2014/11/27
Os desafios da plataforma
estratégico-militar1
continental
–
Visão
Alexandre Reis Rodrigues
Introdução
Portugal tem várias iniciativas em
curso para enfrentar os desafios do
alargamento
da
plataforma
continental ligados ao tema da
economia do mar, mas ainda não
adotou uma abordagem que tenha
em
conta
as
interações
e
interdependências desse tema com
segurança, proteção ambiental e
postura internacional. Se tivermos
presente que se trata de um assunto onde se intercetam vários tipos de políticas económicas, ambientais, de defesa, de segurança interna e de política externa esse passo parece-me incontornável.
A forma conceptual de o fazer, na minha perspetiva, será adotar uma visão
estratégica do mar segundo três prismas: como espaço de desenvolvimento; como
espaço de projeção de influência externa; e, finalmente, como espaço de segurança
e defesa. A forma prática será desenvolver uma estratégia de segurança marítima
que complemente a Estratégia Nacional para o Mar (ENM), nos temas que esta não
cobre.
Tipos de desafios
Na visão estratégico-militar que me cabe desenvolver, irei centrar-me – como
certamente esperam - no prisma da segurança e defesa, para falar sobre os
respetivos desafios,2 o tema deste painel. Uns são específicos de Portugal - da sua
condição geopolítica - outros decorrem das alterações que se têm verificado no
ambiente de segurança marítima global. Começo por estes últimos para concluir
com os que são específicos.
1
Texto de apoio a uma apresentação feita no Seminário “O Mar e os laços da Lusofonia: desafios e
oportunidades no contexto económico-industrial e da segurança marítima” (Painel 3, Os desafios da
Plataforma Continental), no IDN a 27 de novembro de 2014.
2
Devo esclarecer, porém, que, na minha perspetiva, não há desafios novos que decorram
especificamente dessa situação. Quase todos vêm de trás, mas porque não foram abordados na altura
própria, assumem agora, á luz dessa perspetiva, uma relevância e urgência que não é possível continuar
a ignorar.
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Desafios gerais
O atual ambiente de segurança nos espaços marítimos tem poucos pontos comuns
com o que existia durante a Guerra Fria. Outrora dominado por ameaças
essencialmente militares hoje, obriga-nos a repartir esse foco com solicitações, a
crescerem exponencialmente, para a manutenção da ordem internacional no mar.
Confrontamo-nos com um ambiente dominado por ameaças com origem em atores
não estatais que, sob diversos tipos de motivações,3 procuram tirar partido do
regime liberal em que funciona o domínio marítimo e da incapacidade de alguns
Estados exercerem as suas obrigações de manutenção da lei e da ordem nos
espaços sob sua responsabilidade.
Confrontamo-nos também com problemas de instabilidade no âmbito da chamada
“territorialização” do mar. O alargamento dos espaços de jurisdição que a
Convenção do Direito do Mar hoje faculta está a ser fonte de disputas sobre as
respetivas delimitações e de atritos por interpretação abusiva na regulamentação
dos respetivos acessos.
A resposta que esta nova situação suscitou, a nível internacional, tem-se
materializado por duas vias:
1ª Via: Pela acentuação da necessidade de os Estados cooperarem mais entre si
dada a natureza transnacional das ameaças e a incapacidade dos EUA, mesmo com
a ajuda dos seus aliados, garantirem a segurança global do domínio marítimo.4
2ª Via: Pela reformulação dos dispositivos e configuração dos sistemas de forças
navais e pela adoção de estratégias de segurança marítima. O primeiro aspeto
decorre, num quadro de reorientação das estratégias navais que as principais
potências começaram a adotar, a partir do início da década de 905. O segundo é um
processo muito recente.
No essencial, nesta 2ª via, trata-se de conciliar dois requisitos diferentes. Por um
lado, atender à necessidade de dar um maior relevo às preocupações de
manutenção da ordem no mar, na promoção de um regime marítimo que seja
estável e evite que os oceanos se tornem numa zona de criminalidade
descontrolada. Por outro lado, manter uma capacidade no campo essencialmente
militar do emprego do poder naval que, no caso das marinhas ocidentais, pelo
3
Uns tentam afetar a utilização livre e segura do mar sob motivações económicas – o caso da pirataria –
ou sob motivações políticas – o caso do terrorismo. Outros tentam apenas usar as fragilidades do
controlo atualmente existente para a realização de atividades ilícitas.
4
A capacidade de os EUA e seus aliados garantirem a segurança do domínio marítimo (em geral, a
segurança dos “global commons”) não só tem vindo a sofrer uma diminuição da margem de
superioridade de que beneficiou durante quase cinquenta anos como começou, há cerca de uma década,
a ser contestada por atores não estatais que estão a pôr em causa a segurança de rotas marítimas vitais
para o tráfego marítimo comercial.
5
No passado recente, o início da evolução conceptual do emprego do poder naval para fazer face à
alteração do contexto de segurança resultante do fim da Guerra Fria e da aceleração do processo de
globalização tem o seu marco de referência na aprovação em setembro de 2002 de uma nova estratégia
para a marinha dos EUA, com o título “From the Sea”, ao que se seguiram vários ajustamentos. O
últimopasso desta evolução ocorreu em 2008 com a aprovação da “Cooperative Strategy for the 21st
Century”.
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menos, não deixe acentuar a vulnerabilidade em que estão a cair perante a corrida
aos armamentos navais das potências emergentes, em especial as asiáticas.6
Desafios específicos
Portugal tem um percurso de acompanhamento destas tendências que não é
uniforme. Tem um discurso assertivo no que respeita à cooperação internacional,
mas com muito caminho para percorrer quando chega à altura da concretização das
duas linhas de ação que a situação exige:
Primeira, como principal responsável por um espaço que é essencial para a NATO e
para a União Europeia, cujos Estados membros esperam que o País não deixe criar
oportunidades que possam pôr em causa a segurança da navegação que cruza a
área nem deixe explorar a exposição natural das nossas costas a algumas ameaças
não clássicas (tráfico ilegal de drogas, emigração clandestina, etc.) que procuram
pontos de vulnerabilidade para entrar na Europa.
Segunda, como participante empenhado na segurança do Atlântico, que agora se
encontra sujeito a um conjunto de novos desafios que precisam de atenção: a. O
recrudescimento da insegurança no Golfo da Guiné, problema para o qual não se
prevê encontrar solução oportuna e eficaz num quadro puramente local; b. A
redução da presença naval dos EUA, o que criará um vazio que os europeus terão
que preencher; c. A alteração em curso dos fluxos marítimos entre o Norte e o Sul,
em resultado do aparecimento, a sul, dos novos pesos pesados da exportação de
petróleo e gás, da entrada em funcionamento do novo Canal do Panamá e do
degelo do Ártico.
De acordo com o CEDN, Portugal deve «criar quadros de cooperação para a defesa
de interesses comuns, designadamente na segurança das linhas de comunicação
marítimas» e promover uma «visão de unidade do Atlântico, cuja consolidação é
crucial para o reforço do vínculo entre os membros da CPLP».
De facto, parece claro que Portugal tem um potencial relevante para dar um
contributo útil à operacionalização dessa visão do Atlântico. Tem experiência da
região, tem proximidade política e relações privilegiadas com os principais
intervenientes a sul e tem por seu lado o argumento de que no mundo globalizado
em que vivemos, deixou de ser possível interpretar as necessidades de segurança
marítima em termos de compartimentos estanques, como se o Norte pudesse estar
imune ao Sul, ou vice-versa.7
No que respeita à adaptação das estratégias navais Portugal, ao contrário da
maioria dos nossos aliados, não precisa de fazer ajustamentos na postura que
mantém há muitos anos e que agora se mostra precursora, mantendo um certo
6
O receio de que a crescente dependência dos Países em relação ao mar, para a realização das suas
trocas comerciais, possa suscitar o ressurgimento do interesse por estratégias de perturbação da
navegação mercante, vai continuar a dominar parte da agenda dos planeadores navais e a condicionar a
configuração das respostas militares a esse desafio.
7
No Atlântico Sul, algumas resistências da principal potência regional não têm permitido consolidar a
ideia de que, num mundo cada vez mais globalizado e complexo, a única forma de mostrar solidariedade
e vontade de resistir a eventuais oponentes é mostrar capacidade de desenvolver com o Norte parcerias
de cooperação em termos mais abrangentes que os estritamente económicos, incluindo, portanto,
também os militares.
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equilíbrio entre as três funções tradicionais de uma marinha – combatente,
diplomática e policial.
Precisa, no entanto, de prestar mais atenção a algumas tentativas de
desmilitarização do conceito de segurança marítima que alguns invocam sob o
pretexto de preocupações legalistas para uma separação rigorosa entre o papel das
Forças Armadas e das Forças Policiais, conceção de que, no entanto, a atual Lei de
Defesa Nacional8 se afastou, de acordo com a tendência prevalecente em todo o
mundo. A reposta a esta situação passa por lembrar que o conceito de segurança
marítima vai continuar a ter que assentar no emprego do poder naval e que o seu
alargamento a outros intervenientes, dentro do conceito alargado de segurança,
torna implícita a indispensabilidade de uma estrutura que concilie unidade de
esforço e propósito com economia de meios.
Convém ter presente que Portugal optou por uma estrutura de forças navais que
dedica 64% dos meios (24 unidades num total de 38) às tarefas típicas do que se
chama hoje segurança marítima. Portugal necessitará de modernizar e rever essa
estrutura em termos de quantidade dos meios a atribuir a esta segunda vertente,
mas, para essa linha de ação, o critério a seguir terá que ir sendo desenvolvido
progressivamente, para combinar os requisitos decorrentes da muito maior
dimensão do espaço a cobrir com as expectativas de exploração de recursos que
precisarão de ser protegidos.
No entanto, Portugal não está a acompanhar os países com grandes interesses no
mar, que estão a adotar estratégias de segurança marítima. Aprovou uma ENM
para cobrir as questões ligadas à economia do mar, que nenhum dos Países
analisados tem, mas não deu qualquer sinal de interesse por uma visão estratégica
que cubra a totalidade dos aspetos não abordados pela ENM.
A necessidade de desenvolver na especialidade as orientações constantes do CEDN
e de dar resposta à totalidade dos desafios do alargamento da plataforma
continental apressa a necessidade de resolver esse assunto. Constituirá também
uma oportunidade de encarar, de forma abrangente e integrada, algumas questões
pendentes, do âmbito nacional, que não podem continuar à espera que se resolvam
por si próprias. Passo a uma breve explicação de cada uma.
Conhecimento do mar
No estudo do mar profundo, Portugal passou da 42ª posição para a 12ª no ranking
mundial, entre o primeiro quinquénio da década de noventa e o segundo da década
de 2000, o que representa um progresso notável9. Este esforço vai ter que
continuar, senão intensificar-se10, como eixo de suporte da Estratégia Nacional para
o Mar, mas seria preciso agora alargá-lo a todos os aspetos do domínio marítimo
8
Segundo o artigo 24º da LDN, «Nos termos da Constituição e da lei, incumbe às forças Armadas: e)
Cooperar com as forças e serviços de segurança tendo em vista o cumprimento das respetivas missões
no combate a agressões ou ameaças transnacionais».
9
Ricardo Serrão Santos, Ana Colaço e Raúl Bettencourt, “Ecosistemas Hidrotermais Profundos: Fontes
para a Biotecnologia”, em “O mar no futuro de Portugal” – Ciência e Visão estratégica”
10
É chagada a altura de ponderar uma nova aproximação à questão da realização de cruzeiros científicos
por entidades estrangeiras na nossa área de jurisdição, quer sob a perspetiva de impor alguns
condicionamentos em áreas que o País considere especialmente sensíveis para os seus interesses, quer
na prática de ter sempre um acompanhamento direto pela comunidade científica portuguesa. Dentro da
ideia de redução da dependência do País em relação à investigação conduzida por terceiros, deveria
continuar-se a investir no reforço e alargamento da capacidade existente a nível nacional.
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que possam ter impacto na segurança nacional, na segurança da navegação e na
proteção do ambiente. O País precisa de uma estrutura que, sob uma visão
abrangente, atenda à necessidade de termos, a todo o momento, um panorama
atualizado da situação na nossa área de interesse para atuar com oportunidade
sempre que se detetem desvios de comportamento que possam indiciar potenciais
atividades ilícitas.11
Aproximação multidisciplinar
A necessidade de fazer uma aproximação multidisciplinar e interdepartamental,
como exige o atual entendimento alargado do conceito de segurança,12 pode
revelar-se como um dos pontos mais complexos. Exige uma mudança cultural e de
atitude que permita ultrapassar as tradicionais dificuldades de diferentes
organismos cooperarem e comunicarem entre si para efetiva coordenação das
respetivas ações. Este problema passa por conciliar a necessidade de facilitar a
interpenetração que passou a existir entre os campos de atuação civil (públicos e
privados) e os campos policiais e militares, com o requisito de garantir unidade de
ação e propósito sem o que não haverá ação efetiva.
Segurança em terra versus segurança no mar
O facto de a segurança no mar ser, geralmente, um reflexo da segurança em terra,
e vice-versa, constitui uma interligação que precisa de ser encarada pelas
organizações que operam numa e noutra sob a necessidade de garantir
continuidade no tratamento dos assuntos que respeitam às duas áreas mas sem
prejuízo do reconhecimento de que as respetivas abordagens operacionais são
muito diferentes, senão quase opostas. Estes requisitos não foram observados no
processo de criação da Unidade de Controlo Costeiro da GNR, como se pode
verificar:
1º - Na aplicação do critério geográfico para divisão de tarefas que, se em terra já
faz pouco sentido, no mar limita de forma absurda a exploração das capacidades
operacionais das forças que aí operam e é a negação da utilização de liberdade de
manobra, o seu melhor trunfo;
2º - No esquecimento de que o mar constitui um contínuo ambiental
operacionalmente indivisível, não existindo qualquer diferença entre o que é até às
doze milhas e o que é a partir daí;13
11
Não se trata apenas de uma questão de controlo de espaços. Tratas-e de coligir, de forma útil, toda a
informação recolhida e disponobilizá-la para possível ação.
12
O campo de aplicação do conceito de segurança tem vindo a alargar-se a todo o tipo de situações que
possam representar uma ameaça existencial ao Estado, ao seu Governo, território e/ou sociedade. Esta
ideia teve uma das suas principais origens na chamada Escola de Cpenhaga, pela voz de Barry Posen, e
no “Human Development Report” das Nações Unidas, em 1993, o qual chamava a atenção para a
necessidade de ponderar a segurança também em função dos legítimos interesses das pessoas que
procuram ter segurança no seu dia-a-dia. Na interpretação da Escola de Copenhaga há cinco tipos de
segurança: económica. Social, política, ambiental e militar.
13
Na criação da UCC da GNR alegou-se como justificação a continuidade legal que existe entre o
território e o mar territorial mas esqueceram-se dois aspetos: 1º Que essa questão estende-se a todas
as áreas onde o Estado português exerce jurisdição; 2º que esse assunto, no mínimo, precisa de ser
harmonizado com a ideia de continuidade do domínio marítimo, por todos reconhecido como
determinante da condução das operações navais.
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3º - Na conceção da defesa e segurança de fronteiras que no mar têm que ser
encaradas exatamente ao contrário das fronteiras terrestres, ou seja de fora para
dentro e à maior distância possível;
4º - No requisito de que a prevenção de riscos e ameaças faz-se sobretudo através
de presença persistente. Esta exige quantidade de meios - com as plataformas
ligadas em rede - e capacidade de permanecer no mar por períodos prolongados,
de cobrir as áreas menos esperadas e, quando necessário, de forma encoberta para
causar incerteza e insegurança a eventuais prevaricadores.14
Desencontro entre responsabilidades e recursos
Portugal tem um problema agudo de desencontro entre as responsabilidades que
tem sobre uma área marítima de enorme dimensão e uma situação de escassez de
recursos para a investigar, explorar, controlar e proteger, situação que não será
ultrapassada a curto prazo. Deixando de lado o que respeita à ENM (investigar e
explorar) onde há várias iniciativas em curso, na outra área tem faltado exigência
na racionalização do emprego dos meios disponíveis, para aproveitar da melhor
forma o que existe, evitando a duplicação de estruturas e sistemas que ficam
demasiado caros e levantam problemas de coordenação. Em vez de uma política de
atribuição de meios a organismos e instituições com responsabilidades no mar, há
que consolidar e alargar a política de acesso aos meios da organização que reúne o
maior potencial de capacidades, o que já acontece, há quase duas décadas de
forma comprovadamente satisfatória com algumas organizações que aderiram a
essa ideia.
14
É óbvio - mas pelos vistos convém lembrar - que não chega ter um dispositivo de vigilância fixo e
meios de intervenção rápida para atuar pontualmente
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