1 UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” INSTITUTO A VEZ DO MESTRE MARCAÇÃO DA ANP: GARANTIA DE QUALIDADE DA GASOLINA E DE RECOLHIMENTO DA CIDE-COMBUSTÍVEIS Por: Paula Mariz da Silva Orientador Prof. Willian Rocha Rio de Janeiro 2010 2 UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” INSTITUTO A VEZ DO MESTRE MARCAÇÃO DA ANP: GARANTIA DE QUALIDADE DA GASOLINA E DE RECOLHIMENTO DA CIDE-COMBUSTÍVEIS Apresentação de monografia à Universidade Candido Mendes como condição prévia para a conclusão do Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” em Direito Público e Tributário Por: Paula Mariz da Silva 3 AGRADECIMENTOS Aos meus colegas na ANP, em especial a Alexandre de Souza Lima, Alexandre Elbert, André Luiz de Souza Britto, Bruno Bonafé Ramos Silva, Caroline Ferreira Lorenção, Dirlaine Oliveira da Costa, Douglas Pereira Pedra, Eduardo Pessanha Cavalvanti, Heloísa Borges Bastos Esteves, Laís Palazzo Almada, Lidiane Mendes Rosati, Luis Wolmer Diniz Marianni, Paulo Alexandre Souza da Silva, Paulo Vítor Ferreira dos Santos, Rafael Jardim Cardoso e Rita Capra Vieira Ao Anderson Braga de Oliveira À Marilene E à ANP 4 DEDICATÓRIA Ao Eduardo 5 RESUMO A adulteração de gasolina por adição de solventes, ação criminosa que afeta a proteção do consumidor e o meio ambiente, é efeito negativo da diferença da carga tributária incidente sobre produtos que possuem características químicas similares. Esta situação é fortalecida pela existência da Cide-combustíveis, tributo que enseja esta diferenciação e foi instituído para proteger o abastecimento nacional de combustíveis da variação cambial. A marcação de hidrocarbonetos derivados de petróleo não destinados à produção de gasolina ou diesel tem natureza híbrida, garantindo a identificação de gasolina adulterada, além de auxiliar no combate a sonegação da Cidecombustíveis. Este trabalho analisa o contexto que levou à marcação de produtos passíveis de serem utilizados em adulteração de gasolina, sua estratégia de implementação, e pondera os ônus que recaem sobre os agentes econômicos do setor e os benefícios trazidos aos consumidores. 6 METODOLOGIA A metodologia empregada neste trabalho consistiu no levantamento de leis, decretos, resoluções, portarias, resoluções de diretoria da ANP, relatórios, que influenciaram historicamente a marcação compulsória de produtos; além das condições que trouxeram a necessidade de sua implantação, pesquisada em literatura produzida tanto academicamente, quanto por representantes de parte do mercado regulado pela ANP conhecido como downstream (distribuição e revenda de combustíveis); e de discussões oriundas do direito administrativo, que tratam de marcação compulsória de produtos, defesa do consumidor, restrição à liberdade de agentes econômicos e do princípio ou postulado da proporcionalidade. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 8 CAPÍTULO I – Condições favoráveis para adulteração 10 CAPÍTULO II – Gasolina, solventes e adulteração 14 CAPÍTULO III – Agências reguladoras – mudança no 17 entendimento da atuação do Estado – ANP CAPÍTULO IV – Cide-combustíveis 23 CAPÍTULO V – Marcação, sonegação e proteção ao consumidor 29 CONCLUSÃO 37 BIBLIOGRAFIA 41 8 INTRODUÇÃO Este trabalho foi elaborado para atender a uma das exigências do curso de pós-graduação latu sensu em direito público e tributário do Instituto a Vez do Mestre. A escolha do tema está ligada à experiência da autora, que durante quase três anos, trabalhou na Superintendência de Biocombustíveis e de Qualidade de Produtos da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), atuando com assuntos diretamente ligados à marcação compulsória de produtos estabelecida pela ANP. O capítulo I – Condições favoráveis para adulteração – relaciona a adulteração de combustíveis com a redução da intervenção estatal na economia, identificando a implantação descuidada do Programa Federal de Desregulamentação como primeiro incentivo à atuação de adulteradores de gasolina no Brasil. O capítulo II – Gasolina, solventes e adulteração – apresenta informações sobre as condições químicas que facilitam a utilização de solventes em adulteração de gasolina. O capítulo III – Agências reguladoras – mudança de entendimento da atuação do Estado – ANP – traz notícia da discussão, ainda atual, sobre a atuação do Estado na economia e da opção brasileira pela adoção do modelo de atuação descentralizado, caracterizado pela consensualidade, que se traduziu na criação de agências reguladoras para atuar na regulação de diversos setores econômicos. Este capítulo observa em especial a agência direcionada para a indústria do petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis, a ANP. O capítulo IV – Cide-combutíveis – trata diretamente da contribuição de intervenção no domínio econômico criada para corrigir distorções relacionadas com a influência da oscilação do dólar no preço dos combustíveis, direcionando a leitura para o artigo quinto da Lei n.º 10.336, de 19 de dezembro de 2001, que não trata de matéria ligada à tributação, mas da marcação de hidrocarbonetos líquidos não destinados a formulação de gasolina ou diesel. 9 O capítulo V – Marcação, sonegação e proteção ao consumidor – esclarece as condições da marcação determinada pela ANP; indica o contexto da marcação de combustíveis realizada no Quênia, Austrália, Índia, Turquia, Guiana, Uganda, Tanzânia e Irlanda do Norte; e relaciona as restrições impostas pela marcação com a teoria dos princípios, utilizando o princípio da proporcionalidade. 10 CAPÍTULO I CONDIÇÕES FAVORÁVEIS PARA ADULTERAÇÃO É impossível não associar adulteração de combustíveis e sonegação fiscal, no entanto existem outros fatores que não podem ser deixados de lado quando do levantamento das condições que favoreceram a adulteração de combustíveis no Brasil. O mais importante deles foi o Programa Federal de Desregulamentação, instituído pelo Decreto n.º 99.179, de 15 de março de 1990, em atenção ao princípio constitucional da liberdade individual: Art. 1º Fica criado o Programa Federal de Desregulamentação, fundamentado no princípio constitucional da liberdade individual, com a finalidade de fortalecer a iniciativa privada, em todos os seus campos de atuação, reduzir a interferência do Estado na vida e nas atividades do indivíduo, contribuir para a maior eficiência e o menor custo dos serviços prestados pela Administração Pública Federal e sejam satisfatoriamente atendidos os usuários desses serviços. O artigo 2º do Decreto n.º 99.179/1990 define as diretrizes de formulação do Programa Federal de Desregulamentação, que primam por buscar, em oposição à atitude vigente anteriormente na Administração Pública, a menor interferência possível do Estado nas atividades econômicas: Art. 2º O programa de que trata este Decreto será formulado e executado com a observância das seguintes diretrizes: I – A Administração Pública Federal, em princípio, aceitará como verdadeiras as declarações feitas pelos administrados, substituindo, sempre que cabível, a exigência de prova documental ou de controles prévios por fiscalização dirigida que assegure a oportuna repressão às infrações da lei; II – somente serão mantidos os controles e as formalidade imprescindíveis; III – a atividade econômica privada será regida, basicamente, pelas regras do livre mercado, limitada a interferência da Administração Pública Federal ao que dispõe a Constituição; IV – sempre que possível, a Administração Pública Federal atuará mediante convênios entre seus órgãos e entidades, ou entre estes e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, visando à descentralização da atividade administrativa, à redução dos custos e à eliminação dos controles superpostos; V – os órgãos e entidades da Administração Pública Federal observarão o cumprimento das normas vigentes, editadas na execução do extinto Programa Nacional de Desburocratização, criado pelo Decreto n.º 83.740, de 18 de julho de 1979, bem assim os seus princípios fundamentais. 11 A grandiosidade das mudanças propostas pelo Programa Federal de Desregulamentação e realizadas em seu nome pode ser entendida ao se considerar o texto de Rodrigo Cruz Lavall, que ressaltou a forte intervenção normativa federal no setor de combustíveis até meados da década de 1990, que incluía inclusive fixação de preços de produtos desde a refinaria até o consumidor final, passando pela exigência de autorização prévia para postos revendedores de combustíveis e distribuidoras e até de existência de vínculo entre o posto revendedor de combustíveis e uma distribuidora (a existência de um posto revendedor de combustíveis estava obrigatoriamente vinculada ao fornecimento de combustíveis por uma única distribuidora). A importação de solventes também era controlada pelo governo, de acordo com Roberto Nogueira Ferreira, já em 1997, a dispensa de anuência prévia do Departamento Nacional de Combustíveis (DNC) para importação e exportação de vários solventes, determinada pela Portaria DNC n.º 21, de 5 de junho de 1997, levou ao aumento da importação de solvente para borracha, cujo custo era um terço menor do que o da gasolina e passível de ser utilizado em adulteração de gasolina. É importante ressaltar também a Portaria DNC n.º 52, de 6 de novembro de 1997, que dispensou anuência prévia do DNC para importação e exportação de gasolina de aviação, solventes de nafta, normal parafina, óleo para sinal e querosene iluminante, uma vez que solventes de nafta, normal parafina e querosene iluminante são produtos passíveis de serem utilizados em adulteração de gasolina. Segundo Rodrigo Cruz Lavall, as modificações iniciadas pelo Programa Federal de Desregulamentação favoreceram a atuação de adulteradores de combustíveis. Este autor se dedica a demonstrar como as regras propostas pelo Ministério das Minas e Energia (MME), por meio das Portarias MME n.º 8, que dispõe sobre a atividade de distribuição de combustíveis líquidos derivados de petróleo, e 9, que dispõe sobre a atividade de revendedor varejista de combustíveis líquidos derivados de petróleo, ambas de 16 de janeiro de 1997, que extinguiram o vínculo à bandeira serviram ...para inflamar a clandestinidade do comércio irregular de combustíveis, com a leviana e distorcida divulgação no mercado de que as referidas portarias autorizavam, indiscriminadamente, a todos os postos de serviços, independentemente de exibirem identificação de uma distribuidora, a adquirirem combustíveis de qualquer outra distribuidora, a despeito, inclusive, do direito do consumidor em conhecer a procedência do produto que está adquirindo. (LAVALL, 2001, p.1) 12 Como resultado das novas regras, ocorreu o aumento no número de distribuidoras, de seis, em janeiro de 1997, para mais de 250 um ano depois. No entanto, a maioria dos postos revendedores ostentava vínculo de exclusividade de comercialização de combustíveis à bandeira de alguma distribuidora. De acordo com Rodrigo Cruz Lavall, as novas distribuidoras passaram a oferecer excelentes condições comerciais para a compra de combustíveis, que não advinham de baixo custo operacional, ou oportunidade de concorrência entre empresas, mas de adulteração e sonegação. Rodrigo Cruz Lavall informa ainda que, no final da década de 1990, o Brasil acompanhou o surgimento de uma indústria de liminares, devido a questionamentos judiciais sobre retenção antecipada de PIS e COFINS por substituição tributária. O fundamento para o questionamento era o parágrafo 3º, do artigo 155, da Constituição Federal que prevê À exceção dos impostos de que tratam o inciso II [operações relativas à circulação e sobre prestações de serviços de transportes interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e prestações se iniciem no exterior] do caput deste artigo e o art. 153, I [importação de produtos estrangeiros] e II [exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados], nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País. As distribuidoras e os postos revendedores impetravam mandados de segurança contra a retenção antecipada de PIS e COFINS e obtinham liminares para pagar os tributos no momento efetivo da venda dos produtos. Segundo Rodrigo Cruz Lavall, uma minoria recolhia os tributos o que gerou prejuízo anual à Receita Federal da ordem de R$ 700.000,00. Mesmo após a cobrança de tributos sobre combustíveis ter sido julgada constitucional pelo STF em 1999, os questionamentos e as liminares persistiram, de sorte que, no ano 2000, um quarto do volume total da gasolina vendida no Brasil foi comercializada amparada por liminares contra o pagamento de PIS e COFINS. Situação similar ocorreu em relação ao recolhimento do ICMS. As distribuidoras portadoras de liminares contra a retenção antecipada de ICMS por substituição tributária, realizada em refinarias, tornavam-se responsáveis pelo recolhimento do ICMS relativo à distribuição e transferiam esta obrigação de recolhimento aos postos revendedores adquirentes do produto, que terminavam, por desconhecimento, ou má-fé, por não recolher o tributo devido. Segundo informação de Rodrigo Cruz Lavall, as empresas detentoras de liminares eram as mesmas que ofereciam produtos por preços baixos, 13 impossíveis para empresas que honrassem todas as suas obrigações tributárias. Chegando a haver casos de distribuidoras criadas para operar enquanto detivessem uma liminar, quando a liminar fosse suspensa pela justiça, a empresa deixava de funcionar. A afirmação de Elaine Vosniak Takeshita resume bem a situação: Dentre os motivos que favorecem a prática de adulteração temos a abertura de mercado após quase meio século de monopólio, o que foi agravado pela redução do subsídio ao álcool hidratado e anidro e pela liberação da importação de solventes, tornando os custos destes bastante inferiores aos da gasolina. Além disso, a elevada incidência de impostos que recaem sobre a gasolina representada pelos tributos ICMS, CIDE, PIS e COFINS contribuem para a alta ocorrência deste tipo de fraude. (TAKESHITA, 2006, p.1) A possibilidade de utilização do solvente de borracha em práticas de adulteração de combustíveis, mencionada por Roberto Nogueira Ferreira chegou ao conhecimento da ANP no ano de sua criação. Sendo possível perceber duas ações da ANP direcionadas a coibir adulteração de combustíveis: a publicação da Portaria ANP n.º 73, de 20 de maio de 1998, que instituiu a anuência prévia para a importação de produtos susceptíveis de uso como combustíveis e o início dos estudos para utilização de marcadores em combustíveis no país, em 23 de junho de 1998, a Resolução de Diretoria n.º 145/1998 resolveu aprovar a elaboração do Programa para Implantação de Marcadores nos Combustíveis. O Programa para Implantação de Marcadores nos Combustíveis da ANP não logrou êxito, e, ao contrário de todos os outros países que utilizam marcadores para coibir a prática de adulteração de combustíveis marcando os próprios combustíveis, a ANP optou pela marcação de solventes passíveis de serem utilizados na sua adulteração. 14 CAPÍTULO II GASOLINA, SOLVENTES E ADULTERAÇÃO O uso de gasolina adulterada traz uma série de prejuízos que podem ser notados em várias áreas: meio ambiente, com a poluição do ar e possibilidade de chuva ácida provocada pela emissão de compostos como NOx e SOx provenientes da combustão irregular do combustível, além do aumento da produção de CO; direito do consumidor, com danos provocados a veículos e bombas injetoras de combustíveis, se traduzindo por consumo irregular, deterioração de tubos e mangueiras de borracha e diminuição do poder de sucção do diafragma dos veículos; concorrência, com posição vantajosa para adulteradores no mercado; e tributária, com a diminuição de recolhimento dos tributos relativos aos combustíveis. A gasolina, que de início era um produto indesejado da indústria de refino de petróleo, interessada na produção de querosene, se transformou na melhor opção de combustível, com o advento dos motores de combustão interna, devido às altas energia de combustão, volatilidade e compressibilidade que a caracterizam. A especificação da gasolina estabelecida pela Portaria ANP n.º 309, de 27 de dezembro de 2001, se propõe a indicar um produto adequado ao bom funcionamento do motor e não à identificação de adulterações. Análises químicas pertinentes são capazes de indicar indícios de adulteração, no entanto não são adequadas para detecção de fraudes com utilização de solventes e muito menos suas proporções de adição. A gasolina veicular é uma mistura de hidrocarbonetos voláteis, seus componentes têm faixa de destilação entre 30ºC e 220ºC à pressão atmosférica, e os solventes apresentam faixa de destilação entre 25ºC e 280ºC, pertencendo ao mesmo grupo de hidrocarbonetos, essa característica indica possibilidade de ocorrência de gasolina conforme, cuja especificação atende ao 15 estabelecido pela Portaria ANP n.º 309/2001, porém adulterada por adição de solventes. Devido à proximidade entre as faixas de destilação da gasolina e dos solventes, a única maneira de identificar gasolinas especificadas e adulteradas com precisão é a realização de análise de detecção de presença de marcador. A gasolina pode ser adulterada de duas formas: adição de álcool etílico anidro em porcentagem superior ao determinado pela ANP e adição de solventes. Neste trabalho, o único tipo de adulteração considerado será o proveniente da adição de solventes em gasolina por se relacionar diretamente à sonegação da CIDE-combustíveis. De acordo com Elaine Vosniak Takeshita, A adição de solventes seja de um novo composto, seja pelo excesso de outro já presente naturalmente, provoca mudanças nas propriedades físico-químicas da gasolina; entre elas, a curva de destilação, a pressão de vapor, e a taxa de equilíbrio vapor-líquido estão diretamente relacionadas à composição e às características químicas da mistura. Estas propriedades têm uma grande influência no controle da ignição, no aquecimento e aceleração do motor e no consumo de combustível. Alguns “sintomas” apresentados pelo carro se este for abastecido com gasolina adulterada são (WIEDMANN, 2003): • • • • • O consumo de combustível aumenta de repente e sem motivos aparentes; A performance do motor piora, principalmente em subidas; Fica difícil dar a partida pela manhã; O carro morre em pequenas paradas, como semáforos; A combustão acontece antes do devido, o carro “bate pino” (TAKESHITA, 2006, p.9) Segundo Elaine Vosniak Takeshita, os solventes mais utilizados em adulteração de gasolina são o óleo diesel, querosene, rafinados petroquímicos e solvente de borracha. Rafinados petroquímicos são resíduos de processos petroquímicos, o que faz com que tenham baixo valor de mercado e que sejam muito usados em adulteração de gasolina. 16 As condições que favorecem a utilização de solventes em adulteração de gasolina são a diferença de preço entre solventes e gasolina; a facilidade de aquisição de solventes, devido à inexistência de restrições à sua comercialização; e a alta incidência de impostos sobre a gasolina e a conseqüente restrição da margem de lucro relacionada à comercialização do produto. De acordo com Elaine Vosniak Takeshita, Tanto o querosene quanto o diesel têm temperaturas de ebulição maiores que da gasolina, ou seja, são mais pesados. A inclusão destes compostos na gasolina aumenta o consumo de combustível e reduz o desempenho do motor devido a uma atomização ineficiente, além de causar uma corrosão prematura do tanque de combustível e de componentes internos do motor devido ao acúmulo de sujeira. [..] Esta regulamentação abre uma brecha para misturas ilegais de solventes comerciais para a formulação de uma gasolina automotiva mantendo-a dentro das especificações, [...] Esse tipo de fraude encontra um obstáculo apenas com o programa de marcação de solventes da Agência Nacional do Petróleo (ANP), onde todo solvente vendido no país deve receber a adição de uma substância química [...] (TAKESHITA, 2006, p.11) 17 CAPÍTULO III AGÊNCIAS REGULADORAS – MUDANÇA DE ENTENDIMENTO DA ATUAÇÃO DO ESTADO - ANP Complexidade e o dinamismo sociais notados a partir da segunda metade do século XX, fizeram com que fosse impossível não perceber a ineficiência da atuação tradicional do Estado, traduzida pela intervenção direta na economia, de acordo com o ideal keynesiano de Estado. O entendimento de que mudanças eram necessárias se refletiu na busca por mecanismos administrativos ágeis. O Estado brasileiro forjou sua atuação intervencionista a partir do início do século XX, não só pelo controle, como por meio de investimentos em diversos setores que se materializaram na criação de grande número de empresas estatais, na aquisição de empresas privadas em dificuldades financeiras e no desenvolvimento de programas de bem estar social. A década de 1980 trouxe a crise do modelo intervencionista/desenvolvimentista de Estado adotado pelo Brasil desde a década de 1930, com o entendimento de que este modelo de atuação do Estado levaria à ineficiência do sistema econômico. De acordo com Ivanete Boschetti, Vivemos um período de reestruturação do Estado e desregulamentação das relações econômicas e sociais em uma perspectiva neoliberal, que submete o Estado nacional aos ditames do capital internacional e dos organismos internacionais como ONU, Banco Mundial, FMI, OMC. Trata-se de uma lógica de “contrareformas” que visa a atender as demandas do capital, e possibilitar aos países do G8 controlar todas as formas de produção humana (ANDES, 2007). As contra-reformas, iniciadas após a Constituição Federal de 1988, atingem e remodelam o Estado em três áreas estratégicas. A primeira corresponde às funções típicas do Estado (segurança nacional, emissão de moeda, corpo diplomático e fiscalização). A segunda atinge as políticas públicas (saúde, cultura, ciência e tecnologia, educação, trabalho e previdência). E a terceira abrange o setor de serviços (empresas estatais estratégicos, como energia, mineração, telecomunicações, recursos hídricos, saneamento 18 e outros) (ANDES, 2007). São contra reformas que re(estruturam) o papel do estado e do mercado na regulação das relações econômicas e sociais com a perspectiva de limitar e restringir o papel regulador e produtor do Estado, nos moldes keynesianos, e fortalecer a onipotência do mercado e da mercantilização das relações sociais. [...] As reformas neoliberais das políticas sociais estão determinadas ou fundamentadas pela política econômica regressiva implementada no Brasil desde a década de 1990. O capitalismo financeirizado favorece o capital financeiro em detrimento do capital produtivo, visto que hoje, uma das maiores taxas de juro do mundo garante aos bancos as maiores taxas de lucro, o que significa dinheiro gerando dinheiro sem nada produzir. No Brasil, houve um elevado aumento da carga tributária, que saltou de 29% em 1995 para 37% em 2005 (Salvador, 2007). [...] Mas a política tributária é regressiva, e onera mais o trabalho do que o capital, pois apenas 4% incide sobre o patrimônio, enquanto 29% recaem sobre a renda e 67% sobre o consumo. [...] Essa política macro-econômica, orientada pelos acordos com o FMI, tem implicações negativas nas políticas sociais e nas condições de vida, gerando desemprego, violência e aumentando as desigualdades sociais e, ao mesmo tempo, estabelecendo novas orientações para as políticas sociais, que se revelam incapazes de responder minimamente aos determinantes estruturais da questão social. (BOSCHETTI, 2007, p. 1 e 2). A solução escolhida para alcançar a agilidade necessária para a administração pública foi o modelo que prioriza a descentralização material, que se traduziu pela criação de agências reguladoras a partir da década de 1990. Ao tratar deste tema, Alexandre Santos de Aragão cita Dieter Freiburghaus: Os subsistemas, de uma parte, se tornam mais fortes através do aumento da sua autonomia, da sua capacidade de autogestão; de outra parte, dependem cada vez mais uns dos outros para poderem coordenar as suas atividades. Esta coordenação se faz pela comunicação, pela troca de informações. Tal comunicação intersistêmica é tão complicada e difícil que não há como ser assegurada mediante uma planificação tradicional, mas apenas através de processos interativos e de processos de aprendizagem. O Estado, enquanto primus inter pares dos subsistemas da sociedade moderna, é intensamente implicado nesta coordenação. Ele é o responsável em última instância pela integração da sociedade, o que significa que hoje ele é, sobretudo, o responsável pelo bom funcionamento desta engrenagem. (FREIBURGHEUS, 1991 apud ARAGÃO, 2003, p.203) 19 Para o bom funcionamento da engrenagem, nada mais lógico do que a especialização, a tecnicização, diferenciação e autonomização interna do Estado. Além disso, como lembra Alexandre Santos de Aragão, desta vez citando Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ...o princípio da eficiência “afasta qualquer burocratização de entidade ou de órgão público além do mínimo indispensável para o cumprimento das suas tarefas de rotina, ou seja, o desempenho das atividades-meio. De resto, todas as tarefas devem ser necessariamente orientadas pela atividade-fim, ou seja, pela finalidade. (NETO, 2000, apud ARAGÃO, 2003, p. 209) Conclui Alexandre Santos de Aragão, a Administração Pública contemporânea, para cumprir as suas funções e atender aos valores e princípios constitucionais a ela impostos, deve atuar, ao mesmo tempo, coordenada e descentralizadamente. (ARAGÃO, 2003, p. 211) Esse é o contexto da criação das agências reguladoras, especialmente das que se relacionam com setores onde ocorreram desestatizações, após a percepção de que o Estado não poderia deixar a gestão de atividades de interesse público à mercê dos caprichos do mercado, apartada de seu poder regulatório. Procurou-se, todavia, fazer com que a regulação de tais atividades não ficasse sujeita à variação dos humores políticopartidários, dotando-se as entidades dela incumbidas de uma especial autonomia em relação ao Poder Executivo central, autonomia esta cuja principal nota é a nomeação dos seus dirigentes por mandato determinado, durante o qual é vedada a exoneração ad nutum. [...] Como conseqüência necessária, tais entidades foram dotadas de amplos poderes, notadamente de natureza normativa, vez que, de outra forma, não poderiam desempenhar satisfatoriamente (agilidade, informalidade, constante adaptação à realidade cambiante, etc.) suas atribuições, o que exige ainda um corpo de titulares revestidos das prerrogativas necessárias à manutenção da sua impermeabilidade em face dos interesses políticos transitórios e dos interesses econômicos regulados. (ARAGÃO, 2003, p.217-8) Como características das agências reguladoras há que se citar a autonomia advinda pela vedação de exoneração ad nutum de seus dirigentes; o poder de editar normas; o desempenho de atividades de fiscalização dos agentes regulados; o conseqüente poder de sanção; competência para decidir administrativamente os conflitos ocorridos dentro de seus subsetores; a opção 20 pela concensualidade para alcançar objetivos; e necessidade de seus atos demandarem conhecimentos técnicos para serem aplicados e fiscalizados. Com relação aos servidores das agências reguladoras, houve previsão legal de que as relações de trabalho fossem de emprego público, no entanto este fato motivou a ADIn 2.310-1DF e o parecer do Ministro Marco Aurélio indicou que “...a natureza da atividade desempenhada pelas agências reguladoras demandava regime de cargo público e se incompatibilizava com o de emprego”. (MELLO, 2007. p.170) Este entendimento foi recepcionado pela Lei n.º 10.871, de 20 de maio de 2004, que dispôs sobre a criação dos cargos efetivos das agências reguladoras. Atualmente existem dez agências reguladoras no Brasil: Agência Nacional de Águas (ANA); Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC); Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL); Agência Nacional do Cinema (ANCINE); Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL); Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP); Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ); Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT); e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) foi criada pela Lei n.º 9.478, de 6 de agosto de 1997: Art. 7º Fica instituída a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, entidade integrante da Administração Federal Indireta, submetida ao regime autárquico especial, como órgão regulador da indústria do petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis, vinculada ao Ministério de Minas e Energia. O artigo 8º, da Lei n. 9.478/1997, estabelece as finalidades da ANP: regular, contratar e fiscalizar atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, gás natural e biocombustíveis, o que se traduz por um universo vasto que vai desde proteger o interesse dos consumidores quanto a preço, qualidade e oferta de produtos, a especificar a qualidade de petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis, passando por promover estudos para delimitação de blocos para concessão de atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural; regular serviços de geofísica e geologia relacionados à prospecção de petróleo; promover 21 licitações de blocos; autorizar atividades de refino, processamento, transporte, importação e exportação; cálculo de tarifas e regras para utilização de dutos; fiscalizar e aplicar sanções administrativas e pecuniárias a atividades da indústria do petróleo e gás natural; instruir processos relacionados à declaração de utilidade pública de áreas necessárias área exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural, construção de refinarias, dutos e terminais; fazer cumprir boas práticas para utilização de petróleo, gás natural e derivados e biocombustíveis para preservação do meio ambiente; estimular pesquisa e adoção de novas tecnologias em exploração, produção, transporte, refino e processamento de petróleo, gás natural e seus derivados; consolidar informações sobre reservas nacionais de petróleo e gás natural; fiscalizar o Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis e o cumprimento do Plano Anual de Estoques Estratégicos de Combustíveis; apoiar o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) em conjunto com outros órgãos; regular, autorizar e fiscalizar atividades relacionadas com o abastecimento de combustíveis diretamente, ou mediante convênios com outros órgãos; regular, autorizar e fiscalizar as atividades relacionadas à produção, importação, exportação, armazenagem, estocagem, distribuição, revenda e comercialização de biodiesel também diretamente ou mediante convênios com outros órgãos; e exigir que os agentes regulados lhe enviem informações sobre operações de produção, importação, exportação, refino, beneficiamento, tratamento, processamento, transporte, transferência, armazenagem, estocagem, distribuição, revenda, destinação e comercialização de produtos sujeitos a sua regulação. Além disso, a Lei n.º 9.478/1997, deixa explícita a obrigação da ANP para com a preservação da ordem econômica e importância da garantia do abastecimento nacional de combustíveis: Art. 10. Quando, no exercício de suas atribuições, a ANP tomar conhecimento de fato que possa configurar indício de infração da ordem econômica, deverá comunicá-lo imediatamente ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE e à Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, para que estes adotem as providências cabíveis, no âmbito da legislação pertinente. 22 Parágrafo único. Independentemente da comunicação prevista no caput deste artigo, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica CADE notificará a ANP do teor da decisão que aplicar sanção por infração da ordem econômica cometida por empresas ou pessoas físicas no exercício de atividades relacionadas com o abastecimento nacional de combustíveis, no prazo máximo de 24 horas após a publicação do respectivo acórdão, para que esta adote as providências legais de sua alçada. O órgão diretivo da ANP, por se tratar de agência reguladora, é formado por uma diretoria colegiada composta por diretor-geral e quatro diretores, todos nomeados pelo Presidente da República, após terem sido sabatinados publicamente pelo Senado Federal e aprovados por voto secreto. Os mandatos dos membros da diretoria têm duração de quatro anos e devem ser não coincidentes. A recondução de diretores é permitida pela Lei n.º 9.478/1997. 23 CAPÍTULO IV CIDE-COMBUSTÍVEIS A Cide-Combustíveis é uma contribuição de intervenção no domínio econômico prevista pelo artigo 149 e pelo § 4º, do artigo 177, da Constituição Federal e instituída pela Lei n.º 10.336, de 12 de dezembro de 2001: Art. 1º Fica instituída a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool etílico combustível (Cide), a que se refere os arts. 149 e 177 da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional n.º 33, de 11 de dezembro de 2001. O Código Tributário Nacional, Lei n.º 5.172, de 25 de outubro de 1966, define tributo como: Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. A Constituição Federal lista, em seu artigo 145, os tributos que podem ser instituídos pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios: impostos, taxas e contribuições de melhoria e trata de contribuições no artigo 149: Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, e intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo. A Constituição Federal não define tributo, a definição de tributo está contida no artigo terceiro do Código Tributário Nacional, citado acima. De acordo com Ricardo Lobo Torres: Sucede que tal definição se faz apenas pelo gênero próximo, sem atingir as diferenças específicas, donde se conclui que todos os elementos nela contidos são essenciais à noção de tributo, mas se adaptam também a outras categorias de ingressos públicos (preços públicos, custas, contribuições sociais). De modo que as diferenciais características devem ser buscadas na própria Constituição, daí resultando que o tributo: é um dever fundamental, ao lado dos deveres militares e do serviço do júri: limita-se pelos direitos fundamentais, através das imunidades e das proibições de privilégio e 24 de confisco previstos no art. 150, posto que nasce no espaço aberto pela autolimitação da liberdade: obedece aos princípios da capacidade contributiva (art. 145, § 1º) ou do custo-benefício (art. 145, II e III) – aquele informa principalmente os impostos e este, as taxas e as contribuições de melhoria – sendo-lhes a rigor estranhos princípios como os da solidariedade social ou econômica; destina-se a suportar os gastos essenciais do Estado ou as despesas relacionadas com as atividades específicas do Estado de Direito, vedado o seu emprego para suprir necessidade ou cobrir déficit de empresas, fundações ou fundos (art. 167, VII, CF) e excluída do seu conceito a finalidade puramente extrafiscal; emana do poder específico de legislar sobre tributo no marco do poder distribuído pela Constituição (arts. 145, 148, 149, 150, I e § 6º, 153, 154, 155, e 156), inconfundível com o poder genérico de legislar (art. 5º, II e 48). Todas essas diferenças extraídas da CF são essenciais ao conceito de tributo, não se podendo como tal considerar o ingresso que deles careça; os elementos constantes da definição do art. 3º do CTN, constitucionalizada, são igualmente essenciais ao tributo, mas inespecíficos, de modo que nem todo ingresso (= preço público, custas e emolumentos) que os incorpore terá verdadeiramente natureza tributária. Sucede que o art. 149 da CF estendeu demasiadamente a noção de tributo, ao nela incluir as contribuições econômicas, sociais, sindicais e profissionais, o que torna necessário que se considerem alguns elementos que estariam melhor fora do sistema tributário, como sejam o princípio da solidariedade social ou econômica e a finalidade não essencialmente pública; mas, desde que o constituinte afinado com as idéias estatizantes e de ampliação do papel do Estado, colocou topograficamente aquelas contribuições especiais no bojo do sistema fiscal, não resta outra solução ao intérprete que dilargar o Estado Fiscal, embora o torne obeso e ineficiente. Podemos sintetizar assim a definição: Tributo é o dever fundamental, consistente em prestação pecuniária, que, limitado pelas liberdades fundamentais, sob a diretiva dos princípios constitucionais da capacidade contributiva, do custo/benefício ou da solidariedade do grupo e com a finalidade principal ou acessória de obtenção de receita para as necessidades públicas ou para atividades protegidas pelo Estado, é exigido de quem tenha realizado o fato descrito em lei elaborada de acordo com a competência específica outorgada pela Constituição. (TORRES, 1999, p. 320-1) De acordo com Hugo de Brito Machado, existem quatro espécies de tributo no sistema tributário brasileiro: impostos, taxas, contribuições de melhoria e contribuições sociais. A Cide-combustíveis é uma das contribuições sociais. As contribuições de intervenção no domínio econômico caracterizam-se pela finalidade interventiva. A própria contribuição, em si mesma, há de ser um instrumento de intervenção, vale dizer, há de ter função tipicamente extrafiscal, função de intervenção no domínio econômico, e os recursos com a mesma arrecadados devem ser destinados especificamente ao financiamento da atividade interventiva. São elementos essenciais para a caracterização de uma contribuição de intervenção no domínio econômico tanto o efeito 25 produzido pela própria contribuição, que por si mesma caracteriza uma intervenção, como o destino do produto de sua arrecadação ao financiamento da atividade estatal interventiva. (MACHADO, 2009, p. 65) As contribuições de intervenção no domínio econômico são ditas extrafiscais porque “....vinculam-se ao órgão do Poder Público incumbido de desenvolver ações intervencionistas, ou de administrar fundos decorrentes da intervenção estatal na economia.” (MACHADO, 2009, p.415). Este tipo de contribuição só pode ter os recursos que arrecadou aplicados na intervenção econômica que os gerou. A intervenção não consubstancia atividade normal, ordinária, permanente, do Estado. Ela é atividade excepcional, e por isto mesmo temporária, tendente a corrigir distorções em setores da atividade econômica. Assim, a Lei que institui uma contribuição de intervenção no domínio econômico há de definir sua hipótese de incidência no estreito campo da atividade econômica na qual vai atuar como instrumento de intervenção estatal. E há de indicar expressamente a destinação dos recursos a serem arrecadados, que evidentemente não pode ultrapassar o âmbito da atividade interventiva. (MACHADO, 2009, p.416-7) De fato, após a leitura da Lei n.º 10.336/2001, obtém-se informação logo no artigo primeiro que os recursos arrecadados com a aplicação desta Lei se destinam a pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural, seus derivados e derivados de petróleo, além de financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria de petróleo e gás e do financiamento de programas de infra-estrutura de transportes. Destinação coerente com a incidência da Cide-combustíveis, que é a importação e a comercialização de petróleo, seus derivados, gás natural, seus derivados, e álcool etílico combustível. De acordo com Ricardo Pinheiro, secretário adjunto da Receita Federal, citado por Michelle Gonçalves Evaristo, a Cide-combustíveis foi criada para substituir a cobrança da Parcela de Preço Específica (PPE), instituída pela Portaria n.° 3/1998 pelo Ministério de Minas e Energia e pelo Ministério da Fazenda, que era recolhida pela Petrobras para suprir déficits da contapetróleo (instituída pela Lei n.º 4.452, de 5 de novembro de 1964, e extinta pela Lei n.º 9.478/1997), utilizada para cobrir diferenças na taxa de câmbio. 26 Essa substituição garantiria que a carga tributária incidente sobre o combustível nacional e importado seria idêntica. Michelle Gonçalves Evaristo resume: ....a CIDE representou uma tentativa do estado de neutralizar os preços dos combustíveis, diante das oscilações do dólar e dos conflitos ocorridos no exterior. Enfim, para que o mercado petrolífero não continuasse à mercê de fatos externos, criou-se a “CIDECombustíveis”. Além disso, foi criada com o escopo de incentivar programas de preservação e recuperação do meio ambiente, bem como projetos de desenvolvimento da infra-estrutura de transportes, ambos relacionados com a atividade da indústria. (EVARISTO, 2004, p.25) De acordo com a Lei n.º 10.336/2001, os contribuintes da Cidecombustíveis são o produtor, o formulador e o importador de combustíveis líquidos. O fato gerador da Cide-combustíveis é a importação e a comercialização de gasolinas e suas correntes; diesel e suas correntes; querosene de aviação e outros querosenes; óleos combustíveis; gás liquefeito de petróleo, inclusive derivado de gás natural e de nafta; e álcool etílico combustível. No parágrafo primeiro, do artigo terceiro da Lei n.º 10.336/2001 foi estabelecido que ...consideram-se correntes os hidrocarbonetos líquidos derivados de petróleo e os hidrocarbonetos líquidos derivados de gás natural utilizados em mistura mecânica para a produção de gasolinas ou de diesel, de conformidade com as normas estabelecidas pela ANP A base de cálculo da Cide-combustíveis pode ser o metro cúbico, no caso de gasolina, óleo diesel, querosene de aviação, outros querosenes e álcool etílico combustível ou a tonelada, no caso de óleos combustíveis com alto ou baixo teor de enxofre e gás liquefeito de petróleo, inclusive quando derivado de gás natural e de nafta. Os valores das alíquotas específicas da CIDE-combustíveis são estabelecidos por meio de leis e decretos que alteram o que foi fixado inicialmente pela Lei n.º 10.336/2001. Atualmente estão reduzidas a zero as alíquotas aplicáveis a querosene de aviação e demais querosenes; óleos combustíveis com baixo e alto teor de enxofre; gás liquefeito de petróleo, inclusive o que derivar de gás natural e de 27 nafta; álcool etílico combustível; e correntes de hidrocarbonetos líquidos não destinados à formulação de gasolina ou diesel a saber: nafta petroquímica; rafinado de reforma, benzina industrial, pentano, heptano, rafinado de pirólise e naftas; reformado pesado; óleos de petróleo ou de minerais betuminosos, aguarrás mineral, hexano comercial, hexano grau polímero, iso-parafinas, parafinas normais e óleo comercial (signal oil); terfenilas policloradas e difenilas polibromadas; hidrocarbonetos acíclicos saturados; hidrocarbonetos acíclicos não saturados (exceto etileno, propeno, buteno e seus isômeros, buta-1, 3dieno e isopreno); cicloexano; hidrocarbonetos ciclânicos, ciclênicos ou cicloterpênicos, exceto cicloexano e limoneno; benzeno; tolueno; orto-xileno; meta-xileno; para-xileno; xilenos mistos de petróleo; etilbenzeno; cumeno; naftaleno; antraceno; hidrocarbonetos cíclicos, exceto os hidrocarbonetos ciclânicos, ciclênicos ou cicloterpênicos, benzeno, tolueno, xilenos, estireno, etilbenzeno, cumeno, difenila, naftaleno, antraceno e alfa‐metilestireno; C9 aromático, C9 de pirólise hidrogenada, solvente C6C9 hidrogenado, corrente C6C8, solventes para borracha e diluentes alquibenzenos, misturas de alquinaftalenos. de tintas; misturas de Além disso, operações com normal-parafina, não destinada à formulação de gasolina ou diesel, estão fora do campo de incidência da Cide-combustíveis. A maioria dos produtos indicados como passíveis de alíquota zero, é marcada nos termos da Portaria ANP n.º 274, de 1º de novembro de 2001, a exceção fica por conta do querosene de aviação, de acordo com o Despacho do Diretor-Geral da ANP n.º 229/2003. A marcação compulsória e a dispensa do pagamento da Cidecombustíveis estão previstas nos parágrafos terceiro e quarto, do artigo quinto, da Lei n.º 10.336/2001, após esclarecimentos sobre a paridade das alíquotas incidentes sobre hidrocarbonetos destinados ou não à formulação de gasolina e de óleo diesel: § 1º Aplicam-se às correntes de hidrocarbonetos líquidos que, pelas suas características físico-químicas, possam ser utilizadas exclusivamente para a formulação de diesel, as mesmas alíquotas específicas fixadas para o produto. 28 § 2º Aplicam-se às correntes de hidrocarbonetos líquidos as mesmas alíquotas específicas fixadas para gasolinas. § 3º O Poder Executivo poderá dispensar o pagamento da Cide incidente sobre as correntes de hidrocarbonetos líquidos não destinados à formulação de gasolina ou diesel, nos termos e condições que estabelecer, inclusive de registro especial do produtor, formulador, importador e adquirente. § 4º Os hidrocarbonetos líquidos de que trata o § 3º serão identificados mediante marcação, nos termos e condições estabelecidos pela ANP. No contexto da Lei n.º 10.336/2001, a marcação surge como ação coadjuvante à tributação: sob os produtos marcados não incide a Cidecombustíveis, no entanto, há ônus para o produtor, o formulador e o importador de hidrocarbonetos não destinados à formulação de gasolina ou diesel, uma vez que estes precisam arcar com os custos do marcador e do serviço de sua adição aos produtos em questão. Há ônus também para a ANP, que estabelece os termos e condições da marcação e ficou com a responsabilidade de fiscalizar a marcação dos produtos e realizar as análises químicas de detecção de presença de marcador. A Lei n.º 10.336/2001 é omissa com relação ao ônus da marcação e não há previsão de destinação do produto da arrecadação da Cide-combustíveis para arcar com os custos inerentes à marcação: aquisição de marcador; serviço de adição do marcador nos hidrocarbonetos líquidos não destinados à formulação de gasolina ou óleo diesel; análises químicas para detecção de presença de marcador; e fiscalização dos produtos marcados. 29 CAPÍTULO V MARCAÇÃO, SONEGAÇÃO E PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR A marcação é um procedimento químico que consiste no acréscimo de uma molécula a um produto, para que a marcação seja eficaz, esta molécula não pode alterar as condições iniciais do produto, nem ser dele retirada. A presença da molécula deve ser passível de verificação por meio de análises químicas. Entendido o princípio da marcação, é necessário esclarecer que qualquer produto pode ser marcado e que a marcação pode ser utilizada com duas finalidades, ambas ligadas à qualidade do produto marcado: garantir que o produto marcado é original, ou identificar fraudes. Em ambos os casos, é imprescindível que a fórmula do marcador seja confidencial, caso contrário seria possível a adulteradores, não só produzir o marcador desejado e adicioná-lo de forma indevida, como retirá-lo do produto. A marcação de Produtos de Marcação Compulsória (PMC) determinada pela Portaria ANP n.º 274, de 1º de novembro de 2001, e pela Lei n.º 10.336/2001 consiste na adição de marcador aos PMC, no momento de sua internação no país, no caso de PMC importados, ou quando do abastecimento de caminhões-tanque, no caso de PMC nacionais. De acordo com o inciso I, do artigo segundo, da Resolução ANP n.º 13, de 9 de junho de 2009, PMC são: hidrocarbonetos derivados de frações resultantes do processamento de petróleo, de gás natural, de frações de indústrias petroquímicas, passíveis de serem utilizados como dissolventes de substâncias sólidas e/ou líquidas, puros ou em mistura, cuja faixa de destilação tenha seu ponto inicial de ebulição superior a 25ºC e ponto final de ebulição inferior a 280ºC, com exceção de qualquer tipo de gasolina, querosene de aviação ou óleo diesel especificados pela ANP. 30 A mesma Resolução define marcador, no inciso II, de seu artigo segundo, como: substância identificável, qualitativa e quantitativamente, e que, após adicionada aos PMC, resulte em concentração máxima de 1 ppm para cada método analítico aprovado pela ANP, e que não interfira nas características físico-químicas e no grau de segurança para manuseio e uso dos PMC, considerando-se marcador único ou conjunto de marcadores de um mesmo fornecedor. A utilização de marcadores para coibir adulteração de combustíveis e consequentemente sonegação de impostos é prática comum em países com alta carga tributária incidente sobre combustíveis. No entanto, com exceção do Brasil, todos os países que fizeram esta opção, determinaram a marcação dos combustíveis e não dos solventes, ou PMC, como determina a Portaria ANP n.º 274/2001, provavelmente para evitar questionamentos sobre a interferência do marcador na qualidade dos produtos que utilizam solventes como matériaprima, ou por estes não serem utilizados na adulteração de combustíveis. De acordo com Pietro Mendes, é possível classificar as fraudes que são combatidas com adição de marcadores a combustíveis da seguinte maneira: “simulação de exportação; diferenciação tributária em função da destinação; contrabando de combustíveis e remoção do marcador”. (MENDES, 2008, p.56). No Quênia, a exportação de combustíveis não enseja tributação ao contrário dos combustíveis comercializados internamente, a atuação dos sonegadores se dá por meio de simulação de exportação, com desvio do produto para o mercado interno. O governo do Quênia estabeleceu, em junho de 1999, obrigação de adição marcador biocodificado para combustíveis, independente de sua destinação. ...antes da implementação do marcador químico, 10% dos postos estavam recebendo combustíveis ilegais e, nesse sentido, colocar o sistema no lugar reduziu as transações ilícitas, recuperando US$ 30.000.000,00 (trinta milhões de dólares) para o governo queniano... (MENDES, 2008, p.6). A Austrália é um exemplo da situação diferenciação tributária em função da destinação: as alíquotas dos impostos incidentes sobre os combustíveis variam de acordo com a previsão de utilização do produto, chegando a zero 31 quando de sua não utilização como combustível. Esta situação favoreceu sonegações, que foram identificadas pelo governo da Austrália que optou, em 1998, pela marcação dos combustíveis não destinados a transporte. A Índia oferece subsídio para o querosene consumido por famílias identificadas como abaixo da linha de pobreza, este subsídio ofereceu oportunidade para que sonegadores utilizassem querosene na adulteração de óleo diesel e gasolina. Para coibir a adulteração o governo da Índia determinou a marcação do querosene subsidiado com corante permanente especial. Como exemplo de situação de contrabando de combustíveis combatida com marcadores, pode-se citar o caso da Turquia. Na Turquia, os derivados de petróleo são adulterados com produtos contrabandeados do Iraque, o atrativo para a ação dos adulteradores é a forte tributação turca sobre derivados de petróleo. Na Turquia “O marcador químico é adicionado a todos os produtos derivados de petróleo nas refinarias, capacitando o monitoramento e a determinação da origem de todo produto derivado de petróleo” (MENDES, 2008, p.7) Outro exemplo é a experiência da Guiana que instituiu a marcação após a adoção de legislação rigorosa contra contrabando, transporte, comercialização e estocagem de combustível ilegal. A indústria de combustível ilegal da Guiana gerou sanções governamentais consistentes, incluindo a criação de forças de operações especiais para interromper o contrabando de combustíveis por dutos, um da Venezuela no Oeste do País e outro do Suriname no Leste. (MENDES, 2008, p.8) Os governos de Uganda e da Tanzânia também optaram pela utilização de marcadores em função de contrabando de combustíveis. Uganda marca o combustível que produz e a Tanzânia o combustível importado. A Irlanda do Norte pode ser citada não só como exemplo de contrabando de combustíveis, mas também como de remoção de marcador. O preço dos combustíveis na Irlanda é menor do que na Irlanda do Norte, A taxação de combustíveis na República da Irlanda é muito menor [...] O imposto do diesel e da gasolina livre de chumbo na Irlanda do Norte, como no resto da Grã-Bretanha é £ 0,4582 por litro, enquanto 32 que, na República da Irlanda, é somente £ 0,1961 por litro para o diesel e £ 0,2744 por litro para gasolina livre de chumbo. Os gráficos do governo da Irlanda do Norte mostram que, desde 1994, o volume de gasolina legalmente vendida na província caiu 53,18% apesar do aumento de 22,62% de veículos nas estradas. (MENDES, 2008, p.8) Na Irlanda do Norte, os adulteradores retiram o marcador dos combustíveis utilizando ácido sulfúrico. Retornando à experiência brasileira, como foi visto no capítulo II deste trabalho, a proximidade das faixas de destilação da gasolina e dos solventes e o fato de serem hidrocarbonetos líquidos derivados de petróleo torna possível a ocorrência de gasolina conforme, cuja especificação atende ao estabelecido pela Portaria ANP n.º 309/2001, mas adulterada por adição de solventes e consequentemente com indícios de sonegação de Cide-combustíveis e outros tributos. Como a Lei n.º 10.336/2001, que instituiu a Cide-combustíveis indica a necessidade de marcação como condição para que hidrocarbonetos derivados de petróleo não destinados à produção de gasolina ou diesel possam ser comercializados ou internados no País, sem o recolhimento do tributo, a Cidecombustíveis será o único tributo considerado neste trabalho. Antes mesmo da instituição da Cide-combustíveis, a ANP verificou a utilização de solventes em adulteração de gasolina (cuja comercialização é fato gerador de outros tributos) e iniciou estudos no sentido de determinar a utilização de marcadores inicialmente em combustíveis, como pode ser apreendido após observação da cronologia dos atos da ANP relacionados com marcação: 1998 • Resolução de Diretoria n.º 145/1998, de 23 de junho de 1998 – aprovou a elaboração de Programa para Implantação de Marcadores nos Combustíveis; • Portaria ANP n.º 171, de 27 de dezembro de 1998 – estabeleceu critérios para controle de qualidade de petróleo e derivados e requisitos de cadastramento para firmas inspetoras; 33 1999 • Resolução de Diretoria n.º 034/1999, de 27 de janeiro de 1999 – constituiu grupo de trabalho para analisar a oportunidade para implantação do controle de qualidade da gasolina e do óleo diesel, mediante a utilização de sistemas de marcação; • Resolução de Diretoria n.º 562/1999, de 30 de novembro de 1999 – aprovou a implementação do Programa de Marcadores de Efluentes Petroquímicos passíveis de serem usados na adulteração de combustíveis; 2000 • Reunião de Diretoria n.º 118/2000, de 16 de maio de 2000 – solicitou informações complementares sobre o programa de marcadores de efluentes petroquímicos; • Resolução de Diretoria n.º 478/2000, de 9 de agosto de 2000 – aprovou a realização de teste piloto de adição de marcadores em solventes petroquímicos; 2001 • Resolução de Diretoria n.º 619/2001, de 22 de agosto de 2001 – autorizou a contratação de empresa inspetora, na modalidade consulta, para adicionar marcador em solventes; • Resolução de Diretoria n.º 832/2001, de 30 de outubro de 2001 – aprovou portaria que estabelece a obrigatoriedade de adição de marcador a solventes e derivados de petróleo e proíbe presença de marcador em gasolina; • Portaria ANP n.º 274, de 1º de novembro de 2001 – estabeleceu a obrigatoriedade de marcação de solventes; e • Lei n.º 10.336, de 19 de dezembro de 2001 – instituiu a CideCombustíveis Não foi possível localizar informação sobre os motivos que levaram a ANP a optar por marcar os produtos utilizados na adulteração da gasolina em 34 lugar do próprio combustível. No entanto, a opção feita pela ANP oferece oportunidade para determinar, de forma inquestionável, a intenção de adulterar, uma vez que a detecção da presença de marcador na gasolina implica necessariamente na mistura indevida e intencional de PMC em gasolina. De acordo com a Portaria ANP n.º 274/2001, a marcação de PMC é realizada da seguinte maneira: • da adição: os PMC produzidos no Brasil, ou importados devem ser marcados em pontos de marcação; a adição do marcador aos PMC é responsabilidade do produtor e do importador, inclusive quando os distribuidores realizarem este serviço; a adição de marcador aos PMC é realizada por firmas inspetoras, exceto quando a ANP atribuir esta obrigação a distribuidores; e • da detecção: “A identificação da presença do marcador na gasolina, pelo método estabelecido pela ANP, em qualquer concentração, caracterizará a utilização indevida do PMC” (Portaria ANP n.º 274/2001, artigo 4º). A utilização indevida de PMC caracteriza em termos tributários o não recolhimento da Cide-combustíveis e, em termos de qualidade, indicativo do estado de vulnerabilidade do consumidor que “...não possui condições técnicas de aferir [...] a qualidade do produto que está adquirindo” (BRITO, 2004, p.33) e acaba sendo prejudicado após aquisição de produto fora de especificação. “Em se tratando de adulteração de combustíveis, está-se diante de um vício de qualidade por inadequação.” (BRITO, 2004, p.56) A determinação de marcação de PMC estabelecida pela ANP, com base nos parágrafos terceiro e quarto, do artigo quinto, da Lei n.º 10.336/2001, cujas finalidades são favorecer o combate a adulteração de gasolina e a sonegação da Cide-combustíveis, foi considerada um ônus a ser suportado pelos produtores e importadores de PMC. O direito fundamental assegurado pelo inciso XXXII, do artigo quinto, da Constituição Federal do Brasil, de proteção ao consumidor e o dever de 35 combate à sonegação de tributos geraram uma restrição ao princípio fundamental da livre iniciativa dos agentes econômicos deste setor, previsto pelo inciso IV, do artigo primeiro, da Carta Magna. A teoria dos princípios é ideal para avaliar a legitimidade desta restrição, posto que o conflito entre princípios na ordem jurídica não pode levar à destruição de alguns deles, uma vez que a Constituição Federal se apresenta como uma “unidade axiológico-normativa” como ensina J.J.Gomes Canotilho. (CANOTILHO, 2002, p.1166) A contradição principiológica é reflexo de desarmonias que surgem numa ordem jurídica pelo fato da sua constituição ser influenciada por idéias fundamentais diferentes, entre as quais pode se estabelecer conflito. A ponderação de interesses consiste no método utilizado para a resolução destes conflitos, caracterizando-se ...pela sua preocupação com a análise do caso concreto em que eclodiu o conflito, pois as variáveis fáticas presentes no problema enfrentado afiguram-se determinantes para a atribuição do “peso” específico a cada princípio em confronto, sendo, por consequência, essenciais à definição do resultado da ponderação (SARMENTO, 2000, p.97) Seguindo Humberto Ávila, a concordância prática é a finalidade que deve direcionar a ponderação de interesses, Como existe uma relação de tensão entre os princípios e as regras constitucionais, especialmente entre aqueles que protegem os cidadãos e aqueles que atribuem poderes ao Estado, deve ser buscado um equilíbrio entre eles. (ÁVILA, 2005, p.96) ficando excluída pelo postulado da proibição do excesso, a restrição excessiva aos direitos fundamentais. Estes preceitos foram considerados quando das discussões realizadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instituída pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo: Em várias consultas e correspondências com os órgãos responsáveis pelo setor, a CPI dos Combustíveis tem defendido de maneira veemente a urgência na criação dos marcadores na cadeia petroquímica, que são traços químicos que passam a acompanhar o produto sem que se altere a característica do produto para qual foi criada. 36 O custo para a implementação é irrisório, e pode ser facilmente ser absorvido pelo empresário que usa o produto sem repasse ao consumidor. (SÃO PAULO, 2002) 37 CONCLUSÃO É necessário apreciar dois olhares sobre a marcação de PMC realizada no Brasil: a questão de sua hibridez qualidade-tributação e o ônus de sua realização. Sobre o primeiro ponto, não pode ser objeto de dúvida que a marcação dos PMC não visa garantir a sua própria qualidade, uma vez que as Portarias ANP n.º 274/2001 e 309/2001 são claras ao determinar que a comercialização de gasolina em cuja amostra tenha sido detectada presença de marcador caracteriza infração à regulação da ANP: Portaria ANP n.º 309/2001, artigo 10: Fica vedada a comercialização das gasolinas automotivas, definidas no art. 2º desta Portaria, que não se enquadrem nas especificações do Regulamento Técnico ou em que sejam identificados Marcadores regulamentados pela Portaria ANP n.º 274, de 1º de novembro de 2001. Portaria ANP n.º 274/2001, artigo 4º: “A identificação da presença de marcador na gasolina, pelo método estabelecido pela ANP, em qualquer concentração, caracterizará a utilização indevida do PMC”. Trata-se, portanto, de medida ligada à qualidade de produto alvo da atuação freqüente de adulteradores organizados que enseja ações repressivas e entendida como pertinente e urgente pela CPI dos combustíveis instituída pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo que constatou Nas oitivas ficou claro que a ANP é fraca em equipe de fiscalização, e frágil na sua legislação de penalidades; que abre caminho a incontáveis recursos facilmente contestáveis, e que a maioria das autuações não produz o efeito desejado. (SÃO PAULO, 2002.) e que entendeu a marcação como medida cabível para coibir a adulteração de combustíveis: A CPI dos Combustíveis tem priorizado o debate do uso de marcadores na cadeia petroquímica, informando que esta medida deve ser o norte das primeiras atitudes a serem tomadas. 38 Em várias consultas e correspondências com os órgãos responsáveis pelo setor, a CPI dos Combustíveis tem defendido de maneira veemente a urgência na criação dos marcadores na cadeia petroquímica, que são traços químicos que passam a acompanhar o produto sem que se altere a característica do produto para qual foi criada. O custo para a implementação é irrisório, e pode ser facilmente ser absorvido pelo empresário que usa o produto sem repasse ao consumidor. A ANP, ciente desta prioridade, adotou o uso de marcadores na fabricação e venda de solventes, base reinarias ou na importação, editando a portaria 274 de 1/10/2001. (SÃO PAULO, 2002) No entanto, a infração à regulação da ANP configurada pela adulteração de gasolina com a utilização de solventes interessa aos sonegadores, que evitam os tributos incidentes sobre gasolina, além de adquirir produtos mais baratos que os hidrocarbonetos derivados de petróleo geralmente destinados à formulação do combustível. A Cide-combustíveis, contribuição social extrafiscal instituída com finalidade de intervenção estatal na comercialização de combustíveis, não se presta a outros mercados, lembrando o já citado Hugo de Brito Machado, São elementos essenciais para a caracterização de uma contribuição de intervenção no domínio econômico tanto o efeito produzido pela própria contribuição, que por si mesma caracteriza uma intervenção, como o destino do produto de sua arrecadação ao financiamento da atividade estatal interventiva. (MACHADO, 2009, p.65) o que não justifica sua incidência sobre solventes passíveis de serem utilizados em adulteração de gasolina, uma vez que são apenas passíveis desta utilização ilegal, sua destinação comum é a produção de tintas, vernizes e outros produtos insuspeitos, alguns até destinados à indústria de alimentos e de medicamentos. No entanto, o legislador, ciente da possibilidade da adulteração como consequência da diferença de tributação em produtos com características químicas próximas, fez constar no texto da Lei n.º 10.336/2001 a previsão de marcação dos produtos que teriam o recolhimento da Cide-combustíveis dispensado após conhecida a sua destinação. Essa característica faz com que a atividade de marcação regulada pela ANP seja híbrida, atendendo tanto à garantia de qualidade pela ausência do 39 marcador na gasolina, como de garantia de contribuição da Cide-combustíveis pela mesma ausência química. É importante ressaltar que esta última garantia, essencial para a Receita Federal do Brasil, órgão responsável pelo recolhimento da Cide-combustíveis, é alheia às atribuições da ANP, órgão responsável pela regulação e fiscalização da marcação, sobre o qual recai a obrigação de proteger o interesse dos consumidores quanto à qualidade. Sobre o segundo olhar, o ônus da marcação, que recai sobre o produtor e o importador de PMC, nos termos da Portaria ANP n.º 274/2001, foi possível encontrar no relatório da CPI dos combustíveis instituída pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo a seguinte constatação: “O custo para a implementação é irrisório, e pode ser facilmente ser absorvido pelo empresário que usa o produto sem repasse ao consumidor” (SÃO PAULO, 2002), desvinculada dos dados que levaram a esta conclusão. Há que se refletir sobre o custo para implementação da marcação, de acordo com Pietro Mendes, “...no Brasil, houve forte reação de empresas, como Deten e Ipiranga Petroquímica, contrárias a marcação de seus solventes sob alegação de danos ao produto final” (MENDES, 2008, p. 9). Caso a alegação de danificação do produto marcado fosse pertinente, o custo da marcação inviabilizaria a atividade econômica em questão e afetaria o princípio constitucional da livre iniciativa dos agentes econômicos e se configuraria como uma restrição excessiva. Caso a afirmação faça referência aos custos com aquisição, transporte e adição do marcador aos PMC, há carência de estudos de impacto econômico divulgados, no entanto, a afirmação que consta no relatório final da CPI é ingênua uma vez que é improvável que empresários deixem de repassar custos adicionais impostos aos seus produtos ao consumidor, se houver possibilidade de fazê-lo. De fato, o custo da marcação dos PMC não configura financiamento de atividade estatal interventiva, conforme indicado por Hugo de Brito Machado como característica fundamental de contribuições de intervenção no domínio econômico, se assemelhando a atividade que pode ser entendida como 40 coadjuvante do poder de polícia estatal, que, neste caso, se volta para a garantia da qualidade da gasolina, por serem os termos de realização da marcação estabelecidos pela ANP, que transferiu a parte do ônus da marcação relacionada com a aquisição e adição do marcador para o produtor e o importador de PMC, retendo para si os custos relacionados com as coletas de amostras, análises químicas, fiscalização e estudos sobre a eficácia do marcador. 41 BIBLIOGRAFIA ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª edição, 3ª tiragem. SP: Malheiros, 2005. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 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Republicada D.O.U., 20 de dezembro de 2002. Estabelece a obrigatoriedade de adição de marcador a solventes e a derivados de petróleo eventualmente indicados pela ANP bem como a proibição da presença de marcador na gasolina. BRASIL. Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Portaria ANP n.º 309. D.O.U., 28 de dezembro de 2001. Estabelece as especificações para a comercialização de gasolinas automotivas em todo o território nacional e define obrigações dos agentes econômicos sobre o controle de qualidade do produto BRASIL. Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Portaria ANP n.º 311. D.O.U., 28 de dezembro de 2001. Estabelece os procedimentos de controle de qualidade na importação de petróleo, seus derivados, álcool etílico combustível, biodiesel e misturas óleo diesel/biodiesel. BRASIL. Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Portaria ANP n.º 73. D.O.U., 22 de maio de 1998. 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Ministério das Minas e Energia. Portaria MME n.º 8. D.O.U., 17 de janeiro de 1997. Dispõe sobre a atividade de distribuição de combustíveis líquidos derivados de petróleo, álcool combustível e outros combustíveis automotivos. BRASIL. Ministério das Minas e Energia. Portaria MME n.º 9. D.O.U., 17 de janeiro de 1997. Dispõe sobre a atividade de Revendedor Varejista de combustíveis líquidos derivados de petróleo, álcool combustível e outros combustíveis automotivos (Posto Revendedor – PR). BRASIL. Presidência da República. Lei n.º 10.336. D.O.U., 20 de dezembro de 2001. Institui Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool etílico combustível (Cide), e dá outras providências. 44 BRASIL. Presidência da República. Lei n.º 10.871. D.O.U., 21 de maio de 2004. Dispõe sobre a criação de carreiras e organização de cargos efetivos das autarquias especiais denominadas Agências Reguladoras, e dá outras providências. BRASIL. Presidência da República. Lei n.º 5.172. D.O.U., 27 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. BRASIL. Presidência da República. Lei n.º 9.986. D.O.U., 7 de agosto de 1997. Dispõe sobre a política energética nacional, as atividades relativas ao monopólio do petróleo, institui o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo e dá outras providências. BRASIL. Presidência da República. Decreto n.º 99.179. D.O.U., 15 de março de 1990. Institui o Programa Federal de Desregulamentação. BRASIL. Presidência da República. Lei n.º 9.986. D.O.U., 19 de julho de 2000. Dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras e dá outras providências. BRASIL. Senado Federal. Decreto n.º 95.886. 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