, não se captará a dinâmica dessa política.
serviço social do Comércio |
conclusão
119
a título de conclusão, ressalta-se que o pareamento somente controla nos
atributos observáveis e, sem dois pontos no tempo, não se corrige o viés
de linha de base. Tendo em mente essa limitação, temos duas possibilidades: primeiro, o Bolsa Família não tem aumentado a segurança alimentar, o que é paradoxal com os resultados apresentados pelo professor
monteiro.
A dimensão
nutricional do
Bolsa Família
a segunda possibilidade é a de que o Programa Bolsa Família é bem focalizado – e há evidência sobre isso, e, sem uma perspectiva longitudinal, nada
pode ser dito. Fica a dúvida sobre se esse diferencial negativo é a ausência
de impacto, ou é a mera caracterização de um programa extremamente bem
focalizado.
Costumo pensar no Bolsa Família como uma plataforma em que prefeitos ou
governos estaduais deveriam acoplar as suas políticas específicas. mas há
uma grande ausência relacionada à saúde e à educação nas condicionalidades dos programas e nessa integração. a primeira infância talvez seja a
questão mais central para se mostrar que saúde e educação são capital humano, e que a atenção nesta etapa da vida é a única forma de reverter, definitivamente, a pobreza intergeracional. Toda evidência internacional aponta
que a combinação do estímulo intelectual com a nutrição adequada impacta
a anomia e a violência do jovem aos 17 anos, ou seja, 15 anos depois. aqui no
Brasil isso é literalmente ignorado.
É uma agenda que está colocada, não se pode culpar o Bolsa Família por isso,
mas é claramente integrável, e a primeira infância é a bandeira ausente na
política pública brasileira. Uma ausência lamentavelmente pouco enfatizada
pela política no Brasil, e até mesmo pela mídia, visto que o foco está nos jovens. Talvez porque o jovem vote, a partir dos 16 anos. no entanto, a primeira
infância é a condição sine qua non para qualquer desenvolvimento em capital
humano e mesmo em termos nutricionais.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
120
* Diretor de logística e gestão empresarial da Companhia nacional de abastecimen-
to (Conab). É agrônomo pela Universidade Federal de Pelotas. Foi diretor-presidente
das centrais de abastecimento do rio Grande do Sul, diretor nas áreas de produção e
abastecimento dos municípios de Belo Horizonte e de Betim/mG e assessor técnico na
equipe de abastecimento de Porto alegre. atuou como consultor na área de segurança
alimentar no Programa das nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
Impactos do Programa de
Aquisição de Alimentos
no campo produtivo
e social silvio Isopo porto*
serviço social do Comércio |
121
o Programa de aquisição de alimentos (Paa) foi
criado por meio da lei nº 10.696, sancionada em
2 de julho de 2003, uma lei que tratava predominantemente de dívidas agrícolas. o Paa foi
instituído em seu artigo 19, com a finalidade de
incentivar a agricultura familiar com ações vinculadas à aquisição de produtos agropecuários
para a formação de estoques públicos e/ou sua
distribuição para pessoas em situação de insegurança alimentar.
nasceu, portanto, com foco centrado não apenas
na comercialização da produção da agricultura
familiar, mas também com o enfoque nas pessoas, no social, na segurança alimentar das
parcelas mais carentes da sociedade, com uma
concepção que integra política agrícola, política
de abastecimento e política de assistência alimentar.
a aprovação do Paa representou um grande avanço. até então, as aquisições de produtos agrícolas por parte do governo federal eram focadas
apenas no produto, sem distinguir sua origem
quanto ao público ou estrato social rural. Pela
primeira vez se instituía um programa público
de comercialização agrícola direcionado especificamente para o público do Programa nacional de Fortalecimento da agricultura Familiar
(Pronaf), ou seja, agricultores e agricultoras familiares, assentados da reforma agrária, todos
os povos e comunidades tradicionais: quilombolas, indígenas, agroextrativistas, ribeirinhos,
pescadores artesanais, entre outros.
o marco legal e político que o Paa representa propiciou ao governo federal, além da destinação
de recursos do orçamento Geral da União para
realizar a aquisição de alimentos dos agriculto-
res familiares, que estas se fizessem sem licitação pública. ou seja, abrindo um precedente
de excepcionalidade na lei que permitiu dar tratamento diferenciado a um público que – apesar de ser responsável pela produção da maior
parte dos alimentos consumidos no país – não
conseguia participar das licitações públicas. o
Paa é a expressão, como política pública de comercialização agrícola, da máxima segundo a
qual “a igualdade consiste em tratar de forma
desigual os desiguais”.
este avanço só foi possível porque, em fevereiro
de 2003, o Presidente lula reinstituiu o Conselho
nacional de Segurança alimentar (Consea). em
sua primeira reunião, com a presença do Presidente da república e de diversos ministros, o
Consea apresentou ao governo federal uma pauta que destacava a necessidade de se instituir
um plano de safra específico para a agricultura
familiar. o contexto político em 2003 era muito
propício: o Presidente lula vinha de um processo de vitória eleitoral avassaladora nas urnas;
no governo, havia a disposição de implementar
e aprofundar mudanças bastante fortes. Coube
ao Consea ser o articulador e porta-voz de amplo processo de negociação e discussão com os
movimentos sociais para a construção de políticas públicas voltadas para a segurança alimentar e nutricional, e uma dessas se configurou no
Paa.
no contexto desse plano de safra estavam três
ideias que não eram novas, mas que – com a
onda liberalizante dos anos 1990 – haviam sido
deixadas de lado: o apoio à produção (crédito e
assistência técnica), o seguro agrícola e a comercialização.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
o Programa nacional de agricultura Familiar (Pronaf), que surgiu entre 1995 e
97, foi fruto de muita mobilização social, mas ainda era muito tímido em seus
números, não alcançando o amplo espectro de segmentos que compõem a
agricultura familiar brasileira. o sistema de assistência técnica tinha sido
desestruturado por meio da estadualização e/ou municipalização que redundou, em muitos casos, em sua extinção ou incapacidade operacional. o seguro agrícola era algo também já em desuso, e a comercialização se reduzia
à política de garantia de preços mínimos (existente há mais de cinquenta
anos, mas direcionada às commodities, ao agronegócio, à balança comercial brasileira). ou seja, não havia, efetivamente, uma política específica para
trabalhar com esse público que hoje se encontra enquadrado nos critérios
estabelecidos no Pronaf.
122
Impactos do
Programa
de Aquisição de
Alimentos
no campo
produtivo
e social
Graças à pauta proposta pelo Consea, cada um desses componentes de política agrícola foi rearticulado e ganhou força. o Pronaf teve progressivo e
forte incremento em seus valores, o ministério do Desenvolvimento agrário
(mDa) estabeleceu uma política nacional de assistência Técnica e extensão
rural (ater), o seguro agrícola retomou importância. o Paa integrou-se neste
cenário como o fato novo: um programa de comercialização pensado especificamente para a agricultura familiar.
a partir do Pronaf, o agricultor ou agricultora, os assentados da reforma agrária, o indígena, o quilombola, entre outros, passaram a ter acesso à Declaração de aptidão a esse Programa (DaP), que atesta o enquadramento de perfil
socioeconômico do seu portador, permitindo que este possa se inserir neste
conjunto de programas e políticas.
fontes
atualmente o Paa conta com três fontes: recursos do ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (mDS), oriundos do Fundo de Combate e
erradicação da Pobreza, do mDa e do Programa nacional de alimentação
escolar (Pnae/ministério da educação).
os recursos do mDS são repassados em parte para a Conab que, por sua vez,
transfere para as Superintendências regionais que coordenam as ações em
nível de estado, e estas promovem a relação “na ponta” com as organizações
sociais. outra parte dos recursos é repassada diretamente pelo mDS para
estados e municípios. os recursos do mDa são repassados diretamente à
Conab.
Com recursos do Pnae, os governos estaduais e municipais podem comprar
da agricultura familiar, sem licitação, os gêneros alimentícios que compõem
a alimentação escolar. esta modalidade é muito importante por abrir mais
um espaço de comercialização, permitindo a valorização dos agricultores
familiares no contexto local. as compras por meio de licitações, mesmo que
de forma descentralizada, em geral, foram pouco eficazes para articular,
efetivamente, a produção local no fornecimento da alimentação escolar.
serviço social do Comércio |
gestão, instrumentos e resultados
123
o Paa conta, desde sua criação, com um grupo gestor coordenado pelo mDS,
com a participação dos ministérios do Desenvolvimento agrário, da Fazenda, do Planejamento, de orçamento e Gestão e da agricultura, Pecuária e
abastecimento, que nós, da Conab, representamos. o ministério da educação passou a integrar o grupo gestor somente a partir do Decreto nº 6.447,
de 7 de maio de 2008, desde que foi instituída a modalidade de aquisição de
alimentos para atendimento da alimentação escolar.
Impactos do
Programa
de Aquisição de
Alimentos
no campo
produtivo
e social
o Paa opera por meio de cinco instrumentos. Dois destes (Compra Direta local e Paa-leite) são operados por prefeituras municipais e governos estaduais a partir de convênios com o mDS, conforme o esquema:
governos
estaduais
agricultores
familiares
MDs
prefeituras
outros três instrumentos (Compra Direta, CPr-estoque e CPr-Doação) são
operados pela Conab, mediante os repasses efetuados pelo mDS e pelo mDa.
a CPr-Doação é operada exclusivamente com recursos do mDS, enquanto
os demais instrumentos operam com as duas fontes:
MDs
Conab
MDa
agricultores
familiares
organizados
os alimentos adquiridos por meio da CPr-Doação são destinados integralmente para as famílias em insegurança alimentar, ou para os programas sociais
como o mesa Brasil SeSC, que também tem a finalidade de combate à fome
e insegurança alimentar. Já aqueles adquiridos por meio da Compra Direta e
da CPr-estoque compõem estoques públicos para doação posterior. Quando
a aquisição se faz por meio da CPr-estoque e com recursos do mDa, a doação só pode se dar parcialmente, mediante aprovação prévia deste ministério.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
a aquisição de alimentos para atendimento da alimentação escolar (recursos
Pnae/meC) ainda está em fase de regulamentação, com expectativa de operacionalização ainda em 2009.
124
Impactos do
Programa
de Aquisição de
Alimentos
no campo
produtivo
e social
os quadros a seguir registram a aplicação de recursos por tipo de instrumento/
região do país, no período de 2003 a 2007:
Cerca de 15 milhões de pessoas
em insegurança alimentar ou
nutricional foram beneficiadas
via CPR- Doação.
ano
fonte / Recursos (R$)
2003
mDS  81.541.207,29
 41.341
2004
mDS  107.185.826,34
 49.792
2005
mDS  112.791.660,38
 51.975
mDS  126.882.800,00
 59.660
mDa  74.198.900,00
 26.883
Total  201.071.700,00
 86.543
mDS  172.449.709,35
 78.675
mDa  76.545.378,97
 22.682
Total  248.995.088,32
 101.357
mDS  600.841.203,36
mDa  150.744.278,97
 281.443
 49.565
Total  751.585.482,33
331.008
2006
2007
total
famílias fornecedoras
CPR - Doação - Comparativo 2003 / 2007
Mil R$
180.000
2003
150.000
2004
120.000
2005
90.000
2006
60.000
2007
30.000
0
2003
serviço social do Comércio |
Centro-Oeste
Total
Nordeste
Sudeste
Sul
5.582,3
3.654,6
53,3
9.300,9
0,0
18.591,0
41.563,6
Norte
2004
8.692,7
6.294,8
3.764,5
22.746,8
64,8
2005
6.278,0
8.263,3
10.991,0
21.500,2
1.370,7
48.403,2
2006
6.364,1
21.035,8
27.214,2
23.622,3
3.953,7
82.190,2
2007
9.543,8
45.050,1
37.651,6
44.543,6
6.735,2
143.515,3
CPR - Estoque
125
Mil R$
50.000
2003
40.000
2004
30.000
2005
20.000
2006
10.000
2007
0
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
C. Oeste
Total
2003
4.887,1
600,0
0,0
0,0
0,0
5.487,1
2004
4.292,1
13.669,0
0,0
13.669,0
0,0
31.630,1
2005
5.530,0
7.380,0
864,4
12.321,8
15,0
26.111,3
2006
5.151,7
13.131,3
2.089,9
29.265,6
313,8
49.952,2
2007
5.167,2
8.217,5
3.592,7
27.476,5
242,7
44.696,6
Compra Direta
Mil R$
80.000
2003
60.000
2004
2005
40.000
2006
20.000
2007
0
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
C. Oeste
Total
2003
32,3
2.258,5
79,4
830,0
1.845,1
5.045,2
2004
12.518,5
12.133,5
1.947,4
1.029,5
2.919,3
30.548,2
2005
4.341,3
19.102,6
2.021,3
8.659,4
4.152,6
38.277,2
2006
6.296,7
20.690,6
3.136,6
32.622,6
5.778,4
68.524,9
2007
4.088,9
2.848,7
836,7
30.634,2
1.729,1
40.137,6
Impactos
o Paa representa uma estratégia de fortalecimento da agricultura familiar.
Trata-se de efetiva inclusão social, uma vez que, por meio de um mercado institucional, é assegurada renda a essas famílias provedoras de alimentos no
limite de até r$ 3.500 por família e por ano. a ampliação desse teto, uma das
reivindicações apresentadas no ii Seminário de avaliação do Paa, ocorrido
em junho de 2008, em Brasília, foi objeto de deliberação na reunião realizada
pelo grupo gestor, em dezembro de 2008, passando a vigorar a partir de 2009.
o caráter estruturante do Programa é outra de suas marcas, sendo o primeiro
Programa com tal característica no contexto do Fome Zero. nasceu com a
finalidade de promover a articulação entre a produção e o consumo, favorecendo a criação e a organização de mercados locais pela aproximação de
dois públicos: o da agricultura familiar e o das famílias que necessitavam, ou
necessitam até hoje, receber assistência alimentar.
Favorece também a integração entre programas, ações e projetos públicos ou
privados, estabelecendo a alimentação como mote ou veículo para articulação de processos sociais mais amplos que conjuguem aspectos de educação
alimentar, saúde, saneamento etc., atuando como um vetor para a dinamização das economias locais.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Impactos do
Programa
de Aquisição de
Alimentos
no campo
produtivo
e social
o empoderamento e o fortalecimento das organizações que representam a
agricultura familiar (ou da reforma agrária, ou de povos e comunidades tradicionais) é outro impacto do Paa. os recursos que operacionalizamos são
repassados diretamente a uma associação ou a uma cooperativa, e é ela que
apresenta o projeto, que faz a gestão dos recursos, que se relaciona com o
público que recebe os produtos na ponta e com os demais atores envolvidos
(associações de consumidores, governos municipais, mesa Brasil SeSC, bancos de alimentos, restaurantes populares etc.). enfim, são as associações de
agricultores e agricultoras que, de diferentes e múltiplas formas, fazem com
que os alimentos cheguem até a ponta. essa cadeia de responsabilidades
provoca nas organizações um processo de aprimoramento de seus mecanismos de gestão interna e de relacionamento com os mercados para além do
Paa.
126
Impactos do
Programa
de Aquisição de
Alimentos
no campo
produtivo
e social
esta é uma característica extremamente relevante, pois propicia que essa representação se qualifique e se estabeleça de forma efetiva, com maior e melhor
capacidade de intervenção política por parte das organizações da agricultura
familiar. À guisa de exemplo, a reforma agrária tem um deputado federal,
enquanto os antirreformistas/bancada ruralista têm mais de cem. esta é só
uma referência, para mostrar a diferenciação do grau de representação política que temos na sociedade.
nesse âmbito, alguns grupos se destacaram em termos de construção da autonomia. entre eles podemos citar o das mulheres e dos povos e comunidades
tradicionais, que conseguiram inserção no contexto produtivo e econômico e
de acesso à renda, participando de feiras locais e de outras formas de comercialização a partir das primeiras experiências de venda para o Paa.
Destacamos também como relevante a afirmação da capacidade de produção
e abastecimento local da agricultura familiar, constantemente questionada
por alguns segmentos da sociedade. o Paa deu oportunidade para que organizações de agricultores, distribuídas por todas as regiões do país, demonstrassem sua capacidade de produção, gestão e cumprimento de responsabilidades contratuais como fornecedores de mercadorias para formação de
estoques públicos ou para o atendimento de populações em situação de insegurança alimentar.
outro fator importante refere-se à adaptabilidade dos instrumentos, desenhados de modo a atender às distintas realidades dos agricultores familiares,
dialogando com seus sistemas produtivos. as diferentes modalidades podem
atuar com qualquer público, em qualquer região. o Programa pode apoiar
tanto projetos de r$ 5 mil ou r$ 8 mil quanto outros bem superiores a isso.
ou seja, qualquer produção, por menor que ela seja e observadas as exigências normativas, pode ser entregue ao Programa. Pode ser um pé de laranja
que alguém tenha no fundo da casa, podem ser algumas dúzias de ovos das
galinhas que estão lá soltas no terreiro, são produtos que podem ser adquiridos pelo Programa.
essa capacidade de adaptação permite que consigamos chegar a todas as regiões e biomas do país, permitindo ao Paa reconhecer e valorizar os produtos
regionais, provocando um processo de reorganização produtiva que leva à
diversificação tanto da produção quanto das linhas comerciais, permitindo a
colocação no mercado de produtos que de outra forma não chegariam à cadeia comercial. além disso, estimula os grupos envolvidos à busca de novos
canais de comercialização que não exclusivamente o Paa ou outros programas públicos.
a valorização dos produtos regionais remete ao resgate de características locais relacionadas a hábitos alimentares ou culturais que proporcionam aces-
serviço social do Comércio |
so à alimentação diversificada por parte de uma população em insegurança
alimentar e nutricional.
127
a biodiversidade agrícola é afetada positivamente pelo programa. atualmente,
mais de 200 tipos de produtos diferentes são adquiridos e distribuídos pelo
Paa, o que inclui desde sementes crioulas, até o baru no Cerrado, produtos
da amazônia, o pescado em diferentes regiões, o leite ou a carne de cabra, o
mel, as castanhas.
Impactos do
Programa
de Aquisição de
Alimentos
no campo
produtivo
e social
esse conjunto de características determina o aumento da autoestima tanto
de fornecedores quanto de consumidores envolvidos, o que é outro aspecto
fundamental proporcionado pelo Paa. em algumas regiões e comunidades,
ainda observamos certo desmerecimento da atividade agrícola. as pessoas
têm vergonha de se assumirem como agricultoras ou agricultores, são muitas vezes tratados de forma pejorativa: o jeca, o cara da roça. o fato de o Paa
valorizar a produção dessa gente contribui para o resgate de sua cidadania;
permite revelar essa atividade como uma das mais importantes em qualquer
sociedade, porque quem produz alimentos tem a prerrogativa de nos manter
vivos. São exatamente essas as pessoas que nos abastecem.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
128
* Gerente do ambiente do Pronaf e Programas de
Crédito Fundiário, ligado à área de agricultura Familiar,
microfinanças rurais e Crédito Fundiário do Banco
do nordeste do Brasil. Bacharel em administração de
empresas pela Universidade estadual do Ceará (Uece)
e em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
especialista em administração Financeira pela
Unifor-BnB-Bolsa de Valores.
Agricultura familiar:
novas estratégias de
financiamento porfírio silva de Almeida*
serviço social do Comércio |
129
o nordeste brasileiro é a região que, em números absolutos, tem o maior número de pobres do país. É por onde se estende a região
do Semiárido brasileiro – área de atuação do
Banco do nordeste – junto com o norte de minas Gerais e do espírito Santo. a agricultura
familiar no nordeste abrange 2 milhões e 50
mil estabelecimentos familiares, praticamente
a metade (49,7%) do total de 4 milhões e 100
mil estabelecimentos familiares no Brasil. representa 88,3% dos estabelecimentos rurais
nordestinos e 82,9% da ocupação de mão de
obra no campo. Segundo dados da organização das nações Unidas para a agricultura e
alimentação (Fao), 43% do valor bruto total da
produção agropecuária do nordeste advém da
agricultura familiar. nacionalmente, a agricultura familiar é responsável pela produção dos
principais alimentos consumidos pela população: 84% da mandioca; 67% do feijão; 54% do
leite; 49% do milho; 40% das aves e ovos e 58%
da carne suína.
Vimos ao longo de todo o Seminário um contexto
mostrando que o mundo não tem conseguido
melhorar, em termos de performance, o combate à pobreza e o combate à fome, enquanto
o Brasil tem se diferenciado nesse contexto
e, certamente, isso é fruto de um conjunto de
ações desenvolvidas pelos governos, principalmente pelo atual governo lula, que tem como
foco exatamente o combate à pobreza e à fome.
Uma dessas ações é o desenvolvimento de programas voltados para a agricultura familiar, em
que se destaca o Programa nacional de Forta-
lecimento da agricultura Familiar (Pronaf). em
sua área de atuação, o Pronaf é operacionalizado principalmente pelo Banco do nordeste, que
tem um papel importante no desenvolvimento
da agricultura familiar na região nordeste.
Faremos uma abordagem em três fases distintas,
sendo a primeira com enfoque nas principais
políticas de apoio à agricultura familiar adotadas pelo Banco do nordeste em sua área de
atuação. a segunda retrata as ações implementadas pelo Banco e seus instrumentos diferenciados. a terceira aborda o Programa agroamigo, desenvolvido pelo Banco do nordeste, que
tem como pano de fundo trabalhar o crédito de
forma acompanhada e orientada.
políticas do Banco do nordeste para a
agricultura familiar
as políticas do Banco do nordeste para a agricultura familiar buscam a melhoria da qualidade
de vida do homem do campo, o incremento da
geração de emprego e renda, o incentivo às atividades não-agrícolas no meio rural e a inclusão
social. apesar de atender aos diversos setores
da economia, com financiamentos aos setores
produtivos, seja na área industrial, comercial e
de serviços, além de apoio à infraestrutura, o
BnB é mais reconhecido pela sua atuação no
setor rural. nesse setor, desenvolve uma política
de atendimento nos próprios municípios, com
base no que denominou de agência itinerante,
em que, de forma sistemática e regular, desloca
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
grupos de colaboradores das unidades para prestar atendimento nas sedes
dos municípios onde não há agência bancária.
130
outra ação diferenciada adotada pelo Banco é o fortalecimento das parcerias
com as empresas estaduais de assistências Técnicas (emater), bem como
com as Secretarias municipais de agricultura, com os Sindicatos de Trabalhadores rurais, além de oscips e onGs, o que propicia aumento de sua
capilaridade e presença local. o objetivo principal dessas parcerias é prestar
o melhor atendimento ao agente produtivo e, ainda, oferecer melhores condições de acessibilidade ao crédito.
Agricultura
familiar: novas
estratégias de
financiamento
no âmbito da agricultura familiar, e com apoio dos parceiros, as principais atividades desenvolvidas pelo Banco do nordeste são:
1. apoiar a estruturação das cadeias produtivas: com destaque para o
importante papel da Conab, principalmente em relação à viabilização
da comercialização. ademais, o Banco tem um grupo de funcionários
denominados agentes de Desenvolvimento que se especializam nesse
trabalho;
2. estimular atividades não-agrícolas no meio rural;
3. estimular atividades de maior valor agregado dentro do contexto de agricultura familiar;
4. incentivar a utilização de tecnologia de convivência com a seca e combate à desertificação;
5. implementar o microcrédito produtivo e orientado.
Dentro dessas atividades, destacam-se principalmente o Pronaf, e o agroamigo, que é um programa de implementação de microcrédito produtivo e orientado.
programa nacional de fortalecimento da Agricultura
familiar (pronaf )
o Pronaf é um programa de âmbito nacional. no nordeste é operacionalizado
principalmente pelo Banco do nordeste. Como gestor do Fundo Constitucional de Financiamento do nordeste, o BnB utiliza os recursos do referido
fundo como principal funding para atendimento desse público.
os principais programas do Pronaf são: o Pronaf a, voltado para os assentados da reforma agrária; o Pronaf B, que atende agricultores familiares com
renda anual de até r$ 5 mil1; o Pronaf a/C, voltado para o custeio do público do Pronaf a; o Pronaf Comum, que, a partir do Plano Safra 2008/2009,
encampou os Pronaf C, D e e e é destinado às famílias de agricultores
com renda bruta anual oriunda predominantemente da agricultura familiar
que varia de r$ 5 mil/ano a r$ 110 mil/ ano; o Pronaf Semiárido, o Pronaf
mulher, o Pronaf Jovem, o Pronaf Floresta, o Pronaf agroindústria, o Pronaf
agrinf e o Pronaf ecologia. não são programas exclusivos do Banco, são
programas operacionalizados por todos os bancos oficiais existentes no
país. Para a operacionalização do Pronaf, o Banco utiliza alguns instrumentos diferenciados, que serão apresentados a seguir.
1 Se considerar que 40% dessa renda se transformam em renda real e líquida, isso deve gerar em
torno de r$ 2 mil de renda por ano, pouco mais de r$ 100 de renda líquida mensal.
serviço social do Comércio |
Instrumentos diferenciados para operacionalização do pronaf
131
Destaca-se entre os instrumentos diferenciados a criação de uma área específica de gerenciamento do Pronaf na direção geral. em cada estado há um
coordenador estadual do Pronaf. Cada agência tem um gerente de suporte
a negócios do Pronaf. o Banco tem 220 agentes de Desenvolvimento que
atuam em todas as suas agências, através do Projeto de Desenvolvimento
Territorial, nas atividades específicas das vocações locais. existe um trabalho
muito forte de ação local realizado pelos agentes de Desenvolvimento.
Agricultura
familiar: novas
estratégias de
financiamento
existe também um trabalho chamado agências itinerantes, terminologia do
Banco. o Banco do nordeste tem uma rede de 184 agências, 161 das quais
operacionalizam o Pronaf em todo o nordeste, norte de minas Gerais e no
Vale do Jequitinhonha. É uma rede de agências muito pequena. as agências
itinerantes existem para viabilizarmos crédito e evitar que o agente produtivo
se desloque de lugares mais longínquos para a agência do Banco, superlotando-a. Vamos às comunidades, aos municípios realizando esse modelo de
agência itinerante. nas agências itinerantes se realiza no município todo
tipo de atendimento: cadastro, proposta de cliente, contratos, exceto liberação de dinheiro propriamente dito.
mas o grande diferencial tem sido o agroamigo, programa de microcrédito rural orientado e acompanhado, desenvolvido em parceria com o ministério do
Desenvolvimento agrário (mDa), a organização da Sociedade Civil de interesse Público (oscip) e com o instituto nordeste Cidadania (inec), que tem
propiciado atendimento às classes menos favorecidas do meio rural notadamente o público do Pronaf B.
resultados alcançados
o Gráfico 1 apresenta a participação do Banco do nordeste na região nordeste. embora tenha uma pequena rede de agências, o Banco tem participação
de 78% da quantidade de operações rurais realizadas e 62% do volume de
crédito aplicado na região nordeste. o Banco tem r$ 4,5 bilhões aplicados
no âmbito do Pronaf. os demais bancos que atuam na região têm em torno
de r$ 2,2 bilhões apenas, aplicados com crédito rural. isso mostra a importância do papel do Banco, principalmente voltado para a agricultura familiar
na região nordeste.
Gráfico 1 - Participação do Banco do Nordeste na Região
Nordeste: operações
Ministério do
Desenvolvimento Agrário
Valor
Qtde
75,0%
63,4%
49,9%
78,0%
67,2%
61,5%
62,2%
2004
2005
62,1%
65,1%
46,0%
2003
2006
2007
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
o Quadro 1 apresenta a carteira ativa do Pronaf separada por Programa, com
4,5 milhões de aplicações. o Banco tem 1 milhão e 420 mil clientes beneficiados com crédito. É uma parcela bastante significativa de operações.
o crédito é bastante pulverizado, são em torno de r$ 3 mil a r$ 4 mil por
operação. e há uma grande quantidade de clientes, quase 900 mil, com
operações do Pronaf B, que hoje é abrangido pelo Programa agroamigo.
132
Agricultura
familiar: novas
estratégias de
financiamento
Quadro 1 - Carteira ativa do Pronaf: Banco do Nordeste, agosto
de 2008
grupo/ linha
Banco do Nordeste
Qtde.
saldo R$ Mil
Pronaf a
125.463
1.106.588
Pronaf a/C
16.360
50.320
Pronaf B
894.027
1.095.288
Pronaf C
220.963
1.071.788
Pronaf D
115.431
1.019.549
Pronaf e
686
16.186
agroindustria
208
2.020
Floresta
995
3.580
Jovem
799
4.203
mulher
16.850
90.543
Semiárido
23.170
100.880
outros
4.548
26.271
total
1.419.500
4.587.216,50
o Gráfico 2 mostra a evolução das operações. em 2002, o Banco do nordeste contratou apenas r$ 207 milhões do Pronaf; a partir de 2003, houve um
incremento significativo, de tal forma que chegamos a um pico em 2006,
aplicando num único ano no Pronaf r$ 1,5 bilhões; em 2007, r$ 1,2 bilhões,
e a nossa meta é aplicar em 2008 r$ 1,3 bilhões. atualmente, até agosto,
aplicamos r$ 476 milhões.
Gráfico 2 - Evolução dos valores contratados 2002-8
(em R$ milhões)
Banco do Nordeste
1.479,1
1.330,0
1.183,5
1.051,1
695,8
476,6
319,4
207,2
2002
serviço social do Comércio |
2003
2004
2005
2006
2007
2008
(jan-ago)
a meta para o Banco é passar de r$ 1 bilhão em financiamentos em 2008, porém temos enfrentado dificuldades para o cumprimento da meta em função
de entraves na formalização de negócios do Pronaf a, cujo processo se inicia
fora do Banco, seja no incra ou nas Unidades Técnicas estaduais (UTes), que
não têm conseguido dar encaminhamento às demandas para o Banco do
nordeste.
133
Agricultura
familiar: novas
estratégias de
financiamento
programa Agroamigo
o Programa agroamigo foi criado em 2005 e está ainda em fase de expansão. É
um Programa operacionalizado pelo instituto nordeste de Cidadania2 por intermédio do Banco do nordeste e em parceria com o ministério do Desenvolvimento agrário. o Programa consiste na operacionalização do microcrédito
rural produtivo e orientado, e é destinado aos agricultores familiares de renda
mais baixa. o Programa agroamigo tem como público-alvo agricultores(as)
que se enquadram no Pronaf B, com renda bruta anual de até r$ 5 mil.
Dentre os principais objetivos do agroamigo, está a melhoria da qualidade
de vida dos(as) agricultores(as) por meio da autossustentabilidade, ou seja,
proporciona-se ao agente produtivo que está em situação de pobreza absoluta condições para que possa gerar emprego para ele e para a sua família
e, dessa forma, gerar renda. além disso, busca-se a inclusão social e a manutenção do homem no campo, evitando a migração para as periferias das
grandes cidades e até para a marginalidade.
metodologia
a metodologia é de crédito orientado e acompanhado. esta metodologia consiste em atender ao cliente na própria comunidade por meio de assessores
de Crédito. o cliente não é atendido na agência do Banco, nem na sede do
município, mas na localidade onde reside. os assessores de Crédito são todos técnicos agrícolas com formação de segundo grau e por isso têm conhecimento técnico da atividade rural, acompanham e orientam o crédito. o
papel do assessor é atuar como agente local de microcrédito rural; realizar
levantamento de dados cadastrais dos clientes; elaborar propostas simplificadas de crédito e orientar e acompanhar os empreendimentos financiados.
Cada assessor de Crédito deve realizar ao longo de dois anos a meta de 1.200
operações de crédito e, após esse período, fica responsável apenas pela renovação do crédito com os clientes. o valor máximo de cada operação é de
r$ 1.500; a média dessas operações é de r$ 1.300 a r$ 1.400.
o Programa é desenvolvido em parceria com o ministério do Desenvolvimento
agrário (que tem feito a aquisição de motocicletas para os assessores poderem se deslocar) e com as emater em cada estado, essencialmente para a
viabilização de assistência técnica aos projetos, não só no âmbito do Pronaf
B, mas também no âmbito de todo o Pronaf.
2
Foi fundado em 1993 durante a Campanha nacional de Combate à Fome, à miséria e pela Vida,
por iniciativa de funcionários do Banco do nordeste, os quais, de forma voluntária, contribuem
financeiramente e participam das suas atividades. Surgiu em um contexto em que se fazia necessário
dar resposta às graves questões socioeconômicas pelas quais passavam significativos contingentes
da população de baixa renda do estado do Ceará. Foi oficializado em 27/02/1996 e, em 29/09/2003
obteve o Certificado de organização da Sociedade Civil de interesse Público (oscip).
(Fonte: http://www.nordestecidadania.org.br)
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
resultados
134
o Quadro 2 mostra a estrutura do Programa. atuamos com o agroamigo em
161 agências, com 523 assessores de Crédito que atendem hoje a 1.132 municípios. a unidade da federação com maior atuação é a Bahia, com 30 agências, 89 assessores e 181 municípios. a meta é ao final de 2009 ter 800 assessores de Crédito e atuar nos 1.985 municípios da área de ação do Banco.
agricultura
familiar: novas
estratégias de
financiamento
Quadro 2 - Estrutura do Programa Agroamigo
Banco do Nordeste
uf
agências
asseessores
Municípios
al
9
32
62
Ba
30
89
181
Ce
24
72
149
eS
1
2
6
ma
14
58
109
mG
11
44
65
PB
14
41
121
Pe
16
54
121
Pi
16
56
140
rn
12
37
102
Se
14
38
76
161
523
1.132
o Gráfico 3 mostra as operações por setor. Há uma predominância no nordeste:
uma vocação natural para a pecuária, 74% do crédito; 11% da agricultura;
13% de serviços; 2% para extrativismo.
serviço social do Comércio |
Gráfico 3 - Distribuição das operações por setor, agosto 2008
Extrativismo
2%
Agricultura
11%
135
Banco do Nordeste
Agricultura
familiar: novas
estratégias de
financiamento
Serviços
13%
Pecuária
74%
o Gráfico 4 apresenta as operações por gênero: 56% do crédito são destinados
aos homens e 46% às mulheres, mostrando a importância do papel da mulher propiciando complementação de renda para a atividade.
Gráfico 4 - Distribuição das operações por gênero, agosto 2008
Banco do Nordeste
Mulher
44%
Homem
56%
os Gráficos 5 e 6 apresentam, respectivamente, a evolução do valor das operações e contratações acumuladas por ano, de 2005 a 2008. Começamos contratando, no ano de 2005, 18 mil operações e hoje estamos com 440 mil operações contratadas, do Programa agroamigo. as contratações acumuladas,
em termos de volume, estão em r$ 573 milhões, já aplicados no Programa.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Gráfico 5 - Evolução das operações acumuladas por ano (em R$
mil), agosto 2008
136
Banco do Nordeste
440.657
Agricultura
familiar: novas
estratégias de
financiamento
349.266
156.530
18.008
2005
2006
2007
2008
Gráfico 6 - Evolução das contratações acumuladas por ano
(em R$ mil), agosto 2008
Banco do Nordeste
553.522
427.518
168.004
17.453
2005
2006
2007
2008
.
conclusão
a apresentação teve como principal objetivo descrever as políticas de desenvolvimento e financiamento da agricultura familiar operacionalizadas pelo Banco do nordeste, com foco no Pronaf e no Programa agroamigo.
Vimos ao longo do Seminário, em todas as apresentações, o papel e a importância da agricultura familiar no Brasil para a melhoria da qualidade de vida
das pessoas. isto é, na redução dos níveis de pobreza, na inclusão social, na
redução da fome no Brasil. esse processo não é fruto de uma política social,
mas de um conjunto de ações de políticas de natureza social desenvolvidas
pelo governo, inclusive de natureza creditícia. Cabe citar as ações do Pronaf,
o Programa de Bolsa renda, o Programa de Seguro Safra, Garantia Safra, o
Seguro Defeso e as ações desenvolvidas pela Conab. Como Programa local,
cito o Fecop, no Ceará, e o Programa de Combate à Pobreza rural. Portanto,
o conjunto dessas ações desenvolvidas pela ação governamental tem propi-
serviço social do Comércio |
ciado ao Brasil resultados diferenciados, em relação à maioria dos países de
grande contingente de pobres.
137
a região nordeste é aquela com maior número de estabelecimentos de agricultura familiar. nesse contexto, o Banco do nordeste procura exercer um
trabalho para a promoção do desenvolvimento da região e da integração de
toda a cadeia produtiva, via acesso ao crédito e financiamento bancário. o
trabalho desenvolvido tem foco social voltado para o desenvolvimento da cidadania e da autossustentabilidade. as famílias beneficiárias do Pronaf, especialmente do grupo B, geralmente vivem em situação de pobreza extrema e
são atendidas pelo Banco, principalmente pelo Programa agroamigo. nosso
sonho é que esta medologia de trabalho, o agroamigo, seja estendida em
futuro próximo a todos os demais grupos do Pronaf.
Agricultura
familiar: novas
estratégias de
financiamento
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
138
* Presidente do Conselho de administração da Brasil ecodiesel, graduado
em Política internacional pelo Curso de Preparação da Carreira Diplomática –
instituto rio Branco. além de ocupar diversos cargos na diplomacia brasileira
a partir de 1961, foi Presidente do instituto Brasileiro do Café de 1987 a 1990,
embaixador extraordinário para a negociação da dívida externa de 1990 a
1991 e embaixador do Brasil junto à União europeia de 1991 a 1998. exerceu
também o cargo de Presidente executivo da Companhia Vale do rio Doce de
1999 a 2001.
O papel do biodiesel
no desenvolvimento
brasileiro Jorio dauster*
serviço social do Comércio |
139
o trinômio segurança energética, meio ambiente
e desenvolvimento social expressa a essência
do Programa de Biodiesel no Brasil. a rigor, porém, os dois primeiros, segurança energética e
meio ambiente, se aplicam a todos os biocombustíveis, aí incluído o etanol.
Para deixar claro, o etanol ou álcool é aquilo que
substitui a gasolina; e o biodiesel, o que substitui o diesel. no conjunto, eles representam
todos os combustíveis líquidos absolutamente
essenciais para que o planeta possa girar. infelizmente somos hoje uma civilização viciada em
combustíveis fósseis e sabemos todos que os
combustíveis fósseis são, por definição, finitos.
Haverá um momento, não se sabe se daqui a
trinta, quarenta ou cinquenta anos, em que as
reservas de petróleo e de gás estarão extintas.
as de carvão, outro grande combustível fóssil,
durarão por mais tempo, mas um dia também
acabarão. e, apesar disso, o consumo mundial
aumentava rapidamente antes de entrarmos
nesta recessão recentíssima como se não fosse
urgente encarar a necessidade de substituição
desses combustíveis fósseis por outras formas
de energia.
mas sua eficiência ainda é pequena e, por isso,
são utilizadas somente para demonstrar seu
potencial tecnológico, não sendo provável sua
aplicação corriqueira no futuro previsível. outra expectativa é o hidrogênio, mas, nesse caso,
também não há esperança de que possa ser
aproveitado para fins de uso em automóveis nos
próximos vinte ou trinta anos.
nessas condições, impôs-se a necessidade de se
encontrarem combustíveis líquidos renováveis
que pudessem substituir a gasolina e o diesel,
não totalmente porque seriam exigidos volumes
astronômicos, mas, pelo menos, começando a
reduzir a dependência absoluta que hoje existe
com respeito a esses materiais finitos.
Tal necessidade é reforçada pelo fato bem conhecido de que muitas das fontes atuais de combustíveis fósseis são politicamente instáveis, o
que termina por se refletir na elevação dos preços do petróleo e do gás. Por sorte, o Brasil já
havia mostrado o caminho com a experiência
extraordinária do álcool que, iniciada há trinta
anos, comprovava a possibilidade de implementar tal substituição de forma significativa.
evidentemente, as formas mais valiosas são aquelas renováveis, como a energia solar e a energia
eólica, mas é evidente, por exemplo, que a energia eólica não pode ser transformada em combustível líquido para fazer circular os bilhões de
automóveis, ônibus, trens, aviões que temos por
aí. a própria indústria, para poder renovar essa
imensa frota, levará várias décadas.
no caso do biodiesel, a prioridade coube à alemanha, que há cerca de dez anos passou a aproveitar para fins energéticos os excedentes da colza
(canola) que costumava ser utilizada apenas
para fins alimentícios. mas vale lembrar que o
primeiro motor a diesel (que é o sobrenome de
seu inventor, o engenheiro alemão rudolf Diesel)
foi mostrado em Paris, numa exposição internacional de 1900, utilizando o óleo de amendoim.
Portanto, estamos condenados a viver por muito
tempo com motores a diesel e a gasolina. não
há dúvida de que já existem baterias solares,
Portanto, em matéria de segurança energética, é
evidente que se impõe a substituição dos combustíveis fósseis e que o etanol e o biodiesel são
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
140
O papel do
biodiesel no
desenvolvimento
brasileiro
hoje as únicas alternativas “limpas” economicamente viáveis.
o outro imperativo planetário reside na necessidade de que se reduzam os gases que estão
conduzindo ao aquecimento global. Conquanto
se possa discutir qual o impacto preciso dos gases liberados pelos combustíveis fósseis usados
nos motores, não há a menor dúvida de que o
dióxido de carbono e outras emissões são profundamente prejudiciais à saúde de todos e têm
efeitos macroclimáticos que já são sentidos em
todo o mundo.
Se essas duas razões são mais do que suficientes para justificar a produção crescente de biodiesel, no caso do Brasil há um terceiro fator:
o desenvolvimento social, do qual cuidarei mais
adiante.
Como o biodiesel ainda não é tão conhecido quanto o álcool, talvez seja interessante lembrar que
ele deriva de uma reação química em que, na
temperatura adequada, o óleo vegetal, ou a gordura animal, é misturado com o etanol ou com o
metanol na presença de um catalisador. Trata-se
de uma operação relativamente simples do ponto de vista tecnológico cujo produto final tem a
vantagem adicional de ser biodegradável.
o biodiesel pode ser produzido a partir de qualquer
óleo vegetal, tal como soja, girassol, algodão,
colza, mamona, pinhão manso etc. enquanto
que, no caso do etanol, o número de matériasprimas atualmente é muito reduzido, limitandose em essência à cana-de-açúcar, beterraba e
milho.
o biodiesel apresenta várias características muito positivas. em primeiro lugar, é um perfeito
substituto para o diesel mineral, pois não exige
adaptação dos motores (ao contrário do que
ocorre no caso do álcool, o que levou à bela invenção do motor flexfuel). além disso, reduz as
emissões de gases que causam o efeito estufa
de forma muito sensível. em matéria de dióxido
de carbono há uma redução de cerca de 80%, e
não contém enxofre algum.
no Brasil, o Programa de Biodiesel foi instituído
pela lei n° 11.097, de 2005. É, portanto, um Programa muito recente, que nasceu em 2002 nos
gabinetes da ministra Dilma roussef, quando
ela era ministra de minas e energia. o marco
regulatório brasileiro teve caráter pioneiro no
mundo ao estabelecer a mistura obrigatória de
biodiesel ao diesel mineral, medida crescentemente copiada por outros países. este foi um
passo da maior relevância por fazer com que
serviço social do Comércio |
o uso do biodiesel deixasse de corresponder a
uma escolha das distribuidoras ou dos consumidores, passando a ser uma exigência legal.
os 2% obrigatórios entraram em vigor em janeiro
de 2008 e, como já havia uma capacidade produtiva instalada muito grande, o governo elevou para 3% a mistura a partir de julho do ano
em curso. esses 3% continuarão vigorando até
2013, quando passarão para 5%, a menos que o
governo antecipe a utilização deste percentual,
como a lei faculta. Temos assim, já agora, uma
demanda obrigatória de cerca de 1,3 bilhões de
litros por ano, volume significativo que tende a
crescer rapidamente juntamente com a economia brasileira.
examinemos agora a questão dos biocombustíveis
e o possível conflito energia versus alimento.
Quem quiser produzir biodiesel no mundo, hoje,
tem poucas alternativas. Se estiver na ásia, usa
o óleo de palma (ou dendê); se estiver na europa, usa a colza; se estiver nos estados Unidos
ou aqui no Brasil, usa o óleo de soja. isso porque são esses os óleos que já contam com uma
cadeia perfeitamente estruturada, há décadas,
que comercializam volumes enormes e têm todas as características das commodities, dispondo inclusive de mercados de futuros.
mas será que o óleo de soja é a melhor opção
para quem quer fazer biodiesel? Claramente,
não, pois seu grão só contém cerca de 18% de
óleo. Desse modo, para cada tonelada de óleo,
o produtor precisará vender quatro toneladas de
farelo, que constitui de fato a razão de ser da
soja pois é nele que está presente a proteína. e
a proteína é absolutamente essencial para as rações animais. Quando comemos carne, a rigor,
estamos comendo soja empacotada. Quer dizer,
a soja foi transformada em farelo, que, ao ser
misturado com milho, gerou as rações que por
fim alimentaram o gado, os porcos e os frangos.
obviamente, existe também o consumo direto
de soja, porém em volume ínfimo quando comparado ao que é dirigido à produção de todos os
tipos de carne.
Com o girassol, a proporção é melhor, já existem
40, 45% de óleo no grão. Portanto, para quem
está pensando no óleo, essa relação é mais
favorável, sem dizer que o farelo do girassol é
também uma excelente fonte de proteína. mas,
afinal de contas, não há dúvida de que, ao se
fazer biodiesel usando óleo dessas duas plantas, cria-se uma competição com seu uso para
fins alimentícios. isso só pode ser resolvido pelo
aumento da produção ou dos preços e, como
a produção não pode dar saltos, o emprego de
produtos agrícolas para produzir biocombustíveis gerou nos últimos anos algum impacto nos
preços.
este efeito foi mais sensível no caso do milho, utilizado nos estados Unidos para produzir etanol,
mas também pôde ser observado no caso da
soja, da palma e da colza usadas para fabricar
biodiesel. no entanto, para a elevação no preço
dos alimentos contribuíram muitos outros fatores – tais como a disparada das cotações de
petróleo, o encarecimento dos fertilizantes, a especulação financeira nos mercados de futuros,
fenômenos climáticos desfavoráveis etc. – que
frequentemente não recebiam a atenção necessária dos analistas.
Há, portanto, grandes distorções nesse debate,
inclusive devido à atuação de onGs bem intencionadas que na realidade estão sendo manipuladas por grandes lobbies. Quando se vai
ver de perto, quem monta as campanhas contra o etanol e o biodiesel são grandes petroleiras e as principais multinacionais do setor de
alimentos, as quais conseguem até fazer com
que altas autoridades da onU cometam a tolice
de advogar a cessação da produção de biocombustíveis. existe aqui um jogo pesado e o Brasil
deve se preparar para lutar para defender seus
interesses nos foros internacionais, embora sejam muito vultosos os recursos de que dispõem
nossos adversários.
Seja como for, no caso do biodiesel existe uma
saída não conflitiva para o embate energia x
alimento, a qual é dada pela mamona e pelo
pinhão manso. a mamona, bem conhecida de
todos os brasileiros, tem uma alta porcentagem
de óleo, 45 a 50%, e o pinhão manso de cerca de
40%, mas o mais importante é que ambas são
plantas tóxicas, não podendo ser consumidas
pelos seres humanos e pelos animais.
o pinhão manso é um arbusto grande ou uma árvore pequena, como queiram, que leva quatro
anos para atingir a maturidade e depois produz
durante trinta, quarenta anos. Já houve tempo
em que lisboa era iluminada com óleo de pinhão manso, mas, com a chegada da eletricidade, sua produção em larga escala foi abandonada e, hoje, o pinhão manso precisa ser
redomesticado. não há experiência de grandes
plantações e, entre as maiores que estão em
evolução, incluem-se as pertencentes à empresa cujo Conselho de administração eu presido.
ainda temos de confirmar seu potencial efetivo,
porém é importante ter em mente que existem
alternativas para a competição entre energia e
alimentos.
no caso da mamona e do pinhão manso há um
elemento adicional de grande relevância: ambas são plantas rústicas que convivem com solos pobres e com um regime pluviométrico irregular, razão pela qual se adaptam perfeitamente
ao Semiagreste brasileiro, onde vivem milhões e
milhões de pessoas que só agora estão obtendo uma pequena melhoria de vida, graças em
particular ao Bolsa Família. Porém, como esse
é um Programa de distribuição direta de renda,
precisamos encontrar uma saída digna para todos esses brasileiros em termos de emprego, de
trabalho produtivo. e é óbvio que a produção de
mamona e de pinhão manso, em áreas que não
permitem plantações das culturas intensivas,
pode representar a redenção econômica dessa
importante parcela de nossa população.
este, portanto, é o terceiro elemento do trinômio
mostrado no início da apresentação, qual seja, a
inclusão social que o biodiesel pode proporcionar no Brasil.
Voltando à questão do meio ambiente, aqui se pode
observar o balanço energético das principais
matérias-primas utilizadas na produção de biocombustíveis, entendido como a relação entre a
energia renovável obtida e o quanto se gasta de
combustível fóssil no processo produtivo.
no que tange ao etanol, a cada dia fica mais claro
que o uso do milho nos estados Unidos é um absurdo do ponto de vista econômico e ambiental
porque, sendo o milho essencial na alimentação
humana e na fabricação de rações animais, se
obtém apenas 1,3 unidades de etanol para cada
unidade de fóssil usada na sua produção. Uma
relação assim tão pífia só se sustenta mediante
o emprego de imensos subsídios. Já a cana-deaçúcar no Brasil é totalmente diferente. Com uma
unidade de combustível fóssil se consegue de oito
a nove unidades de etanol, o que justifica sua produção em termos ambientais e econômicos.
no caso do biodiesel, a soja nos estados Unidos
também revela uma relação muito baixa, assim
como a colza e o girassol.
a Brasil ecodiesel encomendou um estudo a uma
empresa que tem sede em londres, a fim de
calcular o balanço energético do biodiesel fabricado a partir da mamona produzida pela agricultura familiar na região de iraquara, na Bahia.
Verificou-se um valor notável, de 10,5 superior
ao do próprio etanol de cana-de-açúcar.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
141
O papel do
biodiesel no
desenvolvimento
brasileiro
no preparo do biodiesel, a Brasil ecodiesel hoje usa o metanol (que provém do
gás e, portanto, tem origem fóssil), que tecnicamente pode ser substituído
pelo etanol derivado da cana-de-açúcar. Se fosse feita tal substituição, o balanço energético daquele biodiesel seria realmente extraordinário: para cada
unidade de combustível fóssil, teríamos então quarenta unidades de combustível renovável a partir da mamona plantada no semiárido brasileiro.
142
O papel do
biodiesel no
desenvolvimento
brasileiro
repetindo, a produção de biodiesel no Brasil tem um enorme potencial de inclusão social, com a vantagem adicional de que os pequenos agricultores
podem plantar oleaginosas que, por não serem comestíveis, estão imunes à
competição de preços com as plantas de uso alimentar.
infelizmente, foi aí que o Programa de Biodiesel até agora ficou a dever pois o
governo não prestou o apoio necessário para a implantação em larga escala
das novas cadeias de produção. a própria embrapa só recentemente passou
a estudar essas oleaginosas sob o novo prisma do biocombustível. existem
algumas palmeiras brasileiras que, aparentemente, têm um potencial excepcional para produzir óleo, mas até agora não há estudos sérios sobre elas. a
mamona tinha sido abandonada, não se registra nenhum esforço significativo para criar sementes de alta produtividade. no tocante ao pinhão manso o
atraso é ainda maior.
além disso, a maior parte dos agricultores familiares no nordeste não se organizou sob a forma de cooperativas e não tem acesso aos programas do
Pronaf, carecendo assim de capital e de assistência técnica. no entanto, dentro do governo há muita gente consciente dessas deficiências e por isso tenho
a esperança de que em breve serão adotadas as medidas corretivas para que
o biodiesel se firme, no Brasil e no mundo, como um produto que substitui os
combustíveis fósseis: é bom para o meio ambiente, não compete necessariamente com os alimentos e, acima de tudo, conduz à inclusão social.
Chamei atenção para o fato de que a minha preocupação maior era com o plantio de mamona e de pinhão manso nas áreas do Semiagreste brasileiro. ali o
que existe, de fato, é uma produção de subsistência. esse tipo de produção,
que vem sendo feita há muitos e muitos anos, é altamente prejudicial ao solo.
o que faz o pequeno produtor em certas regiões do nordeste? ele planta um
pouquinho de feijão, um pouquinho de milho, às vezes tem uma vaca, umas
cabrinhas, e depois de dois anos ali, inclusive porque o terreno é pisoteado
pelos animais, tem de ir para outro cantinho de sua pequena propriedade de
poucos hectares. Com isso vai se deteriorando ainda mais o que já era pobre.
Trata-se, portanto, de uma situação dramática. São minipropriedades e não
existe a cultura da cooperativa. mas nada impede que o pequeno agricultor
plante alguma mamona e alguns pés de pinhão manso sem por isso abandonar a produção do alimento de que necessita. nas áreas onde a agricultura
familiar já é mais desenvolvida, no rio Grande do Sul, em Santa Catarina, aí
são decisões que o pequeno agricultor toma a partir de um cálculo econômico que aquele agricultor do nordeste não consegue ainda fazer.
Portanto, não vejo esse risco. Pode ser diferente quando se utilizam grandes
áreas para plantio, por exemplo, de eucalipto. Pode-se reduzir a disponibilidade de terra para a agricultura, mas, muitas vezes, nem é o caso porque as
terras onde se vai plantar o eucalipto só seriam apropriadas para a agricultura caso se fizesse um investimento muito pesado. eu acho que o risco é a
generalidade desse tipo de afirmação, de que a produção de alimentos no
Brasil está ameaçada por todos os lados. É necessário estudar a questão em
cada região, com relação a cada cultura.
É preciso entender, inicialmente, que a produção do biodiesel a partir de qualquer óleo vegetal gera subprodutos muito valiosos: a glicerina e os ácidos
serviço social do Comércio |
graxos. Há mercado para eles, pode-se até exportar. no caso dos óleos de
soja e de girassol, por exemplo, o farelo é usado para alimentação de gado
ou alimentação humana por ser muito rico em proteína. no caso do pinhão
manso e da mamona, por se tratarem de plantas tóxicas, o que resta após a
extração do óleo não serve para a alimentação, mas pode ser usado no preparo do solo. o ex-ministro da agricultura, roberto rodrigues, um grande plantador de café, usa a mamona nas suas terras, inclusive porque ela age como
defensivo agrícola. Quando não há mercado próximo para esse material, ele é
usado na própria fábrica de biodiesel para substituir o óleo combustível, tendo assim um efeito ambiental muito positivo ao substituir produtos fósseis.
143
O papel do
biodiesel no
desenvolvimento
brasileiro
nós nunca vamos poder aumentar substancialmente a produção de alimentos
ou de biodiesel se não ocuparmos mais terra, mesmo que tenhamos todo o
ganho de produtividade que nos foi tão bem apresentado pelo representante
da embrapa.
o objetivo é sempre aumentar a produtividade para que, naquele mesmo espaço de terra, se possa ter mais do produto. no entanto, o Brasil possui ainda
áreas enormes que estão semiabandonadas, que são ineficientemente usadas como pastagens. Quem passa por áreas que já foram plantações de café,
por exemplo, em todo o Vale da Paraíba, entre rio e São Paulo, não vê nada
plantado ali. Como essas, há áreas imensas pelo Brasil afora onde se pode e
se deve plantar alimentos e energia na forma de biocombustíveis.
então, essa ideia de que já chegamos aos limites e que tudo tem que ser feito na base de uma “escolha de Sofia” não me parece correta. o Brasil, ao
contrário de quase todos os outros países do mundo, tem um potencial extraordinário de terras mal utilizadas ou não utilizadas, sem necessidade de
desmatar a amazônia.
o problema do dendê, para uma empresa privada de biodiesel, é sobretudo
econômico. a palmeira leva sete anos para atingir a maturidade e produzir
na escala desejável. Talvez por isso só exista uma grande produtora moderna,
que está no Pará, a agropalma, mas o óleo é destinado à alimentação por
atrair bons preços. apenas uma pequena sobra da produção, que não se
prestava para consumo humano, é aproveitada para fabricar biodiesel.
assim, é uma questão econômica. existem áreas degradadas na amazônia
que, sem provocar nenhum desmatamento, poderiam perfeitamente ser utilizadas para o plantio da palma pois ali as condições climáticas são adequadas. Quem sabe a Petrobras, com seus grandes recursos financeiros, poderia
assumir a liderança no plantio de palma para a produção de biodiesel.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
144
* Superintendente executiva do instituto Unibanco. Doutora em
educação pela PUC-rJ. mestre em educação pela UFrJ. especialista em Pedagogia e Civilização pelo Centre international D’Études
Pedagogiques, Sévres, França. Foi chefe da Divisão Social do Banco
interamericano de Desenvolvimento e ministra de estado de assistência Social no Brasil.
A dimensão da
segurança alimentar nos
programas de redução
da pobreza Wanda engel*
serviço social do Comércio |
145
a proposta deste trabalho é realizar uma análise
do papel de projetos de segurança alimentar em
programas de redução da pobreza. Partindo da
premissa de que estes projetos constituem-se
em esforços no campo da proteção social, para
os grupos mais vulneráveis, vamos defender a
ideia de que seu impacto, no processo de promoção destes grupos, depende da integração
de suas ações com programas de desenvolvimento humano, social e econômico, e que esse
conjunto de esforços deve estar articulado e
integrado em função das mesmas famílias ou
comunidades.
Parte-se também da assertiva de que a proteção
social é o ponto de partida necessário das políticas de redução da pobreza, porque as pessoas extremamente vulneráveis não possuem as
condições básicas para iniciarem um processo
de desenvolvimento, cabendo às políticas assistenciais garantir este patamar básico.
longe de pensar que existe uma dicotomia entre
dar o peixe ou ensinar a pescar, para as pessoas
que vivem na extrema pobreza não há dúvidas de
que é preciso dar o peixe, ensinando a pescar. É
absolutamente importante oferecer programas
de proteção social. esses programas não podem
ser desqualificados sob o título de assistencialismo, uma vez que, sem eles, torna-se muitas
vezes impossível começar qualquer processo de
desenvolvimento humano, social e econômico.
Tais políticas podem ser classificadas como assistencialistas, caso se transformem num fim
em si próprias e não no ponto de partida de um
processo de desenvolvimento.
políticas integradas de redução
da pobreza
os programas de distribuição de alimentos ou de
recursos podem ser o primeiro passo de um processo de promoção ou saída da pobreza, desde
que sejam conjugados, em primeiro lugar, com
ações de desenvolvimento humano. Geralmente isso é feito por meio de condicionalidades: a
concessão de um benefício é condicionada a
alguma contrapartida na área da educação ou
da saúde.
Por outro lado, não podemos pensar a pobreza
em termos de indivíduos. a unidade básica da
pobreza é a família. neste sentido, não basta
uma ação focada no desenvolvimento humano,
sendo necessária uma intervenção no grupo a
que pertence este indivíduo, fortalecendo suas
redes de relação. ninguém sai sozinho da situação de pobreza. É fundamental promover o
fortalecimento da família e das organizações
comunitárias, com ações de desenvolvimento
social.
assim, é possível desenvolver as capacidades
humanas ou organizacionais necessárias para
um último estágio de promoção: o patamar do
desenvolvimento econômico. enfim, os programas de proteção social devem desembocar em
programas de desenvolvimento econômico das
pessoas, das famílias, das comunidades.
Quando se atingem níveis razoáveis de desenvolvimento econômico, aumentam as oportunidades, inclusive de desenvolver novas capacidades.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
novas capacidades proporcionam novas oportunidades econômicas, formando um ciclo virtuoso de desenvolvimento.
146
Figura 1 - Políticas integradas de redução da pobreza
A dimensão
da segurança
alimentar nos
programas de
redução da
pobreza
Desenvolvimento Econômico
Oportunidades
Qualificação
Desenvolvimento Humano
Desenvolvimento Social
Condicionalidade
Capacidades
Fortalecimento
Proteção Social
Condição
cinco gerações de programas de redução da pobreza
os programas de redução da pobreza na américa latina têm etapas históricas
que vão, gradativamente, incorporando diferentes componentes, em busca
da multidimensionalidade e integração das ações. neste sentido, podem ser
identificadas cinco gerações de programas de redução da pobreza.
a primeira geração caracteriza-se pela simples distribuição de alimentos, com
foco no indivíduo. o objetivo é a segurança alimentar, caracterizando-se
como uma ação típica de proteção social, incorporando algum componente de desenvolvimento humano, já que favorece a melhoria das condições
de saúde das pessoas atendidas. não se observa nenhuma dimensão de
desenvolvimento econômico ou social, e sua implantação depende de uma
estrutura logística, que muitas vezes é mais cara que o próprio alimento
distribuído.
Tivemos historicamente muitas ações desse tipo no Brasil. a primeira etapa
do Comunidade ativa, por exemplo, baseou-se na distribuição de alimentos, principalmente do estoque regulador da Conab, com base no chamado
“mapa da fome”. Uma das conclusões a que se chegou foi a de que se comprava farinha em São Paulo e, ao distribuí-la em áreas produtoras do norte e
nordeste, acabava-se por inibir a produção local.
a segunda geração, caracterizada pela distribuição de renda, representa um
grande avanço em relação à anterior, uma vez que passamos a levar recursos monetários para áreas extremamente deprimidas, criando um mercado
consumidor, que ativa a produção local de bens e serviços. ou seja, essa
iniciativa tem um impacto na economia regional, gerando algum nível de desenvolvimento econômico.
o foco ainda é o indivíduo, e o objetivo é garantir uma renda mínima, ou seja,
representa também uma modalidade de proteção social. Seu funcionamento
depende da instalação de agências ou agentes bancários nos territórios onde
se concentram os pobres, o que também eleva o nível de desenvolvimento
econômico das áreas atendidas. Programas deste tipo se iniciaram no Brasil
com a chamada aposentadoria rural, que a rigor se trata de um benefício
assistencial, uma vez que não depende de contribuição previdenciária, e com
o benefício de Prestação Continuada, destinado a idosos e pessoas com
deficiência.
serviço social do Comércio |
Fazem parte da terceira geração os programas de transferência condicionada de renda, que associam proteção social a desenvolvimento humano, visando não só minimizar os efeitos da pobreza a curto prazo, mas contribuir
para erradicá-la em longo prazo, através do aumento do capital humano
das novas gerações, por meio de condicionalidades ligadas à educação e
à saúde.
147
A dimensão
da segurança
alimentar nos
programas de
redução da
pobreza
Com melhores condições de saúde e educação, as novas gerações poderão ter
melhores oportunidades que as anteriores, sendo capazes de sair da situação de pobreza.
esse sistema distributivo também precisa de agências ou agentes bancários,
além de um sistema integrado de informações sobre os beneficiários, para
acompanhamento das condicionalidades. Programas desta geração foram
implantados no Brasil sob a forma de uma rede de Proteção Social, formada
por um conjunto fragmentado de ações (Bolsa alimentação, Bolsa escola,
Programa de erradicação do Trabalho infantil, agente Jovem de Desenvolvimento Social e auxílio Gás), o que gerou a necessidade da criação do Cadastro Único de Famílias Pobres. este cadastro permitiu a integração dos
programas, dando origem ao Bolsa Família.
Programas de quarta geração tentam oferecer oportunidades de saída da situação de pobreza em prazos menores que os da geração anterior. Partindo
do pressuposto de que a família e não o indivíduo é a unidade básica do
fenômeno da pobreza, surgem os programas integrais de desenvolvimento
familiar associados à transferência condicionada de recurso. assim, além de
saúde e educação para as crianças e jovens, procura-se garantir aos outros
membros da família acesso prioritário a oportunidades de educação, saúde
e geração de renda.
na américa latina, a experiência do Chile Solidário parece ser o exemplo mais
completo de programas desta geração. as famílias em situação de extrema
pobreza são alvo de um programa integrado de promoção familiar, têm acesso prioritário a programas de saúde, educação e desenvolvimento econômico, como microcrédito, geração de renda e capacitação.
o recurso é centralizado no ministério do Planejamento, que o distribui para os
demais com a condição de atenderem a essas famílias. as famílias participantes fazem um Plano de Desenvolvimento Familiar e assinam um Contrato
de Promoção com metas e prazos definidos: todos documentados, jovens e
crianças na escola; jovens e adultos em programas de capacitação ou geração de renda. existe até mesmo um processo de graduação para sair do
programa em algum momento.
além de agências bancárias e cadastro dos beneficiários, é preciso ter um sistema integrado de informações sobre os programas e serviços existentes,
a fim de fazer o casamento entre oferta e demanda e identificar lacunas de
cobertura ou tipo de serviço. a ideia é fazer uma ponte entre as necessidades
identificadas da família e o encaminhamento para programas.
nessa geração, é preciso contar também a figura do Promotor Familiar, que
acompanha o processo de promoção da família. no Chile, esse acompanhamento é por família. no Brasil, tivemos uma experiência com os núcleos de
apoio à Família, com grupos de famílias.
no Chile, chegou-se à conclusão de que, além de promover a família, seria
necessário desenvolver a comunidade em que ela está inserida. assim, assistimos ao surgimento de uma quinta geração de programas de redução
da pobreza, em que se agrega, a todas as iniciativas previstas nas gerações
anteriores, um processo de desenvolvimento comunitário.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
esses programas de desenvolvimento comunitário incluem, por exemplo, projetos produtivos locais e de desenvolvimento em infraestrutura para garantir a
evolução da comunidade. ou seja, vão além de desenvolver a família e incluem
o fortalecimento das organizações locais. Para colocá-los em prática, faz-se
necessária a contribuição de agentes de Desenvolvimento Comunitário.
148
A dimensão
da segurança
alimentar nos
programas de
redução da
pobreza
Quadro 1 - Cinco gerações de programas de redução da pobreza
foco
proteção
social
Desenvolvimento
Humano
Distribuição de
alimentos
indivíduo
Segurança
alimentar
Saúde
Transferências não
condicionadas
indivíduo
renda mínima
Transferências
condicionadas
Família
renda mínima
Programas
integrais de
desenvolvimento
familiar com
transferência
condicionada
Programas
integrais de
desenvolvimento
familiar e
comunitário com
transferência
condicionada
Desenvolvimento
econômico
Desenvolvimento
social
Demandas
específicas
Sistema distributivo
mercado consumidor
agências bancárias
(aB)
Saúde e educação como
condicionalidades
mercado consumidor
- aB
- Sistema integrado
de informação de
Beneficiários (SiiB)
Família
- renda mínima
- acesso
prioritário a
programas
assistenciais
- Saúde e educação
como condicionalidades
- acesso prioritário
a programas de
educação, saúde e
habitação
acesso prioritário
a programas de
capacitação, geração
de renda, inserção no
trabalho e crédito
- aB
- SiiB
- Sistema integrado
de informação sobre
Programas e Serviços
(SiiPS)
- Promotor de famílias
Família e
território
- renda mínima
- acesso
prioritário a
programas
assistenciais
- Saúde e educação
como condicionalidades
- acesso prioritário
a programas de
educação, saúde e
habitação
- acesso prioritário
a programas
- Projetos produtivos
locais e infraestrutura
Fortalecimento
da família
- Fortalecimento da
família
- Fortalecimento
das organizações
de base: Plano de
Desenvolvimento
local
- aB
- SiiB
- SiiPS
- Promotor de famílias
- agente de
desenvolvimento
comunitário
Quando faz sentido um programa de primeira geração?
Diante da evolução dos programas sociais voltados ao combate à pobreza, surge uma pergunta: ainda faz sentido manter programas de distribuição de
alimentos, que caracterizam a primeira geração?
a resposta é que, em algumas situações, ainda fazem sentido programas deste
tipo em determinados contextos, mas seu impacto depende de uma ampliação de seu escopo, incorporando componentes de desenvolvimento humano,
social ou econômico.
assim, algumas características contextuais de oferta, demanda ou capacidade
distributiva de alimentos deveriam estar presentes:
a) oferta – esses programas se tornam viáveis quando há, por exemplo,
excedentes agrícolas, estoques reguladores, pessoas dispostas a doar alimentos, ou se deseja incentivar a agricultura familiar.
b) Demanda – Justificam-se ações deste tipo para atender a demandas
geradas por situações de crise estrutural ou desastre natural ou em função do alto grau de vulnerabilidade da população atendida. Por outro lado,
a distribuição de alimentos pode ser uma forma de contribuir para a qualificação de serviços de proteção social em creches ou abrigos. ao receber alimentos, essas instituições podem usar o dinheiro disponível para
outras finalidades, melhorando a qualidade dos serviços oferecidos. Uma
terceira função seria a de contribuir para melhorar o gerenciamento do
serviço social do Comércio |
tempo da mulher: os restaurantes populares, por exemplo, podem facilitar
a vida das mulheres que têm dupla ou até tripla jornada de trabalho.
149
c) Distribuição – Programas deste tipo exigem, além de sistemas distributivos de baixo custo, mecanismos de monitoramento contra corrupção e
instituições mediadoras com alto grau de confiabilidade.
A dimensão
da segurança
alimentar nos
programas de
redução da
pobreza
Quadro 2 - Quando faz sentido um programa de primeira
geração?


OfeRta

DeMaNDa

excedentes agrícolas
Sistemas distributivos
de baixo custo
Situacão de crise estrutural
ou desastre natural
estoque regulador
Sistemas de monitoramento
contra corrupção
Situação de alta
vulnerabilidade
Fomento à agricultura
familiar
instituições mediadoras
confiáveis
Qualificação de serviços de
proteção social (creches,
abrigos)
Doadores de alimentos
necessidade de melhorar o
gerenciamento do tempo da
mulher
como ir além da segurança alimentar?
a distribuição de alimentos não pode ser um fim em si próprio. a associação
com outros componentes incorporados às diferentes gerações dos programas de combate à pobreza pode potencializar sua contribuição no processo
de superação da pobreza. É possível incrementar a segurança alimentar com
ações do tipo:
a) Proteção social com foco em desenvolvimento familiar
os programas de segurança alimentar deveriam, neste caso, desenvolver
com as famílias um plano pactuado de promoção familiar, identificar necessidades específicas e intermediar o acesso a serviços que atendessem a
esta demanda, além de desenvolver um programa de ação socioeducativa.
b) Desenvolvimento humano
Tendo em vista esta perspectiva, os programas deveriam incluir ações de
educação alimentar associadas à distribuição de comida que ensinem as
famílias a se alimentar melhor, além de controle peso-altura das crianças
e encaminhamento prioritário daqueles que apresentassem distúrbios alimentares a serviços de saúde.
c) Desenvolvimento econômico
a distribuição de alimentos por si só já reduz os gastos da família com
alimentação, possibilitando maximizar o uso do orçamento familiar. Caso
visem aumentar sua contribuição para o desenvolvimento econômico de
grupos vulneráveis, recomenda-se dar prioridade para a compra da produção local de alimentos, fomentando a agricultura familiar. além disso,
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
poderiam incluir o encaminhamento de beneficiários para programas de
capacitação, crédito e inserção no mercado de trabalho.
150
d) Desenvolvimento social
Programas de segurança alimentar poderiam contribuir para o incremento do capital social dos grupos mais pobres caso incluíssem ações
de fortalecimento da família, qualificação de instituições intermediárias
(prestadoras de serviços sociais) e fortalecimento das organizações de
base local. Por outro lado, poderiam promover um aumento da coesão social entre grupos de diferentes contextos socioeconômicos se previssem
ações de fomento à responsabilidade social, como doação de alimentos e
trabalho voluntário.
A dimensão
da segurança
alimentar nos
programas de
redução da
pobreza
sistema de monitoramento e avaliação
em todos os programas, o grande desafio é criar um sistema de monitoramento e avaliação para acompanhar e medir resultados e impactos. o primeiro
passo é definir objetivos e metas que vão gerar indicadores de processos e
de resultados.
a partir desses indicadores é essencial realizar um bom diagnóstico, que permita a construção de uma linha de base, fundamental para o acompanhamento e avaliação de resultados.
a partir daí, é necessário o acompanhamento dos indicadores de processos e
de resultados, contando com um sistema de supervisão periódica, de preferência presencial, de forma a possibilitar eventuais correções e aperfeiçoamentos.
Temos de contar com informações confiáveis e precisas para comparar os resultados obtidos com a linha de base e, se possível, avaliar os impactos, por
meio da existência de um grupo de controle.
Quadro 3 - Principal desafio: Sistema de monitoramento e avaliação
Diagnóstico
processo
Resultado
Cadastro de
beneficiários
acompanhamento
dos indicadores
Coleta de dados
sobre indicadores
Sistemas
informatizados de
controle físico e
financeiro
linha de base
Supervisão
presidencial
periódica
linha de base
X
resultados finais
Correção
aperfeiçoamento
AVALIAçãO EXTERNA
serviço social do Comércio |
impacto
Grupo de intervenção
X
Grupo de controle
conclusão
151
Programas de distribuição de alimentos representam estratégias tradicionais
para mitigar um dos efeitos da situação de extrema pobreza: a fome. Podemos verificar uma tendência atual de busca de caminhos que possam ir além
da mitigação dos efeitos e oferecer portas de saída, a longo, médio ou curto
prazo para esta situação. Programas com esta perspectiva vêm articulando
ações de segurança alimentar a outras iniciativas no campo da proteção social, do desenvolvimento humano e do desenvolvimento social, de forma que
se criem as condições e habilidades necessárias para o alcance de oportunidades no âmbito do desenvolvimento econômico. no processo de evolução histórica destes programas podem ser identificadas cinco gerações,
que incorporam gradativamente os diferentes âmbitos da multidimensionalidade do caminho de promoção e inclusão dos grupos mais vulneráveis.
existem, entretanto, contextos referentes à demanda, à oferta ou à existência
de mecanismos de distribuição de alimentos que justificam a existência de
programas de segurança alimentar. Para não se restringir tais programas a
uma ação de assistência, com fim em si própria, eles deveriam incluir ou se
articular com propostas de desenvolvimento humano, social e econômico, de
forma a contribuir para um dos maiores desafios de nossa sociedade: oferecer efetivas oportunidades de saída da situação de pobreza para o inaceitável
contingente de famílias brasileiras afetadas por seus efeitos.
A dimensão
da segurança
alimentar nos
programas de
redução da
pobreza
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
152
* Diretor de Promoção de Sistemas Descentralizados da Secre-
taria nacional de Segurança alimentar e nutricional do ministério
do Desenvolvimento e Combate à Fome. engenheiro agrícola pela
Universidade Federal de Viçosa e doutor em Geografia Humana pela
Universidade Federal de minas Gerais.
O fortalecimento
da segurança
alimentar nas
políticas sociais crispim moreira*
serviço social do Comércio |
153
A estratégia política do fome Zero
e as políticas públicas de segurança
alimentar
o ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (mDS), por força da lei Federal nº
14.000, de 25 de setembro de 2006, que criou
o Sistema nacional de Segurança alimentar e
nutricional (Sisan), preside a Câmara interministerial composta por 18 ministérios, responsável pela elaboração e coordenação da política
nacional de Segurança alimentar e nutricional
(San). Criado em janeiro de 2004, a partir da fusão do ministério extraordinário de San e Combate à Fome, do ministério de assistência Social
e da Secretaria especial de renda da Cidadania,
desde então o mDS tem acompanhado e coordenado as ações do governo articuladas pela
estratégia política do Fome Zero.
o Fome Zero teve como estratégia política organizar em quatro grandes eixos de atuação diversos programas prioritários para a promoção da
San e do Combate à Fome. assim, programas
como o Programa de Transferência de renda
com Condicionalidades (PBF), o Programa de
alimentação escolar (Pnae), os programas de
implementação de equipamentos públicos de
alimentação e nutrição – restaurantes populares, banco de alimentos e cozinhas comunitárias, por exemplo – compõem o conjunto das
políticas públicas reunidas no eixo estratégico
da promoção do acesso à alimentação adequada. Um segundo eixo da estratégia Fome Zero
concentra-se na promoção da agricultura familiar e compõe-se dos programas Pronaf, Seguro
Safra e do Programa de aquisição de alimentos
da agricultura Familiar (Paa). o terceiro eixo, no
campo da articulação e mobilização Social, cuida da implementação de instrumentos de participação e controle social das políticas de San,
como é o caso do apoio à implementação de
Conselhos de San/ Conseas, e demais instâncias previstas no Sisan, como as Conferências
(estaduais e municipais), lócus político de aprovação das estratégias, diretrizes e prioridades
políticas. É com essa perspectiva que o governo
federal está fortalecendo as ações de segurança
alimentar no campo das políticas públicas.
importante considerar que o conceito de Segurança alimentar e nutricional, com o qual trabalhamos no governo federal, está definido na lei
orgânica de Segurança alimentar e nutricional
(losan), uma conquista da sociedade brasileira
e que foi sancionada pelo Presidente lula em
setembro de 2006. É um conceito construído,
acordado, concertado entre governo e sociedade e nisso reside sua importância e, sobretudo,
sua força transformadora. não buscamos nos
dicionários técnicos a sua definição porque
acreditamos – seguindo os ensinamentos de Josué de Castro – que ele devesse ser um conceito
socialmente e politicamente construído.
Da mesma maneira, é importante também esclarecer a concepção de políticas sociais que
norteia nossa ação no governo. o governo do
Presidente lula estabeleceu um novo patamar
de políticas sociais, no campo das políticas públicas, no campo dos direitos e, assim, essas
políticas são tratadas como políticas promotoras de desenvolvimento. e, estrategicamente,
fizemos uma opção para o desenvolvimento socioterritorial, como se reflete no forte binômio
com o qual trabalhamos no mDS: território e
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
família. entendemos que vamos afastar a fome dos territórios, das famílias
que estão em territórios pobres, com políticas de desenvolvimento social.
e as políticas de desenvolvimento social que estamos implementando são
promotoras do desenvolvimento econômico, das economias locais, rurais,
socioterritoriais, das regiões metropolitanas, das populações tradicionais,
do Semiárido brasileiro.
154
O fortalecimento
da segurança
alimentar nas
políticas sociais
principais ações de produção e distribuição
de alimentos para a promoção da sAn
Uma das estratégias que o governo adotou para combater a fome e a insegurança alimentar foi organizar um conjunto de programas governamentais multissetoriais na saúde, na educação, na reforma agrária, no desenvolvimento
agrário, na agricultura, e os articular de tal forma para produzir, garantir e
defender o direito de acesso à alimentação. É nesse contexto que podemos
compreender, por exemplo, o papel do Bolsa Família (PBF) e do Programa de
alimentação escolar (Pnae), dentre outros, como programas que não existem isolados, mas se integram numa ampla rede de proteção e promoção
social estruturada a partir da garantia do acesso à alimentação. Trata-se de
um conjunto de ações que compunham o Fome Zero e se confirmaram na iii
Conferência nacional de Segurança alimentar – que estabeleceu diretrizes
para o governo implementar as políticas da área.
nessa perspectiva, a defesa e promoção do acesso à alimentação saudável
combinada com a produção de alimentos baseada na agricultura familiar
têm se destacado como estratégias políticas adotadas pelo governo federal
que, de fato, têm transformado a vida de milhões de famílias em situação
de insegurança alimentar no Brasil. Programas massivos como o PBF, o
Pnae e o Pronaf, são exemplos de ações que compõem as políticas de San
que, por meio da transferência de renda monetária, de alimentação nutricionalmente preparada para as crianças e adolescentes e do apoio para o
desenvolvimento da agricultura familiar têm alcançado mais de 11 milhões
de famílias brasileiras – cerca de 45 milhões de brasileiros do campo e das
cidades.
a diversa e desigual realidade brasileira tem merecido também atenção estratégica do mDS para a promoção do desenvolvimento social e do combate à
fome. no nordeste brasileiro, onde 43,6% dos domicílios registram situações
de insegurança alimentar, o mDS atua de forma vigorosa com políticas públicas de promoção do direito à água para o consumo humano e a produção de
alimentos. É o caso do Programa Um milhão de Cisternas (P1mC), que já beneficiou desde 2003 mais de 200 mil famílias com a construção de cisternas
domiciliares em todos os municípios do Semiárido brasileiro.
notável é o papel do Programa de aquisição de alimentos (Paa), um programa síntese da estratégia Fome Zero, nesta dupla e combinada tarefa política
de, ao mesmo tempo, promover para as famílias em situação de insegurança alimentar e nutricional acesso ao alimento saudável e apoiar a produção
de alimentos pelos agricultores familiares e tradicionais pobres. o Paa já
beneficiou milhares de agricultores familiares e cerca de 70 mil entidades
que compõem a rede de proteção social dos sistemas públicos de San e de
assistência social, isto é, do Sisan e do Sistema Único de assistência Social
(Suas).
É importante ressaltar a estratégia do planejamento territorial adotada pelo governo, como o Programa Território Cidadania, coordenado pela Casa Civil e
serviço social do Comércio |
pelo ministério do Desenvolvimento agrário, e também o Consórcio de Segurança alimentar e Desenvolvimento local (Consad), implementado pelo mDS
para enfrentar a fome e a pobreza nas realidades socioterritoriais rurais dos
pequenos e médios municípios.
155
o combate à fome vivida nas cidades de grande porte, sobretudo naqueles
municípios situados nas grandes regiões metropolitanas, exige estratégias
próprias e singulares. Por exemplo, os Bancos de alimentos e os restaurantes Populares estão mais vocacionados para desterritorializar a fome nos
espaços urbanos e periurbanos destas cidades. naquelas de pequeno porte,
como é o caso dos municípios em territórios rurais, o governo atua com outro conjunto de programas federais, como é o caso do Território Cidadania,
anteriormente citado.
O fortalecimento
da segurança
alimentar nas
políticas sociais
Todavia, para produzir uma nova ordem no sistema local e regional agroalimentar, isto é, garantir a universalização do Direito Humano à alimentação
adequada (DHaa) e a soberania alimentar, há de se criarem mecanismos,
por exemplo, de redução do custo da alimentação no orçamento total das
famílias com baixo rendimento monetário. São bons exemplos os mercados
populares volantes e os cestões populares criados e gerenciados pelas prefeituras, como em Belo Horizonte e Curitiba. neste caso, a prefeitura vende
alimentos e gêneros de primeira necessidade para as famílias pobres moradoras nos bairros mais carentes da cidade.
outra iniciativa, bastante animadora e ao mesmo tempo desafiadora, é a implantação de uma política nacional de agricultura Urbana e Periurbana
(aUP), que o mDS vem desenvolvendo em 14 regiões metropolitanas brasileiras. o tema da aUP apareceu como uma diretriz política na ii Conferência de
San em olinda, em 2004, e na iii Conferência nacional de San em Fortaleza,
em 2007. Desde sua criação em 2004, o mDS já investiu mais de r$ 60 milhões na estruturação de um sistema público que deverá oferecer assistência técnica, formação e meios de produção para os milhares de agricultores
periurbanos dessas regiões. Josué de Castro já incluía, dentre as dez ações
que propunha para combater a fome no Brasil: “estimular a produção de alimentos na circunvizinhança das grandes cidades com a produção de frutas,
verduras e legumes”.
sistemas descentralizados de sAn: um desafio
em nossa tarefa de combater a fome e a pobreza, nos confrontamos com o desafio de pensar o sistema agroalimentar brasileiro frente ao sistema alimentar
mundial. essa é uma das questões postas pelo Conselho nacional de Segurança alimentar e nutricional (Consea). estamos, assim, desafiados a construir
um outro sistema agroalimentar no Brasil, mais justo e capaz de realizar o
direito à alimentação para toda a população.
Desse modo, temos de atuar no que poderíamos chamar de sistema alimentar
real, o sistema no qual os atores sociais produzem alimentos, comercializam
alimentos, consomem alimentos. nessa perspectiva, ressalte-se a importância dos projetos que o ministério do Desenvolvimento Social, em parceria
com os demais entes da federação, está implantando para criar uma rede de
equipamentos públicos prestadores de bens e serviços de segurança alimentar e nutricional para a cidadania. os Bancos de alimento são um exemplo
desse trabalho. implantá-los nos municípios é uma forma de intervir no sistema agroalimentar real. É a partir daí – intervenções concretas nos territórios – que devemos refletir sobre o desafio político de territorializar a política
de segurança alimentar para as populações, em especial, no nosso caso, o
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
abastecimento alimentar da rede de proteção e promoção social às quais nos
dedicamos.
156
Desta forma, a decisão estratégica do governo, operada pelo mDS, de implantar políticas públicas de San que atuam na produção, na distribuição e no
consumo de alimentos saudáveis tornou possível a implementação de uma
rede pública de serviços de alimentação e nutrição qualificada e permanente
em centenas de equipamentos públicos financiados pelo mDS e gerenciados
pelos estados e municípios.
O fortalecimento
da segurança
alimentar nas
políticas sociais
Parceiros do mDS implantam em seus territórios lavouras e hortas comunitárias, banco de alimentos, restaurantes e cozinhas populares, sinalizando para
uma ordem nova na lógica da produção-distribuição-consumo de alimentos,
na perspectiva da promoção do direito da cidadania e da soberania alimentar
das suas populações.
De fato, estamos diante de um considerável avanço das políticas públicas para
o enfrentamento da insegurança alimentar e nutricional das famílias brasileiras. Centenas de municípios brasileiros, assim como o governo federal,
elegeram o fenômeno da fome como problema político para ser enfrentado
de forma prioritária.
ricardo Paes de Barros estabelece como proposta para reflexão uma rede de
solidariedade. acrescente-se a essa proposta o sistema de equipamento público, com financiamento público, com controle social. Temos a tarefa de
pensar e estruturar a regulação pública, de modo a dar eficiência e eficácia
ao sistema, às redes. mas é importante que, além de regular e reformar estatutos normativos legais, também se proponha intervir, atuar, estabelecer
parâmetros para implantação de equipamentos públicos de San nos municípios, de modo a fazer justiça com a distribuição de alimentos.
Avanços e desafios
É importante a observação feita por renato maluf quando recorda os dois modelos de agricultura que coexistem no Brasil: aquele que produz commodities
e o que produz alimento para o consumo interno. a estratégia adotada pelo
Brasil para combater a fome fez opção forte para a produção de alimentos
para consumo interno, que é um modo diferenciado porque engloba e protege a família, a diversidade, a solidariedade, a cooperação, a vizinhança, a
ética e os valores agroecológicos. o ministério de Desenvolvimento Social e
Combate à Fome, por sua vez, em seus editais de seleção pública, seleciona
propostas que incluem a produção agroecológica e a economia solidária. É
uma opção estratégica para a promoção de soberania e segurança alimentar
e nutricional da população, por meio da produção e estruturação de sistemas
agroalimentares justos.
nos sites do Consea ou do mDS é possível localizar as seis diretrizes do relatório da iii Conferência nacional de Segurança alimentar e nutricional, que
estabelecem critérios para estruturação desses sistemas. o Programa mesa
Brasil SeSC, por exemplo, é uma operação que está contida na diretriz 2: a
necessidade de reestruturar a produção, a distribuição e o consumo de alimentos, sob o marco legal do direito humano à alimentação e da soberania
alimentar.
ao investir nesses sistemas agroalimentares e na articulação dos eixos estratégicos do Fome Zero, estamos criando condições, reformando as estruturas
que mal produzem, mal distribuem e mal processam para a população excluída do mercado, e estamos fazendo isso produzindo alimentos e acesso
serviço social do Comércio |
à alimentação, ao abastecer o restaurante popular, a cozinha comunitária, a
creche etc.
157
nosso caminho ainda é extenso, mas já temos algumas conquistas importantes a contabilizar depois de seis anos de um governo que, pela primeira vez
na história do Brasil, estabelece critérios objetivos para a elaboração de uma
Política nacional de Segurança alimentar. Foi promulgada a losan; realizouse a iii Conferência nacional de San; e criou-se a Câmara interministerial
– uma instância do sistema nacional, presidida pelo ministro Patrus ananias,
contendo 17 ministérios, cuja tarefa é fazer baixar, operar, executar as diretrizes da iii Conferência, organizadas no Conselho nacional de Segurança
alimentar. mas não podemos perder de vista que estamos em um processo
novo e precisamos saber como criar estímulo para que os estados da federação também o façam e estabeleçam as adequadas parcerias com o governo
federal e também com os atores sociais envolvidos.
O fortalecimento
da segurança
alimentar nas
políticas sociais
Por fim, considero muito oportuna uma intervenção do presidente do SeSC
quando da abertura desse Seminário nacional, que rememorou os ensinamentos de Darcy ribeiro e disse que o Brasil é um “arquipélago” de realidades regionais. Devemos, creio, saber refletir os brasis que temos: o Brasil
caboclo da amazônia, sertanejo do nordeste, caipira do Sudeste e gaúcho
do Sul. Temos, desse modo, a tarefa de refletir sobre a diversidade das desigualdades regionais e apresentar as soluções adequadas a cada território,
a cada problema. nosso papel no mDS tem sido, nesse sentido, dar outro
ordenamento aos sistemas públicos locais, nos diversos e desiguais territórios locais. Com o financiamento público selecionamos estados e municípios
para criarem equipamentos públicos como: restaurantes populares, bancos
de alimentos, cozinhas comunitárias, feiras e mercados populares, centros
de agricultura urbana e periurbana. Com isso, estamos procurando promover desenvolvimento com justiça social e também empreender uma nova organização para a circulação e o processamento do alimento, para que nós
possamos modificar e aperfeiçoar a dieta alimentar das famílias que estão
excluídas do direito humano à alimentação. essa é uma das traduções do
compromisso ético posto por esse governo de assegurar que todos os cidadãos tenham garantidas, diariamente, ao menos três refeições em quantidade, regularidade e qualidade necessárias, respeitados os hábitos e culturas
regionais brasileiros.
| seminário Nacional Mesa Brasil sesC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
158
* Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal
Fluminense (UFF) e Assessor do Presidente do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Foi Secretário Na-
cional de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad)
do Ministério da Educação entre 2004 e 2007, Secretário Executivo
do Ministério de Assistência e Promoção Social entre 2003 e 2004 e
Coordenador de Desenvolvimento Humano do Governo do Estado do
Rio de Janeiro em 2002. É membro do Conselho de Administração do
Instituto Internacional de Planejamento da Educação (Iipe) da Unesco.
Políticas sociais e
desenvolvimento:
desafios de uma agenda
integrada Ricardo Manuel dos Santos Henriques*
Serviço Social do Comércio |
159
A reflexão sobre a política social no Brasil, considerando, entre outras, as áreas de segurança
alimentar, educação, assistência social, saúde,
saneamento, meio ambiente e transporte, deve
remeter inicialmente às alternativas sobre o
modelo de desenvolvimento do país. Além disso, discutir a qualidade da formulação e da implementação das políticas de cada área e, em
particular, os caminhos para a integração entre
essas políticas. E essa reflexão deve se estabelecer a partir da consideração das possibilidades
de constituição de um espaço público não exclusivamente estatal que permita a articulação
entre as agendas dos governos, da sociedade
civil e do setor empresarial.
Desenvolvimento, crescimento e
desigualdade
O Brasil, ao longo de sua história, produziu distintos modos de desenvolvimento que, apesar
de suas singularidades, podem ser entendidos
com base em um fio condutor hegemônico que
podemos denominar desenvolvimento como exclusão. A ideia do desenvolvimento estruturado a partir dos parâmetros da exclusão, considerando suas dimensões social, econômica
e política, se define em oposição ao conceito
de desenvolvimento como liberdade, elaborado
pelo Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen
(1999). À medida que esse processo histórico,
organizado com base em uma relação funcional com a exclusão, produziu uma sociedade
com estáveis e abissais patamares de desigualdade, o desafio de reposicionar os parâmetros
de desenvolvimento pela ruptura com a matriz
hegemônica da exclusão implica assegurar, simultaneamente, o crescimento da economia e
a redução da desigualdade. Nesse sentido, o
modelo de desenvolvimento necessita definir
uma agenda que, para além da implementação
de programas sólidos de combate à pobreza,
qualifique as opções de sustentabilidade para
orientar o crescimento da economia e traga a
redução da desigualdade para o centro da política pública.
A tradição da condução das políticas econômica
e social no Brasil reforça, de forma recorrente,
o crescimento econômico, auxiliado de forma
lateral por programas compensatórios, como
o principal caminho para a redução da pobreza. O cenário vislumbrado é de crescimento da
economia com queda circunstancial da pobreza
sem dispor de elementos para uma redução duradoura ou permanente da desigualdade. Felizmente, observa-se, pela primeira vez na história
recente do país, que entre 2003 e 2008 há uma
combinação virtuosa entre crescimento econômico e redução da desigualdade. Essa estratégia que podemos denominar de crescimentismo
econômico é alavancada a partir de uma relação
funcional com os padrões de exclusão social do
país, desconsiderando o papel das desigualdades socioeconômicas na geração da pobreza
e consolidando a concentração de renda (e de
riquezas, e de poder) como dimensão organizadora do arranjo social.
| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Do ponto de vista da estruturação e implementação de políticas públicas, a desigualdade não é reconhecida como uma categoria analítica relevante e fica
oculta atrás do duplo anteparo das políticas de crescimento da economia e
de combate à pobreza. Na medida em que a busca do crescimento pelo crescimento se impõe como estratégia racional, consistente e hegemônica, de
redução da pobreza, a política social assume um papel estritamente secundário no universo das políticas públicas. Assim, a política social se estrutura
com base em uma relação de subalternidade frente à política econômica e,
como em uma profecia autorrealizadora, consolida sua suposta vocação residual em um cenário em que a redução da desigualdade não é relevante. O
senso comum, de forma coerente, se coloca indiferente à possibilidade de
uma agenda vigorosa de redução da desigualdade, e a percepção acerca da
política social oscila entre os extremos da tolerância ingênua com sua ineficiência (que se supõe incontornável) e da indignação com a irrelevância de
suas ações.
160
Políticas sociais e
desenvolvimento:
desafios de uma
agenda integrada
No entanto, uma sociedade tão desigual como a brasileira deveria ser capaz de
reconhecer a complexidade dos determinantes de nossos padrões de exclusão social e caminhar na direção de estabelecer uma agenda de políticas públicas ancorada em uma relação de equivalência entre a política econômica
e a política social. Aqui, os princípios de competitividade e eficiência seriam
equivalentes ao princípio de equidade, de forma a estabelecer um ambiente
institucional em que o econômico e o social se tornem parceiros efetivos no
estabelecimento de prioridades e de estratégias para a política pública.
A enorme desigualdade de renda no Brasil, com seus correlatos níveis de
pobreza, reflete e deriva, simultaneamente, das desigualdades no acesso
a serviços de qualidade nas áreas de educação, saúde, crédito, habitação,
transporte, água, esgotamento básico, coleta de lixo, mercado de trabalho,
segurança, entre outros. As implicações no campo dos direitos civis, econômicos, culturais, ambientais e humanos são evidentes e conhecidas. Além
disso, a exclusão assume contornos nítidos quando consideramos que a
dimensão territorial, em particular a elevada desigualdade entre regiões do
país, é de intensidade semelhante às desigualdades intraestados e intramunicípios, sobretudo nas grandes cidades.
Diante disso, as bases de um projeto de desenvolvimento dinâmico e sustentável em termos econômicos, sociais, ambientais, políticos e territoriais requer
a qualificação do crescimento econômico tendo em vista parâmetros substantivos (e não somente adjetivos) do conceito de sustentabilidade. Desenvolvimento sustentável que promova o crescimento qualificado da economia1 e
a redução ativa da desigualdade e da pobreza.
Política social e superação de gargalos estruturais
A condução da política pública no Brasil, para além de evidentes avanços nos
períodos recentes, apresenta gargalos estruturais que tradicionalmente reduzem a qualidade dos processos de implementação e a intensidade dos
impactos sobre a qualidade de vida. Destacam-se, entre outras, as características de fragmentação, isolacionismo setorial e sobreposição.
1
Uma agenda de desenvolvimento que forja estratégias de crescimento econômico orientadas pela
garantia da qualidade do processo de crescimento passa, por exemplo, pela definição de parâmetros
de uma economia de baixo carbono, com suas implicações sobre o sistema tributário e a pesquisa
tecnológica. Ou ainda pela incorporação explícita dos princípios de geração de trabalho decente e de
não precarização das relações de trabalho.
Serviço Social do Comércio |
Fragmentação
161
A fragmentação da política social se expressa em distintas esferas de gestão
na implementação de programas e ações governamentais. As evidências
empíricas e as percepções acerca da fragmentação são recorrentes e, em
geral, associadas a ineficiências no desenho ou na implementação das intervenções sociais. Com frequência observamos a dispersão de programas
em vários órgãos da mesma esfera governamental, dificultando o estabelecimento de uma lógica comum tanto na conceituação como, sobretudo, na
regulamentação e implementação da política. Na verdade a fragmentação
entre esferas de governos termina por descaracterizar uma política para um
determinado setor e, em geral, transforma-se em uma justaposição de ações
que nem sempre forma um todo coerente.
Políticas sociais e
desenvolvimento:
desafios de uma
agenda integrada
No entanto, para além da dispersão entre organismos e das eventuais falhas ou
dificuldades de gestão, a fragmentação pode ser entendida no contexto mais
amplo de uma racionalidade perversa das políticas públicas. Nesse contexto,
a fragmentação apresenta funcionalidade para a condução de vários tipos de
políticas. O fragmento é a unidade ótima do assistencialismo.
Os traços assistencialistas da política brasileira encontram na execução de
agendas fragmentadas um ambiente fértil e estimulante. Aqui se consolida a
alegoria do político (ou gestor) clientelista tradicional, que constrói sua estrutura de poder com base na dominação de clientela ou da tutela do públicoalvo de programas específicos. Nesse contexto nada melhor do que fragmentar, pois se transforma o espaço público no reino de práticas organizadas a
partir da assimetria de informações.
O gestor público, que deveria prover, em um território específico, o benefício
social de forma semelhante para todos potenciais beneficiários, termina por
negociar o mesmo benefício utilizando-se de regras e valores distintos para
cada beneficiário. Assim, sob a égide da prática fragmentada, se constituem,
sem explicitar contradições, relações que se querem equivalentes a partir de
regras distintas. O beneficiário de programas sociais deixa de ser um sujeito
de direito e passa a estar submetido a uma rede de favores e exceções.
A assimetria de informações que pauta os procedimentos fragmentados produz desconhecimentos e ruídos de interpretação que permitem deslocar a
provisão dos bens e serviços sociais do campo do exercício dos direitos para
o campo da negociação e da subalternidade. Esse processo de negociação,
que deveria ser extemporâneo ao espaço público, responde a pressões, critérios e oportunidades políticas que permitem ao agente público maximizar
as possibilidades de exploração, controle e submissão de parte da população
que necessita acessar os programas sociais. A fragmentação concede sustentação lógica e empírica a esse processo e, nesse sentido, o fragmento é
um instrumento essencial para as práticas assistencialistas.
Isolacionismo setorial
A complexidade do fenômeno social e a sofisticação dos conhecimentos técnicos e científicos justificam os processos contínuos de especialização no que
se refere à formulação e à implantação das estratégias de política pública em
cada área social. A setorialização e a especialização são evidentemente necessárias e refletem a alta densidade das práticas cotidianas de gestão das
políticas e dos procedimentos de geração do conhecimento.
É evidente que o conhecimento e as práticas na área da saúde, por exemplo, possuem enormes especificidades que, por sua vez, se decompõem
| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
em diferenças relevantes, como entre as agendas de atenção básica e as
de média e alta complexidade. As possibilidades de decomposição se estendem por todas as dimensões da área de saúde, sendo que o mesmo
raciocínio pode ser corretamente extrapolado para as áreas de educação,
assistência social, segurança alimentar, cultura, saneamento básico, entre
tantas outras.
162
Políticas sociais e
desenvolvimento:
desafios de uma
agenda integrada
No entanto, a setorialização excessiva que se faz surda às demandas e aos
desafios intersetoriais reflete uma opção limitada e limitante das políticas
públicas. Mais do que isso, termina por incentivar desnecessárias segmentações intrassetoriais, produzindo ações e programas isolados no interior de
cada área social.
O isolacionismo setorial se nutre, ao menos, de dois mecanismos básicos: a
disputa, em geral intensa, pela distribuição do orçamento público e a compulsão de criação que motiva diversos gestores e políticos pela busca do registro de maternidade (ou paternidade) de uma ação, programa ou política.
Além disso, o conhecimento e a sensibilidade adquiridos pelo exercício especializado conduzem, por vezes, à produção de uma hipótese arbitrária de
sequencialidade setorial do ponto de vista do bem-estar social. Ou seja, o
especialista da área de saúde supõe que a resolução dos dilemas da saúde precede os demais. Ocorre que o mesmo raciocínio é reproduzido pelo
especialista da área de educação, ou ainda de segurança alimentar. Não se
observa a convergência de ações frente ao objetivo de melhoria da qualidade
de vida das pessoas. O isolacionismo setorial, portanto, tende a reduzir a qualidade das intervenções setoriais e a dificultar a coordenação e integração
das políticas públicas.
Sobreposição
A sobreposição entre programas e políticas sociais deriva da precária coordenação entre as esferas de governo. Essa dificuldade de coordenação entre
esferas de governo reduz a potencialidade de impacto dos programas sociais,
na medida em que os governos não compartilham diagnósticos e aprendizados para melhorias na concepção e no desenho dos programas. Além disso,
são produzidos inúmeros ruídos de informação que reduzem a amplitude da
cobertura e a qualidade da focalização na implementação de cada programa.
E essas falhas de coordenação afetam tanto programas de natureza similar
como programas de natureza complementar existentes em vários organismos governamentais.
Assim, no que se refere a programas de natureza similar, a baixa coordenação
aumenta a ineficiência da alocação de recursos públicos quando, por um
lado, há desperdício derivado da falta de troca sobre o aprendizado acerca
dos acertos e dos erros de cada experiência e, por outro, um mesmo conjunto de pessoas ou famílias pode receber mais de um programa e outros não
estariam recebendo benefícios de nenhum programa. Considerando que os
programas são semelhantes, e que a troca de experiências permitiria um processo contínuo de aperfeiçoamento no desenho dos programas, vemos que
algumas pessoas estariam recebendo de forma desnecessária e excessiva
mais de um programa. E, por conseguinte, outras pessoas que são público
beneficiário potencial do programa não o estariam acessando, mesmo existindo naquele território disponibilidade concreta de oferta.
No que se refere a programas complementares, o precário diálogo implica, por
um lado, a redução da probabilidade de definição das especificidades pertinentes a cada esfera de governo que permitiriam aperfeiçoar a relação de
Serviço Social do Comércio |
complementaridade dos programas. Por outro lado, as ineficiências, no que
se refere à definição do escopo e da focalização, fazem com que as pessoas
ou famílias não acessem o conjunto de programas que aumentariam a probabilidade de redução sustentável de sua condição de fragilidade econômica
e social. Novamente não se trata aqui de problemas de escassez de oferta,
mas sim do fato de que diante da oferta disponível a distribuição entre os
potenciais demandantes é inferior ao que seria desejado.
163
Políticas sociais e
desenvolvimento:
desafios de uma
agenda integrada
A zona de sombra que se estabelece entre os governos se reflete, portanto, em
desperdício orçamentário e redução da efetividade da política social, tendo
em vista que diante dos recursos alocados para esses programas a melhor
coordenação entre as esferas de governo permitiria aumentar o conjunto de
pessoas beneficiadas e a qualidade dos serviços sociais prestados.
Além disso, quando consideramos o rebatimento da falta de coordenação sobre a organização da demanda dos indivíduos, vemos que podem se estabelecer incentivos perversos para os critérios de seletividade no acesso aos
programas. Redes de socialização pretéritas a qualquer variável relevante
para a seleção de beneficiários e a implementação do programa organizam
o universo de sua distribuição estabelecendo, em cada território específico,
uma arbitrária homogeneidade do perfil das pessoas que acessam os programas públicos. Em várias experiências constatamos que redes religiosas,
sindicais, partidárias ou de segmentos sociais específicos, entre outras, são
eleitas como representantes da capilaridade social e a partir delas são definidos os procedimentos de identificação dos beneficiários do programa. Não
é fortuito, por exemplo, que em espaços populares urbanos de elevada densidade demográfica ocorra, com relativa frequência, que ao longo da mesma
rua algumas famílias tenham acesso a vários programas e outras famílias
não tenham acesso a qualquer programa. Assim, mesmo sem considerar
qualquer desvio de recursos ou inoperância de gestão, a falta de transparência e de coordenação permite eleger dentro de um universo de beneficiários
potenciais um subconjunto específico de pessoas (em detrimento de outro
subconjunto no mesmo território) como privilegiado no acesso aos programas das várias esferas governamentais.
Integração de políticas sociais: potencialidades para a
sustentabilidade
No que se refere à formulação e à gestão das políticas sociais, vivemos um
processo evolutivo nos últimos vinte anos (após a Constituição de 1988), acelerado nos últimos dez anos, com relevantes aprendizados tanto no Brasil
como na América Latina.
Nesses países, sucessivas gerações da política social têm demonstrado a necessidade de a formulação e o desenho das políticas estarem ancorados em
rigorosos e contextualizados diagnósticos. Além disso, a eficiência e a eficácia das políticas sociais estão relacionadas, no mínimo, a três dimensões de
intervenção: (1) desenho consistente que especifique: os critérios de identificação e seleção dos beneficiários; os sistemas de incentivos (condicionalidades, contrapartidas, prêmios etc.); as condições de restrições (pessoal,
orçamentária, institucional, legal etc.); as atribuições de responsabilidades
e de qualificação dos gestores; as possibilidades de flexibilidade para adaptação aos segmentos e territórios prioritários; os parâmetros de participação
e controle social; e o sistema de gestão e implementação; (2) processo de
monitoramento contínuo e supervisão das ações, com retorno sobre os fluxos de gerenciamento; (3) sistema de avaliação, com base em indicadores
| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
quantitativos e qualitativos, capaz de dimensionar os avanços no processo de
implementação e os resultados e impactos obtidos.
164
Nesse sentido, a melhoria da qualidade de vida das pessoas, de suas famílias e de sua comunidade depende, por um lado, da qualidade tanto do
desenho como dos sistemas de implementação, monitoramento e avaliação e, por outro, da capacidade de construir, em cada território específico,
condições de possibilidade para a integração entre as diversas políticas
sociais.
Políticas sociais e
desenvolvimento:
desafios de uma
agenda integrada
A integração das políticas sociais apresenta-se, portanto, como condição central para a efetividade de seus impactos sobre a qualidade de vida e a redução
das desigualdades. A integração permite uma abordagem ampla dos desafios e fragilidades dos indivíduos e de suas famílias e aumenta a probabilidade de que possam sair, de forma estável e sustentável, da condição de pobreza. Sabemos que programas compensatórios de alívio da pobreza atenuam,
de forma consistente, as condições prementes de exclusão. No entanto, a
política social, para ser sustentável e enfrentar as desigualdades, além de
atenuar a pobreza, deve transcender o universo das políticas compensatórias
e estabelecer processos de emancipação das condições de exclusão individual ou coletiva.
O espaço público e as possibilidades de coordenação
Quando nos referimos à esfera pública estatal, o desafio de articulação entre
programas e entre políticas das diversas áreas sociais remete diretamente
à coordenação intra esferas de governo e à coordenação entre as esferas de
governo (municipal, estadual e federal).
Os desafios de articulação intra e entre esferas de governo são de significativa
complexidade, uma vez que para cada área social observamos enorme heterogeneidade na estrutura institucional e organizacional dessas esferas de
governo. Faz-se necessário coordenar distintas áreas sociais em cada esfera
de governo e distintas esferas de governo em cada área social.
Essa complexidade remete evidentemente à qualidade dessas interações, mas
também, de forma simples e direta, à quantidade das interações. Se, por
hipótese, o nosso universo de políticas sociais fosse restrito a apenas três
dimensões – digamos, as clássicas áreas de educação, saúde e assistência
social – estaríamos tratando, potencialmente, de 27 interações a serem coordenadas.
Quando consideramos a área da educação observamos que a política educacional federal deve estar coerente e coordenada no interior do Ministério da
Educação, considerando suas várias secretarias, órgãos, atores e responsabilidades. E, de forma semelhante, o mesmo deve ocorrer nas esferas do
governo estadual e do governo municipal com suas respectivas Secretarias
de Educação. Até aqui, três coordenações no interior (intra) das instâncias
executivas de cada nível de governo. Além disso, para a boa condução da política educacional, de acordo com o regime de colaboração2 entre as esferas
governamentais, é importante que a política federal esteja coordenada com a
política estadual e com a política municipal e esta, por sua vez, coordenada
com a política estadual. Aqui se fazem necessários mais três processos de
coordenação. A mesma lógica deve se repetir para a área de saúde, implicando em novas seis interações, e o mesmo para a área de assistência social.
2
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) consolidou o regime de colaboração,
definindo estados e municípios como entes federados responsáveis pela oferta do ensino fundamental.
Serviço Social do Comércio |
Até agora totalizamos 18 processos de coordenação com interações intra e
entre esferas de governo.
165
Ocorre que para aumentar a probabilidade do impacto positivo efetivo sobre
a qualidade de vida das pessoas é importante que as agendas da educação, da saúde e da assistência social estejam coordenadas entre si. Assim,
quando consideramos a esfera federal vemos que é desejado que a política
educacional esteja coordenada com a política de saúde e com a política
de assistência social. Além disso, que a política de assistência social esteja coordenada com a política de saúde. Desse modo estamos tratando de
mais três interações que se expressam na esfera federal. O mesmo deve
ocorrer na esfera estadual e, por conseguinte, na esfera municipal. Essas
interações entre áreas, para cada nível da esfera executiva, perfazem nove
interações.
Políticas sociais e
desenvolvimento:
desafios de uma
agenda integrada
Assim, concluímos que, quando restringimos, na experiência brasileira, o universo da política social às áreas da educação, da saúde e da assistência social, a boa condução da política pública implica, ao menos, a construção de
27 complexos processos de coordenação. Se, a título de exemplo, o universo da política social considerasse também a área de segurança alimentar e
nutricional e, portanto, fosse necessário integrar quatro áreas sociais, seria
necessário estabelecer 42 processos de coordenação. Com ainda mais uma
área, por exemplo a de trabalho e emprego, a tarefa remeteria a 60 processos
de coordenação.
Em termos genéricos sabemos que a efetividade da política social é definida a
partir da melhoria da qualidade de vida da população em condição de maior
fragilidade econômica e social e depende da qualidade do diagnóstico, do
desenho, da implementação, do monitoramento e da avaliação. Além disso,
como destacamos, a efetividade é função direta dos processos de coordenação intra e entre esferas de governo e, em uma perspectiva ampliada do
espaço público, da coordenação com as agendas do setor privado e da sociedade civil.
Nesse sentido, a condução das políticas sociais requer a produção de um
ambiente institucional que permita não só a coordenação das políticas
públicas governamentais, mas também a participação ativa da sociedade
civil organizada e do setor empresarial. Reduzir o espaço público a seu
continente estatal representa uma significativa e desnecessária restrição
das potencialidades de mobilização dos diversos atores e estruturas organizacionais que podem estar a serviço do interesse público e do bem-estar
da sociedade.
O espaço público não deve ser entendido como estritamente estatal. Ao contrário, sociedade civil, responsabilidade social das empresas, sindicatos e
movimentos sociais necessariamente compõem, com as três esferas de governo, o espaço público relevante para a arquitetura das políticas sociais. O
tamanho do desafio social brasileiro solicita a coordenação entre as esferas
governamentais e não-governamentais, de modo a estabelecer um ambiente
institucional e regulatório que acolha um modelo de desenvolvimento orientado pela dinamização da economia com base na sustentabilidade e na justiça social.
| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Bolsa Família e Cadastro Único: precondições para integração
de políticas sociais
166
A integração de programas e políticas sociais requer a explicitação da escolha
estratégica por essa opção e a construção de um ambiente institucional que
acolha as possibilidades de articulação e integração. Nesse sentido, ao menos duas ações antecedem a implementação de processos que viabilizem a
integração: por um lado, a existência de um único programa de transferência
de renda e, por outro, a constituição de uma base de dados consistente e
centralizada com as informações cadastrais dos prováveis beneficiados dos
referidos programas.
Políticas sociais e
desenvolvimento:
desafios de uma
agenda integrada
Na realidade brasileira recente o Programa Bolsa Família representa uma superação frente às opções de pulverização de programas de transferência de
renda e cumpre o papel de criar as bases para um ambiente institucional
adequado e viável de coordenação da política social.
A unificação dos programas setoriais de transferência de renda em um único
programa, como ocorreu em 2003 com a criação do Bolsa Família, apresentase como condição necessária para estabelecer um padrão de referência comum para a interação com os demais programas sociais. A hipótese básica
é a de que não se faz política social integrada com vários programas de transferência de renda. Incentivar a concorrência entre gestores de programas de
transferência de renda, como no caso da coexistência dos Programas Bolsa
Escola e Bolsa Alimentação, não só produz ineficiências acumuladas e deturpações de procedimentos, como inviabiliza, no território, a coordenação com
outros programas sociais.
O Cadastro Único (CadÚnico)3, ao assegurar uma sistematização detalhada e
atualizada das informações cadastrais do público-alvo potencial dos beneficiários do programa, permite não só uma focalização eficiente da transferência
de renda como, também, a constituição de uma plataforma estratégica de
informações sobre indivíduos e suas famílias, que serve de precondição para
a articulação entre a oferta e a demanda de programas sociais no país.
Nesse sentido, a unificação dos programas de transferência de renda setoriais
(Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Vale Gás, Cartão Alimentação) em um único Programa não representou apenas uma evolução administrativa e de gestão. Mais do que aumento da eficiência de gestão e aumento dos recursos
monetários disponíveis para cada família, o Bolsa Família se apresenta como
elemento central para o salto necessário em direção à uma nova geração de
programas sociais no país. Portanto, só uma leitura aligeirada ou uma interpretação ingênua podem sugerir que conceitualmente o Programa Bolsa
Família seja assistencialista.
O Programa Bolsa Família é um programa de transferência de renda com condicionalidades em educação e em saúde. O programa traz para si responsabilidades referidas aos horizontes de curto e de longo prazo. No curto prazo
garante, a partir de uma gestão tecnicamente rigorosa e de aperfeiçoamento
contínuo das informações, a focalização no acesso das famílias mais pobres
a uma renda mínima garantida. No longo prazo, à medida que condiciona o
acesso à renda ao cumprimento de metas de acesso à educação e à saúde,
cria condições de mobilidade social ascendente para as gerações futuras.
3
É um instrumento de identificação e caracterização socioeconômica das famílias brasileiras de
baixa renda. O cadastro atribui a cada pessoa da família um Número de Identificação Social (NIS) de
caráter único, pessoal e intransferível.
Serviço Social do Comércio |
No horizonte de médio prazo, a identificação das famílias mais pobres a partir de um único cadastro atualizado e dinâmico (CadÚnico) e a distribuição
de uma renda mínima condicionada se apresentam como precondições da
definição de uma institucionalidade em que essas famílias possam acessar
de forma coordenada, por exemplo, programas de crédito, de regularização
fundiária, de formalização de serviços públicos e de qualificação profissional.
Diversos outros programas podem compor a cesta de programas a serem
coordenados, mas a qualidade das informações cadastrais atualizadas do
CadÚnico se apresenta como o principal elemento para mapear o perfil de
fragilidades de cada família e endereçar a demanda pelos programas sociais
adequados.
167
Políticas sociais e
desenvolvimento:
desafios de uma
agenda integrada
Nestes termos, o Programa Bolsa Família, apesar de não tratar diretamente
do horizonte de médio prazo, dispõe das precondições para estabelecer, de
forma complementar, as possibilidades de articulação entre os demais programas sociais. Especificamente, a gestão rigorosa e técnica do CadÚnico
representa um instrumento central para assentar uma plataforma sobre a
qual é possível estabelecer processos de coordenação entre os programas
sociais que conduzam à implementação de oportunidades concretas de desenvolvimento familiar e comunitário.
Segurança alimentar e Mesa Brasil SESC: elementos de
coordenação com a política social
A agenda de segurança alimentar e nutricional, considerando as dimensões de
enfrentamento da fome e da obesidade, se vincula diretamente ao objetivo
estratégico de combate à pobreza e de redução da desigualdade. Nesse sentido, a agenda de segurança alimentar e nutricional deveria estar no cerne de
um modelo de desenvolvimento sustentável.
Para se constituir como política pública difundida no território nacional, com
flexibilidade para alcançar distintos e heterogêneos segmentos sociais, a política de segurança alimentar solicita, como anteriormente sugerido para outras políticas sociais, um significativo esforço de coordenação das políticas
governamentais e destas com as ações da sociedade civil.
O Programa Mesa Brasil SESC, com base institucional na mobilização dos departamentos regionais do SESC, se apresenta como ator relevante na agenda
de segurança alimentar. De forma consistente o programa parte do princípio
de que a alimentação é um direito social básico e organiza suas ações a partir do objetivo de reduzir o desperdício de alimentos e combater a fome. Do
ponto de vista do funcionamento do Programa, os indicadores de cobertura e
os relatos de gestão indicam desempenho importante.
Entre os anos de 2003 e 2008, por exemplo, o Mesa Brasil SESC estabeleceu
uma rede de assistência que atende a 5,1 mil entidades em 290 municípios e
distribui cerca de um milhão de refeições por dia.
Os resultados impressionam. Os indicadores secundários de qualidade também são amplamente satisfatórios. Ajustes sempre serão necessários, mas
o Programa é uma realidade e não mais uma promessa. A definição de um
sistema de monitoramento e de avaliação, com a perspectiva de retorno contínuo sobre o desenho e a gestão do programa, se faz necessária para assegurar maior qualidade e estabilidade.
No entanto, colocado em perspectiva histórica, o Mesa Brasil SESC deve pensar
sua expansão em um cenário de médio e longo prazos. Há que se questionar
qual a principal meta a ser perseguida. A disjuntiva inicial parece ser entre
| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
priorizar o aumento da escala e da cobertura do Programa ou consolidar o
desenho institucional que conceda maior autonomia e sustentabilidade para
os objetivos do Programa.
168
A discussão, presente neste artigo, sobre a integração das políticas sociais e a
constituição do espaço público sinaliza que, em potência, o Mesa Brasil SESC
dispõe de uma importante base institucional e territorial que pode contribuir
para alavancar uma agenda integrada de segurança alimentar e nutricional.
Políticas sociais e
desenvolvimento:
desafios de uma
agenda integrada
Nestes termos, os resultados já alcançados pelo programa e o acúmulo da experiência de mobilização e de organização dos interlocutores institucionais
indicam que o desafio da escala não deveria orientar os esforços do Programa em sua nova fase. O Mesa Brasil SESC apresenta um diferencial positivo
frente ao desafio estratégico de aprofundar a articulação entre os múltiplos
atores governamentais e não-governamentais que estão, e poderão vir a ser,
envolvidos numa política de segurança alimentar mais ampla.
O cenário de intervenção no médio prazo deveria, portanto, estar orientado para
aproveitar a tecnologia social de sensibilização e mobilização desenvolvida
pelo programa e a importante cobertura territorial das redes instaladas em
290 municípios, como base de uma maior integração com outros programas
nesta área. O principal desafio seria, portanto, reorientar essa tecnologia social no sentido de contribuir para uma maior coordenação entre distintos programas, atores e instituições envolvidos na pauta de segurança alimentar.
O passo inicial da nova metodologia de trabalho seria identificar os graus de
autonomia de cada uma das redes frente à manutenção da agenda de segurança alimentar. A primeira pergunta a ser respondida em cada município
específico seria: a rede do Mesa Brasil SESC seria capaz de manter e consolidar a estratégia de segurança alimentar caso o SESC redefinisse suas
prioridades e não concentrasse mais esforços significativos no Programa?
Ou seja, caso o SESC se retire do Programa, a agenda ou esforço coletivo dos
atores envolvidos em garantir a segurança alimentar daquele município é
sustentável no médio prazo ou tenderia a se esvaziar gradativamente?
A partir desse questionamento é possível definir uma tipologia que classifique
as 290 redes e os mais de 5 mil parceiros de acordo com o grau de autonomia
frente à perspectiva de sustentabilidade do Projeto. As redes de baixa autonomia necessitariam de fortalecimento institucional e as de elevada autonomia
fariam parte de uma nova geração do programa, orientada pelo incentivo à
coordenação entre os organismos e esferas de atuação e à integração dos
programas sociais, com a intenção de elevar a efetividade da política de segurança alimentar.
A metodologia de trabalho do Mesa Brasil SESC promoveu a articulação, em
distintas intensidades, entre suas mais de 5 mil entidades parceiras, com foco
no objetivo central de assegurar comida de qualidade na mesa das pessoas
e das famílias. No entanto, para além dos evidentes méritos dos resultados
obtidos, a tecnologia social desenvolvida pelo Programa dispõe de vantagens
comparativas para se adaptar às especificidades de cada território e identificar as potencialidades de seus parceiros diante do desafio de organizar as
redes sociais, com o objetivo de incentivar arranjos locais emancipatórios
frente às situações de pobreza.
Nesse sentido, o Mesa Brasil SESC pode se nutrir da experiência vitoriosa de
fortalecimento e, por vezes, de produção de institucionalidades orientadas
para a coleta e distribuição de alimentos e mudar o patamar de sua intervenção no sentido de estabelecer redes que produzam, no espaço público, novas
institucionalidades, que contribuam para uma política emancipatória frente
aos padrões consolidados de exclusão social.
Serviço Social do Comércio |
A capilaridade do programa permite mapear as redes pessoais e as redes sociais existentes em cada território específico e investir no entendimento da
dinâmica dos processos de emancipação frente à pobreza. Além disso, de
forma articulada com os governos locais, levantar, a partir do Cadastro Único,
o perfil e a localização do público-alvo do programa. E, ainda mais, identificar
a natureza dos vínculos entre os componentes de cada rede e as práticas de
participação comunitária e controle social de cada território.
169
Políticas sociais e
desenvolvimento:
desafios de uma
agenda integrada
O arranjo institucional em cada território específico remete tanto aos modos
de articulação e integração entre esferas de governo, sociedade civil e setor
empresarial, como aos instrumentos de transparência e controle social projetados sobre a gestão do espaço público.
O Mesa Brasil SESC pode, portanto, realinhar sua estratégia em direção a uma
nova geração da agenda de segurança alimentar, priorizando a contribuição
para a articulação e a integração das políticas sociais, nas esferas governamentais e não-governamentais, de forma a atingir um estágio mais avançado
de desenvolvimento humano, familiar e comunitário.
| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
170
* Nascido em Viena (Áustria), vive no Brasil desde 1940. Formado em
Economia e doutor em Sociologia pela USP, foi professor da Faculdade
de Economia e livre docente do Departamento de Estatística da
Faculdade de Higiene e Saúde Pública. Foi um dos fundadores do Centro
Brasileiro de Planejamento. Desde 1996 se dedica à Economia Solidária,
tendo escrito três livros sobre este tema. Foi Secretário de Planejamento
do município de São Paulo (1989-92) e é o atual Secretário Nacional de
Economia Solidária do Ministério do Trabalho.
A dimensão social
da segurança
alimentar Paul Singer*
Serviço Social do Comércio |
171
Ter segurança alimentar significa não só que todas as pessoas de uma população tenham o
que comer, sejam razoavelmente nutridas, mas
também que o sistema de produção e de consumo de alimentos esteja à prova de guerras,
catástrofes naturais e assim por diante.
Essencialmente, para ter segurança alimentar
existem duas condições essenciais que tanto
no Brasil como no resto do mundo são precárias. A primeira condição é ter uma produção
de alimentos suficientemente grande para que
a população mundial tenha uma nutrição aceitável. O que hoje está seriamente em perigo. A
segunda condição é que os pobres, sobretudo
os indigentes que, por definição, são tão pobres
que não conseguem sequer satisfazer suas necessidades básicas – das quais a alimentação
é uma das mais importantes – tenham acesso
a transferências de renda que lhes permitam
satisfazer ao menos suas necessidades nutricionais.
No Brasil, de acordo com a Constituição, o Estado
tem o dever de garantir aos mais pobres, inclusive aos indigentes, um padrão de vida mínimo
aceitável, incluindo assistência à saúde, alimentação, escola, habitação e saneamento básico.
Este dever foi uma importante conquista da
Constituição brasileira, e em vinte anos já mostrou que pode ter efeitos.
A princípio não pretendo discutir formas de eliminar a pobreza, pois inicialmente o que podemos
fazer é, através de assistência social, ajudar os
pobres a não sofrerem tanto as consequências
da sua pobreza. Hoje temos o Bolsa Família e
outros programas, como a assistência continuada, as aposentadorias rurais, o salário mínimo
etc., mas mesmo assim os pobres continuam
pobres. O ideal a ser alcançado seria um dia
não ser mais necessária a ajuda desse tipo de
programa. E um dia ainda alcançaremos este
ideal.
Tratando-se de fome e pobreza, é importante lembrar das ações da sociedade civil que, ao lado
dos programas governamentais, ocupa um espaço de grande alcance. Apesar da força do
Fome Zero e outros programas anteriores, a
ação da sociedade civil é tão importante quanto
as ações do governo, porque as estruturas do
Estado são extremamente pesadas. Há uma
quase paralisação de uma enorme quantidade
de políticas sociais, educacionais, científicas
etc., que acabam dependendo das parcerias vitais com a sociedade civil.
Um exemplo é a situação da Pastoral da Criança.
Ela é uma das iniciativas sociais mais importantes do país. Teve apoio público, mas não é
uma ação de Estado. A Pastoral da Criança está
presente nos 3.500 municípios mais pobres do
Brasil e é a responsável principal por uma queda vertical da mortalidade infantil. Ela tem grande facilidade em perceber para onde caminhar
e como mobilizar e organizar as atividades das
mães das crianças e de voluntárias, que o Estado não tem e nem pode ter. Isso acontece pois
o Estado para poder agir tem que ter leis aprovadas no Congresso, reguladas por portarias e
precisa prestar contas a um exército de órgãos
de controle para evitar desvios e corrupção. Na
prática, o cumprimento de todas essas formalidades absorve uma enorme parcela de recursos públicos que poderiam ser destinados, por
exemplo, à segurança alimentar, ao combate à
pobreza e assim por diante.
| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
172
A dimensão
social da
segurança
alimentar
A Pastoral da Criança, assim como a Articulação
no Semiárido Brasileiro (ASA), com o seu programa de cisternas, são importantes programas
de segurança alimentar. Com a cisterna, as famílias do Semiárido conseguem garantir e melhorar sua nutrição e de suas crianças. Iniciativas como estas são numerosas no Brasil, mas
muitas dependem da transferência de recursos
públicos e todas correm o risco de parar se o
travamento dessas transferências não for aliviado logo.
No Brasil temos como cultura execrar a corrupção, o que na prática não tem efeito algum, porque a corrupção é epidêmica e endêmica neste
país e em todos os outros no mundo. Não há
país que não tenha, em alguma medida, algum
tipo de corrupção nas compras e contratações
do setor público. Tentar acabar com a corrupção é uma ação digna, mas não é possível acabar com a corrupção acabando com as ações
públicas que exigem compras, contratações ou
convênios.
O importante é que temos grandes movimentos
sociais conseguindo transformar políticas de
Estado em ações emancipatórias e assim praticando a economia solidária. Tanto a Pastoral
da Criança como a ASA são, hoje, membros
do Conselho Nacional de Economia Solidária,
assim como o GT Amazônico e outros grandes
movimentos sociais que conseguem transformar políticas assistenciais em ações emancipatórias. É preciso canalizar recursos que deem
aos pobres não só dignidade e esperança, mas
também a capacidade para saírem da situação
de pobreza. Esse deve ser o objetivo a ser buscado.
Talvez o trabalho essencial a ser feito para o combate e a eliminação da pobreza seja o do resgate
humano. Os pobres estão acostumados à sua
condição, sobretudo os pobres hereditários. No
Brasil, entre a grande maioria dos pobres, o pai,
o avô e o bisavô já eram pobres, o que cria uma
cultura de aceitação, de resignação e até de inferioridade, pois não foram à escola e por isso
não têm conhecimentos. Essa é uma ideia falsa,
mas está presente como senso comum. Então,
dar a essas pessoas a oportunidade de acreditarem em si é absolutamente essencial.
Nós estamos passando por um processo de revolução social neste país, que não começou no
governo Lula, mas provavelmente na época da
Constituinte, nos últimos vinte anos, tendo uma
forte aceleração neste governo porque há uma
série de políticas que estão não só fomentando,
Serviço Social do Comércio |
apoiando os movimentos de transformação social, mas também realizando políticas concretas
que visam outro desenvolvimento.
Nesse sentido, é preciso pensar a sociedade como
um todo. Não é possível redimir da pobreza, ou
garantir segurança alimentar para cada indivíduo. Quase ninguém vive só, a maioria vive em
família. Quando a família se dissolve – e hoje há
uma crise familiar no mundo inteiro, não só no
Brasil – as grandes vítimas são as crianças. É
preciso tentar fortalecer os laços afetivos no seio
das famílias, fazer com que a revolução feminina – uma das grandes revoluções da nossa época – contribua para o fortalecimento da família,
porque, aparentemente, a está enfraquecendo,
à medida que as mulheres ganharam autonomia e papéis que eram antes só dos homens.
É ótimo que isso tenha acontecido, mas a autonomia e os novos papéis que as mulheres conquistaram produzem frequentemente crises nas
relações entre os gêneros. Provavelmente, são
os homens que estão agora perplexos, sem saber como tratar as mães de seus filhos, que são
tão diferentes das mães que os criaram. Mulheres e homens têm de se adaptar à nova situação
e aprender com ela, porque as crianças precisam de pai e mãe não só para serem geradas,
mas para poderem crescer e aprender com eles
como viver e amadurecer.
A Economia Solidária é a próxima etapa natural
dessa sequência. Pois não é possível só fortalecer a família, sem fortalecer ao mesmo tempo
a comunidade de que ela é parte. Esta é a ideia
fundamental. A Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) tem um programa de
desenvolvimento de comunidades pobres chamado Brasil Local, que atua por intermédio de
Agentes de Desenvolvimento Solidário. Hoje,
existem 510 Agentes atuando em todos os estados do Brasil, escolhidos pelas comunidades,
mas pagos pelo Programa para, em tempo integral, mobilizar a sua comunidade e ajudá-la a
se autorredimir. É um programa de endodesenvolvimento, como dizem os venezuelanos. Um
desenvolvimento de dentro para fora e não de
fora para dentro. Os Agentes de Desenvolvimento têm que fazer a articulação dessas comunidades com o resto do país, o que significa não
só o governo federal, mas também os governos
estaduais e municipais.
Cada comunidade escolhe uma liderança própria
para se tornar seu Agente de Desenvolvimento,
que age em rede com outros Agentes em seu
estado, com um coordenador e uma equipe
da Senaes que ajuda a comunidade a ganhar
acesso a finanças, a tecnologia e a mercados. É
dessa maneira que o Programa Brasil Local vem
funcionando.
Há uma profusão de programas de apoio ao desenvolvimento que não são usados porque os
mais pobres geralmente vivem isolados, privados de comunicação e de informação. Assim,
por exemplo, mediante um acordo com o Ministério de Minas e Energia, a Senaes ajuda a
formar Agentes de Desenvolvimento para as
famílias e as comunidades beneficiadas pelo
Programa Luz para Todos. Este Programa do
governo federal conseguiu colocar dois milhões
de brasileiros no século XXI. Privados de energia
elétrica, eles estavam, praticamente, no século
XVIII. A grande maioria dessas comunidades
está na Região Norte do país, na Amazônia. Elas
viviam em economia de subsistência. A ausência de energia, obviamente, cria uma situação
de isolamento muito forte.
A Senaes está fazendo um esforço concreto. Hoje
existem mais de setenta incubadoras de cooperativas populares. São projetos de extensão de
universidades do Brasil inteiro. As incubadoras
são compostas por estudantes e alguns professores que estão sendo mobilizados para apoiar
cooperativas e, ultimamente, também comunidades. Os estudantes têm uma vontade enorme
de militar e lutar para que este país seja diferente. E esse entusiasmo juvenil tem uma capacidade de resgate e transformação extremamente
importante.
Voltando especificamente à questão alimentar,
durante muito tempo acreditávamos que a fome
no mundo não era resultado de uma deficiência
de oferta. Havia alimento para todos. O que não
havia era dinheiro para que todos pudessem
comprar alimentos. Logo, o que tinha de ser feito
era lutar para que a renda e a terra fossem redistribuídas, tendo em vista acabar com a fome.
o uso predatório da água, da terra e do ar por
uma agricultura insustentável no mundo inteiro.
Essa agricultura industrializada não tem futuro.
Ou então a humanidade não terá futuro se persistir nesse rumo.
Então, hoje, além da preocupação distributiva,
que nunca vamos deixar de ter, vamos ter que
fazer, efetivamente, uma revolução agrícola,
que é muito original porque se trata de voltar ao
passado. A agricultura industrial limita-se principalmente ao setor capitalista, ao agronegócio.
Na agricultura familiar, apenas alguns conseguem acesso a esta tecnologia. Os demais não.
Os que não conseguem têm de se conformar
com a tecnologia pré-industrial, que não devasta os recursos naturais. Uma grande parte dos
camponeses jamais pôde entrar na agricultura
industrial por falta de dinheiro para comprar os
equipamentos e os produtos químicos, sementes etc. Dessa maneira, os camponeses pobres
preservaram o que hoje é a base da tecnologia
de amanhã.
São os camponeses em todo mundo que sabem
como produzir alimentos sem usar produtos químicos que poluem a atmosfera, a água e a terra.
E hoje há uma luta no mundo inteiro para combinar esses conhecimentos tradicionais, que não
podem ser generalizados, não são conhecimentos passíveis de caber em um manual, pois são
ecologicamente condicionados a microclimas e
a condições ambientais muito específicas. Mas
estão se criando redes em que os agricultores
são os cientistas da prática, à medida que eles
experimentam, aprendem e assim conseguem
criar uma agricultura sustentável.
Agora, para generalizar a agroecologia é preciso
fazer a reforma agrária. Enquanto houver a concentração fundiária que temos, haverá sempre
latifundiários mais interessados em ganhar dinheiro logo; e esse logo pode significar o sacrifício do futuro de todos nós.
Hoje, sabemos que a situação mudou, e já estava previsto que iria mudar. Não há recursos
naturais suficientes para sustentar toda a população. Esse era um problema que há alguns
anos parecia ser distante e se acreditava que o
avanço tecnológico encontraria para ele alguma solução. Mas, subitamente, agora, o futuro
chegou. Os alimentos estão ficando escassos,
seu preço aumentou, o número de pessoas que
estão em situação de fome no mundo aumentou em 100 milhões, alcançando agora 950 milhões (dados da FAO) e isso não é brincadeira,
principalmente, na África. Isso tem a ver com
| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
173
A dimensão
social da
segurança
alimentar
174
* Especialista em Ação Cultural, tem formação em
Filosofia, Ciências Sociais e Administração. É Diretor do
SESC de São Paulo desde 1984. É Conselheiro do Museu
de Arte Moderna de São Paulo (MAM), da Fundação
Cultural Itaú e do Masp. Entre suas obras, destacam-se
Ética e cultura (2001), O parque e a arquitetura (2004).
Fome, ética
e assistência Danilo Santos de Miranda*
Serviço Social do Comércio |
175
Os princípios éticos que nos movem na iniciativa pela segurança alimentar no Brasil são mais
amplos do que a assistência fundamental que
tem sido praticada pelo poder público e todos os
agentes envolvidos em programas como o Mesa
Brasil SESC.
Nesse sentido, minha reflexão, que gostaria de
compartilhar, segue o caminho das necessidades mais atuais de articulação de algumas novas interpretações para que todas as medidas
transformadas em práticas de assistência multipliquem-se, incessantemente, para a compreensão mais absoluta dos direitos humanos e da inclusão social na esfera da segurança alimentar.
Nós, que somos agentes e membros praticantes
da segurança alimentar, hoje no Brasil, podemos avaliar o quanto as mudanças já obtidas
têm nos levado a perceber como a questão da
garantia alimentar tem transformado a vida de
milhares e milhares de brasileiros e como, vencidos velhos desafios, a assistência tem nos colocado outras e novas perspectivas.
A análise mais contemporânea da ética da assistência à fome no Brasil pode parecer, à primeira
vista, independente das questões que perpassam o direito, especificamente o conjunto dos
direitos humanos. Mas, de acordo com o contexto e com a realidade brasileira, está relativamente ligada a ele.
Ao pensarmos na ética enquanto forma de conduta
institucional, ela parecerá, a princípio, bem mais
ampla e com objetivos às vezes pouco práticos, se
comparados aos princípios dos direitos humanos
próprios à assistência como intervenção para a
coexistência cidadã. Agora, se encararmos que
toda forma de conduta é também uma forma de
coexistência institucional e pessoal, podemos
perceber como a ética converge para a adoção
de princípios, até simples, mas defensáveis.
Partindo de algumas acepções sobre a ética em
Kant, Habermas, dentre outros, percebemos
que o que há de comum é a suposição de que
a avaliação ética se fundamenta em princípios
que são universais, isto é, devem ser aplicados
a todos e, imparcialmente, devem ser baseados
no preceito de que os indivíduos devem receber
respeito idêntico.
Com base na igualdade mais elementar do direito
à vida, a ética do combate à fome e da assistência, como princípios de inclusão social, tem
norteado tanto as iniciativas do governo federal,
quanto, desde os anos 1980, as origens do Programa Mesa Brasil SESC. Mas a própria relação
ética sobre a assistência à fome no país tem
sido transformada.
Lançados na urgência de aplacarmos as desigualdades que mais injustamente se vinham
mantendo, partimos em mutirão para minimizarmos o que era, primeiramente, o maior dos
desrespeitos à vida. Ao fazermos um balanço,
podemos avaliar que os resultados, nesse sentido, são muito significativos. Afora as mudanças
culturais já conseguidas, poderíamos inferir que
há diferentes percursos a serem percorridos e
grandes esforços para a inclusão social que demanda a assistência à fome em nosso país. Afinal, não é só de alimento que tratamos. Há fome
de dignidade, fome de cidadania, que devemos
observar para efetivarmos o alcance de nossas
ações.
Para entendermos a extensão da inclusão como
questão social, devemos considerar que as
| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
origens da exclusão são históricas e foram assumidas pelas relações sociais, culturais e econômicas. Segundo o sociólogo Robert Castel, essas
relações são marcadas pela concentração de poder e de riquezas de classes e setores dominantes e pela pobreza generalizada de outros segmentos sociais, que constituem as maiorias populacionais e cujos impactos
alcançam todas as dimensões da vida social, do cotidiano às determinações estruturais.
176
Fome, ética e
assistência
No contexto latino-americano, a questão social, nesta perspectiva, vem adquirindo novas modalidades, nos últimos tempos, por força das mudanças
profundas que estão acontecendo nas relações entre capital e trabalho, nos
processos produtivos, na gestão do Estado, nas políticas sociais, e pelo chamado princípio de exclusão, que se concretiza tanto da parte dos excluídos
do processo produtivo, do trabalho assalariado, quanto da parte dos excluídos pelas relações de gênero ou pela identidade cultural. Esses aspectos se
tornam efetivamente questões sociais quando percebidos e assumidos por
um setor da sociedade, que tenta solucioná-las, transformá-las em demanda
política e, por consequência, em justiça social.
Pensando nas características do que são as questões sociais, hoje, no Brasil e
na América Latina, das quais a fome como consequência da pobreza se destaca, poderíamos afirmar que, embora os processos excludentes originados
pelo capitalismo avançado sejam grandes colaboradores, não podem bastarse como justificativas éticas para um panorama que não está previamente
dado. Como afirmou o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em artigo publicado em O Estado de São Paulo em 6/7/1996:
A globalização não é somente o novo dogma dos economistas, mas é principalmente
a nova racionalidade das instituições internacionais e multilaterais e dos estados
nacionais; assim, tudo acontece ou deve acontecer de uma determinada forma em
função e como consequência inexorável da globalização.
Com isso, procuro chamar a atenção para o fato de que, contrariando todas as
previsões, nossas políticas democráticas aliadas aos planos de atenção social têm permitido mudanças reais na sociedade, apesar de todas as tendências negativas quanto à economia mundial e quanto aos prognósticos que
limitam práticas e oferecem poucas ou nenhuma alternativa. Como pondera
Celso Furtado em sua proposta para o Projeto Nacional de Desenvolvimento
Social:
A globalização não pode ser vista como um imperativo histórico resultante de exigências
inescapáveis do avanço tecnológico. Ela traduz decisões políticas tomadas em
função de interesses de grupos e países que ocupam posições dominantes na esfera
internacional.
Meu empenho pessoal na construção de técnicas e metodologias para uma
atividade regular adaptada à realidade brasileira tem nos levado a diversificar nossa atuação, uma vez que a assistência transformada em logística de
colheita urbana já foi multiplicada em todo o estado pelo SESC São Paulo.
Nesse processo, formulávamos um programa que não se limitava a trazer
o alimento, o que seria imediatismo, mas transmitir conhecimentos e criar
espaço para a ação solidária educativa.
Com essa dimensão sociocultural, as transformações passaram a acontecer
com os envolvidos e percebíamos nossos primeiros resultados. Transformações culturais e educativas porque cada um dos parceiros não partilhava apenas dos procedimentos técnicos, seletivos ou higiênicos para a distribuição,
mas valores, sentimentos de solidariedade, de respeito ao outro e de vitória
contra o desperdício. Esse conjunto de valores criados e partilhados coletivamente ajudou-nos a tecer as redes e a cultura que se renova e consolida.
Serviço Social do Comércio |
O programa Mesa Brasil SESC teve condições de se estabelecer porque se tornou também um espaço para a formação de pessoas e de aperfeiçoamento real da ideia de solidariedade. Evitamos o paternalismo e as relações de
dependência marcadas pelo assistencialismo, pois buscávamos modelos e
alternativas possíveis no enfrentamento da fome e do desperdício, que pudessem ser multiplicados e adaptados às diversas realidades tanto das empresas doadoras, quanto das instituições mediadoras e receptoras.
177
Fome, ética e
assistência
Nesse balanço, podemos dizer que o sucesso de nossas ações também decorre
da maneira objetiva com que empregamos os pressupostos educativos.
| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
178
Programação do
Seminário Nacional
Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional:
desafios e estratégias
Serviço Social do Comércio |
179
SEMINÁRIO NACIONAL MESA BRASIL SESC
SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL:
DESAFIOS E ESTRATÉGIAS
8 de outubro de 2008
Brasília/DF
Edifício da Confederação Nacional do Comércio
Setor Bancário Norte - Quadra 1 - Bloco B - 1º subsolo
8:00
Credenciamento
9:00
Abertura:
Antonio Oliveira Santos (Presidente do Conselho Nacional do SESC)
Ministro Patrus Ananias (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome)
Maron Emile Abi-Abib (Diretor Geral do Departamento Nacional do SESC)
9:30
1ª parte
Cenário da pobreza e da fome
Conferencistas: Ricardo Paes de Barros (Ipea) e Carlos
Monteiro (USP)
Moderador: Fernando Dantas (Jornal O Estado de São Paulo)
11:00
INTERVALO
11:15
2ª parte
Dimensão nutricional do Bolsa Família - Eduardo RiosNeto (Cedeplar)
Experiência internacional na avaliação de programas de
transferência de renda e desnutrição - Pedro Olinto (Banco
Mundial)
Há uma crise de segurança alimentar no Brasil? – Walter
Belik (IE/Unicamp)
Moderador: Fernando Dantas (Jornal O Estado de São Paulo)
| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
12:45
180
Programação
do Seminário
Nacional
Mesa Brasil
SESC
Serviço Social do Comércio |
ALMOÇO
14:15
1ª parte
15:45
INTERVALO
16:00
2ª parte
17:30
ENCERRAMENTO
Insegurança alimentar no contexto brasileiro
Conferencistas: Renato Maluf (Consea Nacional) e Ricardo
Abramovay (FEA/USP)
Moderador: Mauricio Blanco Cossio (Iets)
O fortalecimento da segurança alimentar nas políticas
sociais – Crispim Moreira (Sesan/MDS)
Impactos do Programa de Aquisição de Alimentos no
campo produtivo e social – Silvio Isopo Porto (Conab)
Agricultura familiar: novas estratégias de financiamento –
Porfírio Silva de Almeida (Banco do Nordeste do Brasil S.A.)
Moderador: Mauricio Blanco Cossio (Iets)
9 de outubro de 2008
Brasília/DF
Edifício da Confederação Nacional do Comércio
Setor Bancário Norte - Quadra 1 - Bloco B - 1º subsolo
9:00
1ª parte
10:30
INTERVALO
10:45
2ª parte
12:15
ALMOÇO
13:45
1ª parte
15:45
INTERVALO
16:00
2ª parte
17:30
ENCERRAMENTO
181
Programação
do Seminário
Nacional
Mesa Brasil
SESC
A expansão da oferta e melhoria da distribuição de
alimentos
Conferencistas: Luis Carlos Guedes Pinto (Banco do Brasil)
e Eliseu Roberto de Andrade Alves (Embrapa)
Moderador: Álvaro Salmito (Departamento Nacional do
SESC)
O papel do biodiesel no desenvolvimento brasileiro – Jorio
Dauster Magalhães e Silva (Brasil Ecodiesel)
A oferta de alimentos e o comércio internacional – Marta
Castilho (Faculdade de Economia/UFF)
Desperdício de alimentos: de que se trata, afinal? –
Mauricio Vasconcellos (IBGE/Ence)
Moderador: Álvaro Salmito (Departamento Nacional do
SESC)
A dimensão social da segurança alimentar
Conferencistas: Wanda Engel (Instituto Unibanco),
Paul Singer (Senaes/ MTE), Ricardo Manuel dos Santos
Henriques (BNDES)
Moderador: Manuel Thedim (Iets)
Fome, ética e políticas assistenciais
Conferencistas: Frei Beto e Danilo Santos de Miranda (SESC
São Paulo)
| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC
Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias
Publicação do Seminário Nacional Mesa Brasil SESC,
realizado pelo Departamento Nacional do SESC.
Impresso em papel reciclato 120g (miolo) e duodesign 300g (capa)
pela Gráfica Flama Ramos.
Com texto em Gothic 720 BT e Garamond Premier Pro.
Tiragem limitada de 5.000 exemplares.
Fevereiro de 2010.
Download

Anais Seminário Nacional Mesa Brasil SESC