ID: 44427998
26-10-2012 | Ípsilon
Tiragem: 43276
Pág: 26
País: Portugal
Cores: Preto e Branco
Period.: Semanal
Área: 27,38 x 32,11 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 2
Anne Teresa de
Keersmaeker
reencontra a
CNB para um
programa que
revela a força
interior do seu
movimento
intraduzível em
palavras. Estreia
hoje no Teatro
Camões.
Tiago
Bartolomeu
Costa
Anatomia
de um movimento
A
Noite Transfigurada faz, com
Grosse Fuge, parte de um
periodo da vida da coreógrafa
em que a música
contemporânea, de Bartók e
Schonberg, dialogava com
Mozart e Beethoven
nne Teresa De Keersmaeker acompanha os movimentos de longe, ignorando o que o ecrã mostra. Vai
desenhando por cima da
mesa de trabalho as curvas
que gostaria que os bailarinos fizessem ou as que imagina, que sente,
que o corpo deles esteja a fazer, ou
a pensar. Olha, curvada, dobrada
sobre si mesma, como se quisesse
assim aproximar-se de um movimento que, de seu, já tem seis anos,
dez, vinte e, no entanto, se mostra
tão vivo. “É maravilhoso que ainda
funcione”, diz. “Mas é o acaso que
a faz funcionar”.
No fim do ensaio, mais um de um
dia que começou cedo no Teatro
Camões, em Lisboa, aplaude, discreta, os bailarinos da Companhia
Nacional de Bailado que, a partir de
hoje e até 10 de Novembro (e depois
dias 15 e 16 de Novembro no Teatro
Nacional São João, no Porto), são,
só, depois do Ballet de l’Ópera de
Paris, a segunda companhia no
mundo a dançar peças de repertório
criadas para a companhia Rosas,
que dirige em Bruxelas desde o início dos anos 1980. E é, também, o
reencontro com a única companhia
para a qual criou uma peça, para
além da sua.
Em 1998 a CNB dançou The Lisbon
Piece, coreografia sobre a qual não
fala muito, talvez por reconhecer
que a peça deixava visível o desconforto que sentia em dirigir uma companhia que não era a sua. Agora,
quando sobe ao palco para explicar
aos bailarinos aquilo de que anda à
procura, quem sobe é uma coreógrafa que consegue olhar para o seu
percurso e, ainda que sem as palavras exactas para o explicar, explicao com imagens e movimentos que
vão aproximando os bailarinos da
imagem que formou na sua cabeça.
É assim o seu movimento, uma ideia
que já é uma imagem, antes de se
tornar numa imagem que produz
uma ideia. “Quando ela faz este movimento, ela deve viajar”, diz para
uma bailarina. “Este movimento” é,
“só”, um passo, talvez dois, mesmo
três, “mas quando ela o faz deve viajar”. E exemplifica, enquanto, no
palco os seus técnicos, que trouxe
na mala como quem não viaja sem
as fotografias de família, estão num
afã com a montagem dos projectores, os músicos da Orquestra Metropolitana de Lisboa se fingem invisíveis, e da plateia as costureiras pedem aos bailarinos que se acalmem
e garantem que os problemas com
os figurinos serão resolvidos a tempo. Mas para De Keersmaeker é como se não houvesse mais nada à
volta. E mesmo que as luzes se apaguem e as enormes árvores de fibra
que sobem até ultrapassarem o tecto do Teatro Camões fiquem apenas
iluminadas pelas caixas de luz de
emergência, a silhueta de De Keersmaeker distingue-se na penumbra.
“Preciso de mais profundidade, de
mais detalhe, de mais resistência,
[de movimentos], mais certeiros”,
diz à bailarina que a vai copiando.
“More up here”, e aponta-lhe para a
testa para depois acrescentar que
ela deve procurar uma tensão entre
o seu olhar, o seu movimento, e o
ponto, do outro lado do palco, onde
deverá chegar. “Imagina que vais
abrindo o espaço com as mãos. Como se as extremidades dos dedos o
abrissem. É uma energia básica”. E
então, como se as palavras se tivessem tomado de energia, dá por si a
terminar a frase com os movimentos
que dentro da sua cabeça já há muito tomaram a forma de outros tantos
corpos.
Gaze
Noite Transfigurada, a última de três
coreografias que compõem o programa que a CNB apresentará, foi
estreada em 1995, fazendo, com
Grosse Fuge, a segunda peça deste
programa, de 1992, parte de um periodo da vida da coreógrafa em que
a música contemporânea, de Bartók
e Schonberg, dialogava com as composições de Mozart e Beethoven. Era
ainda o tempo em que De Keersmaeker procurava libertar-se da ideia
de que não sabia coreografar para
corpos masculinos e, por isso, havia
transferido para os corpos das suas
bailarinas toda a força, todas as tensões, toda uma história de confronto que desejava, ardentemente, ser
de diálogo mas que acabava no silêncio mudo, seco, de movimentos
que cortavam cerce na sua ambição,
que se impediam de continuar, como se quisessem esconder a sua
fragilidade. Estranhamente, é isto
que vimos Anne Teresa fazer quando um bailarino lhe perguntou como podia resolver o que ela lhe pedia, “olhar em frente, um movimen-
ID: 44427998
26-10-2012 | Ípsilon
to fisicamente pessoal, feito por um
corpo que quer sair de si mesmo
mas que continua preso”, como se
quisesse desenhar “uma tensão exterior ao corpo”. E então Anne Teresa parece dirigir-se para os braços
do bailarino e quando este se prepara para a receber, afinal, ela estava a seguir em frente, a olhar para
outro lugar, a fazer uso do que chama de gaze, um olhar “que tem tudo
a ver com suspensão”, mas que
quem fica suspenso é quem achava
que ia receber o abraço.
O movimento de Anne Teresa vive
desta contradição, como se dependesse dela para se poder encontrar
dentro de um espaço que ela vai dizendo que nunca está conquistado.
Aos bailarinos vai pedindo “confiança”. E quando lhes pergunta se eles
têm alguma questão e algum deles
lhes pergunta se há algo a fazer relativamente às dobras que o figurino
faz, fora de controlo dos movimentos, a coreógrafa, sempre atenta ao
detalhe, responde, surpreendendo,
que “isso não se vai perceber quando estiverem a dançar”.
O movimento que procura é outro. “Cada momento tem que ter a
sua importância, vai com mais calma, ou então...” e então suspende
o que está a dizer, levanta-se e faz
ela própria o movimento que acaba
num gesto que imita uma metralhadora. “Todos os momentos são importantes... trááá-trrrrááá-trrrááá”.
E explica aos bailarinos com o corpo
aquilo que com as palavra não consegue concluir. “Pequenos deta-
Tiragem: 43276
Pág: 27
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 16,02 x 16,09 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 2 de 2
lhes... uma curva interior... magnífica linha... cria uma forma... traz
de dentro o movimento... foca-te a
partir do interior, mesmo que tenhas que fechar os olhos... faz uma
diagonal...faz outra vez... olha para
longe... mais para longe... como se
olhassem para ela... da ponta dos
teus dedos... mais sensual... muito
sensual... respira... expira... mais...
relaxa os teus dedos... ouve a música... usa os joelhos... um pouco mais
aberto... mais... mais... não vás para
trás...” E quando ainda lhe faltam
mais palavras bate com os pés, faz
ela própria o movimento em silêncio, sabendo que ninguém está a
ver, como se fizesse o que está a
dizer-lhe para fazerem: “experiencía
tudo a partir do teu interior”.
As três peças deste programa juntam a força anímica de Grosse Fuge,
de uma violência inusitada, onde os
Fala dos
movimentos como
“escultura viva”,
e percebemos
porque precisa de
subir para palco
e misturar-se com
os bailarinos
sorrisos de esforço se sobrepõem
ao prazer de dançar, à desesperança de Noite Transfigurada, peça de
uma falsa candura, de amantes perdidos numa floresta, e à ilusão de
perfeição de Faune.
A coreógrafa fala dos seus movimentos como se fossem “uma escultura viva”, “uma fotografia que vibra”, e percebemos melhor porque
precisa de subir para palco e misturar-se com os bailarinos, no chão,
como se não houvesse hierarquia e
através deles fosse percebendo o
que queria dizer com cada movimento. E, então, os bailarinos, como
se falassem a mesma linguagem, fazem da “sensualidade da experiência” a sua própria existência e dão,
com os corpos, aquilo que a coreógrafa define como “a forma que vive
contigo”. E cola-se a eles, move-lhes
os braços, mostra-lhes como devem
fazer, há quem se arrepie, quem se
afaste um passo só para ver melhor,
ou para passar a acreditar que conseguiu. E o movimento, que parecia
preso à música, solta-se, surge como
o contraponto de que foi falando ao
longo das sessões de ensaios: “Têm
que sentir. Eu tenho que sentir. Não
antecipem. Não atrasem. Sintam o
que estão a fazer. Respirem a partir
da coluna. Aceitem o próximo movimento como sendo o mais confortável”. No fim, Anne Teresa de Keersmaeker volta a mergulhar na
penumbra da plateia, para mais um
ensaio. O dia está longe de terminar,
como o movimento está longe de
poder ser explicado por palavras.
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