Helena Maria Melo Dias
Desamparo e Conversão : Questões da Clínica da
Histeria
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Psicologia Clínica, sob orientação
do Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck.
PUC/SP
São Paulo / 2001
Helena Maria Melo Dias
Desamparo e conversão : questões da clínica da histeria
Mestrado Interinstitucional em Psicologia Clínica
PUC-SP/ UFPA/UEPA
PUC/SP
São Paulo / 2001
À Comissão Julgadora,
______________________________
______________________________
______________________________
Agradecimentos
Primeiramente, meus especiais agradecimentos ao Professor Dr.
Manoel Tosta Berlinck, grande investigador da psicopatologia humana, por
seus ensinamentos e orientações que foram essenciais, não só, na realização
desta dissertação, mas, principalmente, porque me ajudaram a ultrapassar
certos obstáculos pessoais e a manter-me no caminho. Agradeço-lhe,
particularmente, pela oportunidade que proporcionou ao permitir-me
participar do eminente Laboratório de Psicopatologia Fundamental – PUC-SP,
sob sua direção, no qual pude compreender o que significa pesquisar no
campo da psicanálise e da psicopatologia fundamental.
Agradeço ao meu pai, João Amaral, pelo apoio e colaboração,
sem os quais seria muito difícil realizar esse sonho, e a minha mãe, Clarice,
(in memorian) que me ensinou o quanto é importante sonhar e lutar pela
realização de nossos sonhos.
Aos meus filhos, Luana e Raoni, pelo amor que nos une. E, ao
meu querido neto, Pedro, pela sua contagiante vivacidade.
A amiga de longos tempos, Professora Dra. Ana Cleide Guedes
Moreira que sempre iluminou meus caminhos com sua presença fortalecedora.
A Cassandra pela cumplicidade que mantivemos na sustentação
do nosso projeto de vida chamado mestrado.
Agradeço, em especial, a Dra. Joyce Mc Dougall, pela generosa
acolhida na supervisão clínica. Sua sabedoria fez-me pensar que o essencial,
no campo clínico, é imanente do desejo de vida.
Ao Dr. Isaias Melshons pelos ensinamentos da clínica
psicanalítica.
Gostaria de expressar meus sinceros agradecimentos aos
pesquisadores do Laboratório de Psicopatologia Fundamental pela acolhida
calorosa durante o estágio na PUC-SP, e também, porque me fizeram
compreender, que a produção do conhecimento é uma construção coletiva e ao
mesmo tempo singular. Agradeço, particularmente, aos colegas: Isabel Kahn
Marin, Daniel Delouya, Paulo Roberto Ceccarelli, Regina M. Guisard
Gromann, pelo incentivo.
Ao Professor Dr. Reinier Rozestraten, minha gratidão, pelo apoio
e colaboração a este projeto acadêmico.
Agradeço à CAPES, PUC-SP, UFPA e UEPA que, com seu
apoio, permitiram a realização deste mestrado.
Resumo
O objetivo desta dissertação foi realizar um estudo teórico-clínico
da neurose histeria de conversão, o qual ilustro com o caso clínico de um
garoto, aqui chamado Breno, que aos treze anos de idade sofria grave histeria.
Busquei, então, fundamentada nos estudos de Freud e da Psicopatologia
Fundamental, a construção de um logos que representasse, com justeza, o
vivido dessa clínica. Desse modo, dois problemas evidenciaram-se: um,
relacionado à formação do sintoma de conversão, que culminou com a questão
sobre a natureza do processo de conversão, e outro, relacionado à questão do
desamparo. Breno expressava, com muita freqüência, um sentimento profundo
de desamparo frente ao sintoma de conversão, que o impedia de caminhar
sozinho, sem o amparo de um outro. Assim, esta investigação permitiu-me
compreender que o processo de conversão é constitutivo do corpo erógeno,
que na psicopatologia histérica, torna-se uma defesa contra a angústia do
desamparo frente à perda do amor do objeto.
Abstract
The objective of this dissertation was to do a theoretical study of
the Hysterical Neurosis of Conversion Hysteria, which I illustrate with a
clinical case of a boy I will call Breno, that suffers serious hysteria at the age
of
thirteen.
Based on the studies of
Freud and of
Fundamental
Psychopathology, I looked for the construction of a Logos that
would
represent, with justness, the experience of that clinic. That way, two problems
were evidenced: one related to the formation of the symptom of conversion,
that culminated with the question on the nature of the process of conversion
and the other, related to the question of abandonment.
Breno frequently
expressed feelings of abandonment facing the symptom of conversion that
impeded his walking alone, without the help of another person.
Thus, this
investigation permitted me to understand that the process of conversion is
constitutive of the erogenous body, that in
psychopathology,
hysteria
becomes a defense against the anguish of abandonment in facing the loss of
the love of the object .
Sumário
Introdução .................................................................................................. 9
Capítulo I
Fragmentos do caso clínico Breno .............................................................16
Capítulo II
Teorias da histeria de conversão ................................................................. 20
A histeria como doença ............................................................................... 21
O corpo falante de Elisabeth......................................................................... 29
A oralidade de Dora...................................................................................... 53
Histeria: um intenso desejo sexual ............................................................... 66
Capítulo III
Um estudo teórico-clínico da psicopatologia de Breno ............................... 69
Adolescere: uma dificuldade em fazer amor consigo mesmo ......................69
O furo no pé e a angústia de castração ........................................................ 72
Fenômeno transgeracional: a marca do outro ........................................... 85
Conversão: a constituição de um corpo erógeno ....................................... 89
Questões da clínica da histeria: desamparo e conversão ............................ 91
Considerações finais ................................................................................. 97
Referências Bibliográficas ....................................................................... 106
INTRODUÇÃO
A origem desta produção segue a tradição psicanalítica de que ―a
pesquisa em psicanálise faz parte da atividade clínica do psicanalista, ou
melhor, que a clínica psicanalítica é, também, uma intensa atividade de
pesquisa em que se engajam paciente e psicanalista‖1. Nesse campo, o que se
vislumbra é o inconsciente, e mais precisamente, como a dinâmica psíquica do
paciente revela-se na
transferência, para que juntos, os dois, paciente e
psicanalista, possam compreender a singularidade do sofrimento, pois é a
compreensão interna desse sofrimento – insigth – que cria a possibilidade de
cura.
Ainda, como bem lembra Manoel Berlinck no seu texto,
Considerações sobre a elaboração de um projeto de pesquisa em Psicanálise:
―essa atividade de pesquisa não termina quando o psicanalista
encerra suas atividades clínicas cotidianas. Ela faz parte, também, da própria
formação do psicanalista que, ..., se apóia em sua análise pessoal, em sua
atividade de supervisão e nos estudos que empreende‖2.
Dessa forma, seguindo essa trilha, a problemática deste estudo
emerge a partir de questões que foram sendo levantadas do caso clínico de um
garoto, aqui denominado Breno3, que na época do atendimento tinha treze
anos de idade.
1
Berlinck, Manoel Tosta. Considerações sobre um projeto de pesquisa em psicanálise. In Psicopatologia
Fundamental. São Paulo: Editora Escuta, 2000, 313.
2
Idem
3
Os nomes citados, no caso clínico Breno, são todos fictícios.
Contratransferencialmente, o sofrimento de Breno afetou-me,
conduzindo-me a uma busca de maior compreensão da singularidade desse
caso, particularmente, da psicopatologia da histeria de conversão e,
especificamente, sobre o fenômeno da conversão. Este atendimento durou
aproximadamente três meses, tendo sido interrompido por decisão de sua mãe.
Embora breve, foi bastante significativo e exemplar, no sentido de pôr em
evidência princípios, conceitos e muitas questões relativas à histeria de
conversão.
Os sintomas de Breno revelam, na contemporaneidade, a clássica
histeria de conversão: contraturas intensas, gagueira, grande resistência à
medicação interna, um medo muito intenso do outro a quem está subjugado,
dentre outros. A presença desses sintomas é interessante, pois surge num
momento em que ―a medicina contemporânea, especialmente a psiquiatria que
se deixou influenciar pelo CID-10 [Código Internacional de Doenças] e pelo
DSM [Manual de Diagnóstico e de Estatística da Associação Psiquiatra
Americana] – manuais que servem aos interesses das companhias de seguro
norte-americanas – resolveu abolir a histeria de suas clínicas.‖4 As
conseqüências desta negação são muito graves para ―os histéricos e histéricas
que habitam os hospitais de clínicas com novos nomes – pseudo-epilepsia,
desordens somatoformes, desordens de angústias ou ansiedade – e são, muitas
vezes, submetidos a cirurgias absolutamente desnecessárias‖5.
Esta relutância da área médica em dar reconhecimento à
psicopatologia histérica não é atual, Freud já a havia constatado desde os seus
4
5
Berlinck, Manoel Tosta (org.). Histeria . São Paulo: Editora Escuta, 1997, p.7
Idem
estudos iniciais sobre a etiologia dos sintomas histéricos, e no
artigo
Fragmento da análise de um caso de histeria,1905, ele advertia sobre ―as
severas exigências que a histeria faz ao médico e ao investigador‖ que ―só
podem ser satisfeitas pelo mais dedicado aprofundamento, e não por uma
atitude de superioridade e desprezo.‖6 Quer dizer, o que ele ressalta aqui, é
que ―os histéricos solicitam uma medicina personalizada e cuidadosa‖, como
diz Manoel Berlinck, ―onde o médico não toma a palavra do doente naquilo
que ela diz superficialmente, mas se dispõe a interpretá-la a partir do que a
fala provoca nele, médico: sensações, imagens, pensamentos.‖7
Nessa perspectiva, a clínica da histeria requer a elaboração de um
estudo psicopatológico daquilo que é vivenciado no processo terapêutico.
Assim, a clínica do Breno me conduziu à investigação dos processos de
formação do seu sintoma de conversão: que processo é este, qual a sua
natureza? Ele indagava-se sobre seu sintoma porque este, às vezes, deixava-o
muito perdido, muito confuso, dizia: ―aí eu perco a minha noção, todo apoio.
Como é que faço isso ou aquilo?‖ Ele não conseguia ficar em pé, nem
caminhar, sozinho, pois estava com seus membros braços e pernas inervados.
Seus braços estavam rigidamente afastados do corpo e suas mãos, abertas, tipo
gancho. Queria entender da impotência a qual condenou partes de seu corpo,
particularmente seus genitais. Então, por que este sintoma irrompeu dessa
forma e neste momento de sua vida, aos treze anos de idade? Período de vida
demarcado por profundas transformações corporais que propulsionam uma
efervescência nas pulsões sexuais, remetendo o sujeito à sua sexualidade
6
Freud, S. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905). ESB. Rio de Janeiro: Editora Imago,
1987, 23.
(Todas as citações da obra de Freud foram retiradas da Edição Brasileira das Obras Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1987)
7
Berlinck, Manoel T. (org.) Histeria. Editora Escuta: 1997, p.6
genital. Mas Breno, frente a sua genitalidade paralisa; o que ele desejava
paralisar?
Assim, no capítulo II, apresento alguns fragmentos do caso
Breno, a partir dos quais elaboro um estudo teórico-clínico de sua
psicopatologia, da qual tratarei no capítulo IV desta dissertação.
Para tanto, um percurso de elaboração foi realizado na obra
freudiana sobre a teoria da histeria de conversão, no referente às suas
primeiras formulações e hipóteses sobre a etiologia da histeria, bem como, no
que diz respeito aos fundamentos posteriores à descoberta da sexualidade
infantil e do reconhecimento da persistência dos movimentos pulsionais
inconscientes. Este tópico, concentra-se na explicitação das operações
psíquicas implicadas formação do sintoma de conversão.
Acompanhei o estudo freudiano da histeria de conversão,
focalizando, particularmente, três artigos: Estudos sobre Histeria,1895;
Fragmento da análise de um caso de histeria, 1905 e os Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade, 1905.
Nos Estudos encontra-se a primeira teoria
etiológica da histeria, e através do caso Elisabeth, especialmente, busquei
investigar sua fundamentação; nos artigos posteriores: Caso Dora e Três
ensaios, sua nova concepção da histeria é apresentada, assinalando o sexual e
o infantil como constitutivos do sintoma histérico. Destaco, neste trabalho, sua
formulação sobre os fatores determinantes na formação do sintoma de
conversão. Em relação aos primeiros escritos de Freud, acrescento
os
importantes comentários de Monique Schneider, do seu livro Afeto e
Linguagem nos primeiros escritos de Freud, pois penso que ela faz uma
leitura muito esclarecedora destes escritos.
Quando Freud trata, nos casos: Elisabeth e Dora, sobre a
formação dos sintomas, ele destaca que a conversão forma uma trilha que
irá consolidar-se no sintoma. No primeiro caso, a paciente forneceu a
explicação quanto ao surgimento de uma zona histerogênica atípica, como era
denominada nesta época, assim, seu sintoma de conversão – dores na perna,
havia-se formado quando cuidava do seu querido pai que estava muito doente.
―A região da perna direita foi marcada por esse contato e ficou sendo, a partir
daí, o foco de suas dores e o ponto de onde elas se irradiavam.‖8 Em Dora, ele
demonstrou como os processos de formação dos sintomas obedeciam aos
mesmos princípios e mecanismos que regiam a formação dos sonhos,
considerando que o processo de conversão instaurava-se a partir das vivências
sexuais infantis. Por exemplo, o sintoma de dores estomacais de Dora estava
relacionado com suas fantasias sexuais infantis, que suscitavam sentimentos
de asco e repugnância.
Nos Três Ensaios, quando teoriza sobre a constituição de uma
zona erógena, ele reconhece que todo corpo, todo órgão, possuía uma
propriedade erógena. Observou, que o sintoma de conversão implicava num
excesso de erogenização de um determinado órgão, o qual assumia as
características dos órgãos genitais. Assim, ele vai asseverar que as
psiconeuroses ―se baseiam em forças pulsionais de cunho sexual‖ que foram
recalcadas, e argumenta ―que essa contribuição é única fonte energética
constante da neurose e a mais importante de todas.‖9 Este ponto de vista se
8
9
Freud, S. Estudos sobre a Histeria (1895), 184.
_________ Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), 153
se mantém até o final de sua obra, e Freud vai problematizando, cada vez
mais, esta fundamentação.
Com a elaboração da segunda tópica e a formulação do complexo
de Édipo e do complexo de castração, ele ampliou sua compreensão do quadro
clínico desta neurose, revelando que o sintoma é um mecanismo de defesa do
ego
para proteger-se do perigo angustiante do conflito pulsional. Esta
construção teórica será tratada no caso clínico Breno, no capítulo IV.
Neste
capítulo,
apresento
um
estudo
teórico-clínico
da
psicopatologia de Breno, esclarecendo que esta análise está fundamentada na
metapsicologia da psicanálise e na psicopatologia fundamental, que permitem
transformar o vivido da clínica em uma experiência enriquecedora. Portanto,
na elaboração desta dissertação não houve uma preocupação maior com um
estudo conceptual, os conceitos foram sendo trabalhados a partir do caso
clínico para dar conta de sua psicopatologia. Este estudo permitiu-me formular
a hipótese de que Breno estava vivenciando uma profunda angústia de
castração; ele sentia-se atacado não só na sua imagem física, como também,
na sua imagem viril, e como não tinha palavras para nomear seus desejos
libidinais, estava sempre invadido pelo medo e pela cólera contra os objetos
internos que impunham essa castração. No seu sintoma, essa angústia
compareceu impedindo que tocasse seu próprio corpo, revelando, desse modo,
uma grande dificuldade de fazer amor consigo mesmo. Mas, por que esse
amor causava-lhe tanta angústia?
Nessa clínica, revelou-se, também, um profundo sentimento de
desamparo. Breno falava com muita freqüência: ―quero ser normal, quero
jogar bola, andar de bicicleta‖, mas não sabia como fazer para obter essa
conquista de espaço e movimento corporal, pois estava aprisionado no
sintoma que o imobilizava e, em relação ao qual sentia-se desamparado. Dessa
forma, nesta dissertação, problematizo a formação do sintoma de Breno,
supondo que o afeto de desamparo atua como um fator determinante na
constituição de sua conversão. Desamparo frente a poderosa força pulsional
sexual inconsciente, que dirige os anseios do sujeito em relação ao outro, bem
como, desamparo frente a violência vinda do objeto, do seu inconsciente, e
como fazer face a ela. Parece que esse investimento objetal retorna para o
próprio sujeito trazendo consigo a marca do objeto, que se cristaliza no
sintoma. Assim, penso que a conversão de Breno permite trabalhar essa
articulação entre desamparo e conversão, que será problematizada no capítulo
IV desta dissertação.
Assim,
nas
considerações
finais,
capítulo
V,
formulo
conclusivamente que a conversão é constitutiva do corpo humano e este
processo revela que:
―O psiquismo, o aparelho psíquico é um prolongamento do
sistema imunológico. Ele se constitui graças a violência originária e é uma
resposta defensiva do organismo a ela. Pathos é sempre somático, ocorre no
corpo; e a psique é, na tradição socrática, estritamente corporal não havendo,
nunca, solução de continuidade entre essas duas instâncias.‖10
Na
histeria
de
conversão,
este
processo
especialmente construído em função do desamparo.
10
Berlinck, Manoel. Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Editora Escuta, 2000, 23.
defensivo,
é
Capítulo I
Fragmentos do caso clínico Breno
Apresento, neste capítulo, alguns fragmentos do caso Breno, a
partir dos quais realizei o estudo teórico-clínico da sua psicopatologia.
Como foi esclarecido, no capítulo introdutório deste projeto, este
atendimento clínico manteve-se durante um período extremamente curto,
três meses, pois foi interrompido por decisão da sua mãe. Este limite
temporal impossibilitou a realização de uma análise mais profunda do
conteúdo deste caso; todavia, creio que, embora breve, foi significativo e
exemplar no sentido de pôr em evidência princípios, conceitos e muitas
questões relativas a histeria de conversão.
Ele apresentou a clássica histeria de conversão. Foi tratado com
medicamentos neurolépticos, submetido a exercícios de reeducação motora,
com barras de ferro, para correção da sua postura. Consultou
vários
especialistas: neurologista, psiquiatra, fisioterapeuta e professor de reeducação
motora, sem obter nenhuma melhora. É importante observar que, em 1888, no
seu artigo Histeria, Freud já apontava como uma característica importante do
sintoma histérico ―o fato de que um sistema nervoso histérico oferece, em
regra geral, uma grande resistência à influência química por
meio de
medicação.‖11 Breno resistia, tanto à medicação quanto às barras de ferro, e
seu professor de reeducação motora, intrigado com o seu sintoma, o
encaminhou para avaliação psicológica.
11
Freud, S. Histeria (1888) p. 94.
Breno tinha treze anos de idade, quando procurou-me para
consulta, acompanhado de sua mãe, porque há dois meses havia furado o pé,
e este furo desencadeou uma grave histeria. Apresentava uma conversão que
deformava toda estética do seu corpo: a musculatura de seus membros, tanto
superiores como inferiores, estavam totalmente inervadas, bem como, a
musculatura do seu pescoço. Ele compareceu, pela primeira vez, em meu
consultório, com o braço direito apoiado no ombro de sua mãe  ele não só
estava apoiado, mas sim, totalmente pendurado em seu pescoço, e ela também
segurava-lhe pela cintura, demonstrando-se bastante incomodada com o peso
do seu filho. Ele caminhava com extrema dificuldade, quase se arrastando,
pois suas pernas estavam enrijecidas e arqueadas. Seu braço esquerdo estava
curvado e rigidamente afastado do corpo, e com as mãos abertas, em forma de
gancho. O pescoço curvado o impedia de olhar de frente o mundo. Sua
expressão facial era a de alguém muito tenso. Esta cena causou-me profundo
estranhamento!
Durante a conversa com sua mãe, que estava muito angustiada,
observei, que Breno se mantinha com o olhar fixo em direção à sua genitália, e
parecia estar ausente dali. A sós, ele contou-me, de forma nítida e
compassada, que tudo começou durante as férias escolares de julho, quando
brincava com seu colega no saguão da casa, onde veraneava, e furou o pé.
Falou: ―estava eu e meu colega brincando, quando furei o pé no vidro. Aí
comecei a ficar com a mão assim, tipo gancho, aí foi piorando, as pernas
ficaram duras e os braços também, até que não consegui andar mais sozinho‖.
Falou ainda, que sentia muita raiva, por estar assim, principalmente porque o
apelidavam de robô, também, sentia raiva e tristeza, quando brigava
com as pessoas sem ter motivo. Coloquei-lhe: acho que estás passando por
um momento muito difícil. Imediatamente, levantou a cabeça e disse: sim.
Logo após, abaixou a cabeça, dizendo: é, hoje, eu estava em sala de aula e
comecei a chorar. Indaguei-lhe: e por que tu choravas? Respondeu: não sei.
Na sessão seguinte, observei que sua conversão, havia sofrido
algumas modificações: ele estava com os braços e as mãos balançando muito,
e o ombro não tão arriado. A impressão que tive, era de um corpo pesado, não
mais robotizado. Breno contou: ―hoje, na escola me deu uma vontade tão
grande de quebrar tudo.‖ Indaguei? Deixar tudo quebrado, por quê? ―Porque
sinto raiva de estar assim. Aí comecei a chorar - fez silêncio e exclamou - é
tudo emocional!‖ Perguntei: o que é emocional, pra ti? ―Isso que eu tenho. A
orientadora me levou pra sala da diretora, e ela perguntou se eu tinha
condições de fazer prova, disse que sim. Fui fazer a prova, a professora leu pra
mim, porque não dava pra mim escrever. Fiz a prova, tirei oito e meio. A
professora falou: como uma pessoa que tira essa nota, pode não ter
capacidade?‖
Em seguida, ele falou a respeito dos seus jogos de vídeo game,
referindo-se a um personagem: ―ele é um soldado, tem que passar por várias
etapas pra chegar no chefão (...) Tem que passar por vários robôs, mas ele tem
armadura (...) No jogo, eu sou forte, sou o homem aranha. Já subi muitas
paredes, árvores, muros. Ontem, eu subi em cima de casa, fiquei lá. Eu quero
que elas vejam que eu sou forte.‖ Perguntei: elas quem? Disse: ―todas. Todas
não, uma ou duas.‖
Ainda, nesta sessão, Breno fez alguns desenhos, dentre eles
destaquei o desenho do Batman, sobre o qual falou: ―esse é o Batman, tá
vigiando a cidade perigosa, tem muita ganância, assassinato a queima roupa.
Ele é um herói, é misterioso, tem uma identidade secreta‖. Pensei, e qual seria
a sua identidade secreta?
Estes fragmentos das sessões iniciais, fizeram-me formular a
hipótese diagnóstica de grave histeria de conversão. Mas, qual a sustentação
teórica desta hipótese? Esta questão, será trabalhada no capítulo IV desta
dissertação.
Capítulo II
Formulações teóricas de Freud sobre histeria de
conversão
Neste capítulo, abordo, de forma sucinta, os diferentes pontos de
vistas que predominavam no início do estudo da histeria como doença,
concentrando-me nas formulações teóricas de Freud: a primeira fundamentada
na concepção do acontecimento traumático, como fator etiológico, e a
segunda, alicerçada na noção de inconsciente, fantasia e sexualidade infantil.
Para tanto, acompanhei suas formulações a partir dos casos
clínicos: Elisabeth e Dora, bem como, da teoria da sexualidade infantil, de
1905, concebendo que sua trajetória teórica, desta psicopatologia, culminou
com a elaboração do conceito de pulsão, o qual revela a dimensão que o
conflito psíquico pode atingir, bem como, revela a complexidade das
operações psíquicas envolvidas na formação dos sintomas, como único meio
de defesa possível num momento de intenso conflito pulsional. Assim, as
ampliações teóricas que sucedem, com os escritos metapsicológicos e com a
segunda tópica, baseiam-se nesta premissa maior do conflito pulsional como
determinante etiológico desta psicopatologia. Todavia, estas formulações
posteriores serão tratadas no capítulo III, dedicado ao estudo do caso clínico.
Esta hipótese talvez merecesse um aprofundamento no conceito
freudiano de
pulsão, todavia, como observei no capítulo
introdutório,
nesta dissertação não houve uma preocupação maior com um estudo
conceptual, os conceitos foram sendo trabalhados para dar conta de dois
problemas considerados fundamentais: a formação do sintoma de conversão e
o desamparo.
Acrescentei, neste estudo, a interpretação que Monique
Scheneider
fez
da
primeira
teoria freudiana, por considerar que ela
esclarece a fundamentação desta produção. Então, neste capítulo, parto do
reconhecimento da histeria como doença.
A histeria como doença
As investigações sobre a histeria datam do século XIX, quando
encontra-se
toda
uma
descrição
pormenorizada
da
histeria.
Fundamentalmente, estes estudos desenvolveram-se no hospital da Salpêtrière,
onde foi criado a primeira cadeira de neurologia, no mundo, sendo, também, o
―palco do nascimento da psiquiatria, com Pinel.‖12 Neste momento, o grande
mestre Charcot assume a cadeira da clínica de doenças nervosas. Conforme
Etienne Trillat:
―Na época, o traço distintivo que separava as ‗espécies‘, não
ocorria entre a epilepsia e a histeria, mas entre alienados e não alienados.
Aliás, esse mesmo traço separava os alienistas dos neurologistas.‖13
Assim, Charcot dá o reconhecimento da histeria como doença dos
nervos, avançando sua investigação no sentido de caracterizar este quadro
clínico, e diferenciá-lo da epilepsia, doença que apresentava sintomas
similares aos da histeria.
12
13
Trillat, Etienne. História da Histeria. São Paulo: Editora Escuta, 1991, 138.
Idem, 139.
Na Enciclopédia Médica Ilustrada Larousse, organizada pelo Dr.
Galtier-Boissière, de 1912, há toda uma descrição da histeria: sintomas
referentes à pele, às mucosas, às vísceras, à febre histérica, aos distúrbios
motores, aos sensórios, aos intelectuais e aos viscerais, e o tratamento usado
na época. No comentário que Felipe Lessa da Fonseca tece desse texto, ele
diz:
―Podemos notar que embora a ênfase seja dada à descrição dos
processos somáticos do paciente, a consideração pelo fator psicológico está
presente ao longo do verbete. O desaparecimento abrupto e espontâneo dos
sintomas, assim como o papel da simulação e da sugestão, são constantemente
apontados pelo autor; no entanto, o detalhamento dos distúrbios em termos
motores, sensitivos, intelectuais e viscerais nos dão uma idéia da importância
do aspecto neuro-fisiológico nesta abordagem das histerias.‖14
Este campo de pesquisa médica vai se expandir, no sentido de
um aprimoramento da técnica de observação, que tem a ―visibilidade como
imperativo‖, ou seja, era o olhar clínico do patologista que definia o quadro
classificatório
anatomoclínicos.
das
diferentes
Assim,
Freud
enfermidades,
aprendeu,
na
descritos
em
Salpêtrière,
termos
com
as
demonstrações que Charcot fazia com suas pacientes, a identificar algumas
das mais importantes características da histeria, dentre estas, a concepção de
que:
―A crise [histérica] é eminentemente afetiva: é um drama pessoal
que ali é encenado, que se exprime, que se exterioriza e se mostra: esse
conteúdo emocional era evidente para Charcot. È esse conteúdo que falta à
crise epilética e que o faz dizer que aí: ‗tudo é histérico.‘‖15
14
Fonseca, Felipe Lessa. Larousse Médical Ilustre (1912). In Histeria. São Paulo: Editora Escuta,
1997, 18.
15
Trillar, Etienne. História da histeria. São Paulo: Escuta, 1991, 144
Estes ensinamentos foram fundamentais, todavia, Foucault, no
seu livro História da Loucura, assinalou que foi ―Freud, o primeiro a aceitar
em sua seriedade a realidade do par médico-doente‖16. Neste sentido, a
investigação freudiana acrescentou à ―visibilidade do sintoma‖, a escuta
clínica, reconhecendo, dessa forma, a importância do paciente no tratamento
pois compreendeu que este detinha os sentidos dos seus sintomas, e cabia ao
médico, levá-lo a descoberta desses sentidos.
Freud, Nas Publicações Pré-Psicanalíticas, escreveu vários
artigos, nos quais observou, com riqueza de detalhes, certos aspectos do
sintoma histérico. Por exemplo, em 1888, no artigo A Histeria, apresentou
uma série de sintomas da ―grande histeria‖: (1) ataques convulsivos, (2) zonas
histerógenas, (3) distúrbios da sensibilidade, (4) distúrbios da atividade
sensorial, (5) paralisias. Embora, estes artigos estivessem baseados num
ponto de vista neurológico, já apontavam a
perspectiva psicológica como
fundamental para a compreensão do fenômeno histérico.
Na época em que Freud escreveu com Breuer, Estudos sobre
histeria, 1895, ele estava preocupado em especificar os casos de neurose
comumente incluídos no diagnóstico de histeria, para fazer uma distinção mais
precisa entre os quadros clínicos das várias neuroses consideradas, então:
neurastenia, neurose de angústia e idéias obsessivas. Dizia ele:
―Refleti que não era certo rotular de histérica uma neurose, em
sua totalidade, só porque alguns sintomas histéricos ocupavam um lugar de
destaque em seu complexo de sintomas, a histeria é a mais antiga, a mais
conhecida e a mais marcante das
16
Foucault, Michel. História da loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978, 502.
neuroses em consideração; mas isso era um abuso, pois lançava por conta da
histeria muitos traços de perversão e degenerescência.‖17
Assim, desde então, Freud foi guiado pela estrela polar da clínica,
que o enveredou nesta laboriosa jornada para desvendar a enigmática histeria
de conversão. Uma descoberta fundamental, no início de sua investigação, é
que esta neurose tem como característica básica e específica, o sintoma de
conversão. Portanto, esta histeria tem como mecanismo psíquico de defesa a
conversão. Mas, o que é a conversão? Que operações psíquicas estão
implicadas nesta defesa? Como Freud a concebia neste momento inicial?
Quais as elaborações futuras? Estas são algumas das questões que tratarei
neste capítulo.
Ernest Jones, seu biógrafo oficial, argumentou que no artigo
Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras
orgânicas e histéricas, 1893, Freud deixou claras as três principais diferenças
entre estas paralisias, ―distinções hoje universalmente aceitas‖, que foram:
―(1) Uma paralisia histérica pode ser completa em uma parte do corpo,
como, por exemplo, no braço sem que outras partes sejam afetadas. Onde uma paralisia
cerebral é intensa, ela é extensa em distribuição. (2) Alterações sensoriais, especialmente
anestesia, são mais acentuadas (isto é paralisia) na histeria; o contrário é verdade quanto à
paralisia cerebral. (3) O mais importante de tudo é o fato de que a distribuição da última
é explicável pelos dados da anatomia, ao passo que a histeria se comporta, como Freud
maliciosamente expôs, como se não existisse algo com a anatomia do cérebro; sua
distribuição é puramente ideativa.‖18
Strachey, destacou ―a posição que este artigo ocupa no divisor de
águas entre os escritos neurológicos e psicológicos e Freud‖. Para seu
17
18
Freud, S. Estudos sobre histeria (1895), v. II, 256.
Jones, Ernest. A vida e a obra de Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1980, p. 240.
tradutor, já ―tinham começado a operar – recalcamento, ab-reação, princípio
constância – todas elas implícitas quando não nomeadas explicitamente.‖19
Este artigo, fora escrito
atendendo a uma solicitação do mestre Charcot, em
quem baseava seus estudos iniciais sobre histeria.
A concepção de Charcot, sobre as paralisias traumáticas,
sustentava a idéia de um trauma mental como causa dos sintomas histéricos.
Para ele, assim como para Briquet:
―a histeria era doença produzida pela ação incisiva de uma idéia ou de uma
representação psíquica intensamente carregada de afeto. Quando a representação é forte,
isto é, quando apresenta uma sensação intensa, excessiva, ela tem o poder de se transpor
abruptamente para a realidade do corpo e de aparecer sob a forma de um sintoma somático.
(...) Charcot, considerava que a representação patogênica ter-se-ia introduzido no sujeito
por ocasião de um incidente traumático, provocado por um agente externo. Para justificar
sua asserção, ele praticou o hipnotismo. Assim, demonstrou que a injunção de uma frase ou
de uma idéia imposta ao sujeito hipnotizado era suscetível de provocar um sintoma
histérico. ‖20
Bem como, de fazer desaparecer o sintoma que o paciente
apresentava. No entanto, estes efeitos só eram possíveis sob o estado
hipnótico; fora da hipnose, o paciente mantinha o quadro mórbido da sua
enfermidade.
Pierre Janet, discípulo do Charcot, participava da concepção de
que uma idéia, ao ser excessivamente carregada de afeto, traduzia-se,
inevitavelmente, numa alteração somática, no entanto, formulará um novo
ponto de vista sobre a etiologia da histeria. Seguindo a teoria de Maine de
19
Freud, S. Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e
histéricas, v. I, 227.
20
Nasio, Juan-David. A Histeria:Teoria e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991,
136, 137.
Biran e de Leibniz, Janet distinguiu dois planos radicalmente diferentes na
vida psíquica que denominou: o plano da consciência e o plano do
subconsciente. Esses dois planos ficavam contidos numa instância mais global
chamada de eu. Portanto, para ele, a causa da doença residia na fragilidade do
eu dos histéricos para efetuar uma síntese mental. Conforme Freud, para esta
teoria:
―que leva em conta as idéias dominantes na França sobre o papel da
hereditariedade e da degeneração, a histeria é uma forma de alteração degenerativa do
sistema nervoso, que se manifesta pela fraqueza congênita do poder de síntese psíquica. Os
pacientes histéricos seriam, desde o princípio, incapazes de manter como um todo a
multiplicidade dos processos mentais, e daí a dissociação psíquica‖21
Freud não concordava com a suposição de haver uma
incapacidade mental nos histéricos, todavia, aceitava a hipótese de Pierre Janet
e Joseph Breuer de que havia uma divisão da consciência, acompanhada da
formação de grupos psíquicos separados. Assim, no artigo, As neuropsicoses
de defesa, 1894, ele vai tratar desta suposição demarcando o que vai
diferenciar sua explicação da divisão da consciência, das outras concepções,
dizendo:
―De acordo com a teoria de Janet (1892-4 e 1893), a divisão da consciência é
um traço primário da alteração mental na histeria. Baseia-se numa deficiência inata da
capacidade de síntese psíquica, na estreiteza do ‗campo da consciência (champ de la
conscience)‘, que na forma de um estigma psíquico, evidencia a degeneração dos
indivíduos histéricos.‖22
Como coloquei, ele não concordava com este ponto de vista,
porque sua experiência clínica demonstrava-lhe que os pacientes histéricos,
21
22
Freud, S. Cinco Lições de Psicanálise (1905), 23.
_______ AS neuropsicoses de defesa, (1894), 54.
mesmo em estado de intenso sofrimento, apresentavam capacidades para
realizar determinadas tarefas, `as vezes, bastante complexas; também, no
percurso do processo terapêutico o que era observado nestes pacientes, é que
recuperavam suas capacidades que tinham sido atingidas pela doença.
Portanto,
a
concepção
da
histeria
fundamentada
na
hereditariedade e degenerescência não dava conta de explicitar a etiologia
da histeria.
Breuer, sustentava o ponto de vista de que:
―‗a base e condição sine qua non da histeria‘ é a ocorrência de estados de
consciência peculiares, semelhantes ao sonho, com uma capacidade de associação restrita,
para os quais propôs o nome de ‗estados hipnóides‘. Nesse caso, a divisão da consciência é
secundária e adquirida; ocorre porque as representações que emergem nos estados
hipnóides são excluídas da comunicação associativa com o resto do conteúdo da
consciência.‖23
No princípio, Freud apoiou esta concepção dos ‗estados
hipnóides‘, mas depois, vai argumentar que a divisão da consciência era
decorrente do recalcamento. Assim, na discussão do caso clínico da Srta.
Elisabeth von R., ele observou:
―Ao relatar o caso da Srta. Elisabeth von R., esforcei-me por entrelaçar as
explicações que pude fornecer sobre o caso com minha descrição do curso da recuperação
da paciente. Talvez valha a pena reunir mais uma vez os pontos importantes. Descrevi o
caráter da paciente — as características que são encontradas com tanta freqüência nas
pessoas histéricas e que não há nenhuma desculpa para se considerar como conseqüência da
degenerescência: seus talentos variados, sua ambição, sua sensibilidade moral, sua
excessiva exigência de amor, a princípio atendida pela família, e a independência de sua
23
Idem
natureza, que ia além do ideal feminino e encontrava expressão numa dose considerável de
obstinação, combatividade e reserva. Nenhuma mancha hereditária apreciável, segundo me
disse meu colega, pôde ser encontrada em qualquer dos dois lados da família. É verdade
que a mãe sofrera por muitos anos de uma depressão neurótica que não fora investigada,
mas os irmãos e as
irmãs da mãe, assim como o pai e a família deste, podiam ser
considerados pessoas equilibradas, sem problemas nervosos.‖24
Desta forma, suas investigações clínicas conduzem-no ao ponto
de vista, de que divisão da mente era decorrente de ―uma ocorrência de
incompatibilidade na vida representativa‖ do paciente, ―seu eu se confrontou
com uma experiência, uma representação ou um sentimento que suscitaram
um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo, pois não confiava em
sua capacidade de resolver a contradição entre a representação incompatível e
seu eu por meio da atividade de pensamento‖25.
Embora o aspecto psicológico já venha sendo apontado por outros
estudiosos, como ―Bernheim, discípulo de Liébeault, que elaborou ―teoria do
hipnotismo a partir de fundamentos psicológicos mais abrangentes e a fazer da
sugestão o ponto central da hipnose.‖26 Todavia, são de Freud as investigações
teórico-clínica que fundamentaram sua hipótese de que a histeria era
decorrente do conflito psíquico, e esta etiologia, no decurso de construção de
sua obra, vai se configurando como fator determinante.
Mas, quais foram os ensinamentos oferecidos pela clínica que lhe
permitiram formular suas teorias da histeria de conversão?
24
__________ Estudos sobre Histeria, (1985), 172
__________ As Neuropsicoses de Defesa, (1894), 55
26
__________ Charcot (1893), 30
25
O corpo falante de Elisabeth
Freud declarou-se grato às suas ―geniais histéricas”, por terem
ensinado-lhe o caminho das causas da histeria e a
necessidade
de
mudança da técnica terapêutica. Assim escreveu, Peter Gay, sobre os
ensinamentos clínicos revelados nos Estudos sobre histeria:
―Esses pacientes – e outros, como ―Cäcilie M.‖ , mencionados apenas de
passagem – constituíam-se, para Freud, em um verdadeiro grupo de instrutores, no que
então já se estava transformando a técnica psicanalítica. Emmy von N., uma viúva rica de
meia idade (...) ensinou a Freud a virtude da paciência: interrompida intermitentemente,
pediu a ele, com irritação, que a deixasse terminar a sua estória à sua maneira. ‗Fräulein
Elizabeth von R.‘, ensinou-lhe o valor da livre-associação – de se permitir que os
pensamentos e a fala do paciente se movam a esmo, sem controle racional – e o de
retrabalhar, ou reelaborar, repetidamente, determinados sintomas. ‗Miss Lucy R. (...) fez
com que Freud percebesse o que ademais, já suspeitava: que todo o sintoma é significativo,
nenhum totalmente arbitrário e absurdo. Mais do que isso, Miss Lucy veio a confirmar a
lição anterior de Elizabeth von R.: o valor da livre associação‖27
A riqueza deste trabalho estava na profunda sensibilidade de
observação e de escuta clínica, que lhe permitiram descrever com uma riqueza
de detalhes seus casos clínicos, demonstrando os fundamentos do diagnóstico
de histeria, que em certos aspectos, mantêm-se até hoje. Neste texto, irei determe, no caso da Srta. Elizabeth von R., considerado por Freud ―a primeira
análise integral de uma histeria,‖ para examinar a concepção da doença, seu
diagnóstico e a terapia empregada nesta época. Na elaboração do seu
diagnóstico, Freud argumentou:
27
Gay, Peter. Sigmund Freud: Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1992, 114
―Não achei fácil chegar a um diagnóstico, mas resolvi por duas razões
concordar com o que fora proposto por meu colega, isto é, que se tratava de um caso de
histeria. Em primeiro lugar, fiquei impressionado com a indefinição de todas as
descrições do caráter das dores fornecidas pela paciente, que era, não obstante, uma
pessoa muito inteligente. Um paciente que sofra de dores orgânicas, a menos que além
disso seja neurótico, as descreverá de forma definida e calma. Dirá, por exemplo, que
são dores lancinantes, que ocorrem a certos intervalos, que se estendem deste lugar para
aquele e que lhe parecem ser provocadas por uma coisa ou outra.‖28
A distinção entre o sintoma orgânico e o sintoma histérico já
vinha sendo objeto de estudo por Freud, no texto citado acima, Algumas
considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras
orgânicas e histéricas, no qual reconheceu
que o conhecimento sobre
anatomia em nada contribui para compreensão das paralisias histéricas. Em
Elisabeth, ele observou a expressividade de seu discurso em relação à suas
dores: ela falava de forma indefinida e não calma. Do mesmo modo, para
discernir o quadro clínico da histeria e da neurastenia, ele partiu da
expressividade do paciente, e assinalou:
―Por outro lado, quando um neurastênico descreve suas dores, dá a
impressão de estar empenhado numa difícil tarefa intelectual que ultrapassa em muito suas
forças. Suas feições se contraem e se deformam como se ele estivesse sob a influência de
um afeto angustiante. A voz torna-se mais aguda e ele luta por encontrar um meio de
expressão. Rejeita qualquer descrição de suas dores proposta pelo médico, mesmo que ela
depois se revele inquestionavelmente adequada. Percebe-se que ele é da opinião de
que a linguagem é pobre demais para que ele encontre palavras para descrever suas
sensações e de que essas sensações são algo único e até então desconhecido do qual seria
28
Op. Cit., Estudos sobre Histeria. (1895), 153.
inteiramente impossível dar uma descrição completa. Por esse motivo, ele jamais se cansa
de acrescentar novos detalhes sem cessar e, quando é obrigado a parar, com certeza fica
com a convicção de que não conseguiu se fazer entender pelo médico. Tudo isso porque as
dores atraíram toda a atenção dele para elas. A Srta. von R. comportava-se de forma
inteiramente oposta, e somos levados a concluir que, já que ela ainda assim atribuía
importância suficiente a seus sintomas, sua atenção devia estar em outra coisa, da qual as
dores eram apenas um fenômeno acessório — provavelmente, portanto, em pensamentos e
sentimentos que estavam vinculados a elas.‖29
Neste trecho, Freud destacou dois elementos importantes no
diagnóstico diferencial: a forma indefinida como a Srta. Elizabeth descrevia
suas dores que, em certos momentos, eram tão intensas que impediam-lhe de
caminhar, bem como, seu comportamento ao descrever seus sintomas,
expressando uma falta de atenção, que o levou a crer que ela estava envolvida
por pensamentos e sentimentos vinculadas a elas. Todavia, verificará que este
desvio da atenção, bem com o esquecimento, eram inerentes ao próprio
processo conversivo, que criava esses desvios de rota, para não lidar com a
dor psíquica. Apresentar-se como ―fenômeno acessório‖ ou como uma ―belle
indiference‖ era um meio de lidar com este afeto de dor insuportável.
Outro ponto, também, foi considerado de grande relevância na
formulação de sua hipótese diagnóstica, acrescentou:
―Mas existe um segundo fator que é ainda mais decisivamente favorável a
essa opinião sobre as dores. Quando estimulamos uma região sensível à dor em alguém
com uma doença orgânica ou num neurastênico, o rosto do paciente assume uma expressão
de mal-estar ou de dor física. Além disso, ele se esquiva, retrai-se e resiste ao exame. No
caso da Srta. von R., contudo, quando se pressionava ou beliscava a pele e os músculos
29
Idem
hiperalgésicos de suas pernas, seu rosto assumia uma expressão peculiar, que era antes de
prazer do que de dor. Ela gritava mais e eu não podia deixar de pensar que era como se ela
estivesse tendo uma voluptuosa sensação de cócega — o rosto enrubescia, ela jogava a
cabeça para trás e fechava os olhos, e seu corpo se dobrava para trás. Nenhum desses
movimentos era muito exagerado, mas
era distintamente observável, e isso só podia
ser conciliado com o ponto de vista de que seu distúrbio era histérico e de que o estímulo
tocara uma zona histerogênica.
Sua expressão facial não se ajustava à dor evidentemente provocada pela
beliscadura dos músculos e da pele; provavelmente se harmonizava mais com o tema
dos pensamentos que jaziam ocultos por trás da dor e que eram despertados nela pela
estimulação das partes do corpo associadas com esses pensamentos. Observei
repetidamente expressões de significado semelhante em casos incontestáveis de histeria,
quando se aplicava um estímulo às zonas hiperalgésicas. Os outros gestos da paciente
eram, é claro, indícios muito leves de um ataque histérico.30
A experiência freudiana na escola de Salpêtrière já lhe havia
revelado quão problemática e complexa era a questão da dor no quadro
clínico da histeria: Conforme Manoel Berlinck:
As pacientes de Charcot se deixavam perfurar por grossas agulhas de
tricô, se beliscar por torturantes alicates e se submetiam à ‗excitação mecânica e
elétricas de músculos da face e do corpo durante a letargia hipnótica‘ sem qualquer
manifestação de dor. Essas mesmas pacientes, por sua vez, sofriam dores terríveis em
órgãos que não estavam sob qualquer estímulo potencialmente lesivo observável.31
Será que a insensibilidade à dor física era decorrente do desvio
da atenção da representação afetiva insuportável? Na leitura de Monique
Schneider:
30
31
Idem, 153, 154
Berlinck, Manoel Tosta. Dor. São Paulo: Editora Escuta, 2000, 14
―Freud sublinhará, aliás, que estas representações, às quais o afeto proíbe
o acesso, são precisamente ‗aquelas insuportáveis‘, empregando aqui um qualificativo
‗insuportáveis‘ que, capaz de qualificar as representações, apenas pode fazê-lo em
relação aos afetos que lhe são solidários.‖32
Então, esta leitura ressalta o caráter afetivo da representação.
Será que era esta insuportabilidade que desviava a atenção dos pacientes e
permitiam-lhe submeterem-se à experiência de Charcot, mais que a própria
hipnose? Mas Freud observou que Elizabeth estava envolvida por outros
pensamentos, que pensamentos seriam estes? A explicação, da época, era
que eles estariam relacionados ao grupo psíquico patogênico, que
dissociados da cadeia de pensamentos, mantinham-se como um traço
mnêmico sem força e vitalidade, devido à transformação do afeto
correspondente, em sintoma. Porém, o que absorvia sua atenção já que estes
pensamentos estavam desafetados? Freud explicou esta dissociação entre
afeto e representação através de dois mecanismos: ―o mecanismo de
isolamento,
no
plano
das
representações,
e
o
mecanismo
de
desinvestimento, no plano dos afetos.‖33
Estes elementos de análise diagnóstica, ainda hoje, são
importantes, pois constatou-se, no percurso deste estudo, que pertencem ao
próprio quadro clínico da histeria. Neste sentido, Freud começou a desvendar
um dos enigmas essenciais da histeria: a conversão continha uma dor
afetiva que era ocasionada por um excesso afetivo paralisante, e se
manifestava como dor física, neste caso. E, com base nesta concepção, ele
buscava, na terapia, a catarse do afeto encrostado nas representações
dolorosas, presumidas como responsáveis pela doença, através da fala.
32
Schneider, Monique. Afeto e linguagem nos primeiros escritos de Freud. São Paulo: Editora Escuta,
1993, 54
33
Idem, 65
Daí formulará: ―os histéricos sofrem principalmente de reminiscências.‖34
Mas, qual a sustentação teórica desta assertiva?
Esta asserção fundamentava-se, conforme James Strachey, na
principal posição teórica adotada por Breuer e Freud, na ―Comunicação
Preliminar‖ em 1893, que sustentava a concepção de que:
―no curso normal das coisas, se uma experiência for acompanhada de uma
grande dose de ‗afeto‘, esse afeto é ―descarregado‖ numa variedade de atos reflexos
conscientes, ou então vai-se desgastando gradativamente pela associação com outros
materiais mentais conscientes. No caso dos pacientes histéricos, por outro lado
( ... )
nenhuma dessas coisas acontece. O afeto permanece num estado ―estrangulado‖, e a
lembrança da experiência a que está ligado é isolada da consciência. A partir daí, a
lembrança afetiva se manifesta em sintomas histéricos, que podem ser considerados
como ―símbolos mnêmicos‖ — vale dizer, como símbolos da lembrança suprimida.
Sugerem-se duas razões principais para explicar a ocorrência desse resultado patológico.
Uma delas é que a experiência original ocorreu enquanto o indivíduo se encontrava num
particular estado de dissociação mental, descrito como ―hipnóide‖; a outra é que o ―ego‖
do indivíduo considerou essa experiência como sendo ―incompatível‖ com ele próprio e,
portanto, ela teve de ser ―rechaçada.‖35
Esta concepção sustentará o ponto de vista da teoria da ab-reação,
ou seja, de que na histeria o sintoma contém das lembranças recalcadas
quais devem
ser ab-reagidas. Monique Schneider,
as
na interpretação que
faz dos primeiros escritos de Freud, observou sobre o sentido da fala no
tratamento catártico, dizendo:
―A ação da narrativa como um procedimento expulsivo é esclarecido por
Breuer: trata-se menos de falar, de ‗se contar‘, como diz a tradução francesa, do que sair de
34
35
Freud, S. Cinco Lições de Psicanálise (1910), 18
_______ Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: Comunicação Preliminar. (1983), 25
si, esvaziar-se pela fala; sich aussprechen. É uma metáfora semelhante que Breuer
recorre para designar este trabalho de esvaziamento que seria a base da terapêutica pela
fala: ‗Eu (...) a desvencilhei‘, escreve ele, ‗de todas as reservas de fantasmas acumuladas
desde a minha última visita. Para assegurar o sucesso era necessário que fosse a fundo‘. A
natureza do mal consistiria então em um ‗muito cheio‘, um excesso de excitação que
acharia na fala um meio de se escoar, como se a reminiscência patogênica se tratasse da
indigestão, mais do que da ferida interna.‖36
No caso da Srta. Elizabeth, o tratamento foi conduzido,
principalmente, no sentido de investigar as experiências que haviam sido
rechaçadas pelo ego e que formavam seus sintomas; embora Freud, neste
momento, ainda considerasse como importante a noção de ―estados
hipnóides‖, elaborada por Breuer. Neste caso, ele constatou que ela realmente
havia vivenciado uma série de situações difíceis a um humano, como a morte
do pai e da irmã, pessoas que lhe eram muito queridas, sua grande
preocupação com a saúde da mãe que freqüentemente adoecia, entre outras.
Na época do tratamento, a Srta. Elizabeth tinha 24 anos de idade,
e foi encaminhada por um médico, amigo de Freud, pois queixava-se de
intensas dores na perna, que às vezes a impossibilitava de ficar em pé, de
caminhar e, em alguns momentos, até mesmo deitada não conseguia aliviar-se
das dores. Era a mais jovem das três filhas e havia recentemente perdido seu
pai, por quem tinha uma grande admiração e amor. Essa identificação paterna
gerava-lhe um intenso conflito, pois ao mesmo tempo que se satisfazia em
atender aos ideais desse ―homem alegre e experiente conhecedor da vida que
costumava dizer que aquela filha ocupava o lugar de um filho e de um
amigo com quem ele podia trocar idéias, [também] nessa relação com o pai,
36
Op. Cit., 37
ele não deixava de observar que a constituição mental dela estava, por causa
disso, afastando-se do ideal que as pessoas gostam de ver concretizado numa
moça‖37, principalmente naquela época vitoriana, quando os ideais de uma
mulher deviam restringir-se ao casamento, aos cuidados domésticos e com os
filhos, nisso, ―ela se sentia, de fato, muito descontente por ser mulher. Tinha
muitos planos ambiciosos. Queria estudar ou receber educação musical e
ficava indignada com a idéia de ter de sacrificar suas inclinações e sua
liberdade de opinião pelo casamento.‖38 Suas duas irmãs eram casadas e
tinham filhos, e isto fazia com que refletisse, ainda mais, sobre a sua situação
de jovem solteira.
Durante todo o tempo em que seu genitor esteve doente, ela
dedicou-se, quase que exclusivamente, aos cuidados com ele, renunciando a
seus próprios interesses pessoais e amorosos. Ao recordar, na terapia, deste
período de vida extremamente doloroso, no qual vivia com intenso temor a
possibilidade de perda deste ente tão querido, cuja a doença era muito grave,
Elizabeth lembrou que uma vez se permitiu sair para uma festa em que
poderia encontrar o rapaz por quem estava apaixonada, e que há muito tempo
não o via, devido a sua abnegação. O encontro deixou-a bastante feliz, mas
quando retornou para casa sentiu um profundo remorso por ter saído do lado
do pai, que havia piorado, neste ínterim. Para Freud, esta lembrança fora
muito importante pois permitiu-lhe compreender uma das causas de suas dores
histéricas, escreveu:
―Foi nessa relação, (...), na qual ela atingiu seu auge, que pude procurar as
causas de suas primeiras dores histéricas. O contraste entre os sentimentos de alegria que
37
38
Freud, S. Estudos sobre Histeria (1895), 156
Idem.
ela se permitira ter naquela ocasião e o agravamento do estado do pai com que deparara
ao voltar para casa constituiu um conflito, uma situação de incompatibilidade. O resultado
desse conflito foi que a representação erótica foi recalcada para longe da associação e o
afeto ligado a essa representação foi utilizado para intensificar ou reviver uma dor física
que estivera presente simultaneamente ou pouco antes. Assim, tratava-se de um exemplo do
mecanismo de conversão com finalidade de defesa.‖39
Neste momento inicial da teoria, o que é importante ressaltar é
que a conversão é uma defesa porque neutraliza os efeitos dos afetos aflitivos
condensando-os no sintoma, e a representação desafetada perde seu poder de
ação, não importando se fica fora da consciência ou se torna inconsciente, ela
fica enfraquecida e pode até ser esquecida, mas sempre deixa um traço na
consciência, que pode tanto ser reativado pelas circunstâncias da vida, como
também, pela terapia, que visava a justamente reativá-lo para ser eliminado
via fala. Nesse sentido, Monique Schneider esclareceu, que:
―Para ignorar uma representação, não é no plano intelectual que é preciso
agir; é necessário que esta representação perca seu impacto afetivo. No caso da histeria,
esta neutralização afetiva é possível pela conversão somática: toda a carga afetiva ligada ao
complexo associativo recusado se transforma em dores, paralisias ou outras manifestações
corporais. Achando-se todo potencial afetivo ligado a este
amor recusado drenado
para o corpo, a representação pode, doravante, subsistir com uma feição exangue.‖40
Assim, surge a noção de que na histeria conversão a repressão é
total, porque o sintoma contém a representação afetiva. Por isso, Monique
Schneider vai considerar que:
―É, então, em termos de afeto, que a tentativa de recalque ou de defesa
recebe de Freud sua primeira formulação: ‗Todo estado de desejo‘, escreve ele, ‘cria uma
39
40
Idem, 161
Op. cit., 66
atração em direção ao objeto desejado e também em direção a imagem mnemônica deste
último; todo acontecimento penoso engendra uma repulsão, uma tendência que se opõe ao
investimento da imagem mnemônica hostil. Temos aqui uma atração e uma defesa
primárias. (...) Em lugar de o afeto de repulsão corresponder somente a uma repercussão
que teria, no plano afetivo, o mecanismo ideativo do recalque ele é definido, aqui, como o
que o constitui: nestas primeiras formulações, a articulações das representações, entre si,
seria, então, submetida a esses movimentos primários de atração ou de repulsão.41
Nesta perspectiva, a noção de conflito, fundamentada na teoria
associativa da conversão, não permitia uma leitura mais profunda da dinâmica
do conflito psíquico de Elizabeth, pois buscava-se uma correlação de causa e
efeito entre a vivência traumática e o aparecimento do sintoma. A oposição,
entre a filha querida do pai e a jovem apaixonada, foi apontada como a causa
da formação do sintoma. Mas, por que uma dedicação tão ardorosa ao pai? Por
que o encontro com sua paixão trouxe-lhe tantos arrependimentos e culpa?
Um conflito essencialmente da ordem edípica, e Freud captou  não a partir
de uma leitura da ordem edípica  um certo tipo de relação muito especial
entre este pai e esta filha. Ele sugeriu, inclusive, que o pai de Elizabeth tinha
uma influência importante na problemática sexual da filha: ―nessa relação com
o pai, ele não deixava de observar que a constituição mental dela estava, por
causa disso, afastando-se do ideal que as pessoas gostam de ver concretizado
numa moça.‖ Então, era uma defesa em relação a um conflito de ordem
edípica, com uma ambivalência afetiva muito intensa.
De qualquer forma, o que é importante na terapêutica deste
período, é que a liberação dessa lembrança erótica, que estava contida no
41
Op. cit., 64
sintoma de conversão, produziu um alívio em suas dores e assim, ela pôde
compreender um pouco da sua dinâmica psíquica e colaborar ainda mais
com sua terapia, Freud analisou assim esta ab-reação:
―A descoberta da razão da primeira conversão abriu um segundo período
profícuo do tratamento. A paciente surpreendeu-me logo depois, ao anunciar que agora
sabia por que era que as dores sempre se irradiavam daquela região específica da coxa
direita e atingiam ali sua maior intensidade: era nesse lugar que seu pai costumava apoiar a
perna todas as manhãs, enquanto ela renovava a atadura em torno dela, pois estava muito
inchada. Isso deve ter acontecido uma centena de vezes, mas ela não havia notado a ligação
até esse momento. Assim, ela me forneceu a explicação de que eu precisava quanto ao
surgimento do que era uma zona histerogênica atípica.‖42
Esta explicação, neste momento, foi fundamental porque ele
buscava, justamente, compreender como se forma o processo de conversão:
―A região da perna direita que foi marcada por esse contato ficou sendo, a
partir daí, o foco de suas dores e o ponto de onde elas se irradiavam. Formou uma zona
histerogênica artificial. ( ... ) Na verdade, quando não existem essas conexões tão
numerosas, o sintoma histérico não se forma, pois a conversão não encontra nenhuma trilha
aberta para ela.‖43
Então, neste caso, a conversão resultava de uma conexão
associativa entre dor física e afeto psíquico: esse toque na perna produzia uma
excitação nesta região que associada a idéias eróticas, que provavelmente
afloravam nestes momentos, despertavam sentimentos de repúdio, que se
transformavam em dores. É interessante Freud observar a formação de uma
zona histerogênica como constitutiva da conversão e, em Elizabeth, os traços
mnêmicos das idéias recalcadas se manifestavam pela via da dor, uma dor
42
43
Op. cit., 162
Idem, 184
afetiva. Mas, qual seria essa dor? Ele a interpretou como sendo decorrente do
conflito entre uma jovem apaixonada e uma filha ardorosamente dedicada ao
cuidados do pai. No entanto, seu pai não a proibiu de ir à festa, ao contrário,
incentivou-a, mas ela sentiu um profundo remorso e culpa por estar feliz e seu
genitor haver piorado. Este objeto de amor – pai, era uma figura determinante
na sua vida, ela sentia-se afetada como mulher por atender aos desejos desse
pai. E ele piorou quando ela o deixou. Nessa perspectiva, não é válido pensar
nessa trama familiar incestuosa. Essa coisa inconsciente, não elaborada que se
propaga e aparece no sintoma de Elisabeth, não contém a marca dessa relação
objetal? O insight que ela teve sobre a formação de suas zonas histerogênicas,
após a ab-reação da lembrança traumática, não revelaria essa ambivalência
edípica?
Bem, mas este achado sobre as pernas doloridas tornou-se um
elemento essencial na dinâmica do processo de transferência. Assim, Freud
sublinhou:
―Além disso, suas pernas doloridas começaram a ‗participar da conversa‘
durante nossas sessões de análise. O que tenho em mente é o seguinte fato notável: em
geral, a paciente estava sem dor quando começávamos a trabalhar. Se então, por meio de
uma pergunta ou pela pressão na sua cabeça, eu despertava uma lembrança, surgia uma
sensação de dor, e esta era comumente tão aguda que a paciente estremecia e punha a
mão no ponto doloroso. A dor assim despertada persistia enquanto a paciente estivesse
sob a influência da lembrança; alcançava seu clímax quando ela estava no ato de me
contar a parte essencial e decisiva do que tinha a comunicar, e com a última palavra
desse relato, desaparecia. Com o tempo, passei a utilizar essas dores como uma bússola
para minha orientação: quando a moça parava de falar mas admitia ainda estar sentindo
dor, eu sabia
que ela não me havia contado tudo e insistia para que continuasse sua história, até que a
dor se esgotasse pela fala. Só então eu despertava uma nova lembrança.‖44
A escuta do corpo falante de Elisabeth, como o próprio Freud
nos revelou, constituiu-se num elemento importante no tratamento, e nos
fez pensar que esse aspecto comunicativo do sintoma revela que ele, o
sintoma, estava endereçado a um outro. Por isso mesmo, era preciso
ultrapassar a barreira do afeto doloroso para que a atividade representativa
pudesse pronunciar- se.
Mas, Freud foi bem preciso ao afirmar que não bastava lembrar
o acontecimento
descrevê-lo, pois
traumático e
―uma lembrança
desprovida de carga afetiva é, quase sempre, totalmente ineficaz,‖45 no
tratamento.
Ele enfatizou a importância do processo afetivo, nesta
abordagem econômica e dinâmica da histeria, fundamentada nos princípios
de inércia, de constância e de prazer ―que inscreve, com modalidades
divergentes seguindo o
fundamental
do
princípio
organismo
correspondente,
esta
tendência
visando a regulação, ou a anulação da
excitação. Trata-se, então, conforme Monique Schneider, ―de um postulado
sem o qual nenhum esquema do aparelho seria concebível.‖46
No prefácio do artigo Estudos sobre histeria, James Strachey,
destacou a argumentação de Breuer sobre os afetos.
―Em sua discussão (...) argumenta ele que os afetos devem sua importância
na etiologia da histeria ao fato de serem acompanhados pela produção de grandes
quantidades de excitação, e de estas, por sua vez, exigirem uma descarga, de acordo com
o princípio da constância. De modo semelhante, também as experiências traumáticas
devem sua força patogênica ao fato de produzirem quantidades de excitação grandes
44
Idem, 162, 163
Op. cit., 23
46
Idem, 18
45
demais para serem tratadas da maneira normal. Assim, a posição teórica essencial
subjacente aos Estudos é que a necessidade clínica da ab-reação do afeto e os resultados
patogênicos que surgem quando ele fica estrangulado são explicados pela tendência muito
mais geral (expressa no princípio da constância) a manter constante a quantidade de
excitação.‖47
Strachey sublinhou, também, que já, nesta época, ―o ‗princípio
da constância‘ ( ...) pode ser definido nos termos empregados pelo próprio
Freud em Além do Princípio do Prazer: ‗O aparelho mental esforça-se por
manter a quantidade de excitação nele presente em um nível tão baixo quanto
possível, ou pelo menos por mantê-la constante‘.‖48 Desde então, a concepção
de que existem princípios reguladores do funcionamento psíquico se mantém
no conjunto da obra freudiana.
Nos seus estudos, Monique Schneider comentou sobre a
relevância dos afetos neste momento teórico freudiano:
―O afeto aparece, primeiro, como signo de uma vulnerabilidade inerente ao
sujeito face a uma realidade exterior que o agride e o extravaza. Se, em seguida, Freud é
levado a interiorizar cada vez mais o ponto nevrálgico por onde o ser é abordado, o
ataque externo sendo somente perturbador pela sua conjugação com um ataque interno e
pulsional, os primeiros relatos sobre a experiência catártica insistem sobretudo no poder
alienante da exterioridade capaz de fazer irrupções em mim, de me ferir. (...) o afeto
perturbador estaria no cruzamento entre o sujeito e a realidade exterior encarada sobretudo
no seu poder de agressão e de transbordamento. É a hipótese traumática que fornece o
modelo inicial e o traumatismo em que consiste ‗o pavor‘ é, então, esta irrupção que faz no
ser o ‗incidente desencadeador‘, esta penetração no sujeito de uma exterioridade
insustentável.‖49
47
Op. cit., 26
Idem, 19
49
Op. Cit., 15
48
O traumático é da ordem do excesso, daquilo que o sujeito não
consegue lidar, e em relação ao qual fica subjugado. Assim, a defesa, segundo
a autora, surge contra o excesso de afeto. Diz ela:
―Várias vezes, o afeto aparece neste texto como o que proporciona a solução
mórbida ou a solução sã, sendo ele, na seqüência, conservado ou liquidado. Eliminar o
afeto e reparar a ferida infligida pelo incidente que, passando a um modo puramente
representativo, cessa de ser perigoso e paralisante. Lá onde estava o afeto deve advir a
representação para que os processos psíquicos parem de ser entravados. Neste estágio da
análise, uma apresentação dualista dos fenômenos parece difícil de ser evitada para evitar
este combate (entre as potências escravizantes do afeto e as tentativas verbais) para
reencontrar as representações perdidas.‖50
Nesta perspectiva, a maneira de Freud abordar uma paciente
histérica partia em busca de uma correspondência precisa entre uma dor de
qualidade afetiva e um acontecimento que a teria causado. A Srta.
Elizabeth lembrou de uma série de episódios em sua vida que envolviam suas
dores na perna, provocando a formação da sua astasia-abasia, característica
primordial do seu sintoma conversivo. E esta constatação dará consistência a
sua suposição de que ―um sintoma é determinado de vários modos, é
‗sobredeterminado.‘‖51 No artigo A psicoterapia da histeria, Freud, assim o
definiu:
―Não costumamos encontrar um sintoma histérico único, mas muitos deles,
em partes independentes uns dos outros e em partes ligados . Não esperamos encontrar uma
lembrança traumática única e uma idéia patogênica única como seu núcleo; devemos estar
preparados para sucessões de traumas parciais e concatenacções de cadeiais patogênicas
de idéias.‖52
50
Idem, 20
Op. cit., 281
52
Idem, 279, 280
51
Penso que esta sobredeterminação tem a ver com a trilha formada
pelas diversas conexões entre as representações afetivas incompatíveis, que
irão configurar-se na singularidade do sintoma de conversão.
Dentre as lembranças de Elizabeth, destaca-se aqui a idéia que
formulou após a morte do seu pai – de que atribuía-se a responsabilidade de
proporcionar uma nova vida para sua família, especialmente para a sua mãe
que vinha sofrendo muito com o falecimento do marido. Ela ficou obstinada
por essa idéia e, no entanto, seu intento não podia ser concretizado em virtude
do sintoma de conversão. No processo terapêutico, Freud observou que , ―ela
nunca se cansou de repetir que o doloroso nelas [pernas] tinha sido seu
sentimento de desamparo, o sentimento de que não podia dar um único passo à
frente.‖53 O porquê de a idéia paralisar, na época, Freud não analisava o
caso a partir do efeito do complexo de Édipo, nem da relação prégenital, mãe-filha, na qual poderia ver delinear-se o problema da
bissexualidade das fantasias histéricas. Mas, ele fica atento ao fato de que era
uma idéia perigosa a integridade do ego e o único recurso possível para
defender-se dessa idéia angustiante era a conversão. Porém, essa proteção era
dolorosa e causava-lhe um profundo sentimento de desamparo ao ver-se
imobilizada, sem poder dar um único passo a frente. ―Nessa ocasião, Elisabeth
sentiu de maneira intensa seu desamparo, sua incapacidade de proporcionar à
mãe um substituto pela felicidade que perdera e a impossibilidade de levar a
cabo a intenção que tivera quando da morte do pai.‖54 Freud observou que seu
sintoma de imobilidade retratava a elaboração simbólica de sua impotência.
53
54
Idem, 166
Idem
Essa questão do sintoma como defesa, como único recurso
possível para aliviar a intensa dor psíquica, é muito importante e complexa.
Pois, ao mesmo tempo em que se constitui uma defesa, constitui-se,
também, uma ameaça que produz um profundo sentimento de desamparo, de
impotência, frente ao desconhecido, que nesta época, Freud denominava grupo
psíquico isolado, separado da consciência, grupo de representações
incompatíveis, recalcadas. E, não será, que é justamente, por que produz um
sentimento de intenso desamparo, de impotência, que o paciente vai em busca
de seu tratamento? Será essa a dialética do sintoma?
Na discussão do caso, Freud esclareceu que sobre o motivo da
divisão de consciência de Elisabeth:
―O motivo foi o de defesa – a recusa, por parte de todo ego da paciente , a
chegar um acordo com esse grupo representativo. O mecanismo foi de conversão, isto é, em
lugar das dores mentais que ela evitou, sugiram as dores psíquicas. Desse modo,
efetuou-se uma transformação que teve a vantagem de livrar a paciente de uma condição
mental intolerável, embora, é verdade, à custa de uma anormalidade psíquica – a divisão da
consciência que se efetuou – e de uma doença física – suas dores, sobre as quais se
desenvolveu sua astasia-abasia.‖55
Então, o sintoma como defesa vai-se delineando e revelando sua
complexidade pois, ao mesmo tempo em que Freud, o identificava como uma
defesa frente a idéias que suscitavam excessos de excitação, daí a grande
resistência para enunciá-las, ao mesmo tempo, ele gerava um grande
sentimento de desamparo, frente a impossibilidade do paciente realizar
seus desejos, e não saber o porquê disso. Descobriu que, na realidade, ―o ‗não
saber‘ do paciente histérico seria, de fato, um ‗não querer saber,‘‖56 devido
55
56
Idem, 177
Idem, 265
ao processo psíquico de resistência. A compreensão da resistência como
manutenção dessa defesa emergiu justamente com a mudança na técnica
terapêutica que a clínica solicitava, a própria Elizabeth colocou uma série de
objeções a hipnose, exigindo de Freud uma adequação ao caso:
―A história que a Srta. Elisabeth me relatou de sua doença foi cansativa,
composta de muitas experiências penosas diferentes. Enquanto fazia o relato, ela não ficava
sob hipnose, mas eu a fazia deitar-se e conservar os olhos fechados, embora não me
opusesse a que os abrisse ocasionalmente, mudasse de posição, se sentasse e assim por
diante. Quando ela ficava mais profundamente emocionada do que de costume com uma
parte da história, parecia cair num estado mais ou menos semelhante à hipnose. Ficava
então imóvel e mantinha os olhos bem fechados.57
Assim, com este procedimento, outro desejo de Elizabeth
extremamente conflitante revelava-se: seu grande amor pelo cunhado, marido
de sua segunda irmã, que veio a falecer repentinamente. Ela sentia-se muito
ameaçada por esse desejo inconsciente e o tratava com muita resistência.
Freud já suspeitava desse desejo amoroso e buscava recursos terapêuticos que
possibilitassem a sua liberação, dentre estes, mandou-a visitar o túmulo da
irmã, pois ―não hesitava em colocá-la em situações projetadas para despertar
novas lembranças.‖58 Todavia, pareceu-lhe que este recurso não era muito
eficaz e durante muito tempo a paciente não dava-se conta desse desejo, mas
seu sintoma nunca deixava de evidenciá-lo. Conforme Freud:
―constatou-se ainda, sem qualquer sombra de dúvida, que suas dores ao
andar e ao ficar de pé eram, de início, aliviadas quando ela se deitava. As dores só
passaram a se relacionar com o ficar deitada quando, após ter notícia da doença da irmã, ela
viajou de volta de Gastein [loc. cit.] e foi atormentada durante a noite tanto pela
57
58
Idem, 163
Idem, 165
preocupação com a irmã quanto por dores lancinantes, tendo ficado estendida e insone no
vagão de trem. E por muito tempo depois disso, deitar-se foi, na realidade, mais doloroso
para ela do que andar ou ficar de pé.‖59
Essa evidência transparecia no sintoma: a conversão assumia a
forma nítida do desejo doloroso mas, também, prazeroso e, à medida em que a
oposição entre esses pólos desejantes intensificava-se, mais ele aflorava na
sessão terapêutica. E, numa das sessões:
―A paciente, mergulhada em suas lembranças acridoces, não parecia notar
para onde se estava encaminhando e continuou a reproduzir suas recordações. Passou a
falar de sua visita a Gastein, da ansiedade com que aguardava cada carta e finalmente das
más notícias sobre a irmã, da longa espera até o anoitecer, que foi o primeiro momento em
que puderam partir de Gastein, e então da viagem, feita numa torturante incerteza, e da
noite insone — tudo isso acompanhado por um violento aumento das dores. Pergunteilhe se durante a viagem havia pensado na possibilidade deplorável que depois se
concretizou. Respondeu-me que evitara cuidadosamente pensar nela, mas acreditava que
desde o início a mãe havia esperado o pior. Suas lembranças passaram então à chegada a
Viena, à impressão que lhes causaram os parentes que as esperavam, à curta viagem de
Viena até a estação de veraneio próxima onde morava a irmã, à chegada à noite, à
caminhada apressada pelo jardim até a porta da casa ajardinada, ao silêncio que reinava em
seu interior e à escuridão opressiva. Lembrou que o cunhado não estava lá para recebêlas e que ficaram diante da cama, olhando para a irmã morta. Naquele momento de
terrível certeza e que a irmã amada estava morta sem ter-lhes dito adeus, e sem que ela lhe
tivesse aliviado os últimos dias com seus cuidados, naquele exato momento outro
pensamento atravessou a mente de Elisabeth, e agora se impunha de maneira irresistível a
59
Idem
ela mais uma vez, como um relâmpago nas trevas: Agora ele está livre novamente e posso
ser sua esposa.60
Um aspecto importante, desta sessão, foi que Elizabeth pôde
mergulhar nas suas lembranças e seguiu livre-associando até chegar no ponto
máximo da origem de suas dores ao deitar-se. Estas experiências da clínica
conduziram Freud a um afastamento cada vez maior da hipnose e à
formulação do método da livre-associação como meio mais eficaz para
superação das resistências, que constituíam-se no grande entrave terapêutico.
Assim:
―foi o abandono do hipnotismo que ampliou ainda mais sua compreensão
dos processos mentais. Esse abandono revelou a presença de mais um obstáculo – a
‗resistência‘ dos pacientes ao tratamento, sua relutância em cooperarem na própria cura.
Como se deveria lidar com essa relutância? Deveria ser suprimida com gritos ou afastadas
com
a
sugestão?
Ou
deveria, como
outros
fenômenos
mentais,
ser
simplesmente investigada? A opção de Freud por esse segundo caminho levou-o
diretamente ao mundo desconhecido que iria passar a vida inteira explorando.‖61
Este conflito foi considerado como ―ponto central da história da
doença,‖62 em Elizabeth. Pareceu-lhe que, a partir dessa revelação, as trilhas
amorosas que formavam o conteúdo da conversão tornaram-se mais flexíveis,
e ela pode seguir sua vida com mais satisfação pela possibilidade de
compreender com mais discernimento o que ocasionava seu sofrimento. Freud
explicou assim esse conflito:
―Tudo ficou claro então. Os esforços do analista foram ricamente
recompensados. Os conceitos de ―rechaço‖ de uma representação incompatível, da gênese
dos sintomas histéricos através da conversão de excitações psíquicas em algo físico e da
60
Idem, 169
Idem, 259
62
Idem, 175
61
formação de um grupo psíquico separado, através do ato de vontade que conduziu ao
rechaço — todas essas coisas, naquele momento, apareceram diante de meus olhos de
forma concreta. Assim, e de nenhuma outra maneira, as coisas haviam ocorrido nesse
caso.‖63
Por que este amor pelo cunhado era tão repudiado? Por que tanto
temor em mergulhar nas lembranças amorosas que exigiu do analista
esforços? Pensamos que a argumentação de Monique Schneider nos ajuda a
clarear muitas indagações. Diz ela:
―quando Elisabeth está em condições de ‗admitir‘ nela a idéia de que ama seu cunhado, não
seria ela conduzida a uma constatação de impotência? Isto de que toma repentinamente
consciência, não é o espetáculo constituído pelo amor que é o seu. Encontra-se, de
repente, presa nele, invadida por ele, descobrindo, como seu, um movimento que ela
queria poder olhar como uma simples possibilidade. (...) O objetivo da resistência era,
na verdade, manter a ilusão da exterioridade, permitindo ao sujeito evitar esta queda
em si, este abandono em que consiste o ‗reconhecimento da realidade‘. (...) Para
Elisabeth, reconhecer seu amor pelo cunhado não é efetuar uma constatação, é correr o
risco de se deixar levar, já que a Annahme é, indissoluvelmente, reconhecimento e
adoção. É nisto que a admissão de uma representação constitui um movimento
indissoluvelmente representativo e afetivo.‖64
Freud observou que quando ela, com muito esforço, admitiu o seu
amor pelo cunhado, algo mudou: ―A frieza de sua natureza começou a ceder
e ela admitiu para si mesma sua necessidade do amor de um homem.‖ 65 Neste
ponto, a admissão por parte do eu implica numa modificação profunda, já que
esse reconhecimento é da ordem do desejo, um desejo que é próprio do
sujeito. Sendo assim, Monique Scheneider acrescenta:
63
Idem, 169
Op. Cit., 73
65
Op. cit., 282
64
―E é, igualmente, sobre este plano corporal que deverá realizar a admissão
da representação. Modificação corporal que terá seu ritmo e lentidão próprios. (...) Adotar
uma representação não é, então, simplesmente adotar uma idéia, mas integrar o movimento
corporal que lhe é correlativo, movimento que, convertendo-se em afeto, tornar-se-á
suscetível de uma aceitação psíquica.‖66
Essas formulações são importantes para Freud situar-se a respeito
do sintoma na vida de seus pacientes, assim, reavalia sua concepção em A
psicoterapia da histeria:
―Dissemos que esse material se comporta como um corpo estranho, e que
também o tratamento atua como a remoção de um corpo estranho do tecido vivo.
Estamos agora em condições de ver onde essa comparação fracassa. Um corpo estranho
não entra em qualquer relação com as camadas de tecido que o circundam, embora as
modifique e exija delas uma inflamação reativa. Nosso grupo psíquico patogênico, por
outro lado, não admite ser radicalmente extirpado do ego. Suas camadas externas
passam em todas as direções para partes do ego normal; e, na realidade, pertencem
tanto a este quanto a organização patogênica. Na análise, a fronteira entre os dois
é fixada de maneira puramente convencional, ora num ponto, ora em outro, sendo que
em alguns lugares não pode em absoluto ser estabelecida. As camadas internas da
organização patogênica são cada vez mais estranhas ao ego, porém mais uma vez sem
que haja nenhuma fronteira visível em que se inicie o material patogênico. De fato, o
organização patogênica não se comporta como um corpo estranho, porém muito mais
como um infiltrado. Nesse símile, a resistência deve ser considerada como aquilo que se
infiltra. E o tratamento também não consiste em extirpar algo — a psicoterapia até agora
não é capaz de fazer isso — mas em fazer com que a resistência se dissolva e assim
permitir que a circulação prossiga para uma região que até então esteve isolada.67
66
67
Op. Cit., 78
Op. cit., 282
Embora, reconheça, neste artigo, o sintoma como algo que se
infiltra, ele retomará, nos seus trabalhos posteriores, a noção de corpo
estranho.
Monique Schneider ressaltou a relevância do caso Elisabeth, na
elaboração da primeira teoria freudiana, dizendo:
―É o estudo de Elizabeth que marca a reviravolta mais nítida, e Freud
abandona, por sua causa, as metáforas anais por metáforas orais. Assimilar em vez de
expulsar o que era então visto como aporte essencialmente de origem externa, pois que
acidental. O amor de Elisabeth pelo cunhado, mesmo que adivinhado em circunstâncias
acidentais e dramáticas, não poderia ser compreendido sob a forma de um ‗incidente
desencadeador‘ do qual bastaria se livrar, tal como se remete ao exterior um agressor, ele
mesmo externo. A agressão é, aqui, interna, pulsional e nenhuma fuga eficaz poderia evitála. Nenhuma via de salvação fora do reconhecimento, da adoção. Nesta passagem da teoria
do traumatismo à de uma agressão pulsional, Freud se acha compelido a abandonar
tanto sua metáfora do corpo estranho, externo, quanto a da terapêutica com rejeição: (...) A
terapêutica não consiste em extirpar (...), mas se esforça em fazer cessar a resistência para
permitir, assim, a livre circulação em uma via até então barrada.‘‖68
É com base, no ponto de vista econômico e dinâmico, que Freud
elabora sua primeira concepção teórica da histeria e, assim, o método
terapêutico empregado – método cartático – corresponde a esta teoria. O
processo terapêutico era conduzido no sentido de desvendar esses grupos de
representações consideradas incompatíveis ao ego. Nesse caminho, logo foi
identificado um processo de resistência que dificultava a revelação do
conteúdo dessas representações via a fala, reconhecida, desde então, como
68
Op. cit., 77, 78
meio próprio para ab-reagí-los. Contudo, Freud indagava-se sobre o porquê da
resistência, já que a ab-reação proporcionava um alívio ao sofrimento.
Dedicou-se, então, a pesquisar e analisar o conteúdo dessas
representações e a dinâmica do conflito psíquico. A análise do material clínico
de seus pacientes, das representações inadmissíveis à consciência, ou seja, ao
ego, revelou ―uma característica universal de tais representações: eram todas
de natureza aflitiva, capazes de despertar afetos de vergonha, de autocensura e
dor psíquica, além do sentimento de estar sendo prejudicado; eram todas de
uma espécie que a pessoa preferiria esquecer‖.69 É importante sublinhar que a
análise dessas lembranças não fundamentava-se, ainda, numa investigação da
sexualidade, embora Freud, já reconhecesse
a natureza erótica de seus
conteúdos. Mas, o que evidencia-se aqui é um conflito:
―Entre o seu amor pelo cunhado e o conjunto de suas concepções morais há,
para Elisabeth, uma relação de incompatibilidade ou de contradição. (...) Se o conflito
destroça a paciente é porque opõe, não simples idéias, mas movimentos passionais no
interior dos quais ela está profundamente engajada. Para designar o motivo desta
dissociação à qual Elisabeth recorrerá, Freud se referirá a fatores afetivos e não lógicos ou
representativos: ‗A defesa, a revolta de todo o eu contra a aceitação deste grupo de
representações, era o motivo, ou seja, a repulsão de todo o eu em se acomodar a este grupo
de representações‘. É, então, essencialmente o caráter penoso do afeto – repulsão,
vergonha, revolta – que está na origem da cisão que a paciente vai tentar introduzir no
plano das representações.‖70
E, são estes fatores que nortearão o caminho da investigação
freudiana conduzindo-o ao reconhecimento de que o sexual e o infantil são os
determinantes das psiconeuroses, e este fundamento só foi possível construí-
69
70
Op. cit., 264
Op. cit., 63
lo com a descoberta do inconsciente. A análise do caso Dora permite
compreender esta nova concepção.
A oralidade de Dora
Dos Estudos sobre histeria (1895) ao Fragmento da análise de
um caso clínico (1905) há uma vasta e rica produção freudiana que lhe
possibilitou uma compreensão mais refinada e aguçada da estrutura interna da
histeria. As elaborações clínicas, deste período, encaminharam-no, através
das fantasias e dos sonhos, ao enigmático campo psíquico do inconsciente.
Auxiliado
por
sua
auto-análise
e
por sua clínica, Freud começou a
duvidar da veracidade da sua teoria da sedução, pois reconheceu que ―no
inconsciente não há indicações da realidade, de modo que não se consegue
distinguir entre a verdade e a ficção que é catexizada com o afeto.‖71
Ele já tratava desta questão, no Projeto para uma psicologia
científica,1895, quando distinguiu os processos primário e secundário,
postulando que o estado de desejo, que é próprio do inconsciente, cria uma
idéia imaginária que não corresponde a uma realidade, porém esta explicação
atém-se mais a uma visão neurológica do problema. Assim, foi sendo
conduzido a reconhecer que:
―somente com a introdução das fantasias histéricas é que se tornaram
inteligíveis a textura da neurose e seu vínculo com a vida do enfermo; evidenciou-se
também uma analogia realmente espantosa entre essas fantasias inconscientes
71
Freud, S. Extratos dos documentos dirigidos a Fliess (1950), 358.
dos
histéricos e as criações imaginárias que, na paranóia, tornam-se conscientes como
delírios.‖72
Nesse sentido, observou o erro da teoria da sedução, dizendo ter
supervalorizado a realidade e subvalorizado a infância. Anunciou esse
acontecimento a Fliess, ―e sua descoberta quase simultânea do complexo de
Édipo,
feita
em
sua
auto-análise,
(...)
levou
inevitavelmente
ao
reconhecimento de que as moções sexuais atuavam normalmente nas crianças
da mais tenra idade, sem nenhuma necessidade de estimulação externa.‖73
A partir dessa perspectiva, Freud começou a fazer, da realidade
psíquica e do mundo das fantasias, o campo específico da pesquisa
psicanalítica. Pode-se considerar, que sua obra prima, A interpretação dos
sonhos, 1900, constituiu-se, num marco histórico-conceptual, deste novo
campo de pesquisa. Para ele, ―a interpretação dos sonhos é na realidade a
estrada real para o conhecimento do inconsciente, a base mais segura da
psicanálise.‖74
Apresentou,
então,
neste
trabalho,
sua
primeira
tópica,
concebendo o aparelho psíquico como sendo constituído por três sistemas
psíquicos: o inconsciente, o pré-consciente e o consciente, especificando que
cada um desses sistemas possuía um modo próprio de funcionamento, que
Freud denominou processo primário e processo secundário. Caracterizou o
sistema inconsciente com sendo regido pelo processo primário que tinha o
deslocamento, a condensação e a sobredeterminação como fatores
determinantes na dinâmica de seu funcionamento. Identificou que o conteúdo
inconsciente era infantil e sexual e, por isso mesmo, gerador de intensos
conflitos.
72
_______ Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses (1906), 258
_______Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), 121
74
_______ Cinco Lições de Psicanálise. (1910), 32.
73
Todavia, esta nova formulação teórica só pode ser concebida com
a concomitante mudança na técnica analítica. Dessa forma, afirmou Freud, no
seu artigo Fragmento da análise de um caso de histeria,1905:
―... desde os Estudos, a técnica psicanalítica sofreu uma revolução radical.
Naquela época, o trabalho [de análise] partia dos sintomas e visava esclarecê-los um após o
outro. Desde então, abandonei essa técnica por achá-la totalmente inadequada para lidar
com a estrutura mais fina da neurose. Agora deixo que o próprio paciente determine o tema
do trabalho cotidiano, e assim parto da superfície que seu inconsciente ofereça a sua
atenção naquele momento (...), a nova técnica é muito superior à antiga, e é
incontestavelmente a única possível.‖75
O tratamento de Dora foi realizado em 1900, e teve pouco tempo
de duração, três meses, ―tendo sido interrompido por vontade própria da
paciente depois de chegar a certo ponto.‖76 Logo após a interrupção, Freud o
redigiu, mas só o publicou em 1905. Conforme James Strachey, este artigo ―é
um fragmento de análise de um caso de histeria em que as explicações se
agrupam em torno de dois sonhos. (...) Contém ainda resoluções de sintomas
histéricos e considerações sobre a base sexual-orgânica de toda a
enfermidade‖77
Este artigo ―forma um elo entre A Interpretação dos Sonhos e os
Três Ensaios.”78 É muito interessante essa articulação do pensamento
freudiano, na construção desse conjunto teórico, há
uma seqüência: da
descoberta da fantasia de sedução, ele vai afastando-se do acontecimento da
realidade externa e penetrando no caminho obscuro dos sonhos, desvendando,
75
_________ Fragmento da análise de um caso de histeria (1905), 20.
Idem
77
Idem, 13
78
Idem.
76
assim, a dinâmica psíquica do processo inconsciente. Nessa trilha,
ele
deparou-se com o infantil e o sexual humano, reconhecendo estes, como
determinantes etiológicos do fenômeno psicopatológico. O caso Dora vem
revelar os fundamentos clínicos desta hipótese, levando-o à elaboração de sua
teoria da sexualidade infantil. Para o editor inglês, os ―Três Ensaios sobre a
Teoria da Sexualidade, juntamente com A Interpretação dos Sonhos, figuram
sem dúvida como as contribuições mais significativas e originais de Freud
para o conhecimento humano.‖79
Desse modo, neste trabalho, vou fundamentar esta investigação
da segunda teoria etiológica freudiana da histeria de conversão, no estudo do
caso clínico Dora e da sua teoria da sexualidade infantil.
Dora, uma jovem inteligente e perspicaz, tinha 18 anos quando fez sua análise
com Freud. Era a filha mais nova do casal, e tinha um irmão, um ano e meio
mais velho que ela. Mantinha uma relação de muita admiração e devoção ao
pai, principalmente, quando este, que tinha uma saúde muito frágil, adoecia.
Porém, com sua mãe, a relação era hostil. Neste aspecto, Dora e a Srta.
Elisabeth, eram muito parecidas. As duas jovens eram dedicadas aos cuidados
com seus pais, os quais tinham uma influência marcante na formação de suas
filhas. Todavia, Freud, na análise de ambos casos, não atentou-se para a
relação mãe-filha com mais profundidade. Neste artigo, bem como, na
Interpretação dos Sonhos,
Freud
fez uma pequena referência à trama
edipiana na relação entre pais e filhos. Nos Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade vai abordar o complexo de Édipo, revelando sua importância
na vida do sujeito. Mas, a complexidade desse fenômeno, tomou sua forma
79
Idem
mais consistente com o estudo sobre a interdição do incesto e a elaboração da
fase fálica, na organização sexual infantil.
Freud investigou a história da doença de Dora e descobriu que
seus sintomas neuróticos datavam desde sua infância, já aos oito anos passou a
sofrer de dispnéia crônica e o médico da família diagnosticou o ―distúrbio
como puramente nervoso.‖80 Seu psicanalista, distinguiu algumas de suas
manifestações sintomáticas, como: ―dispnéia, tussis nervosa, afonia e
possivelmente enxaquecas, junto com depressão, insociabilidade histérica e
um taedium vitae.‖81 No entanto, devido o curto período do tratamento, apenas
alguns poucos sintomas puderam ser elucidados na psicoterapia; outros, Freud
fez especulações a respeito da sua possível origem e formação mas, muitos
permaneceram incompreendidos.
Embora, a formulação do inconsciente, houvesse trazido à luz
uma nova compreensão muito mais profunda das bases etiológicas da histeria,
alguns importantes pontos da primeira teoria mantiveram-se. Assim Freud,
pontuou no caso Dora:
―Desde então tenho visto inúmeros casos de histeria, ocupando-me de cada
um por vários dias, semanas ou anos, e em nenhum deles deixei de descobrir as condições
psíquicas postuladas nos Estudos, ou seja, o trauma psíquico, o conflito dos afetos e, como
acrescentei em publicações posteriores, a comoção na esfera sexual.‖82
Entretanto, neste novo ponto de vista, o próprio conceito de
trauma ampliou-se. O incidente traumático, nesta perspectiva, tanto podia ser
provocado por um agente externo, quanto por ―influências ou impressões que
80
Idem, 28
Idem, 30
82
Idem, 31
81
pudessem ter surtido efeito análogo ao de um trauma.‖83 Por exemplo, Freud
considerou:
―A experiência de Dora com o Sr. K – suas propostas amorosas a ela e a
conseqüente afronta a sua honra – parece fornecer, no caso de nossa paciente, o trauma
psíquico que Breuer e eu declaramos no devido tempo (Na Comunicação preliminar), ser a
condição prévia indispensável para a gênese de um estado patológico. Mas este novo caso
também mostra todas as dificuldades que depois me fizeram ir além dessa teoria ... o
trauma que sabemos ter ocorrido na vida do paciente não basta para esclarecer a
especificidade do sintoma, para determiná-lo.‖84
A cena do beijo na loja do Sr. K., que ficou mantida em segredo
até o momento de sua revelação na análise, produziu três distintos sintomas, a
partir dos quais, Freud elaborou sua explicação quanto ao processo de
formação dos sintomas, neste caso.
―Vale ressaltar que, aqui, três sintomas — a repugnância, a sensação de
pressão na parte superior do corpo e a evitação dos homens em conversa afetuosa —
provinham de uma mesma experiência, e somente levando em conta a inter-relação desses
três signos é que se torna possível compreender o processo de formação dos sintomas. O
nojo corresponde ao sintoma do recalcamento da zona erógena dos lábios (mimada demais
em Dora, pelo sugar infantil). A pressão do membro ereto provavelmente levou a uma
alteração análoga no órgão feminino correspondente, o clitóris, e a excitação dessa segunda
zona erógena foi fixada no tórax por deslocamento para a sensação simultânea de pressão.
O horror aos homens que pudessem achar-se em estado de excitação sexual obedece ao
mecanismo de uma fobia destinada a dar proteção contra o reavivamento da percepção
recalcada.‖85
83
Idem, 34
Idem, 33
85
Idem, 36.
84
Nessa perspectiva, a formação dos sintomas obedecem aos
mesmos princípios e mecanismos que regem o processo de formação dos
sonhos, ou seja, condensação, deslocamento e sobredeterminação, com a
diferença de que, observou seu teórico: “O sonho é, em suma, um dos desvios
por onde se pode fugir ao recalcamento, um dos principais recursos do que se
conhece como modo indireto de representação no psíquico.‖86 O conceito de
recalcamento está presente na obra freudiana desde os primórdios de sua
investigação da histeria, no primeiro momento, o recalcamento era utilizado
como equivalente de defesa, o ponto de vista era de que o recalque
transformava uma representação poderosa numa representação fraca,
retirando-lhe o afeto, ou seja, a idéia recalcada persistiria como um traço
mnêmico fraco, de pouca intensidade, enquanto, o afeto dissociado da idéia
seria utilizado para inervação somática.
No artigo Observações adicionais sobre as neuropsicoses de
defesa, de 1894, Freud questionava-se sobre por que das representações de
conteúdo sexual serem recalcadas. Respondeu, enfatizando ―o tipo de relação
invertida entre a experiência real e a lembrança‖ esta parecia ser ―a
precondição psicológica para a ocorrência de um recalcamento.‖87 Ressaltou,
então, que a lembrança produzia um efeito excitatório muito mais intenso que
a própria vivência. Contudo, neste novo caminho da investigação
psicanalítica, ou seja, da investigação da sexualidade infantil inconsciente, a
teoria do recalcamento tem uma nova dimensão, tornou-se muito mais
complexa, acentuando os fatores constitucionais e hereditários como
determinantes do processo do recalque.
86
87
Idem, 23.
_________ Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa (1896), 158.
No artigo, Minhas teses sobre o papel sexualidade na etiologia das
neurose, de 1905, ele esclareceu:
―Assim, as influências acidentais recuaram ainda mais em contraste com o
―recalcamento‖ (como comecei a dizer em lugar de ―defesa‖). Não importavam, portanto,
as excitações sexuais que um indivíduo tivesse experimentado em sua infância, mas antes,
acima de tudo, sua reação a essas vivências — se respondera ou não a essas impressões
com o ―recalcamento‖. Viu-se que, no curso do desenvolvimento, a atividade sexual
infantil era amiúde interrompida por um ato de recalcamento. Assim, o indivíduo neurótico
sexualmente maduro geralmente trazia consigo, da infância, uma dose de ―recalcamento
sexual‖ que se exteriorizava ante as exigências da vida real, e as psicanálises de histéricos
mostraram que seu adoecimento era conseqüência do conflito entre a libido e o
recalcamento sexual, e que seus sintomas tinham o valor de compromissos entre as duas
correntes anímicas.‖88
A psicanálise de Dora foi muito produtiva no sentido de mostrar a
intensa vivência sexual nos primeiros anos de vida, bem como, permitiu uma
maior compreensão a respeito da formação dos sintomas. Por exemplo, o
sintoma de pressão no tórax, que surgiu logo após a cena do beijo, estava
associado ao sentimento de repugnância que Dora sentiu ao ser beijada. Mas,
por que a repugnância frente à excitação sexual?
Na sua análise, Freud partia da premissa de que ele ―tomaria por
histérica, sem hesitação, qualquer pessoa em que uma oportunidade de
excitação sexual despertasse sentimentos preponderante ou exclusivamente
desprazerosos, fosse ela ou não capaz de produzir sintomas somáticos.‖89
E,
neste caso,
tornava-se
mais evidente
ser um sintoma
histérico, pelo fato de ela, em diversos momentos da análise, ter revelado seu
88
89
Op. cit., 260.
________ Fragmento da análise de um caso de histeria (1905), 35.
interesse por este homem. Sendo assim, foi possível identificar que seus
sintomas de conversão haviam-se formado através de dois mecanismos: a
inversão do afeto e o deslocamento da sensação. Freud havia descrito a
repugnância, como um afeto que produzia uma intensa sensação de desprazer,
que ele considerou ser própria da membrana mucosa da entrada do tubo
digestivo. Assim, ele interpretou a sensação inocente de pressão no tórax de
que Dora falava, Disse ele:
―Vale ressaltar que, aqui, três sintomas  a repugnância, a sensação de
pressão na parte superior do corpo e a evitação dos homens em conversa afetuosa  de
uma mesma experiência, e somente levando em conta a inter-relação desses três signos é
que se torna possível compreender o processo de formação dos sintomas.‖90
Assim Freud, vai elucidando o processo de conversão. Em
Elisabeth, ele já havia tratado sobre a formação de uma zona histerogênica,
com Dora, vai associando, o sintoma com a sexualidade, o que dará origem ao
conceito de zona erógena. Aprofundou-se na história de sua paciente e
descobriu que, essa área da boca e dos lábios, constituíam-se, para ela, numa
zona erógena, por ter sido altamente estimulada na sua infância. Escreveu:
―Ela lembrava muito bem de ter sido, na infância, uma chupadora de dedo (...)
autogratificação pelo ato de chupar (...) a intensa atividade dessa zona erógena em idade
precoce constitui, portanto, a condição para a complacência somática posterior do trato da
membrana mucosa que começa nos lábios (...) para substituir, na situação de satisfação, o
mamilo imaginário e o dedo que fazia às vezes dele pelo objeto sexual atual, o pênis.
Assim, essa fantasia perversa e sumamente escandalosa de chupar o pênis tem a mais
inocente das origens (...) impressão pré-histórica de sugar o seio da mãe ou da ama –
90
Idem, 36.
uma impressão comumente revivida no contato com crianças que estejam sendo
amamentadas.‖91
Nos Três Ensaios, Freud caracterizou uma zona erógena, dizendo:
―Trata-se de uma parte da pele ou da mucosa em que certos tipos de
estimulação provocam uma sensação prazerosa de determinada qualidade.‖92
Reconhecendo, dessa forma, a existência de uma propriedade erógena do
corpo que permite a qualquer parte corporal, qualquer órgão, transformar-se
em
zona de prazer. No entanto, existem algumas áreas que estão
predestinadas a serem uma zona erógena, como: os lábios, o anus, os genitais,
que ele chamou de zona erógena primária. Mas, verificou que é somente a
intensa atividade dessa zona, em idade precoce, que constrói a trilha da
conversão que, neste texto, foi denominada de complacência somática. Essa
complacência somática pode ser ―fornecida por algum processo normal ou
patológico no interior de um órgão do corpo ou com ele relacionado.‖93
Dessa forma, o processo de conversão instaura-se através das
vivências sexuais infantis e, é esta característica que possibilita a formação do
mecanismo de sobredeterminação do sintoma, quer dizer, ―um sintoma
corresponde simultaneamente a diversos significados,‖ mas, também, ―há
como que um traço conservador no caráter das neuroses‖94, dirá Freud:
―e é tão raro dispor-se da complacência somática necessária à conversão,
que o impulso para a descarga da excitação vinda do inconsciente utiliza, tanto quanto
possível, qualquer via de descarga já transitável. Muito mais fácil do que criar uma nova
conversão parece ser a produção de vínculos associativos entre um novo pensamento
carente de descarga e o antigo, que já não precisa dela. Pela via assim facilitada flui a
excitação da nova fonte excitante para o antigo ponto de descarga, e o sintoma se
91
Idem, 55.
_______ Três ensaios sobre a teoria da sexualidade infantil, 171.
93
Op. cit., 45
94
Idem, 56
92
assemelha, segundo as palavras do Evangelho, a um odre velho repleto de vinho novo. Por
estas observações, a parte somática do sintoma histérico parece ser a mais estável e a mais
difícil de substituir, enquanto a psíquica se afigura como o elemento mais variável e mais
facilmente substituível. Todavia, não se deve pretender inferir dessa relação nenhuma
hierarquia entre os dois elementos. Para a terapia psíquica, a parte psíquica é sempre a mais
significativa.‖ 95
A conexão entre a expressão sintomática de Dora e seus
pensamentos inconscientes revelou, claramente, que suas inclinações
perversas advinham da infância, a mucosa da boca havia-se constituído numa
zona erógena privilegiada por uma intensa atividade prazerosa. Seus sintomas
conversivos – afonia, tosse – indicavam haver neles, as características de
exclusividade e fixação, que definiam a perversão. Era inevitável, então, o
reconhecimento de que ―as forças impulsoras da formação dos sintomas
histéricos não prov[inham] apenas da sexualidade normal recalcada, mas
também das moções perversas inconscientes.‖96
Outra fonte de grande conflito na vida de Dora era sua forte
predisposição homossexual. Freud já havia observado, sua preocupação
excessiva com o relacionamento de seu pai com a Sra. K. Ela falava de uma
seqüência de fatos e acontecimentos, que justificavam sua suposição da
relação amorosa entre eles. Freud já havia observado que, uma ―seqüência
hiperintensa de pensamentos deve seu reforço ao inconsciente‖. Em geral,
―um pensamento é consciente com hiperintensividade, enquanto sua
contrapartida é recalcada e inconsciente. Essa relação entre os dois
pensamentos é um efeito do processo de recalcamento.‖97 Esse processo de
95
Idem, 56, 57.
Idem, 54
97
Idem, 58
96
reforçamento do pensamento consciente para manter afastado o pensamento
inconsciente foi chamado de reforço reativo ou pensamento reativo.
Mas, por que tanta resistência à suposição desse amor? A análise
freudiana caminhou, inicialmente, pela vertente amorosa entre pai e filha, a
interpretação do sonho de Dora, no qual seu pai a salva do fogo, foi feita com
base no pressuposto de que ―o desejo que cria o sonho sempre provém da
infância e sempre tenta retransformá-la em realidade, corrigir o presente
segundo a infância.‖98 Nesse sentido, ―seu equivalente ali foi a invocação do
amor infantil pelo pai como proteção contra a tentação atual.‖99 Essa conduta
ciumenta representava um enamoramento da
infância. Todavia, essa
seqüência hiperintensa de pensamentos ocultava, também, a sua predisposição
homossexual, ou seja, seu amor pela Sra. K., que se revelou no sonho com a
caixinha de jóia de sua mãe. Essa inclinação de Dora provinha de suas
experiências masturbatórias.
Essa rica experiência clínica, bem como, suas elaborações
teóricas, o levaram a advertir:
―Precisamos aprender a falar sem indignação sobre o que chamamos de
perversões sexuais – essas transgressões da função sexual tanto na esfera do corpo quanto
na do objeto sexual.‖100
Na realidade, a sexualidade humana se compõe dessas
transgressões que se manifestam, com maior ou menor intensidade, de acordo
com a história sexual infantil do sujeito. Na sua clínica, as moções anímicas
revelavam que:
―todos os psiconeuróticos são pessoas de inclinações perversas fortemente
acentuadas, mas recalcadas e tornadas inconscientes no curso de seu desenvolvimento. Por
98
Idem, 72
Idem, 87
100
Idem, 53
99
isso suas fantasias inconscientes exibem um conteúdo idêntico ao das ações documentadas
dos perversos (...) As psiconeuroses são, por assim dizer, o negativo das perversões.‖101
No resumo de seus estudos sobre a sexualidade, ele vai
acrescentar, o ponto de vista de que, há uma ―tendência uniforme a toda sorte
de perversões algo que é universalmente humano e originário.‖102 Ou seja, ela
não é específica apenas nas psicopatologias, nestas, elas apresentam-se de
forma mais acentuada e constituem sua base etiológica.
Outro ponto importante, é a vinculação da pulsão sexual aos
processos afetivos, por exemplo, no caso Dora, ao interpretar a cena do beijo
na loja, Freud compreendeu porque a repugnância se inclui nas manifestações
afetivas da sexualidade, dizendo:
―a sensação de nojo parece ser, originalmente, uma reação ao cheiro (e
depois também a visão) dos excrementos. Mas os órgãos genitais, e em especial o membro
masculino, podem lembrar as funções excretoras, porque aqui o órgão, além de
desempenhar a função sexual, serve também a de micção. Na verdade, esta é a primeira das
duas a ser conhecida, e é a única conhecida durante o período pré-sexual.‖103
Desde a Comunicação Preliminar, já se destacava a relevância
dos processos afetivos na formação dos sintomas, e parece-nos que na
trajetória teórica freudiana,
este ponto de vista vai-se consolidando e
ampliando sua dimensão, assim, nos Três Ensaios, Freud dirá:
―Do estudo das perversões resultou-nos a visão de que a pulsão sexual
tem que lutar contra certas forças anímicas que funcionam como resistências,
destacando-se entre elas com máxima clareza a vergonha e o asco. É lícito conjecturar
que essas forças contribuam para circunscrever a pulsão dentro dos limites considerados
normais.‖104
101
Idem, 54
_______ Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. (1905), 179
103
________ Fragmento da análise do caso Dora (1905), 37
104
________ Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, 152
102
Ainda,
numa nota acrescentada neste artigo, em 1915, ele
ressaltou a importância dessas forças na psicogênese da humanidade, dizendo:
―Por outro lado, nessas forças represadoras do desenvolvimento sexual –
asco, vergonha e moral – deve-se ver também um sedimento histórico das inibições
externas que a pulsão sexual
experimentou na psicogênese
da
humanidade.
No desenvolvimento de cada um, observa-se que elas emergem no momento apropriado,
como que espontaneamente, a um sinal da educação e da influência externa.‖105
Histeria: um intenso desejo sexual
Neste caso,
a fonte de todas as psiconeuroses baseia-se no
conflito entre uma necessidade sexual desmedida e uma excessiva renúncia do
sexual, isso devido ao processo de recalcamento que produz uma cisão e
forma esses pares de opostos. Por exemplo, Freud apontou como uma das
características da histeria a
manifestação intensa de asco em relação à
genitália e pressupôs ―que a força da pulsão sexual [gostava] de se exercer na
dominação desse asco.‖106 Neste estudo, uma característica importante da
histeria foi revelada:
―nessa neurose, o recalcamento afeta sobretudo as zonas genitais
propriamente ditas, e estas transmitem sua excitabilidade a outras zonas erógenas, de outro
modo relegadas na vida adulta, que então se comportam exatamente como genitais‖107
105
Idem
Idem, 142
107
Idem, 172
106
Para tanto, destacou dois conceitos considerados imprescindíveis
na composição deste estudo, que são: as zonas erógenas e as pulsões parciais.
Freud, assim definiu pulsão:
―Por ‗pulsão‘ podemos entender, a princípio, apenas o representante
psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente, para
diferenciá-la do ‗estímulo‘, que é produzido por excitações isoladas vindas de fora. Pulsão,
portanto, é um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o físico. A hipótese mais
simples e mais indicada sobre a natureza da pulsão seria que, em si mesma, ela não possui
qualidade alguma, devendo apenas ser considerada como uma medida da exigência de
trabalho feita à vida anímica. O que distingue as pulsões entre si e as dota de propriedades
específicas é sua relação com suas fontes somáticas e seus alvos. A fonte da pulsão é um
processo excitatório num órgão, e seu alvo imediato consiste na supressão desse estímulo
orgânico.‖108
As investigações sobre as aberrações sexuais e as perversões
fomentaram a concepção de pulsões parciais. A intensa atividade excitatória
num órgão suscitava a formação de uma zona erógena. A pulsão parcial partia
desse órgão erogenizado exigindo uma descarga. O processo de conversão
contém esse processo de descarga, através da condensação e deslocamento,
presentes no sintoma. Em relação à neurose, as zonas erógenas:
―se comportam em todos os aspectos como uma parte do aparelho sexual. Na
histeria, esses lugares do corpo e os tratos de mucosa que partem deles transformam-se na
sede de novas sensações e de alterações da inervação – e mesmo de processos comparáveis
à ereção -, tal como os próprios órgãos genitais diante das excitações dos processos sexuais
normais.‖109
108
109
Idem, 157, 158
Idem,
A neurose histérica permite identificar um grau de recalcamento
sexual que ultrapassa a medida normal. Eis a enigmática contradição da
histeria: uma necessidade sexual desmedida e uma excessiva renúncia ao
sexual. Com Dora, assistimos Freud apresentar o que corresponde ao essencial
de sua concepção  a aversão do neurótico à sexualidade, ou seja, sua
incapacidade de amar, um traço psíquico que nomeou como recalcamento,
como insistiu em reiterar em 1905.
Capítulo III
Um estudo teórico e clínico da psicopatologia de Breno
―A psicopatologia parte do vivido na clínica e busca a construção
de um logos que represente, com justeza, esse mesmo vivido, sem se prender
a outras exigências, a outros amores.‖110 É baseada nesta concepção que a
psicopatologia fundamental se posiciona, que irei desenvolver o estudo teórico
do caso Breno, buscando construir um logos que represente, com justeza, esse
mesmo vivido. Na apresentação desse caso clínico, no capítulo II, destaco
alguns fragmentos que me levaram à suposição de que se tratava de uma grave
histeria de conversão; neste capítulo irei trabalhar na fundamentação desta
hipótese, enfatizando, dois pontos: a formação do seu sintoma de conversão e
o afeto de desamparo na origem da constituição do sintoma.
Adolescere: uma dificuldade em fazer amor consigo mesmo
Primeiramente, é importante compreender quando o sintoma
paralisante se manifesta, aos treze anos de idade, na efervescente adolescência
e com todos os fantasmas dos impulsos sexuais que foram engendrados na
infância, particularmente aqueles suscitados pela masturbação, que parecem
aflorar com toda sua intensidade nesse momento.
110
Berlinck, Manoel Tosta. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. Vol. III, nº 4,
dezembro de 2000, 9
Freud, na elaboração de sua teoria sexual reconheceu que:
―Com a chegada da puberdade introduzem-se as mudanças que levam a vida
sexual infantil a sua configuração normal definitiva. Até esse momento, a pulsão sexual era
predominantemente auto-erótica; agora, encontra o objeto sexual. Até ali, ela atuava
partindo de pulsões e zonas erógenas distintas que, independendo umas das outras,
buscavam um certo tipo de prazer como alvo sexual exclusivo. Agora, porém, surge um
novo alvo sexual para cuja consecução todas as pulsões sexuais se conjugam, enquanto as
zonas erógenas subordinam-se ao primado da zona genital.‖111
Porém, ele reconheceu também, que:
―Como em todas as outras ocasiões em que se devem realizar no organismo
novas combinações e composições que levam a mecanismos complexos, também aqui há
uma oportunidade para perturbações patológicas, caso essas reordenações não se realizem.
Todas as perturbações patológicas da vida sexual devem ser consideradas, justificadamente,
como inibições do desenvolvimento.‖112
Então, quais as inibições de Breno que se manifestavam no seu
sintoma indicando uma enérgica rejeição à masturbação?
A análise freudiana do caso Dora permitiu- lhe identificar que
uma das razões de seu sofrimento era a masturbação, ela apresentava vários
sintomas
como
catarro
vaginal,
dores
estomacais,
que
apontavam
primordialmente para esse ato prazeroso. Num exame mais detalhado da
masturbação, ele verifica que sua origem está no auto-erotismo infantil, mais
especificamente, na fase fálica, quando a criança fica horas devaneando no
manuseio de seus genitais. Essa fase é muito significativa no processo de
evolução da libido, na qual os genitais assumem maior relevância na vida
sexual infantil. Todavia, observou:
111
112
Idem, 195
Idem, 195, 196
―os sintomas histéricos quase nunca se apresentam enquanto as crianças se
masturbam, mas só depois, na abstinência; constituem um substituto de satisfação
masturbatória, que continua a ser desejada no inconsciente até que surja alguma outra
satisfação mais normal, caso esta ainda seja possível.‖113
Também verificou que em virtude das transformações da
puberdade, essas pulsões auto-eróticas retornam, vindo com elas a
masturbação que se constitui uma característica marcante da sexualidade
adolescente pois é delas, que procedem os motivos da escolha objetal do
adolescente.
Mas, a conversão de Breno o impedia de tocar seu corpo, de
sentir sua pele e seu sexo, revelando um grande repúdio ao desejo de fazer
amor consigo mesmo. O tesão do Breno não estava no pau que devia ficar
duro, mas nos outros membros, visto que eram os braços e as pernas que
ficavam duros. Nesse sentido, a teoria freudiana especifica que ―nesta neurose,
o recalcamento afeta sobretudo as zonas genitais propriamente ditas, e estas
transmitem sua excitabilidade a outras zonas erógenas.‖114
Freud, assim, caracterizou uma zona erógena: ―trata-se de uma parte da pele
ou mucosa em que certos tipos de estimulação provocam uma sensação
prazerosa de determinada qualidade.‖115 Quer dizer, qualquer parte do corpo
ou órgão possuem a propriedade erógena e podem converter-se numa zona
erógena. Assim, a conversão implica num considerável
investimento de
libido concentrada na zona erógena que é eleita na vivência da sexualidade
infantil. Para ele,
no
inconsciente dos psiconeuróticos
demonstrar, como formadoras do
sintoma,
todas as
é possível
tendências
à
transgressão anatômica. Por isso, ele vai asseverar que o sintoma de
113
_______ Fragmento da análise de um caso de histeria (1905), 79
_______ Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), 172
115
Idem, 171
114
conversão é a atividade sexual do histérico, ele contém um gozo, mas um gozo
que traz em si uma enérgica aversão à sexualidade.
Em Breno, quais os fatores determinantes do seu intenso conflito
entre: uma necessidade sexual desmedida e uma excessiva renúncia ao sexual?
O furo no pé e a angústia de castração narcísica
Penso que o incidente traumático, o furo no pé, permite-me
vislumbrar essa questão. Breno falou da dor que sentiu quando furou o pé,
essa dor tem a ver com os seus fantasmas do pé furado, a respeito dos quais,
não fala nada, mas faz-me supor que foram tão fortes, que tomaram a forma
paralisada.
Sabe-se, pela lenda do Édipo que esse furo no pé contém uma
representação simbólica significativa que esta relacionada ao fenômeno do
complexo de Édipo, o qual foi considerado por Freud, no artigo A dissolução
do complexo de Édipo, 1923, como ―o fenômeno central do período sexual
infantil.‖116
Desde o início de suas investigações sobre a etiologia da histeria,
Freud identificou uma relação de cunho erótico entre pais e filho. No caso
Elisabeth, por exemplo, que tratarei no capítulo seguinte desta dissertação,
ele observou uma dedicação extremada dessa filha ao pai, que renuncia aos
desejos amorosos para cuidar do seu genitor, esta e outras experiências
clínicas fizeram-lhe formular a sua teoria da sedução, a qual sustentava que
116
_________ A dissolução do complexo de Édipo (1924), 217
que o trauma psíquico era decorrente de abusos sexuais infantis, geralmente
praticados por adultos, especialmente o pai. Esclareceu este ponto de vista, no
artigo, Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa, 1896,
dizendo:
―Para causar a histeria, não basta ocorrer em algum período da vida do
sujeito um evento relacionado com a vida sexual e que se torne patogênico pela liberação e
supressão de um afeto aflitivo. Pelo contrário, tais traumas sexuais devem ter ocorrido na
tenra infância, antes da puberdade, e seu conteúdo deve consistir numa irritação real dos
órgãos genitais (por processos semelhantes à copulação).117
Ele acreditava, firmemente, na ocorrência de um acontecimento
real de agressão sexual na infância como causa da predisposição à neurose.
Considerou como um determinante específico da histeria – a passividade
sexual durante o período pré-sexual. A posição passiva diante do abuso
sexual, ocorrido antes da puberdade, seria o fator determinante da escolha da
neurose. Nesta primeira teoria sobre a psicogênese da neurose, Freud vai
articular três conceitos básicos: traumatismo sexualidade e recalque. Mas, suas
investigações o conduzem a uma outra formulação teórica pois reconheceu a
existência das fantasias de sedução. Assim, na carta 69 a Fliess, de 21.9.1897,
Freud escreveu:
―Permite-me que te confie sem maiores delongas o grande segredo que no
curso dos últimos meses se me foi revelando paulatinamente: já não acredito na minha
Neurótica. (...)
O primeiro grupo de
motivos
de minha atual incredulidade é
formado pelos contínuos fracassos em conduzir minhas análises a uma verdadeira
conclusão (...); em segundo lugar, a assombrosa circunstância de que todos os casos
obrigavam a atribuir atos perversos ao pai; (...) em terceiro, a inegável comprovação de que
117
________ Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa (1896), 155
no inconsciente não existe um ‗signo de realidade‘, de modo que é impossível distinguir
uma verdade de uma ficção afetivamente carregada (...); em quarto, a consideração de que
nem mesmo nas psicoses mais profundas chega a irromper a recordação inconsciente, de
modo que o segredo das vivências infantis não se traduz sequer no mais confuso estado
delirante.‖118
A descoberta do conflito edipiano foi concomitante a descoberta
da fantasia, particularmente, quando Freud deu início a sua auto-análise. Ele
vai tratar deste tema em vários artigos, dedicando especial atenção às relações
amorosas e hostis entre pais e filhos, e principalmente, quando reconheceu a
barreira do incesto como uma interdição cultural instituída para preservar a
família
e a espécie, e formulou sua teoria das organizações pré-genitais
infantis. Todavia, foi com a formulação da segunda tópica, especialmente,
com o conceito de ego e de identificação, que o complexo de Édipo assumirá
sua significação estruturante mais definida. Assim, no artigo A dissolução do
complexo de Édipo, 1924, ele o reconhecerá ―como o fenômeno central do
período sexual da primeira infância,‖119 situando-o no período da fase fálica,
ou seja, no momento em que o órgão genital já assumiu um papel de destaque
para a criança. Quando vai reconhecer a diferença sexual a partir de um único
órgão, o pênis – o falo: aquele que tem e aquele que é castrado, em torno do
qual a criança, tanto o menino quanto a menina, desenvolverá suas teorias
sexuais infantis. Neste artigo, Freud assinalou
a
importância
desse
fenômeno, tanto a nível ontogenético, no qual é necessário que haja a
superação do Édipo, para que haja novos investimentos objetais, quanto a
nível da filogenética, quando dirá:
118
119
Mezan, Renato. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1989, 66
Freud, S. A dissolução do complexo de Édipo (1924), 217
―Embora a maioria dos seres humanos passe pelo complexo de Édipo como
uma experiência individual, ele constitui um fenômeno que é determinado e estabelecido
pela hereditariedade e que está fadado a findar de acordo com o programa, ao instalar-se a
fase seguinte preordenada de desenvolvimento.‖120
Em outras palavras, a exigência da superação do Édipo é
filogeneticamente determinada pela barreira do incesto como forma de
manutenção da própria espécie – o homem e a mulher. Assim, dentre os meios
psíquicos constituídos para atender essa exigência de sobrevivência psíquica
encontra-se o complexo de castração, que atua com uma função de interdição
nessas relações edipianas primárias. Conforme Freud, é ―essa ameaça de
castração o que ocasiona a destruição da organização genital fálica da
criança.‖121 Esses complexos são diferentes tanto para a menina quanto para o
menino. No menino, asseverou:
―se a satisfação do amor no campo do complexo de Édipo deve custar à
criança o pênis, está fadado a surgir um conflito entre seu interesse narcísico nessa parte do
corpo e a catexia libidinal de seus objetos parentais. Nesse conflito, triunfa normalmente a
primeira dessas forças: o ego da criança volta as costas ao complexo de Édipo.‖122
O complexo de Édipo se constrói na trama do romance familiar,
ou seja, nas relações afetivas entre pais e filhos, constituindo-se no ponto
nuclear de toda a neurose. Sendo assim, quais os enlaces que permeavam
a relação familiar de Breno e que fomentavam a formação do seu sintoma?
A cena da primeira entrevista dá indicativos do quão
problemática era a questão edipiana para Breno. Seu sintoma de conversão:
ombros e pescoço arriado que o impedia de olhar de frente às pessoas; braços
120
Idem, 218
Idem, 219
122
Idem, 221
121
enrijecidos e rigidamente afastados do seu corpo; mão
―tipo gancho‖ e
contratura nas pernas arqueadas. O pescoço curvado o impedia de olhar às
pessoas de frente, como se seu olhar estivesse fixado no seu genital. Sua
conversão o impedia de caminhar sozinho, sem estar pendurado nessa mãe;
ambos expressavam intenso incômodo. O que continha, em todo esse quadro,
que não ultrapassava o corpo?
Na transferência,
eu tento identificar esse momento e ele
reconheceu a dor e a angústia que o invadiam, mas logo, abaixa a cabeça,
dizendo que chora frente às emoções, pois não sabia nomear que emoções
seriam importantes para ele, demonstrando ter muito medo de falar sobre elas,
então, muda de assunto para dizer que foi bem nos exames, como se dissesse:
eu não sei falar de meus problemas, mas a minha cabeça vai bem; como se
fosse guiado por um movimento de negação da castração, que também
comparecia nas suas identificações com os heróis, com quem pode ultrapassar
todas as barreiras, no jogo ele é o homem fálico. Essa interpretação conduziume à hipótese de que este adolescente vivenciava uma intensa angústia de
castração narcísica. E o ambiente familiar, traduzido nos desenhos como a
cidade perigosa era-lhe muito ameaçador. Talvez, os perigos fossem: cortar o
pé, o pênis e o direito de ser menino.
A família de Breno compunha-se do pai, mãe e uma irmã, que era
quatro anos mais nova que ele. Neste contexto, a mãe era a pessoa dominante,
principalmente, por causa de seu excesso de autoritarismo; em
casa, seu marido a apelidava de militar devido ser muito exigente
e disciplinadora. Ela própria reconhecia sua rigidez afetiva, dizendo: ―eu não
sou muito carinhosa, meu marido é que é mais carinhoso com eles (os filhos).
Eu me escondo atrás da atitude dele de carinho.‖ Parecendo ser muito difícil,
para ela, a relação amorosa com os filhos pois não sabia lidar com seus
próprios afetos, escondendo-se por trás do marido.
Breno expressava sentimentos de extrema ambivalência em
relação a sua genitora, culpava-a pelo agravamento do seu estado, dizendo:
―ela fica exigindo que eu seja normal, por isso estou assim‖ ao mesmo tempo,
dizia: ―mas eu a amo‖, embora ela queira ver-me castrado. Era justamente a
ambivalência desses afetos que o atormentavam e o levavam a uma
paralisação, expondo-o a uma dependência quase total do outro,
particularmente sua mãe, pois seu pai, devido as suas próprias dúvidas e
incertezas, colocava-se timidamente nessa relação, como se ele também se
sentisse castrado.
Ele vivenciava esse conflito com intenso medo e raiva, estes
eram os afetos predominantes, embora tenha expresso em alguns momentos,
sentimentos de profunda tristeza. Sentia uma grande raiva das pessoas pois
elas não compreendiam seu sofrimento. Sua mãe duvidava de seu sofrimento
pois, em casa, quando estava jogando vídeo game, seus sintomas
desapareciam, então ela achava que ele não andava direito porque não queria,
repreendia-o severamente para que ficasse normal, como se ela quisesse
negar a gravidade do problema do filho, que causava-lhe muita angústia e,
provavelmente muita culpa. Isto o aborrecia profundamente, dizia: ―eu fico
assim porque as pessoas riem de mim. Elas ficam achando que sou palhaço.‖
Indaguei-lhe: elas, quem? Respondeu-me: ―todo mundo, até mamãe. Fico com
raiva, dá vontade de dar porrada, por isso fico nervoso. Elas não sabem que
sofro, pensam que sou palhaço.‖ Mas Breno, quando indagado sobre seu
sofrimento, só conseguia expressar, com muito esforço, umas poucas palavras,
parecendo que o canal de elaboração psíquica, via o pensamento e a fala,
estavam embotados.
Neste ponto, desejo refletir um pouco sobre seu sintoma de
conversão. Na transferência, ele usava o corpo para mostrar-me diferentes
mensagens e solicitava que eu percebesse essas mensagens corporais, e isso
constituiu-se num setting terapêutico importante para ele sentir-se mais seguro
em deixar seu corpo com mais movimento, demonstrando muita
expressividade.
Freud, na sua clínica, particularmente, de Elisabeth e de Dora,
observou o corpo falante de suas pacientes, e o considerou como um elemento
importante
na
terapia
e
compreensão
da formação do sintoma. Em
Elisabeth, por exemplo, a variação de intensidade da sua dor na perna, era um
elemento indicativo no processo terapêutico, bem como, a explicitação das
conversões de Dora, permitiram-lhe avançar sua investigação da sexualidade
infantil e compreender a operação do recalque sobre as pulsões sexuais – Dora
era uma chupadora de dedo na infância e a repugnância desse prazer
causavam-lhe dores estomacais. No entanto, neste artigo, ele advertiu:
―Até onde posso ver, todo sintoma histérico requer a participação de ambos
os lados. Não pode ocorrer sem a presença de uma certa complacência somática fornecida
por algum processo normal ou patológico no interior de um órgão do corpo ou com ele
relacionado. (...) Para a terapia, os determinantes mais importantes são os fornecidos pelo
material psíquico acidental; os sintomas são dissolvidos buscando-se sua significação
psíquica. Uma vez removido tudo o que se pode eliminar pela psicanálise, fica-se em
condições de formar toda a sorte de conjecturas, provavelmente acertadas, sobre as bases
somáticas dos sintomas, que em geral são contitucionais e orgânicas.‖123
Ou seja, essa significação condensada no corpo precisa ser
conduzida para uma expressão verbal, pela fala, mas na histeria isso parece ser
muito difícil e Breno fazia um enorme esforço para encontrar as palavras que
pudessem nomear seu sofrimento; em alguns momentos, ele não as encontrava
e isso o deixava muito excitado, e esse dispêndio de energia fazia-o dizer: ―eu
não quero mais falar, estou cansado‖, o que era acolhido na análise, então ele
relaxava com o silêncio. Entretanto, por que essa dificuldade? Considerei esta
característica do sintoma de conversão importante, e retomarei a questão no
final deste capítulo.
Então, qual a significação psíquica do sintoma de Breno?
Ele parecia falar da sua angústia de castração narcísica pois
sentia-se atacado não só na sua imagem física, como também na imagem viril,
e como não tinha palavras para nominar seus desejos libidinais, estava sempre
invadido pelo medo e cólera contra os objetos internos que impunham essa
castração.
Esta hipótese fundamenta-se na formulação freudiana de
sintoma apresentada no artigo, Inibições, Sintoma e Ansiedade, 1926, no qual
esclareceu: ―os sintomas só se formam a fim de evitar a angústia: reúnem a
energia psíquica que de outra forma seria descarregada como angústia. Assim
este seria o fenômeno fundamental e o principal problema da neurose.‖
124
Evitar a angústia seria a função desse processo defensivo mas, qual seria a
origem da angústia, que Freud a caracterizou como tendo a qualidade de um
afeto intensamente desprazeroso?
123
124
_______ Fragmento da análise de um caso de Histeria (1905), 45
_______ Inibições, sintomas e ansiedade (1926), 168
Nos Três Ensaios, quando ele tratou da angústia infantil, referiuse à angústia que a criança sente frente a separação da pessoa amada, porém
reconheceu, que nem todas as crianças ficam tão angustiadas com a separação,
somente aquelas ―com uma pulsão sexual desmedida, ou prematuramente
desenvolvida, ou que se tornou muito exigente em função de mimos
excessivos.‖125 Na nota acrescentada em 1920, neste artigo, ele diz que: ―um
dos resultados mais significativos da investigação psicanalítica é a descoberta
de que a angústia neurótica nasce da libido insatisfeita, é produto da
transformação desta e, portanto, mantém com ela uma relação como a do
vinagre com o vinho.‖126
Esta formulação manteve-se em vigor durante todo o percurso da
obra freudiana, todavia, com a elaboração da segunda tópica, esta questão
torna-se mais complexa,
no artigo Inibição, Sintoma e Angústia, ele a
abordará, dizendo:
―O nascimento foi encarado como sendo o protótipo de todas as situações
ulteriores de perigo que se apoderavam do indivíduo sob as novas condições decorrentes de
um modo de vida modificado e um crescente desenvolvimento mental. (...) Ou o
estado de angústia se reproduzia automaticamente em situações análogas à
situação original e era assim uma forma inadequada de reação em vez de apropriada, como
fora na primeira situação de perigo, ou o ego adquiria poder sobre a emoção, reproduzia-a
por sua própria iniciativa e a empregava como uma advertência de perigo, e como meio de
por o mecanismo de prazer-desprazer em movimento.‖127
Assim duas modalidades da origem da angústia se apresentam:
uma, involuntária e automática e, a outra, que provinha do ego. É dessa
instância que procede a angústia como sinal de alerta, para tanto, dizia ele:
125
_______ Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), 211
Idem, 211
127
_______ Inibições, sintomas e ansiedade ((1926), 186
126
―o ego sujeita-se à angústia como uma espécie de inoculação, submetendo-se
a um ligeiro ataque da doença a fim de escapar a toda a sua força. Ele vividamente imagina
a situação de perigo, por assim dizer, com a finalidade inegável de restringir aquela
experiência aflitiva a uma mera indicação, a um sinal.‖128
No entanto, em relação a angústia que surge diretamente da libido
insatisfeita, o sinal de alerta não funciona, o ego fica reduzido a um estado de
desamparo em face de uma tensão excessiva decorrente da exigência
pulsional, recorrendo ao processo defensivo da formação de sintoma.
Entre as situações de perigo, de grande ameaça ao ego, Freud
considerou ―a angústia de castração como a única força motora dos processos
defensivos que conduzem a neurose,‖129 ressaltando, ainda, que essa ameaça
torna-se mais forte com a chegada de um irmãozinho pois a ameaça maior e a
perda do objeto querido. A separação do seio, a dejeção, chegada de um irmão
têm equivalência simbólica, por isso reforçam as fantasias da castração. Então
o falo torna-se um importante objeto da castração.
Nesse sentido, recorro à clínica de Breno para ilustrar de forma
bem nítida essa ameaça. Numa certa sessão, Breno falou do ciúme e da inveja
que sentiu quando sua irmã nasceu; na época, ele tinha quatro anos, dizendo:
―eu fiquei com muita inveja quando minha irmã nasceu. Pensava que eles só
iam ligar pra ela, iam esquecer de mim. Tinha muita inveja, mas eu era
grande. Quando ela nasceu, um dia, a mamãe me pegou pegando água na
geladeira e eu tomei na mamadeira. Ela disse, Breno, tu já és grande! (...) Eu
lembro que eu acordava e ia no quarto. Pegava todos os lençóis e colocava em
cima dela, ela ficava se mexendo. A mamãe quando via brigava, dizia que ela
128
129
Idem, 187
Idem, 129
era pequena, pra mim não fazer isso, e me colocava pra fora do quarto.‖
Intervi, dizendo-lhe: Sabe Breno a gente, às vezes, tem muita raiva de irmão,
quer que ele desapareça. Imaginas tu eras o único filho, aí vem uma irmã e as
atenções da mãe se voltaram todas para ela, isso dá muito ciúme, talvez fosse
bom ficar no lugar dela. Ele diz: ―é, eu não queria vê-la, mas eu amo minha
irmã.‖ Breno falava dessas recordações muito excitado, esperneando no divã
como se fosse o próprio bebê sob os lençóis. No final desta sessão, ele saiu do
consultório caminhando sozinho.
Nesta perspectiva, o nascimento de sua irmã constituiu-se num
importante incidente traumático em sua vida porque provocou-lhe uma intensa
angústia de castração frente a possibilidade de perda do objeto amado, talvez
se perguntasse se não seria melhor ser menina, que é outro fantasma da
castração. Mas não se pode avançar nesta conjectura, pois foi muito curto seu
tratamento. Porém, essa cena do bebê esperneando, remeteu-me ao
desamparo. Breno ansiava pela presença de um outro que tratasse de seu
sofrimento, da sua psicopatologia. Nas palavras de Manoel Berlinck:
―‗Psicopatologia‘ literalmente quer dizer: um sofrimento, uma paixão, uma
passividade que porta em si mesmo a possibilidade de um ensinamento interno que não
ocorre a não ser pela presença de um médico (pois a razão é insuficiente para proporcionar
experiência). Como pathos torna-se uma prova e, como tal, sob a condição de que seja
ouvida por um médico, traz em si o poder de cura. Isso coloca imediatamente a posição do
terapeuta. Pathos não pode ensinar nada, ao contrário, conduz à morte se não for ouvido por
aquele que está fora, por aquele que, na condição de espectador no teatro grego do tempo
de Péricles, se inclina sobre o paciente e escuta essa voz única se dispondo a ter, assim,
junto com o paciente, uma experiência que pertence a dois.‖130
130
Berlinck, Manoel Tosta. Psicopatologi Fundamental. São Paulo: Editora Escuta, 2000, 21
E nessa clínica a dois, escuto Breno falar, com muita freqüência
do seu medo como algo muito castrador, certa sessão falou, com muito esforço
e gaguejando: ―medo pra mim das pessoas. Eu fico, fico, fico incomodado. É
incômodo. Aí eu perco a minha noção, todo apoio. Como é que faço isso ou
aquilo? Medo das pessoas. É emocional! Isso é emocional! Aí eu tento
encontrar minha coordenação motora e não consigo. Eu não consigo encontrar
minha coordenação motora!‖ Essa fala de Breno, dentre outras, fizeram-me
compreender que ele falava da sua impotência, do seu
grande desamparo frente a forças conflitantes tão poderosas, que
não conseguia dominar pois estava subjugado pelo medo. Nesse sentido,
compreende-se o sentimento de profunda tristeza, que ele carregava, pois só
sabia dizer que era emocional. Aí estavam os fantasmas que eram carregados
de emoções fortes que o faziam solicitar apoio, suporte para os desejos típicos
da adolescência, como se quisesse compreender o sentimento de impotência
sexual ao qual
condenou
partes de seu corpo, particularmente, seus
genitais. Essa foi uma condenação cruel, pois sabe-se o quão precioso é o
pênis, como relata Freud:
―Essa parte do corpo, facilmente excitável, inclinada a mudanças e tão rica
em sensações, ocupa o interesse do menino em alto grau e constantemente estabelece novas
tarefas ao seu instinto de pesquisa. Ele quer vê-la também em outras pessoas, de modo a
compará-la com a sua, e comporta-se como se tivesse uma vaga idéia de que esse órgão
poderia e deveria ser maior. A força impulsiva que essa porção masculina do corpo
desenvolverá posteriormente na puberdade.‖131
A força dessa porção masculina no corpo de Breno estava
deslocada para seus membros, mas ele tinha um sonho, um sonho de tornar-se
131
________ A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. (1923), 181
viril, que ele mantinha numa identidade secreta, expressando vitalidade e
combatividade para lutar pelo seu corpo, que vai se revelando no anseio
dirigido ao terapeuta: ―eu quero ser normal, jogar bola, andar de bicicleta‖,
mas estava impossibilitado devido ao sintoma de conversão que o impedia de
caminhar sozinho, sem o auxílio da mãe. Essa oposição entre o desejo de uma
autonomia, de um crescimento, e um desejo, também profundo,
dependência do outro,
de
parecia ser seu conflito maior, e sua conversão
colocava de forma bem transparente esse conflito, permitindo uma leitura
possível do sentido do seu sintoma.
Crescer, na concepção freudiana, ―conduz a um desligamento
sempre crescente dos pais e a significação pessoal desses para o superego
retrocede para o segundo plano;‖132 todavia, para Breno esse caminho era
muito difícil e doloroso. Seu sintoma de conversão remetia-o a momentos
muito primitivos e ele não conseguia caminhar com suas próprias pernas.
Dizia: ―eu não quero regredir. Quero ficar grande assim‖ Parecia falar de
uma força poderosa e ameaçadora que o atraía em sua direção, ao mesmo
tempo em que, uma outra força, com igual poder, repelia essa atração; ou seja,
seu sintoma revelava de forma crua o conflito edipiano que vivenciava, dessa
forma, o impedimento de Breno estava centrado no complexo edipiano e no de
castração. Esses fenômenos se constituem dentro de um contexto de relações
parentais primárias, dos primeiros investimentos objetais, que formam a base a
partir das quais irão construir-se as escolhas objetais futuras. Assim:
―a escolha de objeto da época da puberdade tem que renunciar aos objetos
infantis e recomeçar como uma corrente sensual. A não confluência dessas duas correntes
132
________ O problema econômico do masoquismo (1924), 209.
tem como conseqüência, muitas vezes, a impossibilidade de se alcançar um dos ideais da
vida sexual – a conjugação de todos os desejos num único objeto.‖133
Mas a superação do complexo de Édipo é determinada tanto por
fatores constitucionais quanto por fatores hereditários, transgeracionais. E isso
é muito importante, diz Freud:
―um dos melhores prenúncios de neurose posterior é quando a criança se
mostra insaciável em sua demanda de ternura dos pais; por outro lado, são justamente os
pais neuróticos, que em geral tendem a exibir uma ternura desmedida, os que mais
contribuem, com suas carícias, para despertar a disposição da criança para o adoecimento
neurótico. Deduz-se desse exemplo, aliás, que os pais neuróticos têm caminhos mais diretos
que o da herança para transferir sua perturbação para os seus filhos‖134
E, como esse importante fator se apresenta no romance familiar
de Breno?
O fenômeno transgeracional: a marca do outro
Em Breno, o adoecimento dos pais, o pathos de cada um, foram
muito significativos na formação do seu sintoma. Nessa clínica, a angústia
materna vai bloquear o trabalho analítico do filho. Assim, no percurso da
análise, observei que a conversão de Breno vai se modificando, seu corpo
endurecido pela enérgica rejeição ao ato masturbatório vai ficando trêmulo,
seus
órgãos
que
estavam
inervados
mantêm-se
numa
ininterrupta
movimentação, parecendo sentir-se mais seguro para deixar seu corpo com
mais movimento, como se toda a energia libidinal investida no objeto fosse
133
134
_______ Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), 188
Idem, 210
retornando e fosse ocorrendo um maior investimento narcísico. No momento
em que ele conseguiu dizer: ―tu notaste que os meus braços não estão mais
levantados (levanta-se); oh, estou de pé; meu corpo não é mais inútil!‖,
expressando muita alegria e orgulho, sua mãe retira-o da análise. D. Graça,
sua genitora, bloqueou o trabalho analítico justamente quando viu a mudança
em seu filho - nesse ínterim, ele havia falado muito vaidoso de si, que havia
beijado uma menina na boca. Ela já o havia proibido de ficar no banheiro com
a porta trancada, revelando ser muito invasiva na intimidade sexual do filho.
Parecia que, conscientemente, ela tinha uma grande satisfação pela castração
do filho, e ele compreendia isso e não queria ser o palhaço e sentia-se ferido
com essa possibilidade de ser palhaço, dizia: ―eu fico assim porque elas riem
de mim. Elas ficam achando que sou palhaço (...) elas não sabem que eu sofro,
pensam que sou palhaço.‖ Dessa forma essa mãe tinha um prazer sádico em
relação ao filho.
No livro Neuroses de transferência: uma síntese, Freud vai tratar
sobre a história filogenética da humanidade correlacionando-a com a história
ontogenética do indivíduo. Diz ele:
―com isso chega-se ao problema da disposição filogenética atrás da
individual, ou ontogenética, e não há contradição quando o indivíduo adiciona às suas
disposições herdadas, baseadas em vivência anterior, as disposições recentes baseadas em
vivências próprias‖135
Esta questão levará Ferenczi e Freud a realizarem um profundo e
complexo estudo da arqueologia humana e nestes estudos um dos fatos
constatados é que ― a neurose é também uma aquisição cultural.‖136 A cultura
é passada de geração em geração, principalmente pela família, logo, a neurose
135
136
________ Neuroses de transferência: uma síntese (1987), 71
Idem, 80
é uma aquisição familiar. Como escreve Françoise Dolto, no prefácio do livro
da Maud Mannoni:
―cada ser humano possui em conseqüência de sua existência encarnada, uma
imagem do homem e da mulher complementares; essa imagem, ele a molda através dos
pais que o criam e é por causa desse empréstimo imaginário a pessoas reais que ele vai
desenvolver-se identificando-se com elas segundo as possibilidades de seu patrimônio
genético.‖ 137
Freud, no texto intitulado A novela familiar do neurótico dirá:
quando o indivíduo, à medida do seu crescimento, liberta-se da autoridade dos
pais, incorre numa das conseqüências mais necessárias ainda também numa
das mais dolorosas que o curso do seu desenvolvimento ocasiona.‖138 Renato
Mezan, na sua leitura freudiana, aborda esse tema dizendo que a criança para
alcançar seu desejo de ‗ser grande‘:
―o de se emancipar da autoridade dos pais, é indispensável uma etapa
intermediária a da critica da imagem, que em seus primeiros anos, a criança forma dos pais,
como figuras dotadas de todas as perfeições e de todos os poderes. Esta crítica tem como
momento essencial uma fantasia derivada do conflito edipiano, e dos impulsos sexuais e
agressivos a eles vinculados, especialmente o de eliminar o rival do mesmo sexo.‖139
Mas, para que isso aconteça, é necessário que estes pais tenham
se situado na sua própria sexualidade e, essa tarefa é difícil, independe da boa
vontade dos pais, pois a dinâmica inconsciente obedece a outra lógica, de
modo que, o fenômeno transgeracional pareceu-me muito importante e
determinante, na formação do sintoma histérico de Breno.
137
Mannoni, Maud. A primeira entrevista em Psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Campos, 1981, 22
Freud, S. A novela familiar do neurótico (1909). Obras Completas, Tomo II. Editorial Biblioteca
Nueva. Madrid (España), 1361.
139
Mezan, Renato. Freud,, Pensador da cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985, 233
138
Na entrevista com
D. Graça, ela lembrou que sua mãe era
paraplégica e que ela, como filha mais velha, a substituía nos cuidados com os
afazeres domésticos, e saia com seu pai, um militar muito rígido, para
compras. Lembrou que na morte de seu pai sentiu ―muito remorso por ter sido
muito brigona com ele‖, por ele ter sido muito autoritário. Culpava sua mãe,
pois nas brigas com seu genitor, ela [a avó materna], nunca ficava ao lado das
filhas, sempre, só do pai, e isso a irritava profundamente.
Na entrevista com seu pai, Sr. Carlos, ele disse: ―não sei, às vezes
me sinto culpado por ter sido muito severo com Breno. Muitas vezes me
descontrolava com alguma coisa que ele fazia, e várias vezes cheguei até a
bater (...) eu procurava brincar com ele, jogava bola, mas ele sempre foi meio
ruim de bola e eu, às vezes, dizia – puxa, Breno, deixa de ser perna dura, é
assim que a gente joga; e ele todo desengonçado, não sabia lidar com a bola, e
isso me irritava, e eu dizia – quando eu tinha a tua idade, eu era bom de bola
(...), eu nunca fui bom de bola, dizia pra ele que era bom só porque, sabe como
é, o filho da gente tem a gente como ídolo, então eu dizia que sabia. Seu
Carlos falou, ainda, em tom acusatório, que teve pouco contato com seu
pai pois, este abandonou sua esposa e os filhos, e eles foram criados na
casa da avó materna, a matriarca da família. Assim, pareceu que esse pai trazia
na sua história de vida uma marca muito forte do conflito edipiano, que
passava para o filho uma dúvida, uma insegurança.
Numa certa sessão, Breno diz: eu tô em dúvida, vou fazer
quatorze anos, entrar na puberdade, e eu não sei se sou criança ou adulto.
Perguntei: e o que é puberdade pra ti? ―Não sei, a mamãe que sabe (...) Ela [a
dúvida] começou ontem, quando conversava com meu pai‖. Interroguei: o que
vocês conversaram? ―Não sei, só sei que conversei com ele‖. Nesse instante,
ele ficou trêmulo, com o corpo balançando acentuadamente e calado. Ele
não quis mais falar sobre sua dúvida e mudou de assunto. Nessas
configurações parentais, pode-se conjecturar que seu Carlos não havia
superado sua vivência edipiana, tinha dúvidas sobre sua própria sexualidade.
Essa posição de seu pai, não dava suporte para que Breno pudesse se descolar
dessa mãe invasora, dominadora, e essa era a culpa que ele carregava em
relação ao filho.
Dessa forma, o drama conflituoso desse adolescente, uma
dificuldade de fazer amor consigo mesmo, se havia construído nessa trama
familiar. Neste contexto, a irritação, a raiva, a inervação, eram os afetos mais
intensos que permeavam essa trama, havia pouco espaço para o amor e isso
estava contido na sua complacência somática. Assim fui instigada a investigar
a conversão como fenômeno constitutivo do corpo.
Conversão: a constituição de um corpo erógeno
Então, na transferência destacou-se toda essa impossibilidade de
Breno elaborar essa cena primária que tem a ver com o discurso dos pais, quer
dizer, o discurso inconsciente dos pais, que aprisionado no seu próprio
sofrimento, transmitem essa dor. E isso, de alguma forma atuava nos seus
sintomas. A mãe, tão enfática, produzia uma impossibilidade, em Breno, de
fazer com que essa energia erótica, transformada em angústia neurótica,
ultrapassasse as manifestações do seu corpo, do seu próprio corpo em direção
à palavra, em direção às imagens, à representação de coisas.
Freud já havia observado, desde o início de suas investigações
sobre histeria, que a conversão é um processo que retém, enquanto os
processos afetivos, são processos de descarga. Nesse sentido, a conversão de
Breno, ao mesmo tempo, estava produzindo um corpo, um corpo identificado
com esse pai - avô militar, com essa mãe militar, autoritária, mandona, com
essa avó paraplégica. Talvez, as fantasias de Breno fossem constitutivas do
seu corpo, ou seja, uma forma de constituição de um corpo erógeno que traz a
marca de seu sentido originário, que vem dessa relação objetal.
Freud ao tratar sobre a angústia, no artigo, Inibições, sintomas e
Angústia, sublinhou:
―Na minha opinião, os outros afetos são também reproduções de
experiências muito antigas, talvez mesmo pré-individuais, de importância vital; e devo estar
inclinados a considerá-las como ataques histéricos universais, típicos e inatos, comparados
com ataques recentes e individualmente adquiridos que ocorrem em neuroses histéricas e
cuja a origem e significado como símbolos mnêmicos foram revelados pela análise.‖140
Estas formulações, dentre outras, fizeram-me pensar no processo
de conversão como constitutivo do corpo erógeno. Regido pelos mesmos
mecanismos do sonho: deslocamento, condensação e sobredeterminação,
forma-se a defesa, com as características de uma repetição. Assim, diz Freud:
―Quando o estado de angústia é reproduzido depois como um afeto, faltarlhe-á oportunidade, da mesma forma como às repetições de um ataque histérico. Quando o
indivíduo é colocado numa nova situação de perigo, talvez lhe seja bem desaconselhável
140
Freud, S. Inibições, sintomas e ansiedade (1926), 156, 157.
reagir com um estado de angústia (que é uma reação a um perigo anterior) em vez de
iniciar uma reação apropriada ao perigo atual.‖141
O nascimento representa o protótipo da situação de perigo porque
ocasiona um perturbação econômica. Essa referência será o modelo das
situações de perigo, dentre estas, a perda do objeto amado, que é algo muito
angustiante.
Isto fez-me supor, que Breno continha em seu sintoma o medo da
perda do objeto, o qual revelava-se, na sua demanda excessiva de amor. Um
pedido de amparo que lhe permitisse nomear essa vivência tão primitiva com
o outro. Neste sentido, ele solicitava a presença do justo amor. Nas palavras de
Manoel Berlinck: ―Amor de médico é amor justo: estabelece uma
contrapartida, um novo equilíbrio com a parte doente de Eros.‖142
A partir desta perspectiva, sobre a primitividade do mecanismo da
conversão,
fui
conduzida
a
refletir sobre
a
noção
freudiana
de
desamparo, especialmente, sobre a noção de desamparo do sujeito frente a
intensidade das forças pulsionais, bem como, a situação de desamparo ante a
violência do outro mais forte, violência que se inscreve num contexto
claramente sexual.
Questões da clínica: desamparo e conversão
A clínica de Breno conduziu-me à elaboração da hipótese de que
a conversão é um processo psíquico muito primitivo de formação do
141
142
Idem, 158.
Berlinck, Manoel T. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. Vol. III, nº 4,
dezembro de 2000, 7
corpo erógeno e, como defesa, neste caso, ela constitui-se articulada ao
desamparo.
No artigo Inibições, sintomas e angústia, Freud parte do estudo
da angústia para tratar do desamparo. Define a angústia como uma reação
comum a todo organismo e que no homem se molda no processo do
nascimento. ―A angústia, portanto, é um estado especial de desprazer com atos
de descarga ao longo de trilhas específicas.‖143
Então, ele considerou os afetos como processos de descarga e,
uma das funções do ego é poder conter, em si, um pouco desses afetos,
particularmente, o de angústia, que causa um excesso de excitação, para poder
ter um certo controle sobre ele. A reação de angústia é absorvida pelo ego
que passa a usá-la como sinal de alerta frente a situação de perigo, nesse
sentido ―o ego é a sede real da angústia.‖144
Ele considera que ―a angústia é um produto do desamparo mental
da criança, o qual é um símile de seu desamparo biológico.‖145 Nas palavras
de Daniel Delouya:
―Freud parte ali do estado primordial do desamparo do bebê para mostrar
como a dor, implícita neste estado, impele o recém-nascido em direção ao objeto. É na
ligação desta alteração interna ( fisiológica), subjacente a este anseio, com a resposta do
objeto ao grito de apelo do bebê, que se dará a base para que se constitua, neste momento
incipiente do psiquismo, a aliança entre a prefiguração do outro almejado e as próprias
representações dos órgãos internos em estado de necessidade (a forma, o espaço e o
movimento) – ou seja, as imagens corporais das moções pulsionais – e suas inflexões nas
próprias representações motoras da fala, associadas a este grito‖146
143
_______ Inibições, sintomas e ansiedade (1926), 156.
Idem, 164.
145
Idem, 162.
146
Delouya, Daniel. A dor entre o corpo, seu anseio e a concepção de objeto. In Dor. São Paulo: Editora
Escuta, 1999, 29.
144
Esta interpretação da importante obra freudiana, Projeto para
uma psicologia científica, que Daniel Delouya apresenta no seu artigo A dor
entre o corpo, seu anseio e a concepção de seu objeto, leva a pensar que o
mecanismo de defesa psíquico  conversão  origina-se nesse momento
incipiente do psiquismo, num momento muito primitivo de constituição do eu.
O mecanismo de transposição, característica mais evidente da conversão,
demonstra per si, que não há uma elaboração psíquica da dor do desamparo,
ou se há, é mínima; não há um pensar, não há uma linguagem que possa
nomeá-la. O que parece haver é um transbordamento do afeto de desamparo,
expresso num espernear, num grito de anseio dirigido ao outro. Como afirma,
ainda, Delouya:
―E é apenas este outro dos inícios que, vindo ao encontro deste apelo,
precipita-se no sujeito como experiência ou nele inscreve uma vivência. E esta que dota a
dor de qualidade, transformando-a em afeto. Portanto, o outro afeta, ou melhor, concede
afeto, por meio ou através da dor.‖147
Nessa dependência do outro, a relação mãe-bebê assume uma
singularidade na vida do sujeito, pois a concessão do amor materno torna-se
essencial no humano para que ele possa lidar com esse turbilhão de forças,
internas e externas, que o expõe ao desamparo. Nas palavras de Mário
Eduardo Pereira:
―A ternura e a presença calorosa da mãe constituem os primeiros pólos de
organização do amor. Tudo que é da ordem do desejo e da nostalgia da unidade perdida terá
necessariamente como referência esta primeira à afeição materna. Assim, Eros inscreve-se
no inconsciente em uma ligação íntima e indissociável com o desamparo.‖ 148
147
148
Idem, 29.
Pereira, Mário Eduardo Costa. Pânico e Desamparo. São Paulo: Editora Escuta, 1999, 368.
A clínica de Breno forneceu um material muito primoroso sobre
este tema. Quando ele recordou o nascimento da irmã, falou que sentiu muito
ciúme e inveja e chegou a desejar sua morte, seu desaparecimento. Mas, foi
muito incompreendido na expressão de seu sentimento de ameaça frente à
possibilidade de perda do objeto amado. Ele recordou esse momento, muito
excitado, esperneando que nem o bebê. Esse traço mnêmico, que se revelava
na identificação de Breno com o bebê, parecia conter um pedido de proteção
contra essa ameaça. Particularmente, na histeria, a perda do amor do objeto é
um determinante fundamental na sua constituição pois produz um profundo
sentimento de desamparo.
Embora, Freud não tenha tratado sobre o tema do desamparo
numa elaboração conceptual, esta problemática está presente em diversos
momentos de sua obra. E, no
estudo que Mário Eduardo Costa Pereira
elabora, sobre a noção de desamparo em Freud, dirá:
―Em relação ao problema do desamparo, no entanto, o desenvolvimento da
teorização freudiana parece avançar de modo muito mais contínuo, de maneira tal que as
novas abordagens parecem ir mais longe que os textos precursores, no sentido de
aprofundar e de precisar cada vez mais amplamente sua dimensão metapsicológica.‖149
Nessa dimensão metapsicológica, Freud vai tratar da questão
do desamparo, concebida a partir do aspecto de dependência do bebê em
relação
ao
adulto,
referindo-se
―à
condição
de
desamparo
como
impossibilidade de defesa em face do desejo onipotente do outro.‖ E a clínica
de Breno parecia trazer essa dimensão, D. Graça, tinha muita dificuldade de
amar os filhos, pois vivia angustiada com sua intensa insatisfação libidinal.
149
Idem, 126.
Nas palavras de Freud: ―a mãe contempla a criança com
sentimentos derivados de sua própria vida sexual.‖ D. Graça era extremamente
invasiva na privacidade do filho e isso lhe era muito ameaçador, pois ela
revelava um certo prazer com o seu sofrimento. E Breno, parecia compreender
isso, e não queria ser palhaço, ou melhor, sentia-se ferido com essa
possibilidade de ser palhaço. Nesse sentido, ele parecia solicitar a presença de
um outro que pudesse tratar do seu sofrimento, na posição do médico que
Platão apresentou em O banquete. Nas palavras de Manoel Berlinck:
―O médico, como nos lembra Platão, está constantemente na relação com
amor porque as doenças físicas, em sua evolução, se apresentam como phatos, paixões
amorosas. O médico cuida de Eros doente. Terapéia, em grego, é o cuidado exercido sobre
Eros doente. O médico deve restabelecer o equilíbrio do corpo para que Eros doente pelo
excesso de amor seja liberado desse excesso pelo amor que lhe traz o médico. Amor de
médico é amor justo: estabelece uma contrapartida, um novo equilíbrio com a parte doente
de Eros.‖150
A noção de desamparo em face ao crescimento das forças
pulsionais aparece como central em Freud. Ela fundamenta o ponto de vista
econômico de que: ―Todo indivíduo tem, com toda probabilidade, um limite
além do qual o aparelho mental falha em sua função de dominar as
quantidades de excitação que precisam ser eliminadas.‖151 Este ponto é muito
importante porque permite compreender que o desamparo infantil não é
superado com o amadurecimento da criança. Essa dimensão do sexual no
humano implica numa falta de garantias que lhe possa assegurar um domínio
sobre sua vida. Algo escapa, algo que a linguagem não consegue dar conta.
150
Berlinck, Manoel Tosta. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. Vol. III, nº4,
dezembro / 2000
151
______ Inibições, sintomas e ansiedade (1926), 172.
Na leitura de Mário Eduardo Pereira: ―a relação do homem com
sua existência é sempre marcada pela precariedade, pelas falsas ilusões e pelas
tentativas mágicas de proteção contra os perigos.‖152
152
Pereira, Mário Eduardo Costa. Op. cit., 145.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo desta dissertação foi realizar um estudo teórico-clínico
da neurose denominada histeria de conversão, para obter maior compreensão
do caso clínico de Breno. Busquei, então, a construção de um logos que
representasse, com justeza, o vivido dessa clínica, que me permitisse elaborar
a psicopatologia desse adolescente, que aos treze anos de idade sofria uma
grave histeria.
Breno apresentou a clássica histeria de conversão. Foi tratado
com medicamentos neurolépticos, submetido a exercícios de reeducação
motora, com barras de ferro, para correção da sua postura. Consultou vários
especialistas: neurologista, psiquiatra, fisioterapeuta e professor de reeducação
motora, sem obter nenhuma melhora. É importante observar que, desde 1888,
no seu artigo Histeria, Freud já apontava como uma característica importante
do sintoma histérico a grande resistência à influência química por meio de
medicação. Breno resistia tanto à medicação quanto às barras de ferro e seu
professor de reeducação motora, intrigado com seu sintoma, o encaminhou
para avaliação psicológica.
Como foi esclarecido no capítulo introdutório desta Dissertação,
o atendimento clínico manteve-se durante um período extremamente curto,
três meses, pois foi interrompido por decisão da mãe de Breno. Esse limite
temporal impossibilitou a realização de uma análise mais profunda do seu
conteúdo, todavia, creio que, embora breve, foi significativo e exemplar
no
sentido de pôr em evidência princípios, conceitos e muitas questões
relativas à histeria de conversão.
Desse modo, dois problemas evidenciaram-se nessa clínica: um,
relacionado à formação do sintoma de conversão, particularmente, o processo
de conversão: que processo é este e qual a sua natureza? E, o outro,
relacionado ao desamparo: Breno falava, com muita freqüência, de um
profundo sentimento de desamparo frente ao seu sintoma de conversão, que o
impediu, literalmente, de caminhar na vida sem o amparo de um outro.
Para dar conta desta problemática, consultei a obra freudiana que
tratava sobre histeria, desde as referentes às suas primeiras formulações e
hipóteses, como, as que se referiam aos fundamentos posteriores à descoberta
da sexualidade infantil e do reconhecimento da persistência dos movimentos
pulsionais inconscientes. Esta investigação foi enriquecida, especialmente,
com a supervisão clínica da Dra. Joyce Mc Dougall, e com o ponto de vista da
Psicopatologia Fundamental, que trata do phatos, do sofrimento humano, na
posição do médico que Platão apresentou em O banquete, de que o médico
cuida de Eros doente. Freud, como um grande médico, manteve-se nesta
posição de cuidar de Eros doente, o que lhe permitiu elaborar suas teorias das
diferentes psicopatologias. Assim, neste estudo, considerei
importante
acompanhar suas teorizações da histeria de conversão, através dos seus casos
clínicos: Elisabeth e Dora, tendo em vista que a riqueza dessas clínicas
permitiu-me compreender, com mais precisão, as características do sintoma de
conversão.
Nas suas primeiras formulações, observou, com muita acuidade e
sensibilidade clínica, que os sintomas histéricos, como: dores, paralisias,
ataques convulsivos, distúrbios da atividade sensorial, distúrbios intelectuais e
distúrbios viscerais, dentre outros, eram decorrentes do processo psíquico de
conversão, e continham em si uma representação simbólica requerendo,
portanto, um tratamento psicoterapêutico, que permitisse ao paciente falar do
seu sofrimento, já que as outras terapias eram inadequadas, pois não surtiam
efeito de cura. Este conhecimento vai consolidar-se, na medida em que as
investigações psicanalíticas do sintoma histérico avançam, constituindo-se
num postulado teórico, sem o qual, qualquer teoria psicopatológica da histeria
estaria fadada à sua própria invalidade terapêutica.
Com Elisabeth, na elaboração de seu diagnóstico, Freud
observou,
durante o exame clínico de suas dores na perna, que quando
pressionava ou beliscava a pele e os músculos hiperalgésicos de suas pernas,
seu rosto assumia uma expressão peculiar, que era antes de prazer do que de
dor, e este dado, dentre outros, fê-lo reconhecer que se tratava de uma zona
histerogênica, ou seja, um sintoma de conversão, porque continha uma
representação simbólica. Entendeu, desde então, que a conversão formava
uma trilha que demarcava o corpo, e para tratá-lo era imprescindível a
compreensão desse sentido que se havia construído na história de vida do
paciente, e que, portanto, necessitava ser falado, para que a energia psíquica
recalcada e condensada no corpo, pudesse ser liberada. E, em conseqüência
dessa liberação via a fala, o sintoma desaparecia. O desaparecimento ocorria
devido ao fato do paciente tomar consciência de seu conteúdo, ou seja,
assumir a representação afetiva que fora recalcada.
Nessa escuta psicoterápica freudiana, que também incluía a
escuta de um corpo falante, ele pôde dimensionar o sintoma de conversão
com a finalidade de defesa psíquica. Mas, defesa em relação a quê? Neste
primeiro momento teórico, era uma defesa em relação à lembrança do
incidente traumático que produzia um excesso de excitação, exigindo uma
descarga. Esse excesso estava relacionado à intensidade da carga afetiva que
era
insuportável, e esta exigência de descarga estava fundamentada na
hipótese do princípio da constância, a qual se mantém no percurso da obra
freudiana. Assim, a formação do sintoma ocorria devido a ação do recalque
que operava uma dissociação psíquica entre
afeto e
representação,
ocasionando um enfraquecimento da representação potente, patogênica,
através da retirada do afeto. Nesse sentido, destaca-se na leitura dos primeiros
escritos de Freud, a importância da representação afetiva nesta primeira teoria,
como causa da alienação histérica. Penso que esta relevância dos afetos na
clínica e teoria mantém-se ao longo da obra freudiana, particularmente, com
seus estudos sobre angústia e desamparo, quando retoma a concepção dos
processos afetivos como processos de descarga. Uma das dimensões do
desamparo em Freud, refere-se ao fato de a linguagem ser incapaz de dar
conta do próprio sujeito e do seu destino, e aí ele pode ser invadido pela
angústia.
Na análise dos sonhos de Dora, Freud destacou, entre outras, duas
características de sua sexualidade: a masturbação e a perversão que se
manifestavam nas suas conversões: dor estomacal e afonia. Especificou várias
peculiaridades do processo de conversão, as quais, já havia identificado
desde os Estudos sobre Histeria, 1895, como:
a
sobredeterminação do
sintoma, a inversão dos afetos e o predomínio do pensamento hipervalente.
Nesta clínica, observou que a inversão de afetos estava associada
ao
deslocamento da sensação.
Dora
evitou a sensação prazerosa da
zona
genital, no contato físico com o objeto amoroso, na cena do beijo, devido ao
afeto de repugnância que aflorou, em vez da satisfação do amor, ocasionando
a sensação de dor no tórax. O sintoma da afonia revelava uma intensa
estimulação da zona oral, através da vivência do sugar infantil. Reconheceu
que as transgressões da função sexual, tanto na esfera do corpo, quanto na
esfera do objeto, representavam uma característica do quadro clínico da
histeria de conversão.
Assim, em Dora, vai reafirmar que na histeria de conversão
encontrava-se uma complacência somática, como um processo defensivo
frente ao intenso conflito libidinal. A conversão produzia um investimento
psíquico que erogenizava o órgão ou órgãos, que somatizados, passavam a ter
um sentido próprio na fisiologia daquele paciente. Mais tarde, com a
elaboração da segunda tópica, especificou que era uma defesa que emanava do
ego contra os excessos das forças libidinais.
De Elisabeth à Dora ocorreu uma mudança de
aos determinantes dos excessos de excitação.
enfoque quanto
No primeiro caso, o
determinante advinha do exterior, do incidente traumático, e sua lembrança
produzia um excesso insuportável de lidar, e em função disso, como defesa
psíquica, formava-se o sintoma. Essa insuportabilidade
qualificava a dor
afetiva presente na recordação, que havia se convertido. Mas, com Dora, a
partir da fantasia histérica e da formulação da primeira tópica, na qual indicou
a relevância dos processos psíquicos inconscientes na constituição dos
sintomas, considerou a partir de então, as vivências sexuais infantis
inconscientes como determinantes das psiconeuroses. Estas revelavam um
recalcamento muito acentuado, excessivo, das aspirações libidinais.
Todavia, o incidente externo traumático nunca deixou de ser
considerado na análise psicopatológica freudiana, e nos seus trabalhos
posteriores, ele pareceu retomar esta questão com maior propriedade,
particularmente no estudo sobre o desamparo.
Em Breno, as aspirações estavam condensadas numa conversão
que o impedia de tocar seu corpo, de sentir sua pele e seu sexo, de fazer amor
consigo mesmo. O tesão de Breno, obedecendo a transgressão anatômica da
perversão histérica, havia-se deslocado do seu pênis para outros membros que
ficavam duros (os braços e as pernas). Na análise clínica, considerei a
etiologia dos seus sintomas situada na sua intensa angústia de castração, pois
sentia-se ameaçado tanto em relação à imagem física, como no referente à
imagem viril, e essa angústia tinha, em sua base, o medo da perda do objeto
amado. Nesse sentido, era possível compreender o sentimento de profunda
tristeza, pois só sabia dizer que seu sintoma era emocional. Aí estavam os
fantasmas que eram carregados de emoções fortes que o faziam solicitar
apoio, suporte para os desejos típicos da adolescência, como se quisesse
compreender o sentimento de impotência sexual ao qual condenou parte do
seu corpo, particularmente seus genitais.
Esta característica do seu sintoma, talvez
merecesse ser
considerada, a partir de aspectos que tangenciam o tema do narcisismo,
porém, neste trabalho, detive-me em dois outros pontos: a formação do
sintoma de conversão e o desamparo. O tema do narcisismo na histeria de
conversão poderá ser objeto de uma próxima investigação.
Freud partiu, como modelo, do estado de desamparo do bebê,
tanto psíquico quanto biológico, que expõe o sujeito numa relação de
dependência com o outro, para lidar com as exigências advindas das forças
libidinais, bem como, daquelas advindas do mundo externo. Esse estado
primordial de desamparo constitui-se na fonte da angústia. Uma das principais
funções do ego é levar em consideração esse afeto angustiante, intensamente
desprazeroso, porque produz um excesso de excitação, para que possa
construir um certo nível de elaboração psíquica. E assim, Freud distinguiu
dois tipos de angústia: a angústia automática e a angústia como sinal de
alarme. Em relação a esta, o ego recorre a meios de proteção capazes de
evitá-la ou, pelo menos, amenizá-la. No entanto, a angústia automática,
decorrente da intensa insatisfação libidinal, invade o ego, expondo-o a um
estado de desamparo, e o único recurso de defesa à sua integridade é a
formação do sintoma. Então, o sintoma contém em si, desejos reprimidos, que
pulsam, exigindo uma descarga, ou seja, há nele, uma ânsia de satisfação.
Em relação ao sintoma, o ego não consegue administrá-lo porque
em função do recalque, o sintoma torna-se um estranho. Desse modo, Breno
olhava seu corpo, e indagava-se: ―não sei, eu olho e não tem motivo para ele
ficar se movendo, ..., aí eu tento me controlar e não consigo, eu não consigo
encontrar minha coordenação motora. Aí, eu não sei se faço as coisas certo ou
errado.‖ Quer dizer, um eu que estranha um objeto que lhe é tão familiar – seu
próprio corpo. E esse desamparo dirige seu anseio de satisfação ao outro. A
um outro, que possa, com justo amor, acolher seu pathos. Assim, esta clínica
revelou que Eros inscreve-se no inconsciente em uma íntima ligação com o
desamparo.
Nessa dependência do outro, a relação primordial, mãe-bebê,
assume uma singularidade na vida do sujeito. Nesse sentido, a concessão do
amor materno torna-se essencial na vida do humano, para que ele possa lidar
com esse turbilhão de forças, internas e externas, que o expõe ao desamparo.
A ternura e a presença calorosa da mãe constituem os primeiros pólos de
organização
do
amor.
Entretanto, D. Graça, mãe de Breno,
tinha
muita dificuldade em dar carinhos aos filhos, pois vivia angustiada com sua
intensa insatisfação libidinal. Ela, também, estava aprisionada aos seus
fantasmas edipianos, que se expressavam na sua identificação com seu pai
militar e na rejeição à sua mãe paraplégica. Essa mãe contemplava seu filho
com sentimentos derivados de sua própria vida sexual, que eram muito
ambivalentes: ao mesmo tempo que expressava uma preocupação com o
sofrimento do filho, também sentia satisfação em vê-lo castrado,
e isto lhe
era muito ameaçador. Nesse sentido, identifiquei na clínica de Breno, a
importância do fator transgeracional
parecia
trazer
a
na constituição do seu sintoma, que
marca dessa trama familiar, e isso agravava
consideravelmente seu desamparo.
Dessa forma, esta investigação permitiu-me compreender que o
aparelho psíquico faz parte do sistema imunológico e o processo de conversão
é constitutivo do corpo erógeno já que implica num investimento psíquico no
órgão ou órgãos, que demarcam o corpo com representações simbólicas,
revelando que não há uma solução de continuidade entre o psiquismo e o
corpo. Na psicopatologia histérica, a conversão torna-se uma defesa contra a
angústia do desamparo frente à perda do amor do objeto. No caso Breno, isso
era acentuado devido à violência materna, uma violência que se inscrevia num
contexto claramente sexual.
Esta vasta produção científica que vem sendo produzida desde o
século XIX, constituindo-se, a partir das elaborações de Freud, numa sólida
teoria psicopatológica e psicoterapêutica da histeria, hoje em dia, pretende-se
anular, retirando-se dos manuais internacionais de doenças: CID–10 e DSM,
esta neurose, porém os histéricos e as histéricas continuam existindo,
conclamando uma escuta do seu sofrimento, que só pode ser cuidado pela
lente do amor.
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