IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
CURRÍCULOS EM/NAS REDES: O JORNAL
‘EDUCAÇÃO & IMAGEM’ E A CIRCULAÇÃO DE
CONHECIMENTOS VIA INTERNET
Alessandra da Costa Barbosa Nunes Caldas
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Currículos em/nas Redes: o Jornal ‘Educação & Imagem’ e a circulação de conhecimentos via internet
CURRÍCULOS EM/NAS REDES: O JORNAL ‘EDUCAÇÃO & IMAGEM’ E A
CIRCULAÇÃO DE CONHECIMENTOS VIA INTERNET
Alessandra da Costa Barbosa Nunes Caldas – UERJ
Agência Financiadora: CAPES
RESUMO: Este trabalho procura trazer para o campo das políticas de currículo e para o
campo da educação a discussão da divulgação científica, já bastante avançada em outras
áreas de conhecimento. A proposta é abordar a temática em questão a partir da análise
dos ‘usos’ de artigos escritos por professores/pesquisadores e publicados no Jornal
Eletrônico: Educação & Imagem, com a finalidade de compartilhar o que vem sendo
produzido em pesquisas e práticas curriculares desenvolvidas em torno da relação
imagens e educação. Este trabalho está relacionado àqueles que se desenvolvem nos
estudos nos/dos/com os cotidianos, o que nos tem permitido compreender as múltiplas
redes de relações e significados tecidas nos diversos contextos cotidianos em que
vivemos.
PALAVRAS-CHAVE: redes cotidianas de conhecimento e significações – divulgação
científica em educação – artefatos culturais – formação de professores.
Este trabalho procura trazer para o campo das políticas de currículo e para o
campo da educação a discussão da divulgação científica, já bastante avançada em outras
áreas de conhecimento. A proposta é abordar a temática em questão a partir da análise
dos ‘usos’ de artigos escritos por professores/pesquisadores e publicados no Jornal
Eletrônico: Educação & Imagem, com a finalidade de compartilhar o que vem sendo
produzido em pesquisas e práticas curriculares desenvolvidas em torno da relação
imagens e educação. Este trabalho está relacionado àqueles que se desenvolvem nos
estudos nos/dos/com os cotidianos, o que nos tem permitido compreender as múltiplas
redes de relações e significados tecidas nos diversos contextos cotidianos em que
vivemos.
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Desejo, com a pesquisa desenvolvida, mostrar como cotidianamente tem sido
tecidas relações entre usuários/professores/pesquisadores por meio do Jornal Eletrônico
– Educação & Imagem (www.lab-eduimagem.pro.br/jornal), ultrapassando dessa forma
a idéia subjacente à expressão ‘divulgação científica’, que sugere uma unitelaridade
e/ou, no mínimo, uma segregação entre cientistas e “todo o resto” (CERTEAU, 1994).
Ao
fazerem
‘usos’
diversos
e
imprevisíveis
dessa
mídia,
esses
usuários/professores/pesquisadores põem, literalmente, os conhecimentos produzidos
para circular, possibilitando apropriações, ressignificações e criação de outros
conhecimentos em/nas redes.
Entendo que esses ‘usos’ e relações permitem mostrar como não são
verdadeiras idéias preconcebidas do tipo: “os professores não querem saber do
computador” ou “os professores não usam as tecnologias que as secretarias (“o
governo”) colocam à disposição nas escolas”. Pretendo, com esse intuíto, indicar como
se desenvolvem múltiplas relações entre usuários/professores/pesquisadores e artefatos
culturais, nas quais co-engendram-se diferentes usos das tecnologias em espaçostempos
de novas relações entre as escolas e as universidades, possibilitando o enredamento de
saberesfazeres diversos constituídos em suas práticas cotidinas de pesquisar e praticar
currículos.
Redes de conhecimentos, cotidiano, educação e imagens
Em torno da noção de redes de conhecimentos e significações e da metáfora das
redes, para dar conta do modo pelo qual são tecidos os conhecimentos no cotidiano,
surge no Brasil, há pelo menos vinte e cinco anos, uma corrente de pesquisas que se
auto-intitulou, e assim é conhecida no campo educacional, como pesquisas nos/dos/com
os cotidianos. Os trabalhos, que desde o início basearam-se no pensamento de
LEFEBVRE (1983; 1992) e CERTEAU (1992; 1994; 1997), foram, ao longo do tempo,
incorporando as teorizações de outros autores.
Boa parte dessas pesquisas, nos contatos tidos com os chamados Estudos
Culturais (WILLIAMS, 1985; 1992 a; b; c; HALL, 1997) e com as pesquisas sobre
Recepção (MARTIN-BARBERO, 1995; 1997; 2000; 2001), foi se aproximando de
questões forjadas com a produção, circulação e usos crescentes de imagens na
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contemporaneidade e pelas narrativas dos praticantes (CERTEAU, 1994) sobre elas,
em suas vivências cotidianas.
Nesse processo, o interesse de um número significativo de professores de várias
linhas de pesquisa do PROPEd/UERJ com relação ao uso de imagens e de narrativas
nas pesquisas que coordenam levou à criação, em 2001, do Laboratório Educação e
Imagem (www.lab-eduimagem.pro.br) ligado ao Programa de Pós Graduação
em
Educação (PROPEd) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). A partir de
então, inúmeras publicações conjuntas produzidas por pesquisadores dos grupos ligados
ao laboratório têm permitido fazer conhecer a um público cada vez maior o que as
pesquisas
vêm
desenvolvendo
teórico-epistemologicamente
e
teórico-
metodologicamente, no que diz respeito à necessidade e às possibilidades do uso de
imagens e de narrativas em pesquisas e em outras práticas em educação.
Em 2006, durante a realização do III Seminário Interno no Laboratório Educação
e Imagem, os grupos de pesquisa envolvidos deliberaram pela urgência da criação de
um periódico que permitisse o acesso, em especial para professores de todos os graus de
ensino, do que vinha sendo produzido. Essa necessidade levou à criação do jornal
eletrônico Educação & Imagem (www.lab-eduimagem.pro.br/jornal/), o qual foi
registrado como atividade de extensão, dos grupos envolvidos no Laboratório Educação
e Imagem, na PROEX/UERJ (SR3) – DEPEXT, em junho/2007.
Produzido desde o referido seminário e disponibilizado aos internautas em maio
de 2007, o veículo já tem quatorze números publicados, até o momento. Devido ao
grande interesse que despertou, a periodicidade, que deveria ser bimensal, passou a ser
mensal a partir de agosto/2007.
O jornal eletrônico Educação & Imagem tem, a cada mês, a edição organizada
por um grupo de pesquisa diferente. Os oito grupos que integram o Laboratório de
Educação e Imagem têm sua identidade própria, pesquisas próprias, mas têm em comum
o trabalho com imagens, o respeito aos cotidianos como espaçotempo de invenção
permanente de conhecimentos e a convicção de que os professores, nas escolas em que
atuam, são grandes inventores de conhecimentos e, como tal, têm muito a dizer sobre
suas vivências e criações.
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O periódico apresenta as seguintes seções: Uma imagem, Pensando com
imagens, Imagens no exterior, Imagem no Brasil, Arte & Imagem, Voz do Docente,
Voz do leitor, Dicas e Links. Para os integrantes do projeto, membros dos grupos de
pesquisa que integram o Laboratório, duas seções são muito queridas: A voz do Docente
e A voz do leitor. Estas seções constituem os fios que nos permitem estabelecer trocas
com os professores/leitores do jornal, praticantesdocentes em outros cotidianos e outros
níveis de ensino. A discussão sobre este material, proposta por essa pesquisa, vem
permitir pensar em outros tempos e em outras práticas sociais e pedagógicas,
convidando-nos a remexer baús de memórias em busca dos sentidos pessoais e coletivos
da docência, de ontem e de hoje.
Analisar os trabalhos de autores tão variados, que criam conhecimentos e
articulam valores durante o uso que fazem das técnicas criando tecnologias 1, nos
possibilita observar algumas preocupações comuns no campo educacional e da
comunicação, principalmente ao que se refere em descentralizar idéias focadas na
produção. Busacamos então um perspectiva diferente que procura compreender como as
apropriações, as articulações e as negociações se verificam no processo de recepção e
no processo de uso. Isto quer dizer que a criação de conhecimentos ocorre para além da
transmissão e da recepção passiva dos mesmos, ou seja, em suas práticas cotidinas os
usuários das mídias e outros recursos da comunicação e da educação fazem ‘usos’
diversos, como lhes é possível, de produtos de vários tipos: por meio de produtos
materiais- televisão, computador, livros etc. E por meio de produtos ideológicos: as
propostas curriculares de um governo ou o programa de um partido – dentre eles
incluídos, as imagens e as narrativas cotidianas. Nessas ‘operações de usuários’
(CERTEAU, 1994), engendram-se possibilidades de conhecimentos para além do que
foi oferecido ou imposto.
O intuito do Jornal Eletrônico é romper a barreira simbólica que
estabelece uma hierarquia de conhecimentos desde a produção intelectual da escola
fundamental até a universidade. Usando a Internet como um artefato cultural, o jornal
propõe a possibilidade de mudar o modelo de comunicabilidade entre a universidade e a
escola fundamental, desenvolvendo uma prática dialógica, recriando a proximidade e
1
Na pesquisa, entendemos tecnologias como os modos como os praticantes usam os artefatosculturais
com que se deparam nas contingências das redes de conhecimentos e significações de que participam.
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acompanhando as práticas curriculares dos espaçostempos envolvidos. Neste processo,
busca-se ressaltar o trabalho com imagens e o respeito aos cotidianos como
espaçostempos de invenção permanente de conhecimentos, na convicção de que os
professores, nas escolas em que atuam, são grandes inventores.
Pretende-se também romper com a dicotomia teoria/prática na medida em que se
reconhece na prática do professor a relação dialética com a teoria que lhe fomenta ao
mesmo tempo que é gerada por ela.
Educação, comunicação, ciência e práticas de usuários
Atualmente, presencia-se o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, que
provocam uma reorganização permanente das formas de viver, um deslocamento dos
atores sociais, uma transformação da mídia em meio ao excesso de informações e
carência de significados e sentidos, além do predomínio da imagem sobre a escrita.
A Internet, vista como um espaço social, sugere que as relações ocorrem
como linhas estendidas que se cruzam e entrecruzam em direção ao horizonte. A
comunicação, assim, circula em várias direções, sem controle de fluxo, sem hierarquias.
Nesses vários mundos, ambientes e contextos da rede, uma infinidade de subredes são
formadas, cada qual com diferentes configurações, das mais simples às mais complexas.
As configurações não são fixas, já que se transformam, todo o tempo, conforme as
práticas que aí se dão, bem como as relações que se estabelecem.
Nesses movimentos, a despeito de tantas estratégias de segregação e de
massificação existentes nos meios de comunicação do século XXI, a Internet institui a
possibilidade de incorporar a voz de grupos até então marginalizados da sociedade, de
se buscar caminhos alternativos para a criação e circulação do conhecimento, de se
escolher e pesquisar um assunto de interesse, de se ter acesso a trocas sobre os mais
variados assuntos, de se tornar co-autor e transformar o discurso unilateral em
hipertexto. Vive-se na famosa “aldeia global”, onde a troca de informações e a
disponibilização das mesmas, através de meios de comunicação, é fator determinante
para a sobrevivência de diversas instituições.
Já que vivemos em uma sociedade em rede, em que o fluxo de informações é
extremamente rápido, faz-se necessário estabelecer eficientes canais de comunicação.
Além disso, todo o saber científico e todos os avanços técnicos acumulados pela
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sociedade são, antes de tudo, um patrimônio histórico destinado ao uso universal
(LÉVY, 1993). Dessa forma, o conhecimento científico deve ser acessado e apropriado
por todos. Olhar para a Internet como uma rede significa observar as articulações que
ocorrem no seu interior, a partir das conexões formadas, das relações. O formato da
rede, entendido sob uma perspectiva da sociabilidade humana, permite assim colocar
em evidência as trocas horizontais que fluem nas variadas direções.
O trabalho desenvolvido, busca criar espaçostempos para narrativas e
conversas, a partir de imagens e textos, produzidos com vista à divulgação científica
dos resultados de pesquisas. Mas do que divulgação, portanto, o que proposmo é uma
circulação da produção de conhecimentos, possibilitando uma ‘conversação científica’.
Essa é uma metodologia, com ênfase na oralidadeescritavisualidade, partindo da
compreensão de que vivemos em culturas híbridas (CANCLINI, 1998), o que significa
que nelas, necessariamente, há infinidades de espaçostempos para as falasescritas e para
as imagenssons, de diversos tipos. Entendo que são nesses múltiplos e complexos
‘encontros’ que são reproduzidos, transmitidos e criados artefatos e relações culturais.
Neste sentido, esta pesquisa, propõe colocar em diálogo o que vai sendo
descoberto em ciência no campo da educação gerando contatos ágeis entre a
universidade e aqueles que se encontram nas diversas redes cotidianas e, em especial, os
praticantes docentes das múltiplas redes educativas existentes (ALVES, 2007)
Por esse motivo, a coordenação do Laboratório Educação e Imagem concebeu a
possibilidade de acompanhar, com um projeto de pesquisa, o ‘uso’ do jornal eletrônico
por professores da rede pública, recebendo apoio da FAPERJ, no Edital Apoio à Escola
Pública, no ano de 2008. Participaram deste projeto professores de duas escolas de
educação básica da rede municipal do Rio de Janeiro: a Escola Municipal Prof. Ary
Quintella, na Vila da Penha, e o CIEP Nação Rubro Negra, no Leblon.
Ao aceitarem participar do projeto, as duas escolas receberam computadores,
scanners e impressoras para que os professores pudessem ler o jornal e contribuir com
suas produções escritas e imagéticas. Buscava-se, com esta experiência, romper com a
idéia bastante disseminada no senso comum de que o conhecimento é produzido na
universidade e de que os professores de ensino fundamental e médio são apenas
disseminadores deste conhecimento.
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Os temas abordados pelos professores nos artigos enviados foram variados, desde
os comentários sobre textos de edições anteriores do Jornal até narrativas de
experiências vividas em seus cotidianos. Na produção escrita dos professores a narrativa
recebeu uma atenção especial, na medida em que, como propõe Martin-Barbero, é
constitutiva do que somos. Este autor chama atenção para a polissemia do termo contar,
que significa contar história, contar para os outros e ser ‘tomado em conta’, já que para
sermos reconhecidos é indispensável ‘contar’ o que somos (MARTIN-BARBERO,
2007).
Nas suas narrativas, os professores que colaboraram com o Jornal trouxeram
importantes contribuições para a discussão sobre a criação do conhecimento no
cotidiano escolar. Michel de Certeau (1994), um dos principais autores com os quais
esta pesquisa dialoga, propõe um olhar sobre as práticas cotidianas, buscando pensá-las
como práticas formadoras de conhecimentos.
Quando narraram suas experiências, os professores colaboradores trouxeram em
seus textos saberes muitas vezes não reconhecidos pelos próprios, saberes surgidos das
experiências diárias, tecidos nas redes de conhecimentos e significações nas quais seus
autores estão mergulhados.
Na edição Nº. 2 do Jornal, a professora Regina Maria Neiva Mesquita narrou uma
experiência realizada com seus alunos. Convidando-os a se olharem no espelho, a
professora propunha às crianças um encontro com o seu corpo. Regina Mesquita
informa em seu texto que a atividade se estendeu tanto que não houve mais momento
para outras atividades. Durante todo o processo as crianças se olhavam no espelho,
fazendo poses. E a professora permaneceu observando a experiência. Concluindo o seu
texto, Regina Mesquita afirma: ali não caberia também perguntar o que estavam
sentindo ou que estavam vendo. A linguagem não cabia no discurso, ela era um jogo
entre o corpo e a imagem que o espelho devolvia. (MESQUITA, 2007).
Em sua narrativa, a autora trouxe uma importante contribuição para as pesquisas
sobre educação e imagem, em primeiro lugar ressaltando o valor que é conferido ao
espelho na nossa sociedade, como forma de buscar um encontro do homem com a sua
própria imagem. Mais do que isso, a experiência infantil narrada pela autora/professora
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constata a irrelevância da linguagem diante de uma determinada imagem, o que nos
permite discutir o relevo que é dado à aprendizagem da linguagem escrita na escola, na
sociedade ocidental. O processo educativo neste caso se desenvolveu sem palavras,
porque se alimentou de emoções tecidas no diálogo com a própria imagem.
Outra autora/ professora que trouxe importante contribuição para o Jornal, em seu
Nº. 8 foi a professora Vera Lucia Ferreira Gonçalves, que narrou a trajetória do seu
processo de pensamento sobre a sua experiência como professora do PEJA - Programa
de Educação de Jovens e Adultos. Diz esta autora, no texto publicado:
Havia acabado de ler o livro Dinâmica Comunitária nas Palavras do Povo, de Frances
O’Gorman.
Esta autora registra o relato de vários grupos comunitários, indicadores da dinâmica
da práxis educativo-transformativa, que convergem para três categorias: percepção de
realidade, valoração e ação-reflexão, sempre enraizadas na vivência da realidade
econômica, social, política e cultural. (...)
Comparei esses aspectos às funções do PEJA: Pude aproveitar alguns versos da
música e da novela Duas Caras que estava passando, para focalizar a realidade
vivenciada por eles em suas próprias comunidades ,explorando seus aspectos sociais,
culturais, econômicos, etc..
No social usei o verso: “Que não corre da raia a troco de nada”, caracterizando uma
juventude afoita e idealista, e também a expressão “que não tá na saudade,
significando que não deixa se abater, que procura reconstruir a cada manhã um
caminho. Nesses versos observamos a valoração, percepção da realidade vivenciada e
o confronto da pessoa com seu mundo.
Vejo aí a função Reparadora do PEJA, quando abre as portas para essa comunidade
voltar a estudar, um direito que, que por algum motivo, lhe foi tirado. Sendo assim
corrigida a realidade histórico-social de exclusão. (GONÇALVES, 2008)
Para pensar a relevância social de sua experiência como professora, Vera
Gonçalves nos apresenta as redes de conhecimentos e significações de que participa e
nas quais articula a sua apropriação das teorias impressas no o livro, a música da novela
e a sua experiência ética e estética numa combinatória que vai constituir a sua prática
docente. O processo de conhecimento desta professora/autora evidencia que por mais
que muitos processos de ensino tratem o homem como um ser compartimentado, o
conhecimento se dá de múltiplas formas e finca raízes em diferentes experiências, em
diálogos com diferentes fontes, o que nos torna cúmplices dos autores dos livros, das
músicas e de tantas outras práticas que conhecemos. Neste sentido, importa repensar a
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idéia de conhecimento para além das chamadas disciplinas curriculares, pois, estas não
comportam tudo o que se aprende no cotidiano e que nos ajuda a criar conhecimentos,
permanentemente.
Tratando de currículo e de práticas cotidianas, outro professor/autor trouxe em seu
texto uma importante inquietação. Trata-se do professor Gilvan Nóbrega, que constatou
o seguinte, conforme seu texto:
A escola busca respeitar os valores sócio-culturais do aluno. Em muitas escolas
elementos como o funk, o rap, a pichação e as gírias das comunidades, têm sido
trabalhados no processo de ensino. E a sociedade? Será que ela aceita ou virá a
aceitar a cultura das comunidades mais carentes? A futura universidade e o mercado
de trabalho? Os alunos de hoje estarão amanhã isolados em suas comunidades, vistos
preconceituosamente como pessoas portadoras da síndrome da sub-cultura?
(NÓBREGA, 2008)
O questionamento deste autor traz a tensão vivida pelo professor que
cotidianamente se depara com práticas culturais relacionadas a setores populares da
sociedade e práticas culturais nomeadas como eruditas. Permeando esta tensão está o
questionamento do professor que se pergunta qual conhecimento deve valorizar no
trabalho pedagógico e curricular que realiza.
Para discutir com estas indagações, importa travar um diálogo com as idéias de
Néstor Canclini que, ao estudar as relações culturais na América Latina, analisa como
os setores populares misturaram modernidade e tradição. Partindo da constatação de que
a crise teórica atual na investigação do popular deriva da atribuição indiscriminada
dessa noção a sujeitos sociais formados em processos diferentes, Canclini constrói uma
outra perspectiva para a análise do “tradicional-popular”, dizendo:
os fenômenos culturais folk ou tradicionais são hoje o produto multideterminado de
agentes populares e hegemônicos, rurais e urbanos, locais, nacionais e transnacionais.
Por extensão, é possível pensar que o popular é constituído por processos híbridos e
complexos, usando como signos de identificação elementos procedentes de diversas
classes e nações. (CANCLINI, 1998: 220/221)
Neste sentido, as manifestações culturais dos alunos são processos híbridos,
resultantes de práticas provenientes de diferentes culturas. Os conhecimentos tecidos a
partir destas práticas também são conhecimentos híbridos e resultantes de diferentes
agentes sociais. Em outras palavras, o funk, o rap, a gíria não são patrimônios de apenas
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um grupo social, perpassam as questões sociais e se mantém independentes de uma
suposta hierarquia cultural que define uma manifestação cultural como superior a outra.
Este pensamento permite que voltemos a Certeau quando este diz que:
a cultura articula conflitos e volta e meia legitima, desloca ou controla a razão do mais
forte. Ela se desenvolve no elemento de tensões, e muitas vezes de violências, a quem
fornece equilíbrios simbólicos, contratos de compatibilidade e compromissos mais ou
menos temporários. (CERTEAU, 1994: 45)
Alguns outros professores e professoras escreveram para o jornal e trouxeram as
suas contribuições para a pesquisa em educação e imagem, rompendo, portanto, a
suposta barreira que distancia a pesquisa acadêmica do conhecimento escolar. Para além
deste resultado, este projeto permite um diálogo entre professores, enriquecendo a
pesquisa acadêmica com a prática do professor do ensino fundamental e médio,
subvertendo a antiga relação entre pesquisador e objeto de estudo, tecendo uma
experiência dialógica na pesquisa em educação.
Algumas conclusões...
Esta pesquisa, assim, procura trazer para o campo da educação a discussão da
divulgação científica, já bastante avançada em outras áreas, pela análise do mundo atual
em que vivemos e pela análise de conversas sobre o ‘uso’ de artigos escritos com a
finalidade de ‘mostrar’ o que vem sendo produzido em pesquisas desenvolvidas em
torno da relação imagens e educação.
Essa abordagem possibilita um processo permanente de avaliação sobre o uso e
a compreensão que professores e leitores têm da “divulgação científica” na área da
educação, compreendida não apenas como informação (mensagem), mas como
comunicação, o que implica em relação.
Hoje como nunca aconteceu em toda a história, fala-se em comunicação científica e
tecnológica; hoje, como nunca, há governos nacionais ou regionais que apóiam a
criação e as atividades no campo da cultura científica e tecnológica; e hoje, como
nunca, as próprias instituições científicas e as universidades consideram que a
divulgação não é uma desonra, mas faz parte de sua obrigação. Os meios de
comunicação de massa já não têm medo de tratar da atualidade das ciências e das
tecnologias e recorrem a essas para esclarecer a atualidade em geral. Nunca como
neste momento a investigação e o desenvolvimento das ciências e das tecnologias
exerceram tão grande influência no nosso modo de vida e de trabalho, nas nossas
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concepções de espaço e tempo, nas nossas capacidades de intercâmbio e de
comunicação em todo o planeta. (VOGT, 2006: 19)
No decorrer deste projeto, a cada passo que damos nos caminhos que escolhemos
trilhar, em nossas conversas e trocas pela internet, surgem várias questões que nos
possibilitam pensar a importância da comunicação, como conversação, tadução e
negociação, daquilo que produzimos entre todos aqueles envolvidos no campo
científico, tentando estabelecer uma relação de trocas entre o que pensam e o que
produzem os pesquisadores e os professores/leitores. Sabendo disso, é preciso
reconhecer, no entanto, que ouvir falar sobre essas questões e sobre elas ‘conversar’,
com tudo o que pode trazer, será uma maneira de formar professoras – e pesquisadores
interessados nas questões práticoteóricas da educação e seus cotidianos – no contexto
do que é necessário às situações práticas que vão/vamos enfrentar. Viver isso, junto, em
uma situação de grupo, significa melhor prepará-los e a nós mesmos para resolver o que
vai se apresentar no futuro, na área de produção científica dita das ‘ciências sociais e
humanas’.
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Currículos em/nas Redes: o Jornal ‘Educação & Imagem’ e a circulação de conhecimentos via internet
Referências bibliográficas
ALVES, Nilda. A relação de praticantes docentes com a internet e a produção
científica da área da educação, através de ‘site’ de divulgação científica. Rio de
Janeiro: FAPERJ, 2007. (projeto de pesquisa)
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. 2ed. São Paulo: Editora Universidade de
São Paulo, 1998. (Ensaios Latino-Americanos)
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano – artes de fazer. Petrópolis/RJ: Vozes,
1994.
GONÇALVES, Vera Lúcia Ferreira. E Vamos à luta. In: Jornal Educação e Imagem.
Ano I, No. 8, set/out de 2008.
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso
tempo. Revista Educação & Realidade. Porto Alegre: UFRGS, vol. 22, 1997: 15-46.
LEFEBVRE, Henri. Lógica formal - lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira,1983.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência – o futuro do pensamento na era da
informática. Rio de Janeiro: Editorial 34, 1993.
MARTIN-BABERO, Jesus. Diversidad em Convergência. In: Seminário internacional
sobre diversidade cultural. Brasília: Ministério da cultura do Brasil, 2007.
MESQUITA, Regina Maria Neiva. Eu, as crianças e o Espelho. In: Jornal Educação e
Imagem. Ano I, No. 2, jun/jul de 2007
NÓBREGA, Gilva. Ponderações sobre o aluno. In: Jornal Educação e Imagem. Ano I,
No. 8, set/out de 2008.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência
universal. Rio de Janeiro: Record, 2008.
VOGT, Carlos (org.) Cultura Científica: desafios. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo: FAPESP, 2006.
WILLIAMS, Raymond. O povo das montanhas negras. S. Paulo: Cia das Letras, 1985.
__________. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992 a.
__________. História de la comunicación – del lenguaje a la escritura. Barcelona:
Bosch, 1992 b.
__________. História de la comunicación – de la imprenta a nuestros dias. Barcelona:
Bosch, 1992 c.
Alessandra da Costa Barbosa Nunes Caldas
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
EDUCAÇÃO SAUDÁVEL SE APRENDE NA
ESCOLA: EMÍLIA E A TURMA DO SÍTIO NA
CARTILHA DA NUTRIÇÃO DO PROGRAMA
FOME ZERO
Cláudia Sales de Alcântara
Geraldo Magela de Oliveira Silva
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
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Educação Saudável se Aprende na Escola: Emília e a Turma do Sítio na Cartilha da Nutrição do
Programa Fome Zero
EDUCAÇÃO SAUDÁVEL SE APRENDE NA ESCOLA: EMÍLIA E A TURMA
DO SÍTIO NA CARTÍLHA DA NUTRIÇÃO DO PROGRAMA FOME ZERO
Cláudia Sales de Alcântara1
Geraldo Magela de Oliveira Silva2
RESUMO: Atualmente as histórias em quadrinhos são muito mais aceitas como
produção artística e cultural por parcelas cada vez maiores da sociedade, sendo tratadas
como ferramenta didático-pedagógica muito eficaz, possuindo a capacidade, mediante
seu currículo cultural, de divertir, transmitir uma forma de ser, sentir, viver e se
comportar no mundo. Este trabalho analisa as HQ distribuídas gratuitamente pelo
Governo Federal às escolas estaduais e municipais intitulado: Emília e a Turma do Sítio
na Cartilha da Nutrição no Fome Zero. Este foi projeto do Programa Fome Zero, na
qual o MDS estabeleceu um contrato com a Editora Globo, e contou com o apoio
técnico do FNDE e dos Ministérios da Saúde e da Educação para produzir um material
educativo com as personagens da Turma do Sítio do Picapau Amarelo, abordando a
importância de uma alimentação saudável baseada em hábitos e produtos regionais,
aliada à prática regular de atividade física como condições essenciais para a promoção
da segurança alimentar e nutricional. Apesar das referidas revistas em quadrinhos
possuírem um conteúdo muito limitado, tendo apenas caráter prescritivo, elas podem ser
instrumentos de estímulo, para sensibilizar alunos e professores para o tema alimentação
e nutrição, favorecendo o desenvolvimento da capacidade crítica; o desenvolvimento,
ou educação do olhar; e a compreensão sobre o saber escolar/acadêmico, por ser um
artefato sociocultural distante da realidade vivida da escola e dos seus sujeitos.
PALAVRAS-CHAVE: currículo, alimentação, história em quadrinhos.
INTRODUÇÃO
Este artigo se propõe a analisar as revistas em quadrinhos distribuídas
gratuitamente pelo Governo Federal às escolas estaduais e municipais, intitulada Emília
e a Turma do Sítio na cartilha da nutrição no Fome Zero. Esse projeto foi uma ação do
Programa Fome Zero, na qual o MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome estabeleceu um contrato com a Editora Globo, e contou com o apoio
técnico do FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – e dos
1
Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.
2
Coordenador Pedagógico da Prefeitura Municipal de Fortaleza.
Cláudia Sales de Alcântara & Geraldo Magela de Oliveira Silva
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Educação Saudável se Aprende na Escola: Emília e a Turma do Sítio na Cartilha da Nutrição do
Programa Fome Zero
Ministérios da Saúde e da Educação para produzir um material educativo com as
personagens da Turma do Sítio do Picapau Amarelo, abordando a importância de uma
alimentação saudável baseada em hábitos e produtos regionais, aliada à prática regular
de atividade física como condições essenciais para a promoção da segurança alimentar e
nutricional.
Primeiramente mostraremos o mundo mágico dos quadrinhos e o seu
relacionamento desta mídia com a educação. Apresentamos então as revistinha em
quadrinhos Emília e a Turma do Sítio na cartilha da nutrição no Fome Zero, mostrando
quais temáticas elas abordam, o público a que se destina, o ano em que foram
publicadas e sua relação “estreita” com a editora Globo.
Em seguida, falaremos um pouco sobre o Programa Fome Zero como
proposta de segurança alimentar e erradicação da fome no Brasil. Aqui as revistinhas
em quadrinhos, Emília e a Turma do Sítio, são apresentadas como proposta de uma
educação para o consumo alimentar, que tem como objetivo educar a população sobre
as necessidades de uma dieta balanceada, na prevenção de desnutrição e obesidade,
conforme previsto no que o Programa Fome Zero denomina “políticas específicas”.
AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS COMO RECURSO PEDAGÓGICO:
EMÍLIA E A TURMA DO SÍTIO NA CARTILHA DA NUTRIÇÃO NO FOME
ZERO
A comunicação tem favorecido o relacionamento econômico, o diálogo
político e possui um papel cultural importante. A revolução nas comunicações
representa um avanço para a integração mundial.
Esse contexto de mudanças e globalização tem buscado respostas em novos
modelos curriculares que ofereçam algumas respostas a um complexo panorama
cultural, evidenciando novas exigências de qualificação que apontam, inclusive, para a
avaliação do desempenho do professor. Assim, são colocadas algumas exigências ao
educador. O mesmo deve ser capaz de:
(...) motivar os sujeitos cognoscentes; desenvolver autonomia nos
alunos; envolvê-los em processos multidisciplinares; promover o
engajamento cognitivo; apresentar postura de comunicador; empregar
harmoniosamente as novas mídias no processo pedagógico;
diversificar fontes de informações (jornais, TV, revistas, livros
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didáticos, internet, etc.); atribuir coerência e contexto aos
conhecimentos propostos aos alunos; mostrar-se dinâmico,
entusiasmado, engajado; desenvolver a criatividade dos alunos; ser
criativo; dominar o conteúdo programático, percebendo-o mais aberto e
não hermético; criar e contextualizar conhecimentos juntamente com os
alunos (VIDAL, MAIA E SANTOS, 2002, p. 20, grifo nosso).
Neste sentido, é necessária a preparação de um contexto escolar que utilize
esses novos recursos como instrumentos de melhoria do processo ensino-aprendizagem,
buscando compreender a utilização destes na formação do aluno.
Devemos também considerar o currículo de modo ilimitado que transcende
o âmbito escolar, a educação formal, pois a formação do ser humano não acontece
somente na escola. Faz-se necessária uma nova definição e compreensão de currículo
que abrace um conjunto de informações, valores e saberes, por intermédio de produtos
culturais3 que atravessam o cotidiano dos indivíduos e interferem em suas formas de
aprender, de ver, de pensar, de sentir – a isto chamamos de currículo cultural.
Essa perspectiva de currículo cultural possui como fundamento a idéia de
cultura defendida pelos Estudos Culturais britânicos, da Universidade de Birmingham.
Estes estudos preocuparam-se com produtos da cultura popular e dos mass media que
expressam os sentidos que vêm adquirindo a cultura contemporânea. Utiliza-se da
fenomenologia, etnometodologia e interacionismo simbólico, e do ponto de vista
metodológico preferem a pesquisa qualitativa. “Numa definição sintética, poder-se-ia
dizer que os Estudos Culturais estão preocupados com questões que se situam na
conexão entre cultura, significação, identidade e poder” (SILVA, 2002, p.134).
É exatamente pelo seu compromisso com a sociedade, a história, a cultura e
a política que este campo tem contribuído de maneira significativa para os estudos em
educação, mostrando que vários produtos e práticas culturais possuem valor
pedagógico, não ficando esta restrita ao âmbito escolar. Como diz Steinberg (1997,
p.12), “lugares pedagógicos são aqueles onde o poder se organiza e se exercita, tais
3
Podemos chamar de produtos culturais os produtos gerados das capacidades intelectiva e manual
humana e que possibilitaram a sobrevivência. Os produtos culturais são aqueles gerados dos mecanismos
nos mais variados processos produtivos e aqueles gerados da dimensão social presente nas relações
humanas. Nesse sentido, torna-se ente cultural o museu, o quadro de famoso e do não famoso pintor; são
expressões culturais os óculos que se usam no cotidiano, a caneta, a ferramenta de trabalho, o
computador, uma peça teatral, um trator, um ‘software’, as técnicas educativas de organização social, o
processo de produção de conhecimento, as mídias e a tecnologia. Todos estes entes são frutos do processo
produtivo e resultante da dimensão manual e da dimensão intelectiva da espécie humana.
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como bibliotecas, TV, filmes, jornais, revistas, brinquedos, anúncios, videogames,
livros, esportes, etc.”.
O que distingue os Estudos Culturais de disciplinas acadêmicas tradicionais é
seu envolvimento explicitamente político. As análises feitas nos Estudos
Culturais não pretendem nunca ser neutras ou imparciais. Na crítica que
fazem das relações de poder numa situação cultural ou social determinada, os
Estudos Culturais tomam claramente o partido dos grupos em desvantagem
nessas relações. Os Estudos Culturais pretendem que suas análises funcionem
como uma intervenção na vida política e social. (SILVA, 2002, p. 134).
Desta forma, a proposta de currículo aqui empregada compreende todo o
conhecimento na medida em que este se compõe num sistema de significado, cultural e
vinculado a questões de poder, abrindo precedentes para a compreensão de que
instâncias como museus, cinema, televisão, histórias em quadrinhos, músicas, shows,
entre outros, sejam considerados como instâncias culturais capazes de formar identidade
e subjetividade.
A maioria dos estudos realizados no campo educacional esteve por muito
tempo voltado para a instituição escolar como espaço privilegiado de operacionalização
da pedagogia e do currículo. Hoje, entretanto, torna-se imprescindível voltar à atenção
para outros espaços que estão funcionando como produtores de conhecimentos e
saberes, e a mídia é apenas um desses exemplos.
A mídia (a televisão, o jornal, as histórias em quadrinhos, o vídeo, o rádio, o
som, o retroprojetor, o computador, a internet, etc.) possui a capacidade, através do seu
currículo cultural, de além de divertir, transmitir uma forma de ser, sentir, viver e se
comportar no mundo. Neste contexto, as histórias em quadrinhos representam hoje um
meio de comunicação de massa de grande penetração popular.
A apropriação dos recursos midiáticos pelo professor, o aluno e a escola é
fundamental nesta era de globalização. Contudo, a questão é: “Como se apropriar dessas
novas mídias?” Ao mesmo tempo em que desenvolvemos qualquer recurso didático é
necessário haver a sensibilização e aceitação do professor, para que ele não recue ou
rejeite esta nova possibilidade, vendo-a como aliada; algo que vai ajudar-lhe em sua
prática.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB e os Parâmetros
Curriculares Nacionais – PCN sugerem a utilização das histórias em quadrinhos como
recurso didático-pedagógico. Nas histórias em quadrinhos, as crianças conseguem
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deduzir o significado da história, que não são capazes ainda de ler diretamente,
observando a imagem. Vejamos o que afirma o PCN para o Ensino Fundamental
referente à seleção de material:
Todo material é fonte de informação, mas, nenhum deve ser utilizado com
exclusividade. É importante haver diversidade de materiais para que os
conteúdos possam ser tratados da maneira mais ampla possível. O livro
didático é um material de forte influência na prática de ensino brasileira. É
preciso que os professores estejam atentos à qualidade, à coerência e a
eventuais restrições que apresentem em relação aos objetivos educacionais
propostos. Além disso, é importante considerar que o livro didático não deve
ser o único material a ser utilizado, pois a variedade de fontes de informação
é que contribuirá para o aluno ter uma visão ampla do conhecimento.
Materiais de uso social frequente são ótimos recursos de trabalho, pois os
alunos aprendem sobre algo que tem função social real e se mantêm
atualizados sobre o que acontece no mundo, estabelecendo o vínculo
necessário entre o que é aprendido na escola e o conhecimento extra-escolar.
A utilização de materiais diversificados como jornais, revistas, folhetos,
propagandas, computadores, calculadoras, filmes, faz o aluno sentir-se
inserido no mundo à sua volta. (Parâmetros Curriculares Nacionais, 2008,
p.1)
Algumas editoras de livros paradidáticos já perceberam a eficácia das
histórias em quadrinhos como recurso que proporciona uma aprendizagem prazerosa e
dinâmica. A editora do Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas – IBEP, com as
séries de Julierme de Abreu e Castro, geógrafo e historiador (1931-1983), publica na
década de 60 os primeiros quadrinhos com objetivos paradidáticos ou didáticos. O
primeiro livro é de 1967, de geografia e, em 1968, foram lançados os livros de história.
Atualmente, temos as editoras Moderna, Saraiva e Ática, que estão
publicando as histórias da Turma do Xaxado (que em 2003 recebeu apoio institucional
da UNESCO4), do autor baiano Antônio Luiz Ramos Cedraz, pois perceberam que o
perfil de suas histórias é perfeito para permitir a reflexão sobre valores, atitudes e
riqueza histórico-cultural, promovendo a valorização de nossa gente, e estando de
acordo com o que prevê o código de ética dos quadrinhos5, que entre outros, tem a
4
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Desde sua criação em 1945, a
UNESCO trabalha para aprimorar a educação mundial por meio de acompanhamento técnico,
estabelecendo parâmetros e normas, criando projetos inovadores, desenvolvendo capacidades e redes de
comunicação atuando como um catalisador na proposta e disseminação de soluções inovadoras para os
desafios encontrados.
5
No Brasil, este código de ética foi elaborado por um grupo de editores de revistas em quadrinhos,
Editora Gráfica O Cruzeiro, EBAL, RGE e Editora Abril.
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preocupação da utilização das HQ para fins educativos, “um instrumento de educação,
formação moral, propaganda dos bons sentimentos e exaltação das virtudes sociais e
individuais” (VERGUEIRO, 2006, p.14).
A partir da influência ideológica e social que as histórias em quadrinhos
possuem, principalmente em relação ao público infantil, sugiram as histórias em
quadrinhos publicadas pela editora Globo nos anos 2005 e 2006 e distribuídas
gratuitamente nas escolas estaduais e municipais, com o nome: Emília e a Turma do
Sítio na cartilha da nutrição no Fome Zero.
Estas HQ abordam temas como o que é a educação alimentar e destacando o
valor nutritivo das proteínas, carboidratos, vitaminas e sais minerais para o corpo
humano. Além das revistinhas dos alunos, cada professor recebe um caderno com
informações e atividades básicas para aplicar as lições da Emília dentro das salas de
aula. Ana Cláudia Vasconcelos, Coordenadora-Geral de Educação Alimentar e
Nutricional do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS,
afirma que "a cartilha é um instrumento fundamental para contribuir na percepção das
crianças de que a alimentação saudável é importante em todas as fases da vida, desde a
infância" e, ainda, que "a prioridade é que se tenha uma alimentação balanceada, rica
em nutrientes, feita à base de frutas, legumes e verduras” (MDS, 2008, p.1).
Contudo, em 2006, esse material teve sua distribuição suspensa por conter
logomarcas ou símbolos do Governo Federal que, na época, foi criticado por emprestar
às publicações caráter propagandístico em pleno período eleitoral. Na ocasião, o
ministro Marcelo Ribeiro, do Tribunal Superior Eleitoral – TSE declarou:
Entendo, em princípio, que as cartilhas ou revistas, em si, não constituem
propaganda institucional, nem deve se proibir, mesmo no período eleitoral, a
sua distribuição… Considero, contudo, que a aposição, nas referidas cartilhas
ou revistas, das logomarcas ou símbolos referidos, empresta às publicações
caráter propagandístico. De fato, o "FOME ZERO" é notoriamente conhecido
como programa social do atual governo. Já o "Criança Saudável, Educação
Dez", segundo a Radiobrás, é, também, projeto do atual governo. (ÚLTIMA
INSTÂNCIA, 2008, p. 1)
Editado pela Editora Globo, nos anos de 2005 e 2006, as cartilhas da
nutrição do Fome Zero foram distribuídas a 140 mil instituições, das áreas urbanas e
rurais, inclusive no Estado do Ceará, podendo ser até hoje encontradas em algumas
bibliotecas das escolas públicas do município e do Estado.
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As cartilhas, segundo Ana Cláudia Vasconcelos (MDS, 2008, p.1),
coordenadora geral de Educação Alimentar e Nutricional do MDS, foram “um
instrumento fundamental para contribuir na percepção das crianças de que uma
alimentação saudável é importante em todas as fases da vida, desde a infância”; "Esse é
um dos maiores méritos do projeto: levar informação ao público-alvo de uma maneira
direta e eficiente", afirma ainda Lúcia Machado (PAUTA SOCIAL, 2008, p.1), diretora
da Unidade de Negócios Infantis da Editora Globo.
É necessário esclarecer que a Editora Globo possui os direitos autorais
sobre a obra de Monteiro Lobato, com exceção dos livros. Somente na home-page da
Editora Globo foram contados cerca de 115 produtos licenciados com marcas
relacionadas ao Sítio do Picapau Amarelo e seus personagens.
Este dado pode nos indicar o esforço da Editora Globo em buscar ganhar
acesso a uma audiência cativa e introduzir, de diferentes maneiras, seus produtos nas
escolas (Kanner, 2006 citado por Oliveira, 2008). De modo subliminar, as crianças
associam a cartilha com os personagens da Turma do Sítio, ao programa de televisão e
aos produtos licenciados, dos quais alguns são alimentos considerados pouco saudáveis,
tais como: biscoitos (Visconti), macarrão instantâneo (Renata), ovos de chocolate
(Cacau Show), bolos industrializados (Visconti), gelatinas (Sol) e salgadinhos à base de
milho (Fritex).
Isso reforça o que diz Cirne (1990, p. 15) em relação às histórias em
quadrinhos no contexto da indústria cultural:
Sem dúvida, os quadrinhos existem como um sistema simbólico produzido
pela indústria cultural; não só os principais veículos que os divulgam
(sobretudo jornais e revistas) são originalmente de massa, como a base de
sua produção atende aos princípios técnicos, ideológicos e econômicos
regidos pela sociedade capitalista de massa. Se existe um quadrinho à
margem da indústria cultural/ cultural de massa, seja através de publicações
‘nanicas’, seja através de álbuns luxuosos, esta é uma outra história, embora
também (pelo menos no caso dos ‘nanicos’) faça parte de nossa história.
Nas histórias em quadrinhos da cartilha, Tia Nastácia e Tio Barnabé sempre
são os personagens que trabalham, respectivamente, na cozinha e na horta, contribuindo
para a construção de um ambiente de significação em que o comportamento racista é
visto como algo normal e aceitável, perpetuando-o na sociedade brasileira.
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O material Emília e a Turma do Sítio na Cartilha da Nutrição do Fome
Zero quando usado didaticamente de modo interdisciplinar no ensino fundamental I,
traz orientações sobre a aplicação da educação alimentar com uma didática compatível
ao nível de escolaridade que se propõe. Sua aplicação pode acontecer em aulas de
ciências naturais, língua portuguesa, história, matemática, geografia, arte e educação
física, trazendo também informações sobre a importância das proteínas, carboidratos,
vitaminas e minerais para o corpo humano, estando de acordo com os Parâmetros
Curriculares Nacionais – PCN da Educação Básica.
As revistinhas Emília e a Turma do Sítio na Cartilha da Nutrição do Fome
Zero estão divididas em duas partes. Na primeira parte, são as cartilhas distribuídas no
ano de 2005 contendo três revistinhas em quadrinhos para os alunos e um caderno do
professor. Neste primeiro ano, as cartilhas abordam assuntos como: o que é educação
alimentar, vitaminas e minerais, proteínas e carboidratos. As histórias em quadrinhos
possuem um complemento de informações ao final da revistinha, em pequenos textos e
ilustrações que dão dicas de uma alimentação mais saudável. Já o caderno do professor
possui uma versão estendida dos conteúdos abordados nos quadrinhos, em formato
texto, sistematizado em capítulos com ilustrações, sugestões de atividades com os
alunos e um possível trabalho de parceria com os pais.
A segunda parte das cartilhas, que foram distribuídas no ano de 2006 (ano
eleitoral) constava de duas revistinhas em quadrinhos para os alunos, e um caderno do
professor. A diagramação e formatação desse material seguem a mesma linha das que
foram distribuídas no ano de 2005, mudando apenas os temas abordados por elas: a
obesidade e alimentação saudável.
A preocupação em atingir o universo infantil e assegurar a comunicação dos
preceitos do Fome Zero, levou o Governo Federal a utilizar-se da linguagem lúdica e
direta das histórias em quadrinhos, o carisma e a brasilidade dos personagens de
Monteiro Lobato (Os personagens do Sítio do Picapau Amarelo - Emília, Narizinho,
Pedrinho, Dona Benta, Tia Anastácia, Visconde de Sabugosa, Tio Barnabé, Cuca e Saci,
e outros) a fim de repassar os conselhos para uma vida saudável. Ao final das
historinhas, num caráter mais informativo, encontram-se dicas para uma alimentação
saudável, comunicadas por meio de frases curtas, com explicações breves e ilustrações
coloridas, tornando assim o conhecimento mais agradável ao público infantil.
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Parece ainda existir no discurso dessas cartilhas certa intencionalidade de
ordem política. Ao levar preceitos e a conscientização de uma educação alimentar para
além do espaço escolar, pressupõe que a população modifique seus hábitos a partir
desse novo conhecimento que é repassado entre familiares dos alunos e professores.
Vejamos o que diz o diretor da Secretaria de Segurança Alimentar e Nutricional,
Marcos Dal Fabbro (O NORTE ONLINE, 2008, p.1):
A proposta é que a partir de uma discussão dentro da sala de aula você
consiga atingir o núcleo familiar. Uma criança, ao obter informações na sala
de aula, entende aquilo como muito importante e acaba levando isso para
dentro de casa. Com certeza vai haver uma troca de informações das crianças
com as mães, pais e irmãos na refeição, na hora do almoço, ou quando a mãe
está preparando o alimento.
Isso significa atribuir ao próprio povo a responsabilidade na construção de
uma sociedade mais saudável, menos miserável, menos atrasada. Aos que não seguem
tais preceitos, ou por teimosia, ou por desconhecimento, ou ainda por ausência de
condições possíveis de fazê-lo, resta reafirmar a sua “incompetência e inadequação
para o viver saudável”. As cartilhas tratam da questão alimentar como se dependesse
unicamente da consciência e da “boa vontade” de cada um.
Quanto ao seu caráter didático, cumpre seu duplo papel social, o da
instrução básica, respeitando a linguagem cognitiva do universo ao qual se destina, e o
de manter os valores da sociedade dominante.
AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DA EMÍLIA E A TURMA DO SÍTIO NA
CARTILHA DA NUTRIÇÃO NO FOME ZERO: POR UMA EDUCAÇÃO
ALIMENTAR SAUDÁVEL
Quando o Programa Fome Zero foi implantado em 2003, tinha o objetivo de
preencher uma importante lacuna na agenda política brasileira: a inexistência de um
amplo programa de segurança alimentar e nutricional capaz de coordenar e integrar
inúmeras ações nos níveis federais, estaduais, municipais e da sociedade civil,
assegurando o direito humano à alimentação adequada às pessoas com dificuldades de
acesso aos alimentos, promovendo a segurança alimentar e nutricional, buscando a
inclusão social e a conquista da cidadania da população mais vulnerável à fome.
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Em um estudo realizado em 2002 pelo Instituto de Pesquisas Econômicas
Aplicadas – IPEA foi apontado que, o Brasil possuía 49 milhões de pessoas vivendo
abaixo da linha da pobreza, isto é, em situação de insegurança alimentar. Destes, 18,7
milhões estavam abaixo da linha extrema da pobreza, o que significa que sua renda não
podia garantir a necessidade mais básica de todas: a alimentação (REZENDE, TAFNER
2005).
Sendo assim, o Programa Fome Zero, implementado pelo governo
brasileiro em janeiro de 2003, teve como base o Projeto Fome Zero, um documento de
132 páginas apresentado em outubro de 2001 por Lula em nome da Organização não
Governamental - ONG Instituto Cidadania, sob a coordenação de José Graziano da
Silva (ex-ministro do extinto Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar e
Combate à Fome), como uma proposta de segurança alimentar e erradicação da fome no
Brasil. A alimentação de qualidade é reconhecida como um direito humano inalienável
e ao longo do projeto grande ênfase é dada à necessidade de garantir o acesso à
alimentação com dignidade.
O documento apresenta a alimentação como direito humano básico e a
prioridade do combate à fome e à miséria como questão que vem mobilizando a
sociedade brasileira há mais de uma década. O conceito de segurança alimentar que
norteou o projeto foi explicitado neste documento, ficando claro que no Brasil a pobreza
e o desemprego são as causas principais da fome, constatando que o aumento da
capacidade produtiva no país não resultou na diminuição relativa dos preços dos
alimentos nem na maior capacidade de aquisição desses alimentos pelos segmentos
mais pobres da população. Entende-se por segurança alimentar “a garantia do direito de
todos ao acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e de modo
permanente, com base em práticas alimentares saudáveis e sem comprometer o acesso a
outras necessidades essenciais, e nem o sistema alimentar futuro, devendo se realizar em
bases sustentáveis” (PROJETO FOME ZERO, 2002).
A relação entre o emergencial e o permanente é presente em todo o texto do
documento, em diferentes perspectivas temporais com propostas de curto, médio e
longos prazos, sendo um dos aspectos mais relevantes do projeto. Contudo, a grande
questão é: o Fome Zero foi um programa de resistência e defesa da cidadania dos
excluídos, ou apenas veio para reiterar práticas conservadoras e assistencialistas do
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dever moral e humanitário de prestar socorro aos pobres, não se realizando como direito
social?
Embora o Programa Fome Zero em sua proposta original ficasse
explícita a perspectiva de associar o objetivo da segurança alimentar a estratégias
permanentes de desenvolvimento econômico e social e a medidas de cunho mais
estrutural, na prática as ações implementadas pelo programa mostraram-se
conservadoras e apoiadas em forte apelo humanitário, sem claras referências a direitos,
não rompendo com a lógica neoliberal, que “reforça as figuras do ‘pobre beneficiário,
do desamparado e do necessitado’, com suas demandas atomizadas e uma posição de
subordinação e de culpabilização do pobre pela sua condição de pobreza” (YAZBEK,
2003, p.50).
O Programa Fome Zero possui tem como base três grupos de políticas: as
políticas estruturais, adotadas pelo governo federal, em parceria com os estados e os
municípios; políticas específicas, que devem atender diretamente a todas as famílias que
não têm segurança alimentar; e políticas locais, que podem ser adotadas por meio das
prefeituras e da sociedade civil.
Dentro do que se chama de políticas específicas tem-se: o Cartão
Alimentação, estoques de segurança, cestas básicas emergenciais, segurança e qualidade
dos alimentos, ampliação do Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT, nutrição
materno-infantil, ampliação da alimentação escolar e educação para o consumo
alimentar, que promove campanhas publicitárias e palestras para educar a população
sobre as necessidades de uma dieta balanceada, na prevenção de desnutrição e de
obesidade. Foi a partir desta proposta que foram produzidas as histórias em quadrinhos
Emília e a Turma do Sítio na cartilha da nutrição no Fome Zero.
Educar no âmbito da segurança alimentar e nutricional, conforme o
Programa Fome Zero, seria propiciar conhecimentos e habilidades que permitem às
pessoas produzir, descobrir, selecionar e consumir os alimentos de forma adequada,
saudável e segura, assim como conscientizar quanto às práticas alimentares mais
saudáveis, fortalecer culturas alimentares das diversas regiões do país e etnias,
valorizando e respeitando as especificidades culturais e regionais dos diferentes grupos
sociais, e diminuir o desperdício, de modo a estimular a autonomia do indivíduo e a
mobilização social.
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Nesse sentido, como conciliar o conceito de cartilha com Educação
Alimentar, uma vez que educação implica em uma ação: a de educar? Veremos que as
revistas em quadrinhos Emília e a Turma do Sítio na cartilha da nutrição no Fome Zero
não se propõem a discutir com o leitor o que seja educação alimentar e nutricional, pois
consideram o alimentar-se bem as ações restritas de comer frutas, verduras e legumes,
plantados na horta, e nos horários considerados corretos; bem como comer sem
exageros e evitar o desperdício.
O primeiro ponto que questionamos é o propósito de propiciar
conhecimentos e habilidades que permitem às pessoas produzir, descobrir, selecionar e
consumir os alimentos de forma adequada, saudável e segura. As referidas revistas em
quadrinhos, quanto a este assunto, têm um conteúdo muito limitado, tendo apenas
caráter prescritivo, escondendo “toda a perversidade dos preceitos do ‘bem viver’,
imputados àqueles que não os seguem, não por teimosia ou desconhecimento, mas por
ausência de condições concretas para fazê-lo” (PEREGRINO, 2000, p. 64).
Elas contentam-se apenas em discorrer em mudanças de hábitos alimentares,
substituindo alimentos que possuem muito sal, gordura e açúcar por alimentos com
bastante vitaminas, minerais, proteínas e carboidratos. No entanto, não ensinam como as
crianças devem fazer para observar a qualidade dos produtos comercializados e assim
escolher, com conhecimento e habilidade, os alimentos que vão parar em suas mesas
(como escolher frutas e legumes frescos, atentar para prazo de validade dos produtos –
enlatados, congelados, ensacados – como escolher uma carne ou peixe, etc.). Não tratam
de cuidados de higiene para um consumo saudável e seguro de tais alimentos (lavar as
mãos, lavar cuidadosamente e em água corrente as frutas e vegetais que forem
consumidos crus, manter os alimentos fora do alcance de insetos, roedores e outros
animais, cozinhar bem os alimentos e, de preferência, consumi-los logo após o preparo,
etc).
Mas a simples listagem dessas práticas, desacompanhadas das condições
efetivas para aplicá-las, a simples menção dos preceitos individuais sem que
se discuta na mesma intensidade por que nem todos têm acesso aos mesmos,
a indicação de práticas individuais, desconectadas da análise efetiva das
condições de vida de nossas crianças, tudo isso poderá dar-lhes unicamente a
“consciência” de sua inadequação para a vida saudável, e mais nada!
(PEREGRINO, 2000, p. 66 e 67)
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Outro aspecto questionável é a conscientização quanto às práticas
alimentares mais saudáveis. Para isso, devemos ter em mente que a conscientização é o
processo de fazer com que a comunidade conheça seus direitos e deveres, praticando-os
em sua plenitude. Paulo Freire (1980) entendia conscientizar como sendo o ato de
responder aos desafios; resposta esta que exige reflexão, crítica, invenção, eleição,
decisão, organização, ação, fazendo com que o ser humano não seja um ser somente
adaptado à realidade e aos outros, mas integrado à realidade. Mais uma vez, as revistas
supracitadas se limitam ao caráter prescritivo, apenas citando os alimentos saudáveis,
sem fazer uma reflexão do porquê tais alimentos não fazem parte, na maioria das vezes,
do seu cardápio diário (questões econômicas, sociais, políticas e culturais). As revistas
também não esclarecem sobre o direito universal à alimentação de qualidade, em
quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais
(política de segurança alimentar).
É questionável também o propósito que este material tem de fortalecer
culturas alimentares das diversas regiões do país e etnias, valorizando e respeitando as
especificidades culturais e regionais dos diferentes grupos sociais. Aí vem uma das
maiores críticas a este material: como posso valorizar as especifidades culturais e
regionais se o material é único para toda a extensão do território brasileiro?
Diante das diversas culturas espalhadas pelo Brasil, nos deparamos com um
material de conteúdo homogeneizado e caricato. Como afirma Bezerra (2008, p. 9 e 10)
em sua pesquisa sobre educação alimentar nos livros didáticos:
Verificou-se a postura dos autores apresentarem os conteúdos, gravuras e
exercícios como se o conhecimento sobre alimentação fosse neutro e possível
de generalizar para toda a realidade brasileira que é marcada pelas diferenças
culturais, fato que leva ao reforço da cultura de segmentos sociais dominantes
em detrimento da realidade e da cultura alimentar das camadas populares e
dos alunos de escolas públicas do Nordeste, do Ceará e de Fortaleza.
Por fim, analisamos o propósito, das cartilhas citadas, de diminuir o
desperdício, de modo a estimular a autonomia do indivíduo e a mobilização social.
Autonomia vem do grego e significa autogoverno, governar-se a si próprio. Nesse
sentido, um indivíduo autônomo deve ser capaz de deliberar sobre seus objetivos
pessoais e de agir na direção desta deliberação. O respeito a autonomia seria então
valorizar a consideração sobre as opiniões e escolhas, evitando, da mesma forma, a
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obstrução de suas ações, a menos que elas sejam claramente prejudiciais para outras
pessoas. O desrespeito a autonomia de um indivíduo acontece quando é desconsiderado
seus julgamentos, negando-lhe a liberdade de agir com base em seus próprios critérios,
ou ainda, quando se omite informações necessárias para que este faça um julgamento,
quando não há razões suficientes que o convençam a fazê-lo. Nesse contexto, as revistas
em quadrinhos Emília e a Turma do Sítio na cartilha da nutrição no Fome Zero não
colaboram para a construção da autonomia, uma vez que não deixam espaço para uma
contrução do conteúdo pelo leitor (as cartilhas já vêm acabadas, concluídas), além de
omitirem informações preciosas, de ordens política, social, econômica e cultural – tais
como saneamento, educação, saúde, trabalho, lazer, etc – que influem diretamente na
questão alimentar. Ainda sobre autonomia, Charlesworth (1996, p.131) afirma que:
Ninguém está capacitado para desenvolver a liberdade pessoal e sentir-se
autônomo se está angustiado pela pobreza, privado da educação básica ou se
vive desprovido da ordem pública. Da mesma forma, a assistência à saúde
básica é uma condição para o exercício da autonomia.
Em relação a mobilização social, podemos conceituá-la como a reunião
de sujeitos que definem objetivos e compartilham sentimentos, conhecimentos e
responsabilidades para a transformação de uma dada realidade, movidos por um acordo
em relação a uma determinada causa de interesse público. A comunicação é um fator
indispensável para a existência de um processo mobilizador; logo, o processo de
mobilização social é comunicativo, e se este não acontece fica comprometida a
mobilização dos sujeitos. Esta comunicação tem que levar em conta não somente o
saber científico, mas também o saber popular adquirido a partir de experiências, das
vivências, percebendo que este saber não é inferior, apenas diferente. Como afirma
Valla (2000, p. 15 e 16):
É provável que dentro da concepção de que os saberes dos profissionais e da
população são iguais, esteja implícita a idéia de que o saber popular mimetiza
o dos profissionais. Se a referência para o saber é o profissional, tal postura
dificulta a chegada do outro. Os saberes da população são elaborados sobre a
experiência concreta, a partir das suas vivências, que são vividas de uma
forma distinta daquela vivida pelo profissional. Nós oferecemos o nosso
saber por que pensamos que o da população é insuficiente, e por esta razão
inferior, quando, na realidade, é apenas diferente.
Neste outro aspecto, as cartilhas apresentam problemas, pois, em nenhum
momento elas priorizam o saber das classes populares, priorizando o conhecimento
Cláudia Sales de Alcântara & Geraldo Magela de Oliveira Silva
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Educação Saudável se Aprende na Escola: Emília e a Turma do Sítio na Cartilha da Nutrição do
Programa Fome Zero
profissional (científica), além de não sugerir que a comunidade endereçada se reúna
para discutir seus direitos a uma política de segurança alimentar. Segundo Valla (2000,
p.12), os profissionais têm:
(...) dificuldade em aceitar que as pessoas “humildes, pobres, moradoras da
periferia” são capazes de produzir conhecimento, são capazes de organizar e
sistematizar pensamentos sobre a sociedade, e dessa forma, fazer uma
interpretação que contribui para a avaliação que nós fazemos da mesma
sociedade.
Além de não levarem em conta o saber popular, elas atribuem ao próprio
povo a responsabilidade na construção de uma sociedade mais saudável, menos
miserável, menos atrasada, reafirmando a “incompetência e inadequação para o viver
saudável” daqueles que não a cumprirem. Como já foi dito as cartilhas tratam da
questão alimentar como se dependesse unicamente da consciência e da “boa vontade”
de cada um.
Educação Alimentar fica mais uma vez limitada a ação de consumir, nos
horários considerados corretos, certos alimentos tais como frutas, verduras e legumes,
bem como comer sem exageros. Passa ao largo o propósito mobilizador e até mesmo
instrumental que a educação alimentar pode desencadear. Em síntese, as revistas em
quadrinhos Emília e a Turma do Sítio na cartilha da nutrição no Fome Zero, mostramse prescritiva e higienista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As histórias em quadrinhos, neste trabalho, são concebidas como ferramenta
didático-pedagógica eficaz, na era da imagem em que se vive, dotadas de um currículo
cultural que permite a reflexão sobre valores, atitudes e riqueza histórico-cultural,
promovendo a valorização da cultura nacional e local.
Este artigo buscou analisar as HQ da Emília e a Turma do Sítio na Cartilha
do Programa Fome Zero, do projeto "Criança saudável - educação dez" como material
didático, a fim de sensibilizar os alunos das séries iniciais do ensino fundamental à
temática da educação alimentar e nutricional.
Essas HQ mostraram-se com um conteúdo muito limitado, caracterizando-se
pelo caráter prescritivo, que imputa aos seus leitores os preceitos do ‘bem viver’, não os
Cláudia Sales de Alcântara & Geraldo Magela de Oliveira Silva
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Programa Fome Zero
esclarecendo do direito universal à alimentação de qualidade, em quantidade suficiente,
sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais (política de segurança
alimentar). Desta forma, não colaboram para a conquista da autonomia de seus leitores,
além de omitirem informações preciosas, de ordem política, social, econômica e cultural
– tais como saneamento, educação, saúde, trabalho, lazer etc – que influenciam,
diretamente, as questões alimentares.
Apesar da diversidade cultural do Brasil, inclusive em se tratando de hábitos
e práticas alimentares, o material tem seu conteúdo homogeneizado e caricato, não
respeitando as especificidades culturais e regionais dos diferentes grupos sociais das
diversas regiões do País. Ademais, apresenta erros conceituais graves, o que levanta o
questionamento se de fato houve uma pesquisa aprofundada sobre os assuntos
abordados.
Reconhecemos, no entanto, que as HQ da Emília e a Turma do Sítio na
cartilha do Fome Zero podem ser importantes instrumentos de estímulo de
sensibilização de alunos e professores em relação ao tema alimentação e nutrição. Nesse
sentido, devem ser considerados como produto não acabado, um construto sociocultural,
um elemento de currículo cultural. Devem ser levadas em conta suas limitações e, ao ser
utilizados, tem de se questionar acerca de suas peculiaridades e sua adequação à cultura
alimentar local.
Por fim, sucitamos algumas recomendações para os gestores do projeto: o
cuidado na elaboração do roteiro, de modo a respeitar a diversidade cultural e refletir a
multiculturalidade brasileira, e que haja revisão por um especialista da área da nutrição,
com a devida competência e sensibilidade para considerar questões de ordem social,
histórica e cultural. E recomendamos aos usuários, notadamente aos professores, o
cuidado e uma aproximação reflexiva sobre esse material, considerando-o como um
produto cultural, marcado pelas relações de poder, ideologias etc; que o considerem um
recurso didático limitado, jamais os tenham como “uma cartilha”.
Cláudia Sales de Alcântara & Geraldo Magela de Oliveira Silva
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Educação Saudável se Aprende na Escola: Emília e a Turma do Sítio na Cartilha da Nutrição do
Programa Fome Zero
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Cláudia Sales de Alcântara & Geraldo Magela de Oliveira Silva
1026
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
O DESENHO ANIMADO BOB ESPONJA E A
CONDIÇÃO HUMANA
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
O DESENHO ANIMADO BOB ESPONJA E A CONDIÇÃO HUMANA
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
RESUMO: O objetivo deste estudo é possibilitar e refletir a relação entre alguns
conceitos de Paulo Freire, de Jürgen Habermas e de Hannah Arendt e os conteúdos do
desenho animado Bob Esponja, na tentativa de apontar caminhos para a melhoria da
condição humana. Ao mesmo tempo em que diverte, o desenho animado, interfere na
liberdade de pensamento do telespectador infantil, influenciando seu comportamento e
sua reflexão no mundo em que vive. Na introdução, apresento a problemática do estudo
e sua metodologia. A seguir, enfatizo os conceitos desenvolvidos pelos autores: a)
Freire - opressão e silêncio como mecanismos de dominação, formação da consciência e
diálogo como experiência de liberdade; b) Habermas – concepção racional de mundo,
mundo da vida e competência argumentativa; c) Arendt – a condição humana. Em
seguida, o desenho animado Bob Esponja é descrito quanto à sua origem, personagens
principais, roteiros de alguns episódios e as metáforas de conceitos de vida. Por fim,
entrelaço o significado dos conceitos dos teóricos embasados e a compreensão da
influência do desenho animado sobre o imaginário infantil.
PALAVRAS-CHAVE: Desenho Animado, Competência Argumentativa, Diálogo,
Condição Humana.
1 - INTRODUÇÃO
Eu fico a me perguntar: Ao assistirem cotidianamente, os desenhos animados,
por onde “viaja” o pensamento das crianças e aonde ele chega, aporta, aterrissa? Na sua
bagagem social e afetiva, ele traz o que? No prazer do jogo entre ficção e realidade a
criança poderá coincidir com o sujeito do texto o que poderá desencadear em sua
psique, afetos e associações exclusivos, ou seja, próprios de cada um. Assim sendo, a
dinâmica do pensamento compõe-se de um perene movimento de construção e
desconstrução. Com a criança esse movimento recebe um ingrediente estupendo que é a
fantasia, pano de fundo ou moldura de tudo que a criança pensa e realiza.
Todo texto destina-se a um receptor, a um leitor, de modo que este o interprete e
o construa para si. Partindo da premissa de que o discurso é evento e deve ser tomado
como texto, será interessante investigar a compreensão dos desenhos animados, pelas
crianças, na tentativa de se compreender e se inserir no mundo. Outra premissa que
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
1030
O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
tomo como base concordando com Paul Ricouer (1983), é de que o sentido não está
atrás do texto e sim na frente, isto é, com o leitor.
O tema de tese que estou estudando refere-se à relação do imaginário infantil e o
desenho animado. Ao mesmo tempo em que diverte, o desenho animado interfere na
liberdade de pensamento do telespectador infantil, influenciando seu comportamento e
sua reflexão sobre o mundo em que vive. Os conceitos freireanos e habermasianos
possibilitam refletir a relação, imaginário infantil e desenho animado, pela intimidade
de elementos que se interligam, como também a categoria condição humana baseada em
Hannah Arendt que subsidia de forma firme a alienação provocada pelos meios de
comunicação de massa.
Ainda nesse trabalho exponho como objeto de análise, o desenho animado Bob
Esponja, veiculado na mídia televisiva brasileira. Por fim, apresento conexões entre
alguns conceitos freireanos, habermasianos e de Arendt, os media e o imaginário
infantil, na tentativa de apontar caminhos para melhoria da condição humana.
2 - PAULO FREIRE E JÜRGEN HABERMAS – UM OLHAR SOBRE
ALGUMAS CATEGORIAS CONCEITUAIS
2.1 - Categorias Freireanas
Parece-me imprescindível iniciar esta reflexão sobre os conceitos freireanos
lembrando que os mesmos são inseparáveis e estão interconectados num movimento
permanente na prática político-pedagógica. Considero que esse movimento é circular e
constitui o conjunto do pensamento de Paulo Freire. Ao dissertamos sobre um conceito,
os outros estão colaborando unanimente na construção do pensamento freireano, do que
constitui uma prática pedagógica.
Neste texto, porém, com profundidade serão descritas as categorias: opressão e
silêncio como mecanismos de dominação; formação da consciência crítica e o diálogo
como experiência de liberdade. Tal escolha se deu em virtude da relação com o tema a
ser estudado, ou seja, desenho animado e o imaginário infantil, como também objetiva
interligar com algumas categorias conceituais desenvolvidas por Habermas abordados
por Brennand (1999), em seu trabalho de tese.
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
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O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
a) Opressão e Silêncio como Mecanismos de Dominação
Partindo da análise concreta de situações de opressão no Brasil e em vários
outros países, Freire constata que mesmo hoje em dia, as condições globais de cada
sociedade analisada apresentam-se fechadas e dependentes. Proclamando mitos como
“oportunidades iguais para todos”, todo um esquema opressor é mantido para evitar o
desenvolvimento da autonomia e do pensamento crítico através da educação, dos meios
de comunicação de massa, do processo de trabalho. É a “cultura do silêncio” que toma
forma e como conseqüência temos sociedades passivas. Os media contribuem
grandemente pra que se mantenha o status quo quando alienam com mensagens
massificantes.
Os programas televisivos lançam idéias como sendo únicas e verdadeiras e assim
dominam os indivíduos, “negando-lhes” o direito de falar, discordar, sugerir, criar etc.
Negar a alguém o direito de falar é negar-lhe o direito de ser humano. Isso poderá
ocorrer com mais intensidade com crianças as quais recebem, durante horas, em frente
da televisão mensagens alienadas onde o pensamento autêntico fica mais e mais difícil
de se manifestar. O conceito de realidade para essas crianças não corresponde à
realidade objetiva, mas à realidade que o sujeito alienado imagina. Dessa forma o
sujeito alienado, se relaciona com a realidade objetiva sem compromisso e atraído pelo
estilo de vida da sociedade dominante. Sua forma de pensar é reflexo do pensamento e
expressão da sociedade dominante. A opressão é constituída quando o sujeito não
percebe essa relação opressor/oprimido e tende a continuar o ciclo vicioso. Freire
analisa que a educação favorece a vinculação dos modelos culturais dominantes através
da educação bancária ou educação antidialógica e do processo de reprodução cultural.
b) Formação da Consciência Crítica
O processo de conscientização é realçado por Freire como a capacidade que os
indivíduos têm de, frente aos desafios, darem respostas iguais ou diferentes modificando
não só a realidade em que está inserido, como também modificando a si próprio. O
homem é portanto, criador da história e da cultura. Esse processo de conscientização
pode-se manifestar de diversas formas:
Consciência intransitiva  É caracterizada pela quase centralização dos
interesses do homem em torno das formas mais vegetativas de vida. As preocupações do
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
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O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
indivíduo giram em torno do que lhe é vital, do ponto de vista biológico (comida,
moradia, vestimenta, etc.).
Consciência mágica  Essa consciência faz com que os indivíduos captem os
fatos emprestando-lhes um poder superior. Os indivíduos nada fazem por se
considerarem incapazes. Assistem apenas passivamente aos fatos (“A vida é assim
mesmo...”).
Consciência transitiva  Caracteriza-se por simplicidade na interpretação dos
fatos e uma transferência de responsabilidade e autoridade. Pensa mento com forte
inclinação ao gregarismo característico da massificação (“Isso depende do grupo e não
de mim”).
Consciência crítica  Consciente de que depende, o indivíduo indaga sobre os
fatores dessa dependência, busca identificar e compreender os motivos e procedimentos
que o condicionam. Essa consciência é histórica na medida em que refletindo sobre o
real sabe que a verdade não é eterna e sim é sensível às transformações do mundo e
condições de vida. Ser crítico é apropriação do homem do seu contexto de forma
consciente.
Através da consciência crítica nasce uma nova cultura com base na velha,
percebendo os pontos a serem preservados e aqueles a serem modificados. É na
interação homem-mundo que dialeticamente se dá o processo de conhecimento.
Pela conscientização faz-se oposição ao pensar ingênuo, permitindo o florescer
do pensamento crítico com o qual o indivíduo percebe a realidade como processo de
constante mudança onde ele pode se inserir, refletir e fazer parte das mudanças.
c) Diálogo como Experiência de Liberdade
“Qualquer prática educacional que tenha como objetivo a efetividade e eficácia
deverá ter como princípio a participação livre dos cidadãos na conquista da linguagem,
e o diálogo é a condição essencial dessa tarefa” (FREIRE, apud BRENNAND, 1999).
Toda a obra freireana apresenta a prática do diálogo como o caminho para a
formação da personalidade democrática, para a construção da pessoa contra a
massificação, a alienação e a opressão.
Paulo Freire progride de uma concepção de diálogo, de início como
possibilidade de mediação interclasses e entendida como ação entre os iguais e os
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
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O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
diferentes, para uma concepção de ação contra os antagônicos nos conflitos sociais. O
diálogo é visto como instrumento importante para superação da consciência ingênua e a
construção de uma concepção descentrada de mundo. Pela ação-reflexão proporcionada
pelo diálogo é possível compreender o real que se coloca como dado.
O diálogo tem ainda um caráter de horizontalidade, pois nas relações, a
liberdade de expressão através do diálogo proporciona aos falantes e ouvintes se
considerarem sujeitos da construção do conhecimento. Se apenas só “alguns” se
pronunciam e “muitos” só escutam, como ocorre muitas vezes, ainda hoje, em sala de
aula, os indivíduos não podem refletir sobre sua realidade.
O diálogo para Freire sempre ocorre dentro de um contexto político e significa
uma tensão permanente entre autoridade e liberdade. Essa autoridade poderá estar
representada por educadores, pais ou outros indivíduos e, também poderá estar
representada por religiões, ideologias, racionalidades ou qualquer determinação externa.
O homem moderno sofre a dominação exercida pela força da informação e da
publicidade organizada e interpretada por uma elite e transmitida em forma de receita
ou prescrição a ser seguida.
Desde a metade do século XX, aponta Jesus Martín – Barbero (2002), a função
de principal elemento de influência no processo de formação do público infanto-juvenil,
ocupada durante séculos pela família, vem sendo mais e mais dividida com os meios de
comunicação de massa. É nesse contexto que situamos a importância da pedagogia do
diálogo. O ato de refletir com crianças e adolescentes sobre os programas que eles
assistem, é de fundamental importância para que se torne claro o que é criado pela
indústria cultural. “Quando a educação fundamentava-se basicamente no livro, o acesso
às informações dependia de um complexo código de acesso. Hoje o contato das crianças
com o que até então permanecia velado acontece de forma imediata” (BARBERO,
2002). Para esse autor a família também já não é mais considerada “um remanso de
compreensão e diálogo”. A televisão estaria provocando o surgimento de um processo
de não-comunicação na instituição familiar com a redução do diálogo e do tempo de
convivência.
A relevância atribuída por Freire ao diálogo como estratégia de conscientização
dos marginalizados aplica-se no contexto geral da sociedade, seja na escola, na empresa,
na família, etc. É também bom ressaltar, que os meios de comunicação podem levar os
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O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
indivíduos à passividade desde muito cedo. Porém, não se propõe à pedagogia do
diálogo, apenas para aumentar a consciência. O diálogo torna os humanos mais
humanos quando busca compreendê-los em sua essência e em suas diferenças.
Para finalizar essa reflexão, as outras categorias conceituais freireanas como:
homem e mundo, cultura e escola como espaço público não foram pormenorizadas, mas
com certeza, foram incluídas na reflexão acima desenvolvida, pois como já afirmei, as
mesmas são inseparáveis.
2.2 - Categorias Habermasianas
Jürgen Habermas, filósofo alemão que a partir de meados do século XX iniciou
sua teoria sobre os fenômenos sociais, denominada: teoria da ação comunicativa
desenvolveu várias categorias conceituais. Duas delas são fundamentais para entender
seu pensamento: a racionalidade instrumental e a racionalidade comunicativa. A
primeira diz respeito, àquelas ações do sujeito de domínio sobre a natureza e sobre
outros sujeitos. Na racionalidade comunicativa as ações do sujeito são de relações com
os outros sujeitos, visando o entendimento comunicacional e que ocorre no terreno da
linguagem.
Para Habermas a razão ao mesmo tempo em que pode libertar, pode também
massificar e dominar. A linguagem é a via que dá condições, pela relação sujeitosujeito, buscar o entendimento sobre algo.
As comunicações que os sujeitos estabelecem entre si, mediadas por atos de fala,
dizem respeito sempre a três mundos: o mundo objetivo das coisas, o mundo social das
normas e instituições e o mundo subjetivo das vivências e dos sentimentos. As relações
com esses três mundos estão presentes, não na mesma medida, em todas as interações
sociais.
a) Concepção Racional de Mundo
Habermas (apud BRENNAND, 1999) nos leva a compreender o processo de
conscientização como a busca da possibilidade de uma vida racional, o que só será
possível entre grupos sociais que possuam uma mesma concepção formal de mundo.
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O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
Para Freire, só através do processo de conscientização é que os indivíduos
chegam a romper com o pensamento místico. Dessa forma para Freire e Habermas, é
necessário ver mais do que apenas o visível, o superficial. Os fenômenos para serem
compreendidos, ou seja, para que não haja confusão entre o mundo objetivo e mundo
social é necessário, uma concepção racional de mundo. Essa conquista não é fácil e nos
dias atuais tem se tornado mais difícil ainda. A conscientização proposta por Freire
diante de signos visíveis como o uso da força, a repressão, a censura e a invasão
cumprem seu propósito. Hoje, tudo isso se oculta na sutileza da racionalidade
instrumental e a concepção de mundo só ganha objetividade, segundo Habermas quando
a partir da junção de três mundos (objetivo, social e subjetivo) forma um sistema de
referências para os processos comunicativos, e, possui um mesmo significado para uma
comunidade de sujeitos falantes e ouvintes. Cabe à educação um papel importante na
formação do conceito abstrato de mundo, na medida em que no agir comunicacional os
sujeitos são capazes de assegurar suas relações de vida em comum.
b) Mundo da Vida
O mundo da vida, para Habermas, é o conjunto de sentidos que os sujeitos
socializados se nutrem para compreender, interpretar e agir sobre o mundo. Ele é
formado no contexto da vida social e dá origem aos textos, documentos, obras de arte
etc. e sob a forma de configurações indiretas, originam-se instituições, sistemas sociais
e estruturas de personalidade.
O mundo da vida sofre mudanças no decorrer dos tempos e na
contemporaneidade percebe-se que a evolução do capitalismo determina essas
mudanças. As relações entre os indivíduos são pautadas em função de um mercado
resultando mudanças na estrutura de classes, nas tradições culturais e institucionais.
Podemos lembrar a ação dos meios de comunicação de massa, os quais dominam os
espaços comunicativos dos indivíduos intensamente e cotidianamente. Essa dominação
declarada ou sutil é exercida veementemente através da programação televisiva,
mirando “alvos” de diversas idades. Com as crianças brasileiras observamos que são
cinco horas em média dedicadas à televisão. Grande parte dessas crianças assiste
desenhos animados, que por sua forma divertida, colorida e fantasiosa prendem a
atenção das mesmas. Esses desenhos animados apresentam personagens que vão
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
1036
O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
“participar” da ação formadora dos indivíduos, o que ocorre, na maioria das vezes,
desapercebidamente. ‘O que se vê é o mundo da vida sendo “colonizado” pelo mundo
sistêmico” (BRENNAND, 1999). A ação comunicativa é o fio que perpassa nas relações
entre indivíduos, entre culturas entre instituições. Torna-se difícil, portanto, falar em
identidade, diferenças individuais ou em práticas educacionais dominantes.
A compreensão do conceito de mundo da vida é de fundamental importância
para se pensar os processos educativos, pois só assim se reconhecem as necessidades
peculiares de cada grupo.
O mecanismo de integração do mundo da vida, para Habermas, é a linguagem.
Para ele, a linguagem é o traço mais distintivo do ser humano, pois lhe permite tornar-se
um ser social e cultural e conseqüentemente é um recurso para a construção da
identidade.
A linguagem possibilita os sujeitos apresentarem seus pontos de vista e
chegarem a um consenso, porém sem “apagar” suas diferentes perspectivas. O que
muitas vezes, pretende-se com a linguagem, lembrando inclusive a dos meios de
comunicação de massa, é persuadir, tomar a palavra e camuflar.
O mundo da vida sempre constituirá o pano de fundo das ações comunicativas,
permitindo aos sujeitos, falantes e ouvintes, se compreenderem. A educação como
prática social concreta pode servir para romper com consciência fragmentada, ou seja,
pode despertar o potencial crítico dos sujeitos.
c) Competência Argumentativa
Habermas considera que dois conceitos têm importância fundamental no ato
educativo: os atos de fala e a competência argumentativa. Para esse autor o ato de fala é
construído num momento anterior à comunicação e se constitui um construto que é
integrante do mundo da vida. A competência argumentativa seria então,
a capacidade que o sujeito apresentaria de integrar o saber pré-teórico
do mundo da vida (saber de regras) com os argumentos necessários à
comunicação sobre os mundos objetivos e social visando um acordo
consensualmente aceito pelos participantes da interação, com
pretensões de validade (BRENNAND, 1999).
Dessa forma, portanto, a competência argumentativa possibilitaria uma
interconexão das competências cognitiva, lingüística e interativa dando oportunidade a
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
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O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
construir a coerência das verdades, problematizar temas, construir novos conceitos e
ajudar os indivíduos na crítica dos valores e normas estabelecidos.
Conquistando a competência argumentativa os indivíduos serão capazes de
corrigir as distorções impostas pela concepção mística de mundo, pela ideologia e a
falsa consciência. Todas essas ações só serão possíveis, em todos os âmbitos sociais,
através do diálogo, como também preconiza Freire.
Os conceitos habermasianos que aqui não foram desenvolvidos, não foi por
serem menos importantes. O destaque para os conceitos de concepção racional de
mundo, mundo da vida e competência argumentativa se deu porque os mesmos contem
elementos essenciais para a discussão dos meios de comunicação e sua relação com o
imaginário infantil.
3 - A CONDIÇÃO HUMANA – HANNAH ARENDT
Hannah Arendt (1983) em seu livro: A Condição Humana apresenta a idéia
dessa categoria como contraposição à alienação. Para a autora o objetivo do livro é
“pesquisar as origens da alienação no mundo moderno” (ARENDT, 1983, p. 14).
Conveniente e oportuno se faz discutir essa categoria diante do tema que
pesquiso, ou seja, os conteúdos alienantes do desenho animado Bob Esponja.
Arendt em sua obra aprofunda o entendimento da pretensão de domínio total do
homem no mundo desde o período totalitário ao período moderno. O que a autora capta
é a forma como a vida humana está estruturada e a mentalidade subjacente aos
acontecimentos do seu tempo. Ela ainda proporciona a possibilidade de perceber a
conjugação entre alienação e a tentativa de dominar de forma total a natureza, o próprio
homem e o universo. “O progresso científico e as conquistas da técnica serviram,
apenas para a realização de algo com que todas as eras anteriores, sonharam e nenhuma
realizou” (ARENDT, 1983, p. 12). O resultado, no entanto, não é o aumento da
dignidade humana, mas o seu “apequenamento” e impotência (AGUIAR, 2006).
Condição Humana, para Arendt se refere às condições da existência humana, tais
como: “a vida, a natalidade e a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade e o planeta
Terra” (1983, p. 19) entendidas como uma espécie de lugar, ambiente no qual os seres
humanos realizam suas atividades e a si próprios. Para ela a condição humana é o
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
1038
O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
campo no qual os humanos decidem sobre os seus destinos, tão variados e
contingenciais. Essas condições, não fabricam o homem, mas viabilizam ou obstruem o
aparecimento do seu ser-próprio: sua humanidade. A alienação é a situação onde os
homens perderam o sentido da sua humanidade, porém essa humanidade não tem
receita. Ela surge como já foi exposto, espontaneamente nos limites dados pela condição
humana: terra, mundo e pluralidade. A não aceitação da condição humana é a
destruição, violência, guerra, tirania, exploração, etc.
Fabricar a vida, transformar o espaço público em espaço midiático, no qual a
encenação política, a visibilidade, se transforma literalmente em ficção e
espetacularização, pervertendo-a. Nessa situação, o indivíduo cede lugar à imagem e o
que vai se revelar é a pura fantasia na qual os seres humanos são virtualizados. Os
meios de comunicação de massa constituem obstáculos para se construir um mundo
comum. Porém, jamais se deve pensar em uma só solução ou em desesperança. Toda e
qualquer solução proposta passa pelo respeito à condição humana para que “a
humanidade” do homem possa aparecer e vicejar.
4 - BOB ESPONJA, CALÇA QUADRADA
O desenho animado Bob Esponja é apresentado em programas televisivos
infantis, no Brasil na programação das TVs abertas Rede Globo de Televisão e da TV
por assinatura Nickelodeon.
Neste item, tenho o objetivo de descrever o desenho animado Bob Esponja,
quanto a sua origem, personagens principais, roteiros dos episódios e as metáforas de
conceitos da vida. Também pretendo analisar comportamentos de alguns personagens
de acordo com categorias propostas por Calado (2005) como valores neoliberais.
Bob, é uma esponja que vive no mar, embora possua a mesma forma das
esponjas industriais. Diferente da esponja natural que fica presa ao solo marinho, Bob
“caminha”, em forma quadrada de cor amarela, usa calças marrons, camisa branca e
gravata vermelha. Tem grandes olhos azuis e boca enorme. Está sempre sorrindo
demonstrando personalidade alegre e as crianças na sua maioria o adoram.
As histórias foram criadas pelo americano Stephen Hillenburg, ex-professor de
Biologia marinha, com personagens marinhas, mas que reproduzem os modos dos seres
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
1039
O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
humanos. A vida de seus personagens se passa no fundo do mar, no lugar chamado
Fenda do Biquíni, logo abaixo de uma pequena ilha perdida no Oceano Pacífico que
aparece no início de cada episódio do desenho, sendo um abacaxi a casa de Bob
Esponja.
Os personagens do Bob Esponja não são heróis com superpoderes como
Superman e Batman. Eles são seres com vida normal, que trabalham, se divertem,
brincam, vão à escola etc. Os animais não nadam, mas caminham sobre o solo;
cozinham com fogo, há velas acesas em bolos de aniversário, há neve no inverno e vão
à praia no verão apesar de estarem submersos. É o mundo da fantasia representando o
mundo real.
A Fenda do Biquíni funciona como o Estado, onde homens organizados
trabalham para garantir sua subsistência. Pode-se concluir que é uma cidade localizada
nos Estados Unidos da América, cuja língua falada é o inglês e a moeda corrente é o
dólar, tendo o trabalho como valor, em função de um mercado.
Bob Esponja é o personagem mais engraçado, está sempre bem humorado e
feliz. Ele trabalha com Lula Molusco e Patrick. Este último é uma estrela do mar com
dificuldade de aprendizagem. Todos são empregados no bar-restaurante pertencente ao
senhor Sirigueijo. As relações são hiper-hierarquizadas, só vale quem é capaz de
produzir e o chefe é quem delibera por todos. Ainda é um valor neoliberal a idéia que só
se vence pela competição. Também se ver claramente a ação do opressor sobre o
oprimido, impedindo a autonomia e o pensamento crítico, análise essa, com base no
conceito de conscientização desenvolvido por Freire.
Enquanto Bob Esponja é um empregado ideal, nunca reclama do salário e
considera o patrão um bom líder, até arriscando sua vida por ele, Lula Molusco vive
reclamando de tudo. Ele não trabalha nada além do estritamente necessário e faz tudo
para viver longe de Bob Esponja. Toca clarineta, mas muito mal, sempre emitindo
acordes desafinados. Ele não chega a ser um vilão, mas é o oposto de Bob Esponja. O
antagonismo entre as personagens fica evidente em todos os episódios. O Lula Molusco
estaria consciente da pressão de acordo com Freire e detentor da compressão do mundo
da vida como teoriza Habermas.
Também é evidente a falta de diálogo do patrão com os empregados. Os acordes
desafinados do clarinete de Lula Molusco podem ser interpretados como a forma dele
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
1040
O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
expressar sua indignação, porém, essa “linguagem” não é levada em conta. Esse
personagem estaria interconectando as competências cognitiva, lingüística e interativa
na sua tentativa de agir com competência argumentativa como nos afirma Habermas.
Entre Lula Molusco e Bob Esponja fica evidente que o personagem ideal é Bob
com o qual o autor quer que as crianças se identifiquem com ele. Embora o Lula cumpra
suas obrigações, não o faz com prazer como o Bob, porém, ambos trabalham em função
de um mercado. Lula Molusco raramente demonstra algum tipo de amor por qualquer
coisa e faz sempre questão de deixar em evidência seu desprezo por Bob Esponja. Este
ao contrário, é um empregado que não se importa de receber salários. Seu prazer é o
trabalho e a ele estaria dedicado 24 horas por dia se fosse necessário. No episódio:
Sirigueijo nasce de novo (História do fundo do mar, 2003) Bob Esponja diz: “Hora de
fechar (o restaurante), a hora mais triste do dia” ou no episódio: Como na TV (O Natal
de Bob Esponja, 2002) ao acordar: “Hora de fazer minha coisa predileta no meu local
predileto”, ou seja, iniciar o dia trabalhando no restaurante.
As crianças ao ouvirem Bob Esponja poderão se identificar e imitar seu jeito de
ser, sua dedicação ao trabalho. Aparentemente é algo positivo onde valores como
honestidade e responsabilidade são exaltados a serem seguidos. Por outro lado,
incentiva-se à passividade, à conformação. Bob Esponja não tem o direito de pensar
livremente e as crianças podem assimilar essa concepção. A aceitação incondicional
imposta pela mensagem leva as crianças a terem dificuldade na formação necessária do
senso crítico. Não contestar o líder, significa que a criança não será levada em conta no
seu acervo de conhecimento, na sua vontade e na sua participação efetiva como cidadã
na sociedade. Não se estimula a mudar as condições e relações de trabalho. Há
visivelmente um determinismo no endeusamento do mercado. As comunicações entre
os mundos objetivo social e subjetivo dos sujeitos estão impregnados de dominação,
com base no que preconizam Freire e Habermas.
O grande amigo de Bob Esponja é o Patrick, uma estrela do mar que tem
dificuldade para aprender e não consegue fazer nada direito. É, na verdade considerado
por todos um fracassado. Ele vive à sombra de seu amigo Bob Esponja. Não vai à escola
nem trabalha. Ele é o bobo da história.
Há um episódio intitulado: “O grande
fracassado cor-de-rosa” (Brincando com Bob Esponja, 2003) que com sua ingenuidade
chega a provocar risos. No imaginário infantil, no entanto, pode se formar a idéia de que
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
1041
O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
os deficientes são excluídos, inúteis, fracassados como Patrick. Ele não tem emprego
para mostrar às crianças como às pessoas incapazes não conseguem boas colocações no
mercado. Aqui mais uma vez se preza o valor de que só vale quem é capaz de produzir.
A vivência do fracasso para a criança será interpretada como exclusivamente
incapacidade do sujeito, sem que se analise a conjuntura, como lembra Freire, e, com
certeza ficará fora do mercado de trabalho.
O patrão de Bob Esponja é o Sr. Sirigueijo, um siri-burguês disposto a grandes
artimanhas para extrair de seus empregados o máximo de trabalho e, de seus clientes o
máximo de dinheiro. Ele é dono da lanchonete Siricascudo que vende o famoso
hambúrguer de siri. Este sanduíche tem um ingrediente secreto e o seu sabor delicioso
atrai muitos clientes. A exploração a que submete seus empregados faz do Sr. Sirigueijo
um homem rico, não se importando com eles e cultuando o valor: Cada qual cuida de si.
As histórias de Hillenburg, nos passa ainda a idéia que o Sr. Sirigueijo lutou muito para
chegar onde chegou, superando obstáculos. É o mito capitalista da superação de si
mesmo, onde o homem nasce pobre e pode enriquecer por seus esforços e merecimento.
É o self-made man citado por Dorfman e Mattelart (1980) apud Lira (2005).
Correspondente ao valor neoliberal de só se vence na vida pela competição, isto é, o
homem superação assume a postura de estar contra os outros, de vencer os outros e não
com os outros. Para Habermas e Freire a idéia de exclusão constitui uma necessidade de
destruir e não construir. Essa análise baseada no critério ”meritocrático” camufla a
situação socioeconômica privilegiada, sob uma duvidosa concepção de mérito definida
pelos próprios grupos privilegiados.
Em Bob Esponja, o filme (2004) o Sr. Sirigueijo é entrevistado quando inaugura
uma nova lanchonete. Suas primeiras palavras são: ”Olá, eu gosto de dinheiro”. O que a
história sugere é que não importa mais nada a não ser conseguir dinheiro. Fica implícito
nas histórias como um patrão deve ser, como um líder deve tratar seus empregados. Às
crianças é transmitida a idéia de exploração capitalista, onde quem é feliz é aquele que
mais consome. Essa é a conclusão que irá ser acrescentada ao mundo social das normas
e instituições no contexto social das crianças, determinada pela evolução do capitalismo
onde as relações são pautadas em função de um mercado.
Outros personagens como: Sandy, a esquilinha, que vive no mar e para
sobreviver usa um capacete, o vilão Plankton, os super-heróis da TV da Fenda do
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
1042
O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
Biquíni que são o Homem-sereia e seu ajudante Mexilhãozinho e mais alguns,
participam das histórias de vez em quando, por necessidade destas para dar maior
dinamismo ao desenho.
5 - IDÉIAS QUE SE ENTRELAÇAM
Minha reflexão diz respeito ao significado dos conceitos freireanos,
habermasianos e de Hannah Arendt que, embasam a compreensão da influência dos
meios de comunicação de massa sobre os indivíduos.
Para estar consciente, Freire e Arendt nos alertam para a necessidade do diálogo,
gerador de mudanças de concepção sobre as diferenças e do direito de fala e ação. A
opressão e o silêncio são mecanismos de dominação e reconhecemos como os media
concorrem enormente para isso. Dessa forma se inviabiliza a formação da consciência
crítica, geradora de liberdade de pensamento e da conscientização da autoria dele.
A educação é a responsável por essa formação da consciência crítica na escola
ou fora dela. Através da educação pode-se fomentar possibilidades no coletivo onde os
sujeitos ”falam” e ”agem” ou seja, irrompem de seu silêncio, ou melhor do
silenciamento que a dominação lhe impôs, negando sua humanidade. Arendt (1983). A
estratégia, para tanto, é a dialogicidade onde as pessoas exercitam sua discursividade.
Por sua vez Habermas em sua teoria afirma que é no mundo da vida, ou seja, no
conjunto de sentidos que os sujeitos socializados se nutrem para compreender,
interpretar e agir sobre o mundo, que a competência argumentativa se posicionaria
como fio que interliga a rede de sentidos. Sabemos, no entanto, que a competência
argumentativa só interliga outras competências (cognitiva, lingüística e interativa) e
ajuda os indivíduos a criticar valores e normas apenas quando lhes é proporcionado o
diálogo, como também postula Freire (apud BRENNAND, 1999).
O exercício de posturas críticas significa o exercício da capacidade própria do
ser humano de perceber, refletir, avaliar e julgar a sua própria vida. Sem a criticidade o
sujeito é presa passiva do pensamento alheio, das opiniões dos outros e das
circunstâncias. Ele estaria alienado, desrespeitado em sua condição humana.
Os valores difundidos por poderosos veículos de telecomunicações, visam
expandir padrões culturais produzidos por grupos dos países centrais do capitalismo
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
1043
O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
para todas as demais sociedades. Esse processo conhecido como globalização, põe em
debate a questão das persistências das culturas locais e suas possibilidades de
preservação. Entra em pauta a questão da condição humana, cuja concepção encerra a
idéia da dignidade do ser humano. As pessoas precisam se dar conta de sua condição
humana, não em abstrato, deslocada dos seus referenciais históricos, de tempo e espaço,
considerando a globalização como única salvação. A condição humana dos sujeitos
deve lhes permitir possibilidades históricas de viver em relação com outros se
respeitando as diversidades socioculturais, conferindo-lhes atributos como ser social e
político, dimensões essenciais para sua autonomia (ARENDT, 1983).
O desenho animado Bob Esponja, transmite idéias que podem ser consideradas
alienantes em relação ao trabalho, aos trabalhadores, à liderança e à inclusão social. As
histórias de Bob Esponja precisam ser analisadas através de muitos ângulos com o
objetivo de fazer vir a tona a verdadeira realidade, geradora da condição humana de
nossas crianças e formadora de suas identidades. Dessa forma, é essencial que essas
crianças reconheçam em si, a possibilidade de participar e colaborar no mundo da vida.
Os meios de comunicação de massa detém um potencial significativo, como
ambiente para a ocorrência de ações do tipo educativo. Eles podem igualmente ajudar
ou dificultar a formação crítica dos indivíduos. Porém, é preciso não ser ingênuo e
perceber que no Brasil, os meios de comunicação estão nas mãos de proprietários
particulares os quais, usam a indução para que seus usuários adotem, como sua, a leitura
que eles fazem das informações. Dessa forma se mantêm como detentores dos veículos
de comunicação de massa, reiterando uma visão de mundo individualista, competitiva,
privatista, não-solidário e pouco democrático.
A fórmula mágica para mudar esse quadro e não violar o respeito ao outro não
existe (AGUIAR, 2006). Sabe-se, no entanto, que para a concretização de aspectos
essenciais para a dignidade da pessoa humana são necessários duas ações: vigiar e lutar
pela democratização da mídia e também a construção de um senso crítico no processo
de recepção das informações.
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
1044
O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
REFERÊNCIAS
AGUIAR, O. “A categoria de condição humana em Hannah Arendt”. In: Hannah
Arendt e a condição humana. Org. Adriano Correia. Salvador: Quarteto, 2006.
ARENDT, H. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1983.
BARBERO, J. M. Ofício de Cartógrafo – Travessias Latinoamericanas de la
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BOB ESPONJA, O FILME. Direção de Stephen Hillenburg. Manaus: Nickelodeon;
Videolar, 2004, DVD (87 minutos).
BRENNAND, E.G.G. Ciência para emancipação: redes epistemológicas do
pensamento de Jürgen Habermas e Paulo Freire. Extrato traduzido pela autora, 1999.
BRINCANDO COM BOB ESPONJA. Direção de S. Hillenburg. Manaus: Nickelodeon:
Videolar, 2003, DVD (112 minutos).
CALADO, A. J. “Globalização – múltiplos e complexos fios de uma teia de relações:
rumos, caminhos, protagonistas, posturas em aberto”. In: O labirinto da educação
popular. Brennand, E. G. João Pessoa: UFPB / PPGE / Editora Universitária, 2003.
CARLOS, E. J. “O texto – imagem e a educação de jovens e adultos”. In: Conceitos n
13, ADUFPB, 2006.
HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
HISTÓRIA DO FUNDO DO MAR. Direção de S. Hillenburg. Manaus: Nichelodeon:
Videolar, 2003, DVD (111 minutos).
LIRA, Wilker de Jesus. O merchandising capitalista no desenho Bob Esponja.
Monografia de Conclusão do Curso de Comunicação Social da Faculdade Seania,
Macapá, Amapá, 2005.
O NATAL DE BOB ESPONJA. Direção de S. Hillenburg. Manaus. Nickelodeon, 2003,
DVD (110 minutos).
RICOUER, P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro. Editora Francisco Alves,
1983.
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
1045
O Desenho Animado Bob Esponja e a Condição Humana
SILVEIRA, R. M. G., NADER, A. A. G., DIAS, A. A. Subsídios para a elaboração das
diretrizes gerais da educação em direitos humanos – Versão preliminar. João Pessoa:
Editora Universitária / UFPB, 2007.
Margarida Sonia Marinho do Monte Silva
1046
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
A INFÂNCIA NO CURRÍCULO DE FILMES DE
ANIMAÇÃO: PODER, GOVERNO E
SUBJETIVIDADE DOS/AS INFANTIS
Maria Carolina da Silva
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
A INFÂNCIA NO CURRÍCULO DE FILMES DE ANIMAÇÃO: PODER,
GOVERNO E SUBJETIVIDADE DOS/AS INFANTIS
Maria Carolina da Silva
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar, com base na vertente pósestruturalista dos Estudos Culturais, como a infância é narrada em quatro filmes de
animação infantil produzidos pelos Estúdios Disney: Toy Story, Procurando Nemo,
Montros S.A. e Os Incríveis. Considero que esses filmes se constituem em currículos
culturais, ou seja, eles estão ensinando aos/às espectadores/as modos de ser e agir que
têm importantes efeitos na constituição de suas subjetividades. O argumento defendido
neste texto é o de que os quatro filmes analisados utilizam estratégias variadas para
construírem subjetividades infantis governadas pela figura adulta. Entre as estratégias
utilizadas, destaco os modos como a infância é narrada e a presença da escola como
importante instituição para governar a infância e os/as adultos/as que convivem com
os/as infantis. No que se refere ao primeiro eixo, é possível notar que os filmes narram
os/as infantis ora como monstros que precisam ser regulados, ora como energia que
precisa ser canalizada com base naquilo que os/as adultos/as estabelecem. Com relação
à escola, pode-se perceber como ela é apresentada nesse artefato como instância
importante para o controle das condutas infantis e adultas, já que não se ensina somente
como os/as infantis devem se comportar, mas ensina-se também como os/as adultos/as
devem agir para garantir certos efeitos na conduta infantil.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo - Subjetividade - Estudos Culturais.
Na contemporaneidade, a infância tem sido narrada de diversas formas e por
diversas instâncias sociais. Os/as infantis têm sido alvo de discursos variados. O Estado,
os organismos internacionais, as religiões, a publicidade, a literatura, a televisão são
esferas que têm falado a respeito dos/as infantis e que têm produzido verdades sobre o
que seja ser infantil nos dias atuais. Eles têm incitado uma série de práticas relacionadas
aos/às infantis. Têm tornado disponíveis certos modos de viver a infância.
Entre os discursos que têm narrado os/as infantis na contemporaneidade, tomo
como objeto de estudo deste trabalho, quatro filmes de animação lançados pela
Disney/Pixar nos últimos anos: Toy Story (1995), Monstros S.A. (2001), Procurando
Nemo (2003) e Os Incríveis (2004). Esses filmes foram selecionados por terem infantis
como personagens principais e/ou secundários. O objetivo deste artigo é discutir como a
infância é narrada nesse artefato cultural contemporâneo que está cada vez mais
Maria Carolina da Silva
1050
A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
presente nas escolas. Sua presença e sua influência no ambiente escolar são inegáveis,
seja porque exibir filmes na escola é uma prática bastante difundida, seja porque os seus
personagens estão presentes nos materiais escolares, nas atividades passadas pelos/as
professores/as, nas brincadeiras, nos livros, nas roupas dos/as alunos/as etc.
Considero, neste trabalho, que os filmes de animação infantil se constituem em
currículos culturais de grande importância na contemporaneidade. Embora não exista
um currículo que não seja cultural, uma vez que todos eles são produtos e produtores de
cultura, a noção de currículo cultural procura estender a concepção de currículo ao
propor que diversas instâncias sociais ensinam “modos de ser, estar e fazer considerados
adequados e desejáveis” (PARAÍSO, 2002, p. 96) àqueles/as a que se endereçam. Esse
conceito, criado a partir do encontro dos estudos culturais com os estudos curriculares,
permite compreender que, na atualidade, a educação ocorre em “uma variedade de
locais sociais, incluindo a escola, mas não se limitando a ela” (STEINBERG, 1997, p.
101-102). Dessa forma, livros de todos os tipos, jogos eletrônicos, revistas variadas,
brinquedos, propagandas, programas televisivos, filmes etc podem ser considerados
como currículo, pois “transmitem uma variedade de formas de conhecimento que
embora não sejam reconhecidos como tais, são vitais na formação de identidades e
subjetividades” (SILVA, 2001, p. 140).
Os filmes infantis são aqui entendidos como possuindo currículos que ensinam
como os/as infantis devem se comportar, de que maneira devem conduzir suas
existências e de que forma os/as adultos/as devem se relacionar como eles/as a fim de
garantir certos efeitos. Considero que esses filmes inserem os/as infantis em relações de
poder que têm como objetivo governar suas condutas e tornar disponíveis algumas
subjetividades consideradas adequadas e desejáveis. Dessa forma, o argumento
defendido neste texto é o de que os quatro filmes analisados utilizam estratégias
variadas para construírem subjetividades infantis governadas pela figura adulta. Entre as
estratégias utilizadas, destaco os modos como a infância é narrada (ora como monstro,
ora como energia) e a presença da escola como importante instituição para governar a
infância e os/as adultos/as que convivem com os/as infantis.
Maria Carolina da Silva
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A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
Energia e monstruosidade: a narrativa sobre a infância
Nos filmes analisados parece haver uma repetição da idéia de que os/as infantis
possuem uma grande energia e agitação. Tal fato pode ser ilustrado em vários
personagens. Flecha, do filme Os Incríveis, é um super herói que tem como poder a
velocidade excessiva que lhe permite se locomover com extrema agilidade. Em Toy
Story o representante dessa infância célere e agitada é Sid, um garoto que destrói seus
brinquedos, bate ferozmente em pequenos alienígenas de uma máquina de videogame e
anda rapidamente de skate pelas ruas da cidade. Já em Procurando Nemo, o personagem
título aparece pulando, saltando, gritando descontroladamente.
Esse mesmo
personagem, ao lado de alguns/algumas de seus/suas amigos/as da escola, não consegue
(ou não deseja) ficar ouvindo as explicações do professor e se afasta de sua turma para
ir nadar em alto-mar. Para esses/as infantis, que teriam dificuldades para seguir as
regras e ficar quietos/as, os filmes imaginam uma posição de sujeito que estaria de
acordo com sua aceleração e com sua velocidade, falando com e para essa parcela da
população que outros meios não estão conseguindo atingir. Para estabelecer contato
com eles/as, são criadas personagens com os/as quais os/as espectadores/as podem se
identificar para “entrar” na história, para que esta faça sentido para os/as
espectadores/as.
Que sentidos podem ser extraídos dessa aproximação? Talvez os filmes estejam
articulando a infância à pós-modernidade, etapa que tem como uma de suas principais
características, a velocidade. Os/as infantis contemporâneos tem sido, em diferentes
discursos, associados a essa fase. A infância, de modo semelhante ao que ocorre com a
juventude, passa a ser associada com a velocidade desses tempos, com a efemeridade,
com as mudanças em alta escala (cf. GREEN & BIGUM, 1995). Os/as infantis
subjetivados pelo discurso da pós-modernidade têm características diversas daquelas
que até então se imaginavam para esses indivíduos. Eles/as não são mais as crianças
calmas, educadas, dóceis de outros tempos (cf. CORAZZA, 2001b). Pelo contrário, são
representados/as como agitados/as, hiperativos/as, velozes, conectados/as a um tempo
cuja característica central é a rapidez. Ao inserir essa aproximação nas narrativas, os
filmes investigados são endereçados para essa parcela da infância que tem na agitação
sua principal característica. Pode-se afirmar que os filmes operam com um “modo de
endereçamento” (ELLSWORHT, 2001) que procura capturar adultos/as e infantis que,
Maria Carolina da Silva
1052
A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
na contemporaneidade, vivem toda essa energia ou a valorizam. Afinal, se vivemos em
um tempo no qual a velocidade passa a ser cada vez mais essencial e fundamental em
grande parte das tarefas executadas, é importante disponibilizar essa subjetividade para
o público que assiste aos filmes.
Contudo, por ser uma das marcas centrais da pós-modernidade, a velocidade – e
os/as infantis subjetivados por esse discurso da rapidez – é também alvo de um grande
“pânico moral” (cf. GREEN & BIGUM, 1995). Esses/as infantis que podem ser
caracterizados por “uma dose de anarquismo e uma pitada de hiperativididade”
(KINCHELOE, 1997, p. 80) são muitas vezes nomeados/as como portadores/as de
Déficit de Atenção e Hiperatividade. Eles/as são caracterizados/as como portadores/as
de “uma doença”, um distúrbio, algo que foge da norma. Apesar das características
negativas com que esses sujeitos são identificados, os filmes aqui investigados não
ignoram essa imagem de infância e a incluem em sua narrativa a fim de atingir públicos
cada vez mais amplos. Entretanto, apesar de inserirem esses/as infantis pós-modernos
em suas narrativas, os filmes também indicam que é preciso haver certo controle sobre
as atitudes infantis. A vivência da energia infantil precisa ser conduzida para que se
consigam os melhores efeitos sociais.
É preciso indicar, então, algumas estratégias para que os/as infantis aprendam a
canalizar sua energia da melhor forma possível. Torna-se necessário apresentar para
eles/as possibilidades de viverem sua energia sem que isso cause perturbações na ordem
social vigente. Flecha, por exemplo, é apresentado no início de Os Incríveis como uma
criança problema. Sua mãe é constantemente chamada à escola porque seu filho vem
apresentando comportamentos inadequados. Em certo momento do filme, quando está
sendo perseguido pelos vilões, Flecha não consegue controlar-se e acaba chamando a
atenção dos bandidos que saem, perseguindo-o. A agitação excessiva de Flecha é
apresentada como um problema, como algo que precisa ser resolvido. Para conseguir
controlar essa energia e canalizá-la para a prática do bem, Flecha conta com a vigilância
constante de sua mãe.
Essa vigilância é um dos elementos que ajuda no processo de modificação pelo
qual o garoto passa. Por meio desse e de outros processos, Flecha se transforma, de
maneira a interiorizar a regra, e passar a se conduzir da forma como os/as adultos/as do
filme desejam que ele se comporte. Ele passa de criança problema a herói no filme em
Maria Carolina da Silva
1053
A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
questão. Nesse sentido, se no início ele aparece provocando desordem, desobedecendo
às regras escolares, no final, após lutar contra o vilão Síndrome ao lado de sua família e
vencê-lo, o garoto aparece em uma corrida, obedecendo claramente às instruções de
seus pais. Pode-se dizer que, após um processo de “disciplinarização”, o garoto aprende
a importância de seguir as regras e a necessidade de estar sob a tutela adulta. Entretanto,
o processo de constituição de subjetividades não se dá apenas pelas técnicas de
dominação. Ele se dá também pelas técnicas de si que permitem ao sujeito controlar a si
mesmo, moldando sua subjetividade (FOUCAULT, 1993). Nesse sentido, os filmes
mostram a importância não só do controle exercido pelos outros, mas notadamente de
um autocontrole. O sujeito infantil deve ser capaz de conduzir suas condutas de acordo
com os padrões estabelecidos, mas deve fazê-lo sem a necessidade de alguém que lhe
diga isso. Ele deve se autocontrolar, deve exercer um governo de si (cf. FOUCAULT,
1993) eficiente.
A energia e a agitação infantis fazem como que os/as personagens dos filmes
sejam, em alguns momentos, considerados/as como monstros. Tal fato fica evidente no
filme Monstros S.A.. Nesse filme, os/as infantis são a fonte de energia da cidade: é por
meio da extração de seus gritos que a cidade produz eletricidade. Além de serem a fonte
de energia do mundo monstro, as crianças humanas são consideradas como perigosas,
tóxicas, mortais. Considera-se nessa trama que um único toque infantil pode matar um
monstro. As crianças humanas, embora necessárias para a manutenção da cidade, devem
ser mantidas à distância, em seu próprio mundo. Ainda que os monstros precisem
assustar os/as infantis para conseguir seus gritos, são os/as infantis que assustam os
monstros pela sua toxidade. Nesse filme, ocorre uma inversão na qual os/as infantis
passam a ser as figuras monstruosas. Eles/as representam o perigo para a sociedade de
monstros, apesar de representarem também a manutenção daquela sociedade. Pode-se
dizer que essa enunciação representa bem o paradoxo com que os/as infantis têm sido
narrados no mundo ocidental. Por um lado, eles/as são a esperança da manutenção do
futuro. Por outro lado, eles/as podem ser um grande perigo, podem ser identificados/as
como monstros (CORAZZA, 2001b).
Nos filmes analisados, um/a infantil pode ser considerado um monstro sempre
que seus comportamentos se afastam da conduta esperada pelos/as adultos/as e sempre
que colocam em risco a vida ou a integridade de algum/a outro/a personagem. Assim
Maria Carolina da Silva
1054
A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
Sid é considerado monstro porque destrói os brinquedos que caem em seu quintal.
Darla, de Procurando Nemo, causa pânico nos peixes do aquário porque os sacode e,
com isso, acaba matando-os. Bochecha, de Os Incríveis, é considerado “um pestinha”
porque não obedece às ordens do Senhor Incrível e, com isso, provoca uma série de
acidentes na cidade. A análise dos comportamentos monstruosos atribuídos a esses/as
infantis divulgados pelos filmes evidencia que se trata da infância desordeira, dos/as
infantis que não seguem as ordens, que não estão sob o controle adulto.
Esses comportamentos considerados monstruosos marcam o que pode ser vivido
no limite da normalidade. Situam-se “como uma advertência contra a exploração”
(COHEN, 2000, p. 41) do incerto território de vivências diferenciadas para a infância.
Seu comportamento constitui a zona do abjeto, essas zonas “inóspitas e inabitáveis da
vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do
status de sujeito” (BUTLER, 1999, p. 155). Por meio do comportamento monstruoso de
alguns e algumas infantis, apresenta-se um comportamento que não deve ser seguido,
que é considerado abjeto. Por oposição, fixa-se também uma norma, já que ao se falar o
que não deve ser feito, afirma-se também um modelo de referência, aquele que deve ser
seguido pelos/as infantis a fim de se permanecer no limite da normalidade.
A normalização é um processo segundo o qual se atribui a um grupo “todas as
características positivas possíveis em relação às quais as outras identidades só podem
ser avaliadas de forma negativa” (SILVA, 2000, p. 83). Normalizar significa “eleger –
arbitrariamente – uma identidade específica como parâmetro em relação ao qual outras
identidades são avaliadas e hierarquizadas” (SILVA, 2000, p. 83). No caso aqui
analisado, trata-se de escolher certos comportamentos infantis e considerá-los como os
mais adequados para os/as diferentes infantis. Trata-se de eleger certa posição de sujeito
como a verdadeira posição. Fora dela, as subjetividades estariam relegadas ao plano da
monstruosidade. Nesse sentido, os filmes, quando apresentam alguns comportamentos
infantis como monstruosos, ensinam pela negação o que deve ser feito pelos/as infantis
a fim de serem considerados/as normais. Ao fixar, por exemplo, que não se deve
desrespeitar um/a adulto/a, ao mostrar que quando um/a infantil desobedece uma regra
adulta, é punido/a, os filmes ensinam que aquele não é o comportamento esperado, que
aquilo que foi feito está errado e, portanto, no nível da monstruosidade.
Maria Carolina da Silva
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A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
Porém, “todo monstro constitui [...] uma narrativa dupla” (COHEN, 2000, p.
42), pois “o monstro também atrai. As mesmas criaturas que aterrorizam e interditam
podem evocar fortes fantasias escapistas” (p. 48). Por serem figuras híbridas, os
monstros marcam tanto os desejos, os anseios e os sonhos, como as regras que fixam a
normalidade. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que marcam as fronteiras da
normalidade, que fixam posições normais para os sujeitos infantis, os monstros podem
seduzir por apresentar uma vivência diferenciada da infância, por funcionar como uma
“atraente fuga temporária da imposição” (COHEN, 2000, p. 48), posto que a
normalidade pressupõe uma submissão às regras colocadas pelos/as adultos/as,
enquanto a transgressão representa, em certa medida, uma possibilidade de escape.
Sendo assim, é importante utilizar variadas estratégias a fim de evitar o
cruzamento de fronteiras, garantindo a monstruosidade desse grupo e reafirmando sua
anormalidade. Nesse processo, torna-se fundamental que os/as adultos/as do filme
ajudem os/as infantis monstruosos a reconduzirem suas condutas para o limite da
normalidade. Para esse processo de condução das condutas infantis, a escola é
apresentada nos filmes como fundamental. Ela é uma das instâncias responsáveis nesses
filmes por ensinarem os padrões considerados corretos. As características da instituição
escolar necessárias para o governo dos/as infantis são apresentadas no próximo item.
A escola e o governo de infantis e adultos/as
A construção da infância na modernidade esteve articulada à criação de
instituições específicas para educar os/as infantis. Entre essas instituições a escola
aparece como uma das mais importantes (cf. ALVAREZ-URIA; VARELA, 1992;
NARODOWSKY, 2001). A articulação entre escola e infância é tão forte que, quando
pensamos nos/as infantis, construímos a equivalência “infantis = escola” (CORAZZA,
2002).
Nesse sentido, para compreender como os filmes aqui analisados narram a
infância, torna-se importante analisar como a escola é narrada nesse artefato. Afinal,
construiu-se uma idéia no Ocidente de que os/as infantis “vivem um momento peculiar
de seu desenvolvimento, em que as mudanças se sucedem rápidas, singulares, mas
previsíveis” (BUJES, 2005, p. 190). Por essa razão, os/as infantis seriam aqueles/as que,
por ainda não estarem completamente formados/as, precisam de instituições específicas
Maria Carolina da Silva
1056
A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
para sua educação. Essa idéia, que está profundamente vinculada à própria construção
da infância moderna no Ocidente, parece também estar presente nos filmes aqui
analisados. Ao convocar a escola para controlar as condutas infantis, esses artefatos
falam a respeito dessa instituição e ensinam como os/as adultos/as devem se comportar
a fim de conduzir os/as infantis e a si mesmos/as da forma correta. Desse modo, esses
artefatos operam não somente na construção de subjetividades infantis, mas também
moldam subjetividades adultas consideradas como mais adequadas para conduzir os/as
infantis.
Apesar de importante, a escola não aparece em todos os filmes analisados. Em
Toy Story a instituição é apenas citada e em Monstros S.A. não há referências explícitas
a ela. Já em Procurando Nemo e Os Incríveis a instituição está presente e tem peso
significativo, mesmo não se tratando de filmes que têm tramas escolares. Nesses dois
filmes, Nemo e Flecha aparecem pela primeira vez na história em situações que se
referem à escola. Nemo pula sobre seu pai para acordá-lo a fim de que esse o leve para a
escola e Flecha é apresentado na sala do diretor, junto com o professor, por ter
apresentado comportamento considerado inadequado em sala de aula. Ao escolherem
apresentar dois de seus principais personagens em cenas que envolvem a escola, esses
dois filmes remetem à importância que essa instituição tem na vida contemporânea
dos/as infantis. A força da escola é tão grande que chegamos ao século XXI enxergando
infância e escola como duas instâncias tão interligadas que “não podemos imaginar uma
criança que não passe obrigatoriamente pela escola” (BUJES, 2005, p. 192).
Aliado a essa presença da escola como algo importante para a educação dos/as
infantis, é possível estabelecer um claro paralelo entre os dois modelos de escola
apresentados nas tramas. Poderíamos dizer que os filmes apresentam, por um lado, um
modelo de escola que deve ser reproduzido, imitado, considerado como adequado e, por
outro, um modelo que deve ser banido, já que não mais funciona para educar os/as
infantis. A escola apresentada em Procurando Nemo é objeto de desejo do personagemtítulo. Já em Os Incríveis, a escola é apresentada apelando para o humor e para a ironia.
Essa instituição não é desejada pelo personagem infantil do filme. Além disso, a escola,
da forma como está organizada, não consegue controlar esse infantil, já que, apesar de
tentar vigiar os comportamentos de Flecha, o professor não tem sucesso nessa tarefa.
Sua atitude aparece como ultrapassada e ineficiente.
Maria Carolina da Silva
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A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
Quais são as características da instituição escolar consideradas como
importantes para a educação dos/as infantis? Trata-se de uma escola alegre, colorida, em
que impera a liberdade e a exploração do ambiente por parte dos/as alunos/as. Em
contrapartida, a escola considerada como ultrapassada e incapaz de cumprir sua função
educativa poderia ser considerada como “tradicional” e conservadora. A escola de Os
Incríveis é uma instituição austera e, aparentemente, rigorosa. Nesse sentido, a aparição
da escola na trama está atrelada ao mau comportamento de um aluno e à convocação de
sua mãe para comparecer à instituição para tentar resolver o problema disciplinar de
Flecha.
Na escola de Os Incríveis, estão presentes vários elementos daquilo que a
teorização educacional nomeia como escola tradicional: o professor que passa matérias
no quadro, enquanto os/as alunos/as ficam assentados/as em carteiras enfileiradas, a
repressão a estudantes que se comportem fora dos padrões estabelecidos, a convocação
da família à escola apenas para comunicar problemas dos/as alunos/as, a vigilância do/a
professor (cf. MIZUKAMI, 1986). Como instituição disciplinar, a escola (ao lado dos
hospícios, das prisões, do exército) fabrica “corpos submissos e exercitados, corpos
dóceis” (FOUCAULT, 1999, p. 119). Essa instituição deveria operar mudanças nos
indivíduos que chegavam até ela de modo a torná-los sujeitos disciplinados. Por meio de
diferentes estratégias de poder, os/as infantis que chegavam às instituições escolares
deveriam ser controlados/as e disciplinados/as. Para melhor exercício desse poder, era
necessário também “um complexo processo de produção de saberes sobre esta etapa da
vida dos sujeitos” (BUJES, 2005, p. 191).
O filme Os Incríveis parece criticar a instituição escolar, considerando-a incapaz
para lidar com a “nova infância”. Essa escola estruturada de modo tradicional, cujo
objetivo principal é disciplinar por meio do controle e da sanção, parece ineficiente para
educar a infância contemporânea. O modelo panóptico que “permite ver sem parar e
reconhecer imediatamente” (FOUCAULT, 1999, p. 166) parece não funcionar para
educar os/as infantis contemporâneos, que têm como características principais a
agilidade e a velocidade. Eles/as escapam, mesmo quando se tenta articular a esse
“mecanismo panóptico” instrumentos pós-modernos como as câmeras de segurança.
Para educar essa infância também não é mais eficiente um professor que grite,
que imponha sua autoridade, que tente manter a ordem por meio da coerção. Um
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A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
docente que se comporta dessa forma é tratado no filme como ridículo. Afinal, toda a
sua histeria não adianta nada. O professor Braga apresentado em Os Incríveis pode
gritar, tentar filmar o aluno, chamar seus pais para a escola, mas não consegue atingir
aquele infantil que escapa aos controles disciplinares.
Considerando que, ao longo da história, construiu-se a idéia de que os/as
professores/as, para educar e conduzir a infância, precisam ser disciplinadores/as e
disciplinados/as (cf. LOURO, 1997), um/a professor/a que se descontrola, como faz
Braga, não serve para ser um condutor de condutas. Como explica Foucault (2007, p.
75), “quem deve comandar os outros é aquele que deve ser capaz de exercer uma
autoridade perfeita sobre si mesmo”. Aqueles/as que se descontrolam, que não são
capazes de se conter e que se deixam levar pela fúria não servem para conduzir os/as
outros/as. Nesse sentido, pode-se dizer que um/a professor/a, para controlar a infância,
também precisa controlar-se a si mesmo/a. Ele/a não pode perder a razão, como faz o
professor Braga. A subjetividade docente demandada por esses filmes corresponde,
portanto, a um modelo de autocontrole e autogoverno para que eles/as sejam capazes de
conduzir essa nova infância. Não faz sentido, então, que um docente se descontrole
nesse processo. Ele precisa, antes de tudo, manter-se sempre vigilante e comedido, a fim
de melhor controlar os/as infantis.
Já em Procurando Nemo, o professor “Tio Raia” é apresentado com
características completamente diversas. Logo na primeira cena em que aparece, o
professor desperta interesse e alegria nos/as infantis. Tio Raia canta, brinca com as
crianças, convida-as a subir em suas costas para juntos explorarem o mar.
Diferentemente de Braga, que tem uma relação ruim com Flecha, Raia procura se
aproximar dos/as alunos/as. O professor também se destaca pela alegria com que
conduz a aula. Sempre cantando, ele transmite os conhecimentos para os/as alunos/as de
forma alegre e jovial. Essas características da subjetividade docente têm sido muito
valorizadas pelo discurso contemporâneo sobre a educação e a escola. Em diferentes
artefatos culturais e também nos discursos educacionais, sobretudo aqueles inspirados
pelo construtivismo, há uma crescente demanda por um/a docente mais alegre e mais
próximo dos/as alunos/as (cf. PARAÍSO, 2007; WALKERDINE, 1998). Nesse sentido,
Procurando Nemo ensina como os/as professores/as devem se comportar para controlar
os/as infantis.
Maria Carolina da Silva
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A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
Os/as infantis em situação escolar também têm sua subjetividade moldada por
esse filme. Nesse artefato, os/as alunos/as são considerados não como estudantes, mas
como “exploradores”. Tio Raia os/as nomeia dessa forma em dois momentos: quando
conhece Nemo, ao afirmar que “novos exploradores têm que responder uma pergunta
científica”, e quando se aproxima da turma, ao chamar “Subam a bordo, exploradores”.
Essa é outra característica do modelo escolar apresentado em Procurando Nemo: nele,
os/as alunos/as não são entendidos/as como seres passivos. Eles/as precisam explorar o
seu meio a partir do conhecimento científico, já que “explorar o saber é tão rico, quando
o pensamento é empírico” (trecho da música cantada pelo professor). Nesse sentido, a
subjetividade discente construída não se aproxima das características de submissão e
passividade produzidas pelo discurso da escola tradicional, mas para o/a aluno/a cria-se
uma posição de sujeito ativa, que constrói seu próprio conhecimento. É possível
estabelecer um paralelo entre aquilo que se espera dos/as estudantes de Procurando
Nemo e o construtivismo pedagógico criado com base na psicologia do
desenvolvimento.
Na prática pedagógica construtivista, a aprendizagem é concebida como “uma
produção ativa (e não passiva) de significados em relação aos conhecimentos sociais e à
própria bagagem do aprendiz” (HERNANDEZ, 2000, p. 178). Isso pressupõe tanto a
exploração ativa do ambiente, como um conhecimento daquilo que o/a aluno/a traz em
sua “bagagem”. Nessa perspectiva, que parece coadunar com aquela desenvolvida no
filme aqui analisado, a subjetividade discente não mais pode ser moldada com base nos
padrões de ensino “tradicionais”. Para essa infância produzida como agitada, elétrica e
veloz, é importante garantir momentos de autonomia e liberdade dentro do espaço
escolar, momentos em que se possa, por exemplo, explorar o ambiente e conhecê-lo
ativamente.
Para isso, torna-se fundamental reorganizar o espaço escolar. Se no modelo de
escola tradicional a educação se passa na sala de aula, no modelo de escola apresentado
em Procurando Nemo a sala e passa a ser todo o Oceano. Mais uma vez, percebemos a
influência do discurso do construtivismo pedagógico, que fala da importância da
“criação de um novo espaço escolar, menos limitado e mais dinâmico, para permitir
tantas aventuras e diversões” (ROCHA, 2000, p. 138). Esse espaço mais aberto é
pensado como capaz de produzir a liberdade e a autonomia infantis. No entanto, pode-se
Maria Carolina da Silva
1060
A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
dizer que um espaço mais aberto não significa falta de controle. Pelo contrário, ele
indica um controle por outros meios. Rose (2001) mostra a importância de analisar o
discurso da Psicologia têm sido incorporadas na organização espacial da arquitetura
contemporânea e das instituições disciplinares, produzindo novas configurações nos
mecanismos de controle e governo. Parece que a escola de Procurando Nemo se
organiza mantendo alguns princípios das pedagogias disciplinares e incluindo outros
saberes. Dessa forma, pode-se dizer que, ainda que se pregue a liberdade que a
exploração do ambiente e que os espaços escolares abertos proporcionam, os/as
alunos/as continuam a ser vistos/as e vigiados/as. Na escola e fora dela, esses espaços
mais abertos fazem com que nos “tornemos ‘naturalmente’ obedientes, homogêneos,
previsíveis, exemplares e, sobretudo, governamentalizados” (ROCHA, 2000, p. 140).
Nesse sentido, ainda que se utilize o espaço mais amplo, a escola continua tendo
a função de controle da conduta infantil. Dessa forma, ainda que as funções continuem
as mesmas, é preciso “que ao menos elas sejam cada vez menos visíveis e mais
parecidas com este mundo atemporal e sem fronteiras que se insinua diante de nós como
a única realidade possível” (ROCHA, 2000, p. 138). A escola, para conseguir controlar
esses/as infantis, não pode simplesmente vigiá-los/as constantemente e puni-los/as. Ela
precisa também capturá-los/as por meio de outras estratégias. Entre essas estratégias,
parece que a diversão, a exploração ativa do ambiente e a “liberdade” aparecem como
fundamentais.
Entretanto, essa liberdade é mais vigiada do que parece. Afinal, pelo processo de
construção de saberes sobre os/as infantis e pela criação de condutas normalizadas para
eles/as, fica claro que não se trata da libertação individual, mas de novos modos de
controle. Com base no referencial pós-estruturalista, é importante estar atento também
para o fato de que “não existe nenhum sujeito preexistente a ser libertado”
(WALKERDINE, 1998, p. 204). O que existe sempre são processos de produção de
subjetividades de diferentes tipos. Pode-se dizer que, na contemporaneidade, temos sido
interpelados/as por diferentes discursos de origem psi que afirmam a importância da
autonomia e da liberdade. Vale destacar, porém, que “esse sonho de liberdade constitui
as próprias formas pelas quais nos codificamos e experienciamos a nós mesmos”
(ROSE, 2001, p. 190). Isso implica que a liberdade não é algo que existe essencialmente
Maria Carolina da Silva
1061
A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
no sujeito e que é liberado pelas técnicas psi. Pelo contrário, a liberdade é construída
por meio de diferentes discursos.
Pode-se dizer que no modelo de escola considerado pelo filme como ideal, às
características da instituição escolar disciplinar são anexadas características de um
discurso de origem psicológica que passa a preconizar como importante para essa
instituição a construção da autonomia, do autocontrole e da liberdade. Para isso, são
utilizadas diferentes estratégias: figura docente alegre e próxima dos/as alunos/as,
exploração ativa do ambiente, importância da experiência ao ar livre para os/as infantis.
Essas estratégias ajudam a construir subjetividades docentes e discentes. Professores/as
e alunos/as são subjetivados/as por um discurso que apela para a emoção, a alegria e a
afetividade. Dessa forma, suas condutas passam a ser conduzidas com base nesses
critérios. Os filmes analisados, portanto, ensinam como adultos/as e infantis devem se
comportar dentro da instituição escolar para garantir a produção de uma sociedade mais
equilibrada.
Contudo, como “o poder só se exerce sobre ‘sujeitos livres’” (FOUCAULT,
1995, p. 244), ou seja, ele só se exerce quando os sujeitos “têm diante de si um campo
de possibilidade em que diversas condutas, diversas reações e diversos modos de
comportamento podem acontecer” (FOUCAULT, 1995, p. 244), os/as infantis podem se
afastar do caminho traçado para eles/as. Os/as infantis podem não seguir os preceitos
que foram previamente definidos e, dessa forma, distanciar-se dos ideais que lhes foram
designados. Eles/as podem transformar-se em “monstros”, seres perigosos que desafiam
as regras e ordens criadas pelos sujeitos adultos/as.
Considerações finais
Falar da infância e dos/as infantis tem sido uma obsessão da sociedade ocidental.
Desde que ela começa a viver a experiência do dispositivo de infantilidade, “nossa
cultura não parará mais de falar do outro-infantil” (CORAZZA, 2004, p. 23). Os
variados discursos sobre a infância, no entanto, não objetivam apenas celebrá-la. Seu
objetivo principal é “reduzir a perigosa alteridade e defini-la para, perpetuamente,
regulá-la” (CORAZZA, 2004, p. 23). Nesse sentido, os filmes analisados podem ser
compreendidos como mais um elo da cadeia discursiva que tem definido o que são os/as
infantis, com vistas a regulá-los/as.
Maria Carolina da Silva
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A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
Apresentar os/as infantis ora como monstros, ora como energia mostra a
necessidade constante que a sociedade ocidental tem de criar estratégias para controlálos/as. Se eles/as são energia, é importante canalizá-la; se são monstros, é fundamental
reconduzi-los/as para a normalidade. Contudo, ao narrar os/as infantis dessa forma,
esses filmes mostram toda a potencialidade infantil e sua tentativa constante de escapar
do controle adulto. Eles/as, ao viverem sua energia e ao mostrarem pela sua
monstruosidade o quanto são diversos dos/as adultos/as, apresentam outras formas de
viver a infância, outras possibilidades de construção de subjetividades. Por
apresentarem essa possibilidade, torna-se fundamental criar novas estratégias para
governar a perigosa diferença infantil (CORAZZA, 2004).
A escola aparece, então, como uma importante instituição para governar os/as
infantis. Se eles/as estão a todo momento mostrando suas possibilidades, cabe à escola
direcionar as escolhas infantis. Nesse processo, os filmes ensinam como a instituição
escolar deve se organizar. Eles ajudam a construir não somente as subjetividades dos/as
infantis, mas também as subjetividades docentes. No processo de condução da infância,
esses filmes ensinam também como nós, adultos/as, devemos nos comportar, quais são
os comportamentos corretos, que parâmetros devemos utilizar para conduzir nossas
condutas.
Os filmes de animação, entretanto, não são os únicos a narrarem a infância na
contemporaneidade. Outros discursos curriculares também têm interpelados os/as
infantis e ajudado a construir suas subjetividades. Assim, entender esses discursos passa
a ser uma tarefa importante para a pesquisa educacional. Se tais discursos tornarem-se
conhecidos, talvez seja possível pensar em outras formas de subjetividade que não
tenham como objetivo controlar ou governar a alteridade infantil, mas que
possibilitassem a construção de novas formas de existência, de dobras diferenciadas em
relação às normas instituídas. Criar essas novas subjetividades talvez seja a chave para
dar voz na educação aos/às infantis que têm sido excluídos do processo educacional
pelos poderes instituídos. Talvez esse seja um caminho para a construção da liberdade,
entendida não como ausência de poder, mas como a tentativa de construção de novos
poderes, novas subjetividades e novas possibilidades de existência.
Maria Carolina da Silva
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A Infância no Currículo de Filmes de Animação: Poder, Governo e Subjetividade dos/as Infantis
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Maria Carolina da Silva
1065
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
USOS DAS MÍDIAS E PRÁTICAS
CURRICULARES: PERFORMANCES COMO
POLÍTICAS ENGENDRADAS NO/COM O
COTIDIANO DA ESCOLA
Maria da Conceição Silva Soares
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Uso das Mídias e Práticas Curriculares: Performances como Políticas Engendradas no/com o Cotidiano da Escola
USOS DAS MÍDIAS E PRÁTICAS CURRICULARES: PERFORMANCES
COMO POLÍTICAS ENGENDRADAS NO/COM O COTIDIANO DA ESCOLA
Maria da Conceição Silva Soares – UERJ
Agência financiadora: FAPERJ/CAPES
RESUMO: É incontestável a presença de produtos, tecnologias, recursos, linguagens e
discursos midiáticos no cotidiano escolar. Antes mesmo das escolas terem sido
equipadas com computadores, aparelhos de TV e vídeo, máquinas fotográficas, rádios e
jornais e das diretrizes curriculares sugerirem o emprego dessas tecnologias entre as
metodologias de ensino/aprendizagem, as mídias já estavam na escola. Esta entrada se
deu por meio da rede de subjetividade que constitui cada um dos alunos e professores,
todos eles usuários dos artefatos culturais produzidos na contemporaneidade. Com esse
trabalho, pretendemos mostrar que os diferentes usos desses produtos, tecnologias,
recursos, linguagens e discursos produzem, dentrofora da escola, redes de
conhecimentos e relações, para além de uma pretensa midiatização hegemônica.
Compreendendo que a performatividade dos sujeitos da/na escola é política,
consideramos que essas ‘operações de usuários/praticantes’ constituem políticas
curriculares, para além dos documentos e prescrições.
PALAVRAS-CHAVE: mídias; cotidiano escolar; operações de usuários; redes de
saberesfazeres e relações.
Introdução
Independente das políticas educacionais, das metodologias de ensino e
aprendizagem propostas pelas diretrizes curriculares e do aparelhamento (ou não) das
escolas, as mídias1 invadiram, e há bastante tempo, o cotidiano escolar. Antes mesmo da
publicação dos decretos que determinaram, em vários municípios brasileiros, cada um à
sua hora, a criação de laboratórios de informática, a instalação de aparelhos de TV e
vídeo e o emprego de jornais e revistas em sala de aula, elas já haviam ‘entrado’ no
espaçotempo escolar. E essa entrada foi se dando de forma quase despercebida, por
meio da rede de subjetividade que constitui cada um dos alunos e dos professores
(Alves, 2001), todos eles usuários dos artefatos culturais forjados na contemporaneidade
(Certeau, 1994). Desse modo, lógicas, discursos e performances midiatícos também
1
Com Sodré (2002), compreendemos que as mídias (rádio, televisão, jornal e internet, entre outras) não
são apenas dispositivos técnicos para a comunicação, mas elas constituem uma ambiência existencial,
uma extensão do espaçotempo em que habitamos, engendrando códigos próprios e sugestões de conduta.
Maria da Conceição Silva Soares
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compõem, conforme seus variados usos e numa combinatória com outras lógicas,
discursos e performances engendrados em outros contextos cotidianos, as redes de
conhecimentos e relações tecidas dentrofora da escola, que, por sua vez, constituem os
currículos ali praticados.
Com esse artigo, baseado em uma pesquisa realizada em uma escola pública de
ensino fundamental da rede municipal de Vitória, no Espírito Santo, buscamos mostrar
diferentes usos dos produtos, lógicas, linguagens e recursos midiáticos no cotidiano
escolar, a partir dos quais se produzem conhecimentos e relações, para além de uma
pretensa midiatização hegemônica. Buscamos ainda desconstruir um discurso corrente
que tenta afirmar ora que os professores não estão preparados para lidar com as novas
tecnologias da comunicação e da informação, ora que eles aderem a elas de forma
celebratória, capturados pelos valores e interesses da globalização tecnológica e
neoliberal. Compreendendo que a performatividade dos sujeitos da/na escola é política
(Carvalho, 2009) e entendendo os currículos escolares como redes cotidianas de
saberesfazeres e sentidos tecidas dentrofora da escola por sujeitos em comunicação
(Soares, 2009), consideramos que essas ‘operações de usuários/praticantes’2 (Certeau,
1994) constituem políticas curriculares, para além dos documentos e prescrições.
Este trabalho, portanto, se inscreve entre as pesquisas no/do/com o cotidiano, as
quais têm possibilitado que compreendamos o cotidiano como espaçotempo de
resistências, disputas, afiliações, frequentações, solidariedades e lutas, em que as
operações de praticantes não são o pano fundo, mas estão no cerne da constituição do
social (Certeau, 1994). Nessa contingência, e inclusive no que se refere aos usos das
mídias, propomos, com Ferraço (2005) que o papel social e político da escola é ampliar
as possibilidades de conhecimento, o que significa ampliar as redes de saberesfazeres já
existentes.
A exigência da e o direito à comunicação
Meu sonho era ser jornalista, mas meu pai não me deixou
sair da cidade onde a gente morava para estudar, então
acabei fazendo pedagogia.
2
Para Certeau (1994), os sujeitos ordinários, praticantes da cultura, inventam em suas operações de uso
do que lhes é imposto outras lógicas e sentidos que acabam por produzir modos de existência que
desorganizam os sistemas, esboçando astúcias de desejos e interesses diferentes.
Maria da Conceição Silva Soares
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Para mim a escola é um meio de comunicação que não
sabe usar seu poder.
Usamos muitas imagens na escola, a História, por
exemplo, é feita de imagens.
Eu adoro as propagandas. Assisto a todas para depois
analisar criticamente.
Gente, com licença, mas eu vou ler o jornal. Estou
tentando fazer isso desde cedo.
Certeau (1994) nos ensinou que é preciso escutar os sinais. Essas são algumas
das muitas falas de professoras que pude escutar durante conversações informais que
presenciei/participei em vários momentos distintos durante a realização da pesquisa na
escola. Debruçando-me sobre elas, pude constatar que a exigência da comunicação e,
simultaneamente, o direito à comunicação estão colocados nesses tempos ditos pósmodernos. Foram/são muitos os agenciamentos que botaram a comunicação na ordem
do dia.
Nos idos dos anos 80, Chacrinha, o profeta de nossa pós-modernidade
tupiniquim, já anunciava: “quem não se comunica, se trumbica”. E nós aprendemos a
concordar com ele. Foi mais ou menos nesse período que os cursos de Comunicação
Social começaram a se multiplicar no Brasil. A arte virou tecno-ciência e as práticas
comunicativas foram se tornando coisa de comunicólogos profissionais.
De lá pra cá, no contexto da globalização dos mercados e da transnacionalização
do capital, temos visto emergir, com o desenvolvimento das mídias e das tecnologias da
informação, uma exigência de comunicação total: veloz, informacional, em fluxos, à
distância, que torna tudo visível, mas de forma espetacular (Soares, 2009).
Essa
exigência de comunicação foi intensificando-se e invadindo quase todos os
espaçostempos de nossas vidas. Porém, o reconhecimento de sua eficácia tem sido
reduzido à transmissão e à recepção, agora planetária, de dados e conteúdos, ou seja, de
informações.
“Comunicação” virou ideologia, tecnologia, mercadoria, paradigma,
conforme seus variados e combinados usos e interpretações. Não é raro nos
depararmos com a expressão “sociedade da comunicação” (bem como outras
expressões associadas à lógica operacional e ao regime semiótico das
mídias: “sociedade de controle”, “hiper-realidade”, “idade mídia”, “era da
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informação”, etc.) para nomear e atribuir significados à contemporaneidade.
(Soares, 2009, p. 75)
A ambiência comunicacional, instituída pelo agenciamento que das mensagens
midiáticas introduz em nosso dia a dia, ou melhor, minuto a minuto, e pelos modos de
subjetivação que elas engendram, modificou nossa vida cotidiana em suas diversas
dimensões, produzindo reordenamentos culturais.
Para melhor explicar essa contingência, Augé (2004), baseando-se em sua
trajetória como antropólogo, criou o conceito de “cosmotecnologia”, através do qual ele
procura discutir a condição contemporânea em que o ordenamento e o sentido do
mundo parecem ser produzidos na ambiência cotidiana das redes de comunicação.
Nessa circunstância, vivemos rodeados de artefatos que funcionam como uma segunda
natureza: a cosmologia tecnológica.
Aproximando-se desse pensamento, Sodré (2002) defende que os meios de
comunicação e os hiper-meios implicam a emergência de um “bios virtual”, ou seja, a
ampliação por meio da telemática da superfície de contato com o outro, e também de
reconhecimento do outro. Para ele, essa condição caracteriza-se por uma teledistribuição
de pessoas e coisas, em que contam a velocidade e a fluidez dos processos.
As escolas, assim como outras instituições sociais, também foram afetadas pelas
agendas e pelas lógicas operacionais das redes comunicacionais. Professores, alunos,
funcionários, gestores e pais estabelecem relações por meio dos ou com os meios de
comunicação e da informação. O desenvolvimento dessas tecnologias, contudo, depende
de decisões e programas políticos e econômicos. E, independente de suas necessidades
ou vontade, as escolas vêm sendo pressionadas pelos administradores globais e locais da
política e do mercado a trabalharem com parafernálias tecnológicas.
A globalização e a midiatização reconfiguram também o sentido de cidadania,
que passa a ter contornos mundiais. Em quase todas as instâncias, a ordem, quase nunca
questionada, é “incluir”. O acesso às tecnologias da comunicação e da informação vem
sendo defendido, assim como o acesso à educação pública, como um direito de todos, o
que, a essas alturas, tornou-se incontestável. Porém, esse direito é, ao mesmo tempo, o
reconhecimento da exigência de comunicação total que o gerou e, pior do que isso, sua
garantia tornou-se uma das principais medidas da “qualidade” da educação na
contemporaneidade.
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Em Vitória, a autorização para o ensino de informática e com ela o
reconhecimento do direito (e/ou da exigência) à informatização das escolas da rede
municipal foi promulgado com a Lei - 4789, a qual data de dezembro de 1998. Contudo,
a introdução dos equipamentos e do ensino de informática nas escolas municipais de
Vitória, obviamente, não deve ser pensada fora do contexto da globalização dos
mercados, da mundialização da cultura e dos projetos para a área desenvolvidos pelo
Ministério da Educação.
Um ano depois e a reboque da autorização para o ensino de informática, dentro
do mesmo contexto, chegou a vez da “velha” e “renovada” imprensa comercial garantir
oficialmente seu espaço na sala de aula. A Lei- 4873, promulgada em 1999, autorizou a
Secretaria Municipal de Educação a incluir como atividade curricular, a leitura de
jornais e revistas em sala de aula.
Concomitante às políticas públicas que visam equipar as escolas com recursos
midiáticos, organismos internacionais, autoridades governamentais, corporações de
telecomunicações, fabricantes de equipamentos, organizações não governamentais e
movimentos sociais, estão, todo o tempo, discursando, através das mídias e de
documentos que explicitam suas políticas, em favor da inclusão digital como direito
cidadão e como fator de desenvolvimento. A ampla cobertura que vem sendo dada ao
tema tem pautado a urgência e a relevância dessa questão nas agendas de discussões
públicas não só de professores e pesquisadores da educação, mas também de toda a
sociedade.
Atualmente, além dos computadores, revistas e jornais, outros meios, produtos,
recursos, tecnologias e lógicas da comunicação de massa, independente de alguma
legislação específica, também estão presentes nas escolas da rede pública municipal de
Vitória, como aparelhos de TV, DVD e vídeo, câmeras fotográficas e de vídeo,
telefones públicos e aparelhagens de som, entre outros. Não podemos esquecer também
dos recursos, meios, produtos, lógicas e tecnologias que entram na escola através de
alunos, funcionários e professores, como, por exemplo, celulares e aparelhos MP3 e
MP4, e, principalmente as redes de subjetividades, práticas e experiências que
constituem cada um dos praticantes do cotidiano escolar. Resta-nos, no entanto, pensar
nos usos que estão sendo feitos desses recursos, meios, produtos, lógicas e tecnologias e
o que esses produzem no sentido de possibilitar a ampliação de conhecimentos.
Maria da Conceição Silva Soares
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Operações de usuários e fragmentos dos currículos praticados na escola
Para começar essa outra discussão, gostaríamos de destacar que a escola, assim
como a mídia, não é unicamente lugar de docilização, disciplinarização e controle, mas
é também espaçotempo de liberdade, de criação e de resistência aos processos de
formatização da vida e da subjetividade. Se as escolas vêm sendo pressionadas a
trabalharem com parafernálias tecnológicas que até bem pouco tempo lhes eram
estranhas, elas o fazem sem abrir mão de formas a elas mais familiares de comunicar.
Na escola em que realizei essa pesquisa, pude constatar a presença do vídeo, da
TV, dos computadores, da máquina de fotografar, da máquina de filmar. Mas lá
continuam valendo também os bilhetinhos, os cartazes, a fofoca, o grafite, os torpedos,
o alto-falante, o lápis e o papel, o giz e o quadro negro, as tintas e os pincéis, as
camisetas das oitavas séries, os recados e os desenhos na porta dos banheiros, os
cochichos, a cola, a pichação e os murais.
Pude constatar, ainda, que a arquitetura e os rituais tentam comunicar como
devem ser significados e ocupados os tempos e os espaços: a arrumação das salas de
aula, as atividades nas quadras e nos pátios, os calendários, os horários das aulas, os
muros, os banheiros femininos e masculinos, as filas na entrada e na saída, o manual do
aluno, as festas, os campeonatos esportivos. Na escola estão presentes ainda outras
formas de comunicar que não se materializam em objetos e espetáculos: as vozes, os
corpos, os gritos, as gargalhadas, as lágrimas, os gestos, os sons, os silêncios, os
olhares, as cores, os cheiros, os sabores.
Desse modo, deslocando, combinando e recriando usos diversos e possíveis
desses meios e recursos, na escola se tecem redes de saberesfazeres e relações com
lógicas operacionais múltiplas, dinâmicas, desviantes, complexas, paradoxais e
singulares, com as marcas dos praticantes. Nessas operações de uso se constituem
alguns fragmentos dos currículos vividos.
Com Ferraço (2005), defendo que, para discutir currículo e possibilidades de
conhecimento na escola, nós temos que problematizar a idéia de currículo como
prescrição e tomar como referência os fragmentos de complexidade das redes vividas no
cotidiano escolar tecidas pelos sujeitos praticantes. Nessa perspectiva, concordamos
com Oliveira (2005) quando ela afirma que o fazer cotidiano aparece como espaço
privilegiado de produção curricular.
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Entre uma multiplicidade de usos possíveis dos recursos, meios, linguagesn,
tecnologias e produtos midiáticos, destacamos fragmentos de alguns dos usos de
computadores e internet que professores e alunos fazem dentrofora da escola. De
acordo com Alves (2001), para analisarmos esses usos é preciso compreender as lógicas
que os sustentam. A autora explica que, para além do consumo dos produtos que lhes
são fornecidos, os sujeitos do cotidiano fazem usos deles que desviam-se da
racionalidade dominante, fazendo, com isso, surgir alternativas em trajetórias que não
podem ser previamente determinadas por que serão sempre diferentes.
Na escola pesquisada, por exemplo, durante a aula de artes, os alunos da oitava
série pesquisam na Internet informações sobre artistas plásticos contemporâneos e
fazem download de imagens de suas obras. Além das pesquisas, eles copiam e colam
imagens dessas obras no programa paint, para depois interferir nelas, melhor dizendo,
para criar outras imagens a partir delas, rearticulando-as a partir de suas experiências,
suas percepções, suas necessidades e seus desejos.
Outras operações de usuários das tecnologias da informática têm sido inventadas
e/ou praticadas no laboratório pedagógico, criado para dar apoio a alunos com
“deficiências visuais”. As alternativas encontradas pela professora que coordena o
laboratório buscam se adequar às singularidades desses alunos.
Para Fernanda, que é totalmente cega, livros e textos são escaneados, jogados no
computador, convertidos por meio de um programa específico para o sistema braille e
depois impressos em uma impressora especial. Fernanda tem 13 anos, está na sétima
série e estuda na escola desde a primeira. Ela adora ler e já leu mais de 100 livros graças
às adaptações feitas pela professora.
Natália, outra aluna usuária do laboratório, tem, segundo a professora, uma visão
bem limitada, ou seja, enxerga muito pouco. Ela está sendo alfabetizada em sala
comum, mas conta com a ajuda do computador. Para isso, a coordenadora do
laboratório inventou um teclado especial com letras bem grandes, escritas no próprio
computador com fontes grandes, que depois de impressas e recortadas foram coladas no
teclado original. Natália está alfabetizada e a escola tem um computador que, além de
ganhar uma estética diferente dos outros encontrados no mercado, permitiu inserir seus
alunos no mundo da escrita.
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Ainda em relação aos usos do computador e da internet, os alunos da escola
criaram uma comunidade no Orkut, da qual participam também professores. Nesse
espaçotempo eles criaram fóruns de discussões sobre as aulas e outras atividades
escolares que permitem a ampliação das redes de conhecimentos e relações tecidas.
Essas e outras operações de uso das tecnologias na informação detrofora da
escola, não se limitam, portanto, aos usos prescritos, mas permitem invenções que
podem ampliar as possibilidades de conhecimento, cooperação e comunicação.
Outras práticas de usuários das tecnologias da comunicação, entre inúmeras
vivenciadas no cotidiano da escola, que gostaríamos de destacar são: a oficina de
histórias em quadrinhos e a confecção de um jornal mural, desenvolvidas,
respectivamente, por um professor de português e por uma professora de matemática.
Práticas cotidianas como essas, que a princípio podem nos causar estranhamento, nos
levam a questionar a visão tradicional de educação e de ciência, ainda predominante em
nossa sociedade, que supõe que para conhecer precisamos disciplinarizar os saberes,
aprisionando-os em áreas de conhecimento, ou seja, em disciplinas.
O que se aprende numa oficina de histórias em quadrinhos? A escrever, a
desenhar, a imaginar, a criar, a se expressar, a se apropriar de linguagens visuais, a se
comunicar, a calcular, a trabalhar a utilização de espaços, a inventar situações felizes e
desejáveis, a fortalecer e criar relações, a se apropriar de fragmentos de outras histórias
e de memórias, a ironizar e assim criticar situações indesejáveis ou paradoxais, a forjar
ações possíveis para tornar melhor a própria vida e a vida dos outros também, além de
milhares de outras coisas impossíveis de serem medidas e/ou controladas.
A oficina de quadrinhos foi desenvolvida pelo professor de português, com as
turmas de 5ª série. O que se aprendeu naquela ocasião não foi só português, mas
também matemática, história, geografia, ciências e artes. Tinha a ver, pela forma como
o trabalho foi desenvolvido e pelos temas abordados, com lógica, linguagem, código,
imagem, pensamento, ética, estética, política, cidadania, filosofia e até religião.
A produção do jornal mural aconteceu como atividade proposta em uma aula de
matemática, a partir da necessidade constatada pela professora de motivar os alunos
para o estudo da disciplina. Com esse objetivo, ela propôs aos alunos que
entrevistassem pessoas da comunidade para descobrir como elas usam a matemática.
As respostas foram “publicadas” em mural produzido num formato muito usado no
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jornalismo impresso, conhecido como “fala povo”. Com o título “Cada opinião: como
você usa a matemática?”, o jornal trazia fotos e depoimentos dos entrevistados.
Essas práticas nos mostram que os modos operacionais de perceber e expressar
o mundo empregados pelas mídias são usados no cotidiano da escola para revelar outras
lógicas e outros modos de perceber e expressar o mundo forjados em outros
espaçostempos da vida cotidiana, como os saberesfazeres engendrados no trabalho e na
cultura.
Conclusões
Entendendo que conclusões são exigências do trabalho científico, assumimos
que nossas considerações são provisórias e, mais do que encerrar o assunto, devem
operar como abertura para outros questionamentos.
De qualquer forma, consideramos, com as experiências até agora vivenciadas,
que a presença em nossas vidas cotidianas dos os novos meios, recursos, linguagens,
produtos e tecnologias da comunicação e da informação é irreversível e transformou
nossos modos de existência.
Os usos desses meios, recursos, linguagens, produtos e tecnologias são, contudo,
impossíveis de serem controlados, produzem novas formas de subjetividade,
desencadeiam possíveis processos de subjetivação e modos de relações sociais. Eles
ampliam nossas possibilidades de conexão e modificam nossas formas de conhecer e
expressar o mundo, desafiando-nos a repensar a escola, a pedagogia, os hábitos e as
crenças generalizadas sobre currículo e educação.
Defendemos que as pesquisas no/do/com o cotidiano nos possibilitam
compreender a complexidade dos processos educacionais e das políticas curriculares de
praticantes, forjadas em meio as suas escolhas, negociações, resistências e invenções.
Ao se apropriarem dos recursos oferecidos e impostos, os usuários/praticantes realizam,
à sua maneira, os documentos curriculares prescritivos.
Afinal, como afirma Oliveira (2005), cada forma de se ensinar, cada conteúdo
trabalhado e cada experiência particular só podem ser entendidos em meio ao conjunto
de circunstâncias que os torna possível.
Assim, em acordo com o que nos propõem Macedo, Oliveira, Manhães e Alves
(2004), nossos estudos não buscam explicar a melhor forma de organizar currículos,
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mas sim modos de fazer emergir os vários currículos já existentes. Com isso,
pretendemos contribuir para criação de alternativas que ao invés de silenciarem as
experiências em curso ajudem a legitimá-las.
Referências:
ALVES, Nilda. Redes cotidianas de conhecimentos e valores nas relações com a
tecnologia. In: Congresso AS REDES COTIDIANAS DE CONHECIMENTO E
TECNOLOGIA. Rio de Janeiro, UERJ; 2001.
AUGÉ, Marc. ¿Por qué vivimos? Por una antropología de los fins. Barcelona,
Espanha: Gedisa, 2004.
CARVALHO, Janete Magalhães. O cotidiano escolar como comunidade de afetos.
Petrópolis, RJ: DP et Alii; Brasília, DF : CNPq, 2009.
CERTEAU, Michel de. ______. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
FERRAÇO, Carlos Eduardo. Currículo, formação continuada de professores e cotidiano
escolar: fragmentos de complexidade das redes vividas. In. FERRAÇO, Carlos Eduardo
(org.). Cotidiano escolar, formação de professores (as) e currículo. São Paulo:
Cortez, 2005.
MACEDO, Elizabeth; OLIVEIRA, Inês Barbosa; MANHÃES, Luiz Carlos; ALVES,
Nilda (org.). Criar currículo no cotidiano. São Paulo: Cortez, 2004.
OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Criação curricular, autoformação e formação continuada
no cotidiano escolar. In. FERRAÇO, Carlos Eduardo (org.). Cotidiano escolar,
formação de professores (as) e currículo. São Paulo: Cortez, 2005.
SOARES, Maria da Conceição Silva. A comunicação praticada com o cotidiano da
escola: currículos, conhecimentos e sentidos. Vitória, ES : Espaçolivros, 2009.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em
rede. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
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Figuras e legendas
Figura 1. Jornal A Gazeta (ES), de 30 de junho de 2006. Encarte especial, lançado por
ocasião do 3º Seminário de Inclusão Digital do Espírito Santo, com o tema “Sociedade
da Informação – Conhecimento e Desenvolvimento. O seminário foi promovido pela
Rede Gazeta em parceria com a Secretaria Estadual de Educação (Sedu).
(Foto: Maria da Conceição Silva Soares)
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Figura 2. Cartaz convocando para Conselho de Escola, confeccionado com fragmentos
de discursos pedagógicos e imagens recortadas de revistas. Nessas práticas produzem-se
textos tomando como empréstimo discursos produzidos em outros contextos.
(Foto: Maria da Conceição Silva Soares)
Figura 3. Mural sobre excursão pedagógica possibilita a discussão de alternativas para a
problemática ambiental. Dessa forma a escola, com o suporte da fotografia, dá
visibilidade aos seus projetos de ensino/ pesquisa e constrói sua memória.
(Foto: Maria da Conceição Silva Soares)
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Figura 4. Mural realizado por alunos a partir de uma releitura do filme Acorda
Raimundo, com intuito de promover discussão sobre a questão dos gêneros e dos papéis
sociais a eles atribuídos.
(Foto: Maria da Conceição Silva Soares)
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Marcos
quem lembra da professora de (ciencias)Margarete.
Carla
Andrea
Quando voce estudou no Alvaro???
Fabrício
FILME "DROGA DE VIDA",FEITO PELA 8º SÉRIE DE
2000
Fabrício
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15:05
27/05/2006 1
12:32
25/05/2006 6
18:29
23/05/2006 58
12:49
21/05/2006 2
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Figura 5. Comunidade no Orkut criada para uso de alunos, ex-alunos e professores.
Redes de conhecimentos e relações tecidas dentrofora da escola.
(Imagem capturada da Internet)
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Uso das Mídias e Práticas Curriculares: Performances como Políticas Engendradas no/com o Cotidiano da Escola
Figura 6. História em quadrinho produzida por aluno da 5ª série do ensino fundamental.
Aprendizagens múltiplas, impossíveis de serem medidas e/ou controladas.
(Foto: Maria da Conceição Silva Soares)
Figura 7. Jornal mural produzidos por alunos, trazendo fotos e depoimentos de pessoas
da comunidade que contam como usam a matemática em suas atividades do dia a dia.
(Foto: Maria da Conceição Silva Soares)
Maria da Conceição Silva Soares
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
O DESENHO ANIMADO NA CENA ESCOLAR:
PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO DE IDENTIDADES
FEMININAS
Patrícia Ignácio
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
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O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
O DESENHO ANIMADO NA CENA ESCOLAR: PRODUÇÃO E
REPRODUÇÃO DE IDENTIDADES FEMININAS
Patrícia Ignácio
RESUMO: O presente artigo, elaborado com base na dissertação de mestrado
Aprendendo a Consumir com “Três Espiãs Demais”, - inscrita em um registro pósestruturalista e embasada em referenciais teóricos dos Estudos Culturais – apresenta
como objeto de estudo a pedagogia da série de desenho animado Três Espiãs Demais e
a repercussão deste artefato midiático no currículo e nas condutas de jovens meninas, na
contemporaneidade. A pesquisa busca mostrar alguns preceitos, lições, dicas, modelos,
modos de ser, (con)viver e se (com)portar colocados em evidência nas narrativas de tal
programação televisiva e reproduzidos no espaço escolar. Com base em autores que
problematizam a condição pós-moderna, o consumo e as pedagogias culturais, o estudo
estabelece considerações acerca da mídia enquanto produtora de identidades de gênero e
de representações do universo feminino. O entrecruzamento do referencial teórico, com
a série de desenho animado Três Espiãs Demais e as observações realizadas no espaço
escolar evidenciou que a série (re)produz e dissemina uma gama de significados acerca
dos modos de ser e (con)viver das jovens meninas arraigados nos princípios do ter, do
parecer e do relacionarem-se com belos jovens meninos e que tais significados passam a
invadir a cena escolar e a fazer parte do seu currículo.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo, Pedagogias Culturais, Jovens Meninas, Consumo.
Naruto, Kim Possible, Ami e Yumi, Martin Mistery, Três Espiãs Demais, entre
outros, são alguns dos nomes de personagens apresentados pelos desenhos animados
contemporaneos que parecem estar cada vez mais a invadir e fazer parte da cena
escolar, através da reprodução e descrição de seus episódios, por parte dos alunos, do
trânsito efêmero e encantador de objetos com suas imagens, dos jogos e brincadeiras,
entre outros. Neste contexto, muitas são as ocasiões em que professoras e professores
percebem a necessidade de rever seu planejamento e desenvolver atividades que se
relacionem com as temáticas colocadas em foco pelos desenhos animados, para que
seus alunos possam discuti-las e problematizá-las na escola.
O que se percebe é que os alunos e as alunas, em meio às tarefas escolares,
tentam, das mais variadas formas, copiar, representar e (con)viver como se apresentam
Patrícia Ignácio
1086
O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
os protagonistas de seus programas preferidos e buscam, constantemente, associarem-se
aos significados atribuídos à imagem de seus personagens prediletos.
Assim sendo, os sujeitos infantis não só querem ver o que está em destaque na
mídia, mas também querem se tornar parte do espetáculo, através da imitação do estilo
de vida dos personagens que estão na moda (FREIRE COSTA, 2005). Isso porque, na
sociedade do espetáculo, somente os sujeitos espetaculares podem desfrutar da
felicidade produzida pela notoriedade.
Nesta busca por quererem ser e (con)viver de acordo com os clichês da
televisão, as alunas e os alunos vivem em um “estado de televisão” (SARLO, 2006,
p.81) e a escola passa a exercer o papel de palco para o espetáculo promovido pela
exposição e competição estatutária dos elementos (bolsas, estojos, mochilas, borrachas,
entre outros objetos com a imagem de personagens) e narrativas simbólicos. Tal
situação tem mobilizado grande parte das professoras e professores a se indagarem
quanto ao que fazer em relação ao “bombardeio” e à “invasão” incontrolável de objetos
e narrativas midiáticos em suas salas de aula.
O presente artigo, recorte da pesquisa intitulada Aprendendo a Consumir com
“Três Espiãs Demais” (2007) desenvolvida no curso de Mestrado em Educação, surge
das inquietações produzidas pelo contexto acima citado e das percepções acerca do forte
atravessamento dos temas midiáticos na cena escolar. A pesquisa segue na esteira dos
estudos que percebem o ensino como um processo que ultrapassa os muros da escola e
que permeia todos os espaços culturais aos quais os sujeitos têm acesso. Lançando mão
do referencial teórico dos Estudos Culturais, amplia e compreende o espaço/conceito de
Educação como um processo inscrito na cultura. Desta feita, toma a Educação como um
processo complexo e plurifacetado que atravessa a cultura e não se dá somente na
escola, na família e na igreja, mas também na mídia.
Neste sentido, autores como Giroux (1995), Steinberg e Kincheloe (2004),
Kellner (2001) buscam ampliar o espaço da pedagogia - não a restringindo à escola - e
compreendê-la enquanto um conjunto de processos pelos quais os sujeitos, nos
diferentes contextos e ambientes sociais, são transformados e se transformam em
sujeitos de uma cultura. Pedagogia que Steinberg e Kincheloe (2004) denominam
Patrícia Ignácio
1087
O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
pedagogia cultural. Para melhor exemplificar tal compreensão, cita-se a televisão
brasileira, importante e competente professora dos sujeitos infantis.
Conforme reportagem de Daniel Castro na Folha de São Paulo1, os jovens
telespectadores brasileiros são provavelmente os que mais vêem televisão no mundo.
Segundo pesquisa realizada entre dezembro de 2004 e fevereiro de 2005, disponível no
site Multirio, ela é o meio de comunicação que consome maior tempo dos brasileiros
por semana. Tais informações corroboram para que ela mantenha “[...] o atributo de
babá eletrônica neste país, em que as crianças passam poucas horas na escola. Por isso,
o gênero infantil garante para elas diversão passiva desde o início do dia até o fim da
tarde” (SOUZA, 2004, p.114). Neste contexto, o que se percebe hoje é um certo
alfabetismo televisivo que parece preceder o alfabetismo escolar.
Assim sendo, as narrativas, as imagens, os personagens da televisão atuam como
uma pedagogia cultural - ou seja, como uma eficiente, fascinante, envolvente e
prazerosa forma de ensinar na e pela mídia - que passa a fazer parte da “bagagem” de
conhecimentos trazidos pelos alunos para a escola.
Inserida neste contexto escolar, como professora da quarta série do ensino fundamental,
vi-me instigada a investigar a produtividade de certos programas de entretenimento
dirigidos a crianças e jovens e a tentar compreender e colocar em destaque a forte
relação que se estabelecia entre os programas de televisão e certos comportamentos e
atitudes assumidos pelas crianças.
Dentre os diversos programas televisivos exibidos na televisão aberta - por
questões relacionadas à experiência enquanto professora, à reprodução e seleção da
temática de episódios em produções textuais, às narrativas dos alunos e à conduta de
minhas alunas semelhante a das personagens – selecionou-se para a análise a série de
desenho animado Três Espiãs Demais, com o objetivo de investigar quais as
representações de jovens meninas contemporâneas têm sido privilegiadas em suas
narrativas.
Segundo Giroux (2004), “o significado dos desenhos animados opera em vários
registros, mas um dos mais persuasivos é o papel que eles desempenham como as novas
‘máquinas de ensino’, como produtores de cultura” (p. 89). Nesta perspectiva, o
1
Folha de São Paulo, 17 out. 2004.
Patrícia Ignácio
1088
O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
desenho animado se constitui em um texto cultural que opera na produção de
significados e que ensina aos sujeitos formas de ser e (con)viver em sociedade. Sendo
assim, a linguagem do desenho é pedagógica, ou seja, ao relatar um fato, descrever
objetos e pessoas, expressar posições, ensina aos seus telespectadores, através da
ressonância dos seus discursos, o que é natural, normal, lógico e aceitável em sociedade.
A série de desenho animado Três Espiãs Demais, selecionada para a presente
pesquisa, é uma produção da empresa francesa Marathon, transmitida, segundo
informações do site oficial, em vários países2 desde 2001. A série apresenta a
representação da cultura norte-americana, com traços que se assemelham aos desenhos
japoneses. Com duração aproximada de vinte a trinta minutos, Três Espiãs Demais
narra as aventuras de três jovens meninas (Clover, Sam e Alex), de nível
socioeconômico privilegiado, estudantes e moradoras de Beverly Hills. Jovens meninas
divertidas e bem-humoradas, Alex, Sam e Clover, enfrentam missões, que abrangem
desde a seleção de roupas fashion para um encontro, o cuidado com as unhas, a
aquisição de acessórios da moda, à solução das difíceis missões mundiais comandadas
por Jerry, chefe do Centro de Serviços Secretos da Organização Mundial de Proteção
Humana (WOOHP3).
Do entrecruzamento dos referenciais teóricos dos Estudos Culturais, dos estudos
de gênero e dos estudos acerca da cultura da mídia e do consumo, com vários episódios
da série de desenho animado, percebi que, frequentemente, o desenho narra e
caracteriza as jovens meninas como fascinadas pela sociedade do consumo. Tal
constatação norteou o quadro de questões que embasaram a pesquisa e que serão
colocadas em discussão a seguir. São elas: Como são representadas as jovens meninas
no desenho? O que ele ensina sobre os significados do consumo? Como são as relações
2
Alter Channel (Grécia); ABS CBN (Filipinas); Abc Family (Estados Unidos), Channel 4 (Reino Unido);
CFI (Divers) Cartoon Network Japan (Japão); Kanal D (Turquia); Fox Latin America (América Latina);
Fox Kids Europe (Bélgica, Países Baixos, Israel); Disney Ásia (China, Índia, Taiwan); Prava i Provodi
(Bósnia); PT Indonésia (Indonésia, Sri Lanka); Nickelodeon (Austrália); MTV 3 (Finlândia); Koko
Enterprise (Coréia do Sul); RTL TVI (Luxemburgo); Romanian TV (Romênia); Rete Italia (Itália); Pro 7
(Alemanha & Áustria, Malásia); SABC (África do Sul); RTP (Portugal); RTE (Irlanda); TV Catalunya, TV
Madrid, TV Valenciana, TV de Galicia, TV Vasca, Canarias TV (Espanha); TSR (Suíça); Televisa
(México); Teletoon (Canadá); TBL (Hong Kong); TV Panama (Panamá); TV3 (Nova Zelândia); TV2
Norway (Noruega); TV2 Denmark (Dinamarca); VT 4 (Bélgica); Venevision (Venezuela); TV Tokyo
(Japão); entre outros.
3
World Organization of Human Protection.
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O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
afetivas das jovens meninas? Como as jovens meninas lidam com seu próprio corpo? O
que mobiliza as jovens meninas a querer, incansavelmente, consumir objetos, imagens e
relacionamentos? Em que contexto tais ações se justificam?
A seguir, apresento um recorte breve e sucinto de algumas inferências construídas
durante o estudo, realizadas na análise de dezesseis episódios da série de desenho
animado Três Espiãs Demais, a partir de três focos que se mostraram centrais durante o
estudo. São eles: consumo de aparências, consumo de objetos e consumo de
relacionamentos.
Consumo de Aparências
Dos dezesseis episódios analisados, nove colocam em evidência questões
relacionadas ao que chamo de consumo de aparências. Selecionar a roupa ideal para um
encontro (episódio Encolhe-encolhe), ser a mais popular da escola (episódio Nasce uma
espiã), vencer concursos de beleza (episódios Mania de manicure e Cidadãs modelo) ou
utilizar produtos de beleza (episódio A Ilha WOOHP) são uma pequena amostra de
situações nas quais as protagonistas do desenho solucionam seus problemas pessoais
com base na lógica do mundo da moda — obsolescência, sedução e diversificação
(LIPOVETSKY, 2006).
Nos episódios analisados, as jovens personagens são narradas como
demasiadamente preocupadas e capazes de qualquer coisa para preservarem,
aperfeiçoarem e/ou valorizam sua aparência. Assim sendo, conter um vilão que pretende
destruir o mundo ou fazer as unhas no melhor salão de beleza da cidade são, para as
jovens heroínas, missões diferentes, porém de igual importância.
No episódio Biscoitos da Paixão, por exemplo, as espiãs aparecem no shopping
contemplando lojas – fato que se repete em vários episódios -, em busca de um produto
para comprar. De repente, Clover encontra em uma vitrine um chapéu que viu em uma
revista. Seu desejo é de imediatamente adquiri-lo. Contudo, há um impasse, a
personagem não aceita que o tamanho ideal para a sua cabeça é G. A jovem espiã,
ignorando a incompatibilidade entre sua cabeça e o chapéu de tamanho M, despreza o G
e afirma que nunca usará algo de tal tamanho. Isso porque, “o corpo tem que aceitar a
fantasia porque esta é mais importante do que ele [...]” (SARLO, 2006, p.34).
Tal narrativa parece ir ao encontro dos discursos que ressoam nos dias atuais: ser
do tamanho grande é algo inaceitável, pois faz referência à obesidade, algo insuportável
Patrícia Ignácio
1090
O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
e inadmissível para quem vive em sociedades regidas pelo dispositivo da magreza.
(MARTINS, 2006).
Na continuação do episódio, as espiãs são transportadas para a agência WOOHP.
Na agência, Jerry lhes apresenta uma nova missão de caráter mundial para
solucionarem: acabar com o desejo insaciável de comer que as pessoas sentem após
engolir um biscoito especial, cujo efeito é engordar exageradamente. As protagonistas
devem desvendar que está por trás deste caso e acabar com a grande vilã dos últimos
tempos – a gordura.
Neste episódio, as vilãs são gordas e suas armas de fogo atiram biscoitos que
podem engordar até explodir. Exacerbando as preocupações contemporâneas relativas
ao corpo gordo, a narrativa parece afirmar que comer é uma ação contrária ao bem estar.
Como alertam Martins e Costa (2006, p. 7), o que parece é que “a fronteira entre alguns
quilos a mais e obesidade vêm se diluindo, originando um controle normativo, no qual o
corpo magro representa um aperfeiçoamento, uma evolução”.
Durante todo o episódio as protagonistas estão empenhadas em acabar com a
“maligna gordura”. Na trama do desenho o discurso “anorexista” representa e descreve
o gordo como a evidência material do que venha a ser o mal e o “anormal”. Contudo, ao
final do episódio a personagem Clover, contradizendo as “verdades” narradas durante
todo o desenho, aceita o chapéu de tamanho G e afirma que: “O que vale é ser feliz. Não
importa o tamanho”. O que se percebe em Biscoitos da Paixão é uma pedagogia da
mídia, fazendo prescrições, demonstrando como ser gordo faz mal para os sujeitos e
reafirmando os discursos da contemporaneidade, onde observamos “centenas de
milhares de indivíduos correndo às tontas atrás de uma miragem corporal idolatrada às
expensas de tudo mais, e, o que é pior, fabricada para ser desmontada em pouco tempo”.
(FREIRE COSTA, 2005, p. 231).
No episódio Encolheu a Cabeça, a heroína Sam, precisa fazer o possível e o
impossível, para impressionar um belo jovem menino. Nesta busca, ela afirma para as
amigas que a convidam para ir à Feira do Glamour:
Sam: Eu não vou mais aparecer em público até estar apresentável!
Patrícia Ignácio
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O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
Faz-se necessário destacar que, no contexto do desenho, “estar apresentável”
significa compor um tipo de postura perante o corpo que transcende o ato de vestir-se
adequadamente segundo os clichês da moda, e passa a enquadrar uma gama de
preocupações com a beleza, a imagem e as condutas socialmente aceitáveis. “Como
disse Debord, o dilema moral da contemporaneidade não é mais o da escolha entre ‘ser’
e ‘ter’, porém o da escolha entre ‘ser’ e ‘parecer’”. (FREIRE COSTA, 2005, p.231).
Neste contexto, o parecer confere ao sujeito um conjunto de significados, no qual as
roupas, os acessórios e os comportamentos constituem-se em signos que passam a ser
decodificados na sociedade. Assim sendo, a escolha dos mesmos faz-se demasiado
complexa, pois “a questão central do comprismo não é saber se os objetos distorcem ou
não a vida emocional, mas como participam na gestação, manutenção e reprodução de
nossos ideais de eu” (FREIRE COSTA, 2005, p.163).
Já o episódio Garotas do Vale do Silício tematiza a importância do processo de
se encaixar nos padrões definidos pelo grupo ao qual se objetiva fazer parte. Nesta
trama, as jovens heroínas aparecem em um tribunal, na escola. No julgamento, Clover é
a juíza e deve punir sua amiga Sam por ter transgredido a altura máxima do salto
permitida pelo “código do vestuário” do colégio. A juíza absolve a amiga, porém
Mandy (rival das espiãs) contesta e a professora substitui Clover por Mandy. A nova
juíza condena:
Mandy: A corte condena vocês três por desrespeito. E a sentença é de três semanas na
coleta de lixo. Próximo caso!
(A cena finaliza com as três espiãs atrás das grades, com roupas de listras brancas e
pretas e uma carcereira batendo com um cacetete nas grades).
Neste trecho, por não cumprirem as normas do vestuário de seu grupo, as jovens
espiãs são “reduzidas” a catadoras de lixo, pena insuportável e cruel em seu grupo. De
acordo com a narrativa do desenho, os sujeitos que não se enquadram nas regras do
vestuário são condenados à exclusão social.
No episódio A Ilha WOOHP a personagem Clover ensina aos telespectadores a
importância dos cuidados estéticos. Neste episódio, a jovem heroína passa a trabalhar
como uma esteticista Esther4. Vendedora porta a porta “de tudo o que existe de bom no
4
Nome da linha de cosméticos que Clover revende.
Patrícia Ignácio
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O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
mundo”, a espiã apresenta às amigas Sam e Alex uma maleta abarrotada de cosméticos e
maquilagem. No instante em que abre a maleta, uma forte luz recobre Clover. A
imagem a seguir foca produtos brilhando, aleatoriamente, dentro da maleta. Os preços
são abusivos. Sam reclama. Clover contesta: “Quem pode colocar preço na beleza?”.
Sam e Alex se recusam a adquirir os produtos, contudo Clover descobre uma
forma de convencê-las.
Clover: Vocês não querem estar lindas para os gatinhos no piquenique da WOOHP,
esse fim de semana?
Alex: Bom, pensando assim, eu vou pegar um hidratante.
Sam: Eu fico com o microesfoliante facial.
(As espiãs compram os produtos e os experimentam).
Sam: Ou! Parece que tem mil dedinhos esfoliando o rosto da gente.
Alex: Olha só! Minhas mãos nunca foram tão macias! Ah!
Segundo a narrativa do desenho, cosméticos e hidrantes, desconectados da vida
de jovens meninas de outros tempos, hoje fazem parte de um conjunto de aparatos que
toda a jovem menina deve não só conhecer, mas também adquirir para se tornar bela e
aceitável em seu grupo etário, social, em seu tempo.
Compreendendo o corpo como um locus histórico e, portanto, construído na
relação com as “verdades” a ele atribuídas, é oportuno perceber que a forma como ele é
apresentado na série de desenho animado Três Espiãs Demais, normatiza um tipo de
atitude das jovens meninas, em relação ao seu corpo, enquadrada de acordo com certos
clichês sociais.
Consumo de Objetos
De dezesseis episódios analisados, sete colocam o consumo de objetos no centro
de suas tramas. Neles as jovens personagens se inscrevem e atuam em uma sociedade na
qual “as coisas são ornamentos simbólicos das identidades e ferramentas dos esforços
de identificação [...]” (BAUMAN, 2001, p.100). Identificação que se compõe a partir da
posse momentânea dos objetos (SARLO, 2006). De acordo com as narrativas do
desenho, o ato de consumir objetos transcende a simples aquisição e passa a se
caracterizar “como a apropriação coletiva, em relações de solidariedade e distinção com
Patrícia Ignácio
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O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
outros, de bens que proporcionam satisfações biológicas e simbólicas, que servem para
enviar e receber mensagens” (GARCIA-CANCLINI, 2006, p.70).
A competição estatutária advinda de objetos segue no episódio Dor de Dente,
onde a personagem Clover se compara com Mandy - sua rival de colégio - que já possui
o objeto de consumo que povoou o seu desejo - uma bolsa da Mute. No episódio, a espiã
acredita que Mandy subornou alguém para possuir a bolsa, visto que a compra e a venda
deste produto somente estava em lista de espera.
(As três espiãs aparecem sentadas no pátio da escola).
Clover: Então, eu ainda tô na lista de espera da bolsa exclusiva pra clientes da Mute,
que a irritante da Mandy trouxe ontem.
Alex: Ai!
Clover: Eu sei! É super injusto!
Sam: O que foi Alex? Você tá com dor?
Alex: Tô sim! Eu tô com um dente aqui doendo muito! A sorte é que só dói quando eu
como, falo ou respiro.
(Clover fica furiosa e reclama:)
Clover: Ah! Dá licença! A gente pode voltar pro problema de verdade! A Mandy só
conseguiu a bolsa porque ela subornou o cara. Eu nunca faria uma coisa dessas!
Nesta cena Clover é representada como uma personagem insatisfeita e frustrada
com a falta do produto de seu desejo. Isso porque, a posse da bolsa Mute lhe daria a
garantia de ingresso em seu grupo e de superioridade em relação às demais jovens
personagens do desenho. Visto que, “a corrida para o consumo, a febre das novidades
não encontram sua fonte na motivação do prazer, mas operam-se sob o ímpeto da
competição estatutária”. (LIPOVETSKY, 2005, p. 171).
Conforme Steinberg e Kincheloe (2004):
Obviamente, poder misturado com desejo produz um coquetel explosivo; a
colonização do desejo, no entanto, não é o fim da história. O poder envolve o
consciente e o subconsciente de uma forma que evoca, sem dúvida, desejo,
mas também culpa e ansiedade. (p.21).
Assim sendo, depois que a bolsa colonizou os desejos de Clover, a personagem
não se libertará dos sentimentos de culpa e ansiedade até possuí-la.
Patrícia Ignácio
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O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
Na continuidade do episódio, vemos em destaque a importância e a
“necessidade” de fazer parte da cidadania do mercado.
Sam: Falando em coisas baixas, eu gostaria de saber por que a Mandy veio de ônibus?
(Mandy fica furiosa).
Mandy: Pra sua informação, tô fazendo uma pesquisa pro jornal sobre transporte
público. Ah! Por enquanto dou nota zero!
(Surgem pequenos chifres em Clover).
Clover: Pro ônibus ou pra pesquisa?
(Mandy mostra a bolsa da Mute).
Mandy: Tá com inveja, né? Acho que algumas de nós são exclusivas e outras não são.
(Na seqüência, as espiãs aparecem na lanchonete da escola e visualizam Mandy
comendo um sanduíche).
Mandy: O que é que vocês estão olhando? Acontece que eu não agüento mais a comida
desse lugar. É muito nojenta pro meu gosto refinado!
Sam: Ah! A comida daqui nojenta? Ela tá comendo sanduíche de mortadela!
(No laboratório de Química).
Sam: Meninas, isto é muito estranho! Tão vendo a blusa da Mandy? É igualzinha
aquela que eu doei praquele bazar de caridade de roupas de marca. Eu acho que... Vocês
acham que...
Alex: Que em vez de comprar na Rodeo Drive a Mandy tá comprando num bazar de
caridade?
(...)
Clover: Primeiro ônibus, depois o sanduíche de mortadela, agora isso! Será que a
Mandy tá sem grana?
(Dando continuidade ao episódio).
Mandy: U$ 12 é minha oferta final. É pegar ou largar!
Alex: A Mandy tá fazendo uma “venda de garagem5”?
Clover: Não qualquer “venda de garagem”. Uma “venda de garagem” de Beverly Hills.
Se isso não é sinal de problema financeiro, eu não sei o que é.
Clover: Aaah! A Mandy tá vendendo a bolsa exclusiva por 20 dólares. Ah! Vamos ver
até que ponto o desespero chega.
(Clover se aproxima de Mandy).
Clover: Oi, Mandy! Eu te dou cinqüenta centavos pela bolsa.
Mandy: Até parece! Você sabe que essa bolsa vale 50 mil vezes isso!
Alex: Você tá passando por algum problema financeiro?
Mandy: Não seja ridícula! Eu só tô me livrando de algumas coisas para dar lugar à
nova coleção de outono que eu encomendei. Você vai querer a bolsa ou não?
(A mãe de Mandy aparece gritando).
Mãe da Mandy: Mandy! Você não pode falar com suas amigas! É isso que significa
estar de castigo?
Clover: Castigo?
Mandy: Não, mãe! Elas não são minhas amigas!
Mãe: Nada de desculpas, mocinha! Só vai ter seu cartão e a sua liberdade de volta
quando as notas melhorarem. Já pro seu quarto!
Clover: Isso explica tudinho. Ela não tá sem grana, ela tá sem o cartão de crédito! Eu
não acredito que eu vou dizer isso, mas coitadinha! Esse sim é o pior castigo do mundo!
5
A expressão “venda de garagem” foi traduzida literalmente do inglês garage sail, que se refere a uma
prática comum nos Estados Unidos de vender, em dia marcado, na garagem das casas, objetos em desuso.
Patrícia Ignácio
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O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
Ao final do excerto nota-se um sentimento de compaixão (raro!) de Clover em
relação à Mandy, por não pode utilizar o seu cartão de crédito. Afinal de contas o seu
castigo é o pior castigo do mundo, na sociedade do consumo: Mandy não pode fazer
parte da cidadania do mercado. Uma vez que as identidades, atualmente, configuram-se
no consumo, elas dependem daquilo que se possui, ou daquilo que se pode chegar a
possuir (GARCIA-CANCLINI, 2006).
Em Natal do Mal, a corrida pela posse pioneira dos objetos do consumo volta a
ser o foco. Contudo, neste episódio, o objeto de desejo da personagem Clover passa a
ser a bota Yves Mont Blanc. A trama inicia com as jovens espiãs transitando nos
corredores do shopping Beverly Hills. É época natalina e o shopping se encontra repleto
de enfeites e com uma imensa árvore de Natal. De repente, Clover pára em frente a uma
vitrine e tira fotos de vários presentes em seu celular, para mandar para seus pais que
estão na Europa.
Na seqüência...
Alex: O que é isso? O novo sabor de sorvete sem gordura?
Clover: Não. É Yves Mont Blanc! A marca de sapatos mais fabulosa do planeta!
(Clover tira fotos da bota e se aproxima para pegá-la. Mandy retira as botas da vitrine).
Mandy: Larga essa botinha, otária! A minha mãe vai comprar pra mim o último par
dessas botas.
(Clover arranca as botas das mãos de Mandy).
Clover: Só se for por cima das minhas unhas!
Mandy: São minhas!
(Clover puxa pelo cano da bota, enquanto Mandy puxa pelos pés).
Sam: Ô Clover! Vai arriscar quebrar uma unha por causa de uma bota?
(Ambas puxam e disputam a bota).
Clover: Eu pago o dobro do preço!
Mandy: Eu pago o quádruplo!
Clover: Eu dobro qualquer oferta dela!
Mandy: “Manheee”! Faça alguma coisa!
(Surge a mãe de Mandy ao celular).
Mãe da Mandy: Eu já fiz, Docinho! Eu acabei de comprar a cadeia de lojas nacional
desta marca. E com todas as botas junto.
Mandy: Comprou?
Clover: Não acredito!
Na trama, Clover e Mandy não só disputam a bota Yves Mont Blanc, mas toda a
gama de significados que possa ser evocada pelo produto na sociedade do consumo. No
entanto, como afirma Bauman (1999),
Patrícia Ignácio
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O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
Para aumentar sua capacidade de consumo, os consumidores não devem
nunca ter descanso. Precisam ser mantidos continuamente acordados e em
alerta sempre, continuamente expostos a novas tentações, num estado de
excitação incessante — e também, com efeito, em estado de perpétua
suspeita e pronta insatisfação. (p.91).
Tal fato pode ser comprovado ao final do episódio quando Clover doa sua bota
para Mandy. Na trama, Sam acredita que Clover aprendeu o verdadeiro espírito do
Natal, porém o que ocorre é que de repente, “A marca mais fabulosa do planeta” tem
seus dias contados. Assim sendo, a personagem dá a história um final compreensível
para os “consumidores cidadãos”.
Clover: O espírito do Natal? Hello! Yves Mont Blanc tá fora de moda! Olha esse novo
George Vivaldi, saída das passarelas européias!
(Clover tira de uma caixa de presentes uma bota rosa. Mandy tira as botas Yves Mont
Blanc dos pés e joga-as no chão).
Mandy: Ah! Sua insuportável, tentando me insultar com essas coisas feias!
Clover e Mandy compreendem o valor simbólico que a bota possui e, após sua
obsolescência, sabem desfazer-se dela, já que, conforme Sarlo (2006),
O tempo foi abolido para os objetos comuns do mercado. Não que eles sejam
eternos, e sim por serem inteiramente transitórios. Duram enquanto não se
gastar de todo seu valor simbólico, porque, além de mercadorias, são objetos
hiper-significantes (p.29).
O que se percebe é que na sociedade do efêmero, do obsoleto e das novidades,
“não há linha de chegada óbvia para essa corrida atrás de novos desejos, muito menos
de sua satisfação”. (BAUMAN, 1999, p.87). Mandy enaltece a cultura do efêmero e do
obsoleto e acusa Clover de tê-la insultado “com essas coisas feias”, porque as botas
estavam fora de moda. A espiã a insultou, pois passou a possuir um objeto que lhe dá
um status superior às demais personagens. Nesta disputa, “os objetos, hoje como ontem,
servem para ostentar a opulência de seus possuidores” (FREIRE COSTA, 2005, p. 174)
e colocar as jovens meninas em evidência na sociedade do espetáculo.
Nas tramas da série fica expressa a incitação ao consumo descomedido e
estatutário. Sendo assim, o desenho animado Três Espiãs Demais dissemina um
discurso capaz de enquadrar as coisas essenciais da vida, como “coisas compráveis”.
Repetidos inúmeras vezes, em meio ao lúdico e ao entretenimento, os discursos do
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O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
consumo povoam os desejos dos sujeitos infantis e delimitam suas possíveis ações
enquanto cidadãos e cidadãs.
Consumo de Relacionamentos
Dos dezesseis episódios analisados, oito apresentam os relacionamentos afetivos
como tema central de suas tramas. Neles os relacionamentos se assemelham a produtos
a serem consumidos. Tal afirmação se justifica pela forma como as jovens meninas
demonstram imensa euforia em função da sedução dos jovens meninos, se embrenham
em uma “verdadeira batalha” para a conquista dos mesmos e facilmente os descartam
em função de uma nova e aprimorada conquista. O que parece é que, segundo as
narrativas do desenho, o mundo de uma jovem menina é vazio se não contar com a
presença do masculino. Neste sentido, a afetividade também parece ter se convertido na
busca incansável pelo “consumo” de relacionamentos. Nesta perspectiva, Sam, Alex e
Clover se mostram capazes de qualquer coisa para alcançarem o prazer narcisista da
conquista de jovens meninos socialmente em evidência.
No episódio Encolhe-encolhe, por exemplo, os telespectadores podem aprender
com a espiã Clover instruções sobre como “arrumar” um encontro. Na trama, as espiãs
surgem patinando na praia. Clover, inexplicavelmente, começa a se desequilibrar.
Sam: O que foi? Por que está patinando tão mal?
(Clover se atira nos braços de Alex. Aparece um jovem, com porte atlético, jogando
vôlei. Clover diz:)
Clover: Olha só como se faz!
(Ela patina em direção ao jogador e cai sobre ele).
Clover: Ah! Eu sinto muito! Você está bem?
Rapaz: Ah! Eu estou bem sim! Não se preocupe.
(O clima de romance se estabelece. )
Alex: É, ela é boa!
Sam: É mesmo!
(A cena foca os dois personagens enamorados).
Clover: Ah! Claro! Sexta, à noite, seria perfeito, Jason.
Jason: Ô, legal! Eu pego você às oito.
(Clover patina, perfeitamente, em direção às amigas).
Clover: Vocês viram? Eu vou sair com Jason Robert. A Mandy vai odiar tanto! Ela se
acha dez e quer sempre ter um menino.
Como uma espécie de “manual” Clover mostra às jovens meninas
telespectadoras “como se faz” para “arrumar” um encontro com um belo jovem menino.
Nesta cena, Clover aproveita para se vingar e se exibir para a sua rival Mandy que,
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como toda a jovem menina, “[...] quer sempre ter um menino”. Um jovem que, como
mercadoria, não possui identidade fixa. Assim sendo,
Consideradas defeituosas ou não “plenamente satisfatórias”, as mercadorias
podem ser trocadas por outras, as quais se espera que agradem mais, mesmo
que não haja um serviço de atendimento ao cliente e que a transação não
inclua a garantia de devolução do dinheiro (BAUMAN, 2004, p.28).
A força de atração que os personagens masculinos exercem sobre as jovens
meninas espiãs pode também ser observada, no episódio Garotas do Vale do Silício. Na
trama, as jovens heroínas são enviadas à Itália para proteger um professor de ginástica,
atacado por dispositivos computadorizados.
Durante o episódio, enquanto Sam, Alex e Clover interrogam o professor de
ginástica, três belos jovens meninos se aproximam e trocam olhares com Clover. Um
deles acena para a espiã. Clover levanta e sai saltitando em direção aos garotos.
Sam: É isso! O treinador pegava no pé dos garotos numa escola e o Bret noutra!
(Sam em primeiro plano. Clover, em segundo plano, é jogada várias vezes para o alto,
nos braços de três belos rapazes).
Sam: Pessoal! Se por acaso forem ambos o mesmo garoto que está agora no Vale do
Silício?!
(Sam percebe o que está acontecendo com Clover e faz uma expressão de desaprovação.
Alex caminha em direção a Clover).
Alex: Hum! Hora de fazer uma visita ao Vale do Silício. No caminho a gente deixa o
treinador na WOOHP.
(Quando Alex se aproxima, os garotos colocam Clover no chão. Alex pega Clover pela
mão. Clover fica olhando para trás e abanando para os garotos. Os jovens demonstram
expressões de decepção).
Sam: Vem Clover!
O que parece estar claro na narrativa do desenho é que, em meio à resolução da
missão mundial, Clover tem algo mais importante a fazer, conhecer e conquistar belos
garotos.
No episódio É o jeito como se joga, a disputa passa a ser entre as três espiãs. Na
trama, as jovens meninas se encontram no corredor da escola e, ao mesmo tempo, dizem
que estão apaixonadas. Contudo, um “pequeno” problema acaba por provocar uma
grande confusão, as três estão apaixonadas pelo mesmo garoto.
Clover: Por que vocês duas estão olhando pro meu verdadeiro amor, hein?
Alex: Seu verdadeiro amor? O David é o cara de quem eu tava falando!
Sam: Bem, eu o inspirei intelectualmente!
Patrícia Ignácio
1099
O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
Alex: Até parece! A gente quase deu a mão na corrida de revezamento!
Clover: Alex, Sam, olha só pra vocês, competindo por um cara, quando, obviamente,
ele gosta de mim!
Sam: Veremos isso!
Alex: É! Vale tudo no amor e na...
“... guerra”. Vale até mesmo transformar suas amigas em rivais. Vale disputar
cada minuto, cada espaço, sem pensar nas conseqüências.
No momento em que discutem, as espiãs são sugadas para a WOOHP. Jerry
apresenta-lhes mais uma missão. Clover contesta:
Clover: Deixa eu entender isso direito. Você nos arrancou do David por causa de uns
joguinhos bobos?
A espiã considera os Jogos Olímpicos de Inverno “bobos”. Isso porque, as
heroínas têm algo mais importante para resolver: quem ficará com David. Durante a
missão, por inúmeras vezes, as amigas, agora rivais, fazem provocações em relação ao
jovem David, chegando, em certos momentos, a se afastar. Após a resolução da missão,
as espiãs voltam para a escola, encontram David e exigem do jovem uma decisão.
Clover: David! Não pode deixar a gente esperando para sempre! Precisamos saber de
qual você gosta!
David: Ã? Mas como assim? Eu gosto de todas!
Alex: Nã, nã, nã, nã, não! A gente quer saber de qual de nós você gosta! Sabe?
David: Ah!
Sam: Queremos que escolha uma de nós!
David: A gente não escolhe uma garota como se fosse um produto em uma prateleira!
Clover: A gente não se importa! Vá em frente! Diga a elas que sou eu!
David: Clover, Sam, Alex, por favor! Vocês são todas ótimas! Eu não tenho como
escolher uma entre vocês. Sinto muito!
“Como se fosse(m) um produto(s) em uma prateleira” as personagens exibem-se
para serem escolhidas. Como afirma Clover “A gente não se importa!”. De acordo com
a narrativa do desenho o ato de selecionar relacionamentos como se estivessem em
prateleiras, é prática “normal” entre as jovens meninas contemporâneas.
Tomando por base o princípio de que “homens e mulheres internalizam as
construções sexistas” (MORAES, 2002 p. 28) e que ser feminina emerge na relação
com o que se diz sobre sê-la, é possível considerar que os discursos apresentados pela
série de desenho animado Três Espiãs Demais acabam por se constituir em uma
extraordinária pedagogia, ensinando milhares de telespectadores um jeito socialmente
Patrícia Ignácio
1100
O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
aceitável de ser jovem menina, na sociedade do consumo. Lições que muitas das alunas
têm compreendido com surpreendente facilidade e reproduzido na cena escolar.
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Patrícia Ignácio
1101
O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades
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Paulo: Summus, 2004.
Episódios do desenho: TRÊS ESPIÃS DEMAIS
DOR DE DENTE. TV Xuxa. Rio de Janeiro: Rede Globo, 01 maio. 2006. Programa de
TV.
BISCOITOS DA PAIXÃO. TV Xuxa. Rio de Janeiro: Rede Globo, 08 maio. 2006.
Programa de TV.
ENCOLHE-ENCOLHE. TV Xuxa. Rio de Janeiro: Rede Globo, 01 jun. 2006. Programa
de TV.
ENCOLHEU A CABEÇA. TV Xuxa. Rio de Janeiro: Rede Globo, 05 jun. 2006.
Programa de TV.
A ILHA WOOHP. TV Xuxa. Rio de Janeiro. Rede Globo: 18 jul. 2006. Programa de
TV.
GAROTAS DO VALE DO SILÍCIO. Três Espiãs Demais. Rio de Janeiro, Canal Jetix,
25 nov. 2006. Programa de TV.
Patrícia Ignácio
1102
O Desenho Animado na Cena Escolar: Produção e Reprodução de Identidades Femininas
CIDADÃS MODELO. Três Espiãs Demais. Rio de Janeiro: Canal Jetix, 18 dez. 2006.
Programa de TV.
NATAL DO MAL. Três Espiãs Demais. Rio de Janeiro: Canal Jetix, 23 dez. 2006.
Programa de TV.
NASCE UMA ESPIÃ. Três Espiãs Demais. Rio de Janeiro, Canal Jetix, 03 jan. 2007.
Programa de TV.
É O JEITO COMO SE JOGA. Três Espiãs Demais. Rio de Janeiro: Canal Jetix, 23 fev.
2007. Programa de TV.
MANIA DE MANICURE. TV Xuxa. Rio de Janeiro: Rede Globo, 04 abr. 2007.
Programa de TV.
Patrícia Ignácio
1103
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
PRÁTICAS CURRICULARES DE PROFESSORES
RELATADAS NO JORNAL ELETRÔNICO: O
TRABALHO COM EDUCAÇÃO E IMAGEM
Rosângela Lannes Couto Cordeiro
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Práticas Curriculares de Professores Relatadas no Jornal Eletrônico: o Trabalho com Educação e Imagem
PRÁTICAS CURRICULARES DE PROFESSORES RELATADAS NO
JORNAL ELETRÔNICO: OTRABALHO COM EDUCAÇÃO E IMAGEM
Rosângela Lannes Couto Cordeiro - PropEd/UERJ
RESUMO: Pesquisar os usos do jornal eletrônico Educação & Imagem, feito por
professores da rede pública, nos dá a oportunidade de refletir sobre o currículo que tem
sido tecido cotidianamente por meio das práticas relatadas pelos docentes que são
usuários deste jornal. O Jornal Eletrônico foi criado em 2006 e está vinculado ao
programa de Pós-graduação em Educação da UERJ e a ao Laboratório de Pesquisa
Educação de Imagem. Tem como objetivo colocar à disposição de professores e leitores
- professores ou não- os resultados de pesquisas sobre imagens e educação. Dois artigos
do jornal serão usados no desenvolvimento deste trabalho, estes foram escritos por dois
professores para a seção Voz do Docente. Neste espaço se pode observar mais
claramente as práticas curriculares que têm sido tecidas cotidianamente por meio das
atividades que descrevem nos textos enviados para o jornal. Analisando os artigos
enviados, observamos que, mesmo seguindo as orientações dos materiais curriculares
indicados pelas secretarias, professores e alunos estão em um contexto de experiência
curricular cotidiana e os usos que fazem destes materiais de acordo com as suas próprias
práticas que vivenciam dentrofora das escolas lhes possibilitam que teçam alternativas
deste currículo formal, ou seja, dentro destes espaçostempos há muitos currículos sendo
criados.
PALAVRAS-CHAVE: Práticas curriculares- jornal eletrônico- cotidiano.
Prefiro dizer que currículos em redes já estão em andamento
hoje,
na
medida
em
que,
cotidianamente,
estamos
‘mergulhados’ nas nossas inúmeras redes de contato e
criação de conhecimentos e que elas continuam existindo em
cada um de nós e em nossos alunos e alunas quando entramos
nas escolas nas quais trabalhamos e estudamos. São elas que
nos fazem escolher este ou aquele conteúdo, esta ou aquela
forma de trabalhar a maneira de nos relacionarmos com os
colegas e com os alunos, elas dão significado ao que os
alunos e alunas conseguem aprender porque fazem algum
trançado com suas redes próprias. Desse modo, entendo que o
movimento hoje necessário não é fazer uma proposta
curricular em rede, mas sim fazer emergir as tantas redes
trançadas cotidianamente que estão submersas.
(Macedo, 2004:56-57)
Rosângela Lannes Couto Cordeiro
1107
Práticas Curriculares de Professores Relatadas no Jornal Eletrônico: o Trabalho com Educação e Imagem
Pesquisar os usos do jornal eletrônico Educação & Imagem, feito por
professores da rede pública, nos dá a oportunidade de refletir sobre o currículo que tem
sido tecido cotidianamente por meio das práticas relatadas pelos docentes que são
usuários deste jornal.
O Jornal Eletrônico foi criado em 2006 e está vinculado ao programa de Pósgraduação em Educação da UERJ e a ao Laboratório de Pesquisa Educação de Imagem.
Tem como objetivo colocar à disposição de professores e leitores - professores ou nãoos resultados de pesquisas sobre imagens e educação.
Dois artigos do jornal serão usados no desenvolvimento deste trabalho, estes
foram escritos por dois professores para a seção Voz do Docente. Neste espaço se pode
observar mais claramente as práticas curriculares que têm sido tecidas cotidianamente
por meio das atividades que descrevem nos textos enviados para o jornal.
Os estudos desta pesquisa estão relacionados àquelas que se desenvolvem nos
estudos nos/dos/com os cotidianos, o que nos tem permitido compreender as múltiplas
redes de relações e significados que se dão nos múltiplos cotidianos em que vivemos.
Sendo assim, cremos que o conhecimento é tecido através dos usos e práticas
que os seres humanos criam em seus cotidianos de uma forma diferente do que nos foi
ensinado, na modernidade pela ciência. Por isso, investigar e estudar a relação dos
praticantes que trabalham com a questão da narrativa e imagem, bem como a utilização
dos chamados artefatos culturais nos permite através do jornal eletrônico, conhecer as
práticas curriculares que estes professores têm desenvolvido.
É importante ressaltar que os relatos destes docentes se dão dentro do
espaçotempo1 do jornal eletrônico, e estes são desde professores do meio universitário a
professores de escolas municipais, bem como leitores interessados na temática educação
e imagem.
Analisando os artigos enviados, observamos que, mesmo seguindo as
orientações dos materiais curriculares indicados pelas secretarias, professores e alunos
estão em um contexto de experiência curricular cotidiana e os usos que fazem destes
materiais de acordo com as suas próprias práticas que vivenciam dentrofora das escolas
1
No grupo de pesquisa, o uso desses termos, como de outros, nessa escrita aglutinada tem o sentido de
mostrar os limites que o modo dicotomizado da ciência moderna coloca às definições desenvolvidas.
Rosângela Lannes Couto Cordeiro
1108
Práticas Curriculares de Professores Relatadas no Jornal Eletrônico: o Trabalho com Educação e Imagem
lhes possibilitam que teçam alternativas deste currículo formal, ou seja, dentro destes
espaçostempos há muitos currículos sendo criados.
Macedo (2004) no livro Criar Currículo no Cotidiano chama a atenção quanto a
não confundir essa diversidade de currículos sendo criados com uma mistura caótica de
aspectos desarticulados, pois há uma complexidade que se dá neste processo e que se
constitui
em um desafio contra a mutilação que a falta de conhecimento dos saberes do
outro nos causa, permitindo-nos trabalhar numa perspectiva de recuperação e
reconhecimento
das articulações negligenciadas em função do excesso de
cortes entre as disciplinas, entre categorias cognitivas e entre os tipos de
conhecimento, entre espaçostempos de aprender a ensinar. (Macedo 2004: 66
e 67)
Dentro deste contexto, apresento o 1° texto, o artigo Imagens e palavras: vamu
discuti a relaçaum, escrito por Simões (2008) para a edição n°2 do jornal. Essa escolha
se deu devido às constatações, indagações e experimentações que o professor de
português relata a partir da observação feita de seus alunos, que por estarem habituados
a interagir com a internet, trazem consigo ecos de uma linguagem recebida através do
contato que eles têm com a Rede, e que isto reflete em sua escrita que se apresenta cheia
de signos, símbolos, abreviaturas, imagens etc. (Simões, 2008)
Interessante é o fato de como o professor trata desta questão dizendo que essa
transposição, muitas vezes causa um estranhamento no universo escolar, calcado numa
perspectiva de trabalho com a língua a partir da sua normatividade. O fato de o
professor ter colocado em questão o estranhamento que pode haver no universo escolar
com essas formas de escrita se explica pela existência do pensamento baseado a partir
da metáfora da árvore2 quanto à criação dos conhecimentos nas escolas, nos indicando
que há uma visão critica da mesma nesse espaçotempo.
2
As pesquisas baseadas nos estudos nos/dos/com os cotidianos trabalham com a necessidade de superar a
maneira de pensar alicerçada na metáfora da árvore (Lefebvre, 1983), em que o conhecimento se dá de
forma ordenada, linear e hierarquizada, passando por um único e coativo trajeto, que vai de um ponto a
outro do processo de conhecer. Engajamo-nos a pensar nossos estudos com as múltiplas maneiras em que
se dá o conhecimento, em redes e semi-redes, em que na relação com o outro e com o mundo somos
tomados em conta de que o conhecimento se dá em trocas sociais múltiplas, não como um caminho único
e hierarquizado, mas por meio das conexões que temos feito em nossa prática social.
Rosângela Lannes Couto Cordeiro
1109
Práticas Curriculares de Professores Relatadas no Jornal Eletrônico: o Trabalho com Educação e Imagem
Ao entrar em contato com as criações dos alunos, o docente inicia uma série de
questionamentos quanto à inserção da imagem nos textos de seus alunos e como isso se
reflete em sua escrita. No decorrer do texto o professor explica que trabalhou com os
alunos a temática sobre o relacionamento deles com o mundo tecnológico e que, a partir
disto, pudessem escrever textos verbais e não-verbais. Assim, dentro da perspectiva
quanto ao uso que faz dos artefatos tecnológicos, o docente relata o que tem visto e se
pergunta:
meus olhos percebem a invasão do cotidiano pela internet com sites,
blogs, flogs, orkut e softwares educativos que juntos compõem as novas
tecnologias do mundo contemporâneo, obrigando-nos a repensar a
relação histórica entre oralidade, textos, escrita e imagem. Na internet,
palavras e imagens se revezam na criação de uma nova expressividade –
veloz, intensa, dispersa e simultânea. Criar novos signos na linguagem é
produzir pensamento na escola? Qual o significado desta nova
combinação entre imagens e palavras? Em que medida esta linguagem
pode significar fruição e conhecimento? Muito mais do que encapsular
respostas, a expectativa é de suscitar questionamentos que nos levem a
repensar sobre este fato lingüístico/imagético, contribuindo assim, à
reflexão de linguagem no mundo contemporâneo. (Simões, 2008)
Esta fala nos possibilita dizer que o professor, através de sua narrativa, é um
praticante3 que, em suas ações, cria currículo em seu cotidiano. Os questionamentos
que faz estão com ele, porque são tecidos em suas ações pedagógicos anteriores nas
relações com seus alunos e no dia-a-dia que vivenciam dentrofora da escola.
Narrando suas práticas, relata como foi o processo de abertura para o que lhe
causara estranhamento. Começou traduzindo o internetês e propôs para que os alunos
lhe apresentassem uma lan house.4 A prática relatada e a interação dele com os alunos e
dos alunos com ele possibilitou uma trama de ensinoaprendizagemensino:
3
O termo de Certeau (1994) é usado para aquele que vive as práticas/táticas cotidianas.
4
É importante dizer que mesmo muitos alunos não possuindo computadores em suas casas, muitos deles tiveram seus
primeiros contatos com o mundo virtual nestes espaços chamados de lan houses. Onde se paga um valor por hora
para ter acesso à internet de acordo com o tempo de uso.
Rosângela Lannes Couto Cordeiro
1110
Práticas Curriculares de Professores Relatadas no Jornal Eletrônico: o Trabalho com Educação e Imagem
tentar traduzir o “internetês” trazido pelos alunos e convidá-los a que
me apresentassem uma lan house, foram meus primeiros sinais de
abertura ao estranhamento – contando, para isso, com a ajuda de um
dicionário e dos próprios alunos. blz. np. Daí nasceu o desejo de
conhecer as produções escritas dos alunos na sua vida social, tanto para
melhor conhecê-los quanto para poder compreender as transformações
da linguagem, vista como produção humana. qd? Já é.
Fui convidado a participar do Orkut de uma turma de alunos. É uma
comunidade virtual que preza a amizade, mensagens de bom humor,
sugestões de restaurantes e parques, avisos de provas agendadas,
comentários do período de greve. (...)
Para se apresentarem em suas páginas, escolhem a sua melhor foto,
tirada recentemente e registram nos seus perfis um pouco do que
gostariam de falar sobre eles mesmos. Entre fotos e palavras, sua
história e seus desejos ganham forma. Uma aluna, por exemplo, escreve
que se pudesse prever o futuro, gostaria de saber qual é o destino
daqueles que fazem acreditar que são confiáveis, amigos e sinceros, mas
acabam decepcionando. Ela gostaria de entender o que está mudando
nela e o motivo desta mudança. A aluna registra suas paixões na vida
(família, amigos); seu livro preferido (O Código da Vinci), sua melhor
música (Strani Amori) e cinema (Um amor para recordar). Muitas vezes
é nesse espaço público e virtual que ganham visibilidade questões
invisíveis à família e à escola. (Simões, 2008)
No trecho acima, o professor comenta sobre como estes alunos se
apresentam em páginas do Orkut, escolhem a melhor foto, entre fotos e palavras falam
sobre eles mesmos e se sentem à vontade para falar sobre suas histórias. E ainda,
percebe que, dentro deste espaçotempo, muitas vezes negligenciado pelos currículos
formais, questões não vistas pela escola e família ganham visibilidade. A partir destas
constatações, o professor desafia seus alunos a criarem composições com linguagem
Verbal e Não- Verbal e neste processo, se impressiona com a riqueza de textos de seus
alunos, pois, verificou que curiosamente, a riqueza dos textos e o domínio da norma
culta eram enfrentados com a mesma propriedade com que faziam charges, colagens,
desenhos etc.
Rosângela Lannes Couto Cordeiro
1111
Práticas Curriculares de Professores Relatadas no Jornal Eletrônico: o Trabalho com Educação e Imagem
A experiência deste professor nos faz refletir sobre o uso da tecnologia, bem
como a nossa interação e criação que fazemos com/e a partir dela. Alves (2006) nos
apresenta o termo ‘tecnologia’ como
a maneira de trabalhar com os artefatos culturais nos tantos ‘usos’ que
deles fazemos, cotidianamente, para além das ‘indicações pensadas que
existem nos manuais. Assim, nesse modo de pensar, criamos, de forma
permanente, tecnologias no uso de artefatos culturais, velhos ou novos
(Alves, 2006:164).
Martín-Barbero (2000) em seu artigo Novos regimes de visualidade e
descentramentos culturais nos provoca a pensar em como as maiorias da América
Latina têm se incorporado à modernidade a partir de discursos, narrativas, dos saberes e
linguagens da indústria e da experiência audiovisual. E isto pode nos soar escandoloso,
ou como afirmou o professor Simões nos causa um estranhamento, pois, devido a nossa
forma hierárquica de pensar e conceber o conhecimento, esta incorporação se daria por
meio dos livros, mediação que já não se apresenta mais como forma dominante de se
obter o saber.
Este fato nos instiga a pensar em como tem ocorrido em nossa sociedade estes
novos regimes de sentir e de saber, que passam pela imagem catalisada pela televisão e
o computador (Martín-Barbero, 2000) o que provoca um conflito principalmente no
meio intelectual e nos sistemas educativos, pois
a cumplicidade e a interpenetração entre oralidade cultural e linguagens
audiovisuais não remetem nem às ignorâncias, nem ao exotismo do
analfabetismo, mas a descentramentos culturais.( Martín-Barbero, 2000:84)
Neste sentido, relacionando a experiência relatada pelo professor de perceber
uma invasão do cotidiano da internet em sua experiência escolar e extra-escolar, bem
como seus questionamentos quanto a incorporação destes conhecimentos ao contexto
curricular, nos possibilita dizer que estas práticas narradas nada mais são que exemplos
de reconhecimento de que o saber não se apresenta de uma forma estagnada e acabada,
ele está sempre em movimento, através dos usos e das criações dos elementos que
tomamos do mundo. Já que o conhecimento não é estático, os processos que compõem
Rosângela Lannes Couto Cordeiro
1112
Práticas Curriculares de Professores Relatadas no Jornal Eletrônico: o Trabalho com Educação e Imagem
o currículo também não devem ser. Gimeno Sacristán (1995) afirma que o currículo
surge de uma série de processos e que deve ser entendido:
mais que como um objeto delimitado e estático que se pode planejar e depois
implantar; aquilo que é na realidade, a cultura nas salas de aula fica
configurado em uma série de processos: as decisões prévias acerca do que se
vai fazer no ensino, as tarefas acadêmicas reais que são desenvolvidas, a
forma como a vida interna nas salas de aula e os conteúdos de ensino se
vinculam com o mundo exterior, as relações grupais, o usos e o aproveitamento
de materiais, as práticas de avaliação etc. (Gimeno Sacristán,1995:86-87)
O uso da fotografia em sala de aula e as formas de aprender.
O segundo texto no qual iremos nos focar se chama A fotografia como recurso
de motivação a aprendizagem - edição n° 10, seção Voz do docente- junho 2009escrito pela professora de Educação Infantil Camila de Oliveira
A autora procura refletir sobre a possibilidade de se praticar um ensino voltado à
pesquisa, buscando uma proximidade entre teoria e prática. Utiliza a fotografia como
técnica de obtenção de dados para a sua pesquisa, durante o trabalho cotidiano.
Considera o uso da fotografia em situações de ensino como uma prática investigativa, e
também como um recurso motivador capaz de dialogar com diversas esferas do
conhecimento. Para ela
essa prática tem caráter mediador e interdisciplinar, importante contribuição
para uma prática que se proponha participativa. Além disso, permite uma
observação e avaliação das relações estabelecidas pelas crianças. (Oliveira,
2009)
Tentar compreender a relação que as crianças mantêm com as tecnologias que
têm ao seu dispor, fazendo uso delas, é tarefa, também, de nós professores. Pois a escola
é um espaço de socialização onde as crianças criam inúmeras mediações e sentidos para
aquilo que vêem, lêem, assistem. Assim, através do uso que fazem da imagem, em
Rosângela Lannes Couto Cordeiro
1113
Práticas Curriculares de Professores Relatadas no Jornal Eletrônico: o Trabalho com Educação e Imagem
forma de fotografias, podemos refletir sobre o lugar que estes artefatos tecnológicos
ocupam na vida das crianças.
Se pararmos para analisar, vemos que, ultimamente, temos a imagem como
ferramenta indispensável em nossos meios de comunicação, pois aprendemos a pensar
com imagens, não de maneira exclusivista, mas em conexão com palavras e sons, ou
seja, integradas em forma de multimídia. E nós, ‘leitores’ destas imagens temos
interagido com elas e desenvolvido formas de ‘leituras’ a partir da nossa prática social.
Esta prática tem se dado de uma forma tão veloz quanto elas têm aparecido. É
importante dizer que neste processo não agimos passivamente, estamos produzindo
saberes a partir da interação que temos com elas. Assim, a cada momento que
interagimos com estas imagens criamos conhecimentos por meio de nossa(s) ‘leitura(s)’
e de nossos usos, ressignificando o espaçotempo em que aparecem de acordo com as
nossas redes de conhecimento e significações e de nossas memórias. Pensando neste
processo, vemos que o conhecimento que temos tecido nesta conjuntura da modernidade
tem se dado a partir do contato de consumo de imagens, produção de imagens, aceitação
(ou não) das imagens, convergência de ideologias presentes nestas imagens, criação de
novas imagens e novo sentido das antigas. Se observarmos, temos feito vários usos e
inventado uma série de produtos a partir desta realidade visual e por meio deles temos
reinventado a cada dia nossas práticas. Estes usos permeiam nosso dia-a-dia e a nossa
maneira de ser e de pensar. Neste sentido, podemos deduzir que criamos outras formas
de expressão e compreensão por meio desta realidade audiovisual.
Assim, é importante analisar a observação que a professora faz a partir de seu
cotidiano e dos alunos. A professorapesquisadora afirma que
as novas tecnologias fazem parte do cotidiano de todos nós. A escola
está dentro deste contexto. Com o rápido avanço das novas tecnologias,
as formas de aprender têm se modificado, proporcionando ao educador
movimentos de busca de novos recursos para enriquecer a sua prática.
Neste sentido, a fotografia pode ser uma forma de estímulo para as
crianças. Oliveira (2009)
Rosângela Lannes Couto Cordeiro
1114
Práticas Curriculares de Professores Relatadas no Jornal Eletrônico: o Trabalho com Educação e Imagem
A preocupação da professora com o desenvolvimento das novas tecnologias a
leva a observar que é necessário buscar outros recursos para enriquecer sua prática. Ela
o faz através do uso da fotografia como forma de estímulo para aprendizagem. As
palavras novas tecnologias, novos recursos, enriquecer, estímulo e motivação
(denominação que dá ao uso que faz do recurso fotográfico), nada mais são que verbetes
que têm aparecido cada vez com mais freqüência nos relatos dos professores. Vejo isto
como reflexo da interação dos professores com um público de alunos que mais que na
escola é na televisão, captada por antena parabólica e que experimenta uma forte
empatia com o idioma das novas tecnologias (Martín-Barbero, 2000).
Podemos
exemplificar isto em seu relato, pois mesmo se tratando de uma turma de Educação
Infantil os alunos, crianças de 5 anos,
sinalizavam sobre suas experiências (ou não) na ação de fazer fotografias.
Dos 16 alunos, todos já haviam fotografado e 14 tinham máquina fotográfica
em casa. Oliveira (2009)
O desenvolvimento cognitivo e social dos alunos com esta atividade se
desenvolveu de forma interessante, pois os alunos foram capazes produzir e analisar
imagens a partir da relação entre o “eu”, a “imagem-fotografia” e o “outro”. E para isto
cada uma recebeu a câmera digital e realizou suas fotografias a partir de alguns
combinados: número de fotos a serem tiradas, tempo disponibilizado para que cada
criança fotografasse “seus cenários”, critérios para a escolha das fotos que comporiam o
DVD da turma. Com esta atividade, as crianças tiveram a experiência de, mesmo
partindo de parâmetros combinados entre eles, registrar cada uma a sua maneira o
melhor ângulo de como se vê e como vê o outro. E durante o processo de elaboração do
DVD, participaram de uma discussão coletiva demonstrando critérios de escolha do que
consideravam ser a “sua melhor fotografia” A partir desta experiência, Oliveira
considera que a fotografia valoriza o sentimento de igualdade na medida em que as
oportunidades são iguais e também celebra as diferenças que tornam cada pessoa
única no mundo. Oliveira (2009)
Os artigos dos professores escolhidos para o desenvolvimento deste texto e o
diálogo que fizemos sobre o as práticas curriculares por eles realizadas nos abrem
Rosângela Lannes Couto Cordeiro
1115
Práticas Curriculares de Professores Relatadas no Jornal Eletrônico: o Trabalho com Educação e Imagem
caminhos para pensar em como tem se dado a nossa incorporação com conhecimentos
que não provêm apenas dos livros e das atividades indicadas pelos currículos formais.
No relato de suas práticas estes docentes colocam suas marcas no ‘uso cotidiano’
que fazem deles (Alves, 2006) apropriando-se ou não destes materiais propostos
‘inventam’, nesse ‘uso’, novas formas de usar mais apropriadas às suas
necessidades do que as que são indicadas nos manuais, com isso criando,
permanentemente, novas tecnologias, que não são, necessariamente, possíveis
de serem usadas por outros, mas tendo muitas vezes essa condição. (Alves,
2006:164)
O olhar destes professores, bem como o processo de ensinoaprendizagem que
ocorre durante o planejamento, a execução e a avaliação que fazem das atividades
relatadas demonstram uma recuperação da unidade dialética teoria-prática. Em todo
tempo articulamos diferentes áreas dos nossos conhecimentos, a reflexão e o
compartilhar sobre o que tem acontecido durante o desenvolvimento destas práticas nos
possibilita, sempre, a redefinir métodos e categorias que usamos dentro deste
movimento de criação, uso e apropriação do saber.
Referências Bibliográficas
Rosângela Lannes Couto Cordeiro
1116
Práticas Curriculares de Professores Relatadas no Jornal Eletrônico: o Trabalho com Educação e Imagem
ALVES, Nilda ; GARCIA, Regina Leite. A construção do conhecimento e o currículo
dos cursos de formação de professores na vivência de um processo. In: Nilda Alves.
(Org.). Formação de professores: Pensar e fazer. 10 ed. São Paulo: Cortez, 2008, v. 1,
p. 73-88.
________. Decifrando o pergaminho – o cotidiano das escolas nas lógicas das redes
cotidianas. In OLIVEIRA, Inês Barbosa de; ALVES, Nilda (orgs). Pesquisa no/do
cotidiano das escolas – sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p.13 – 38
________. Escola e cultura contemporânea - novas práticas, novas subjetividades,
novos saberes em torno de artefatos culturais. In: SOMMER, Luis Henrique; BUJES,
Maria Isabel Edelmeiss (orgs.). Educação e cultura contemporânea: articulações,
provocações e transgressões em novas paisagens. 1 ed. Canoas: ULBRA, 2006, v. 1, p.
163-175.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano – 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes,
1998.
GIMENO SACRISTÁN, J. Currículo e diversidade cultural. In: SILVA, T. T. e
MOREIRA, A. F. (orgs.) Territórios contestados: o currículo e os novos mapas
políticos e culturais. Petrópolis: Vozes, 1995.
MACEDO, Elisabeth. Dia 28 de abril, terceira discussão: a hora e a vez dos currículos
(e de alguma coisa mais). In: OLIVEIRA, Inês Barbosa de; MANHÃES, Luiz Carlos;
ALVES, Nilda (orgs.). Criar currículo no cotidiano. 2.ed. SãoPaulo: Cortez: 2004.
OLIVEIRA, Camila. A fotografia como recurso de motivação a aprendizagem Jornal
eletrônico: Educação & Imagem, ano 3 – número 10 – junho 2009 – www.labeduimagem.pro.br/jornal
SIMÕES, Robson Fonseca. Imagens e palavras: vamu discuti a relaçaum. Jornal
eletrônico: Educação & Imagem, ano 1 – número 2 – jun-jul/2007 – www.labeduimagem.pro.br/jornal
Rosângela Lannes Couto Cordeiro
1117
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
ESPECIFICIDADES DA MODALIDADE DE ENSINO
A DISTÂNCIA E “COMPETÊNCIAS DIDÁTICAS”
DESEJÁVEIS A AÇÃO DE TUTORIA
Roseline Nascimento de Ardiles
Roseane Nascimento da Silva
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria
ESPECIFICIDADES DA MODALIDADE DE ENSINO A DISTÂNCIA E
“COMPETÊNCIAS DIDÁTICAS” DESEJÁVEIS A AÇÃO DE TUTORIA
MSc Roseline Nascimento de Ardiles
MSc Roseane Nascimento da Silva
RESUMO: Como a característica principal da Educação a Distância são as ferramentas
didático-pedagógicas utilizadas, pois estas são de natureza eletrônica e tecnológica,
utilizando sistemas organizacionais e administrativos especiais e, o próprio componente
da distância estabelecida entre os atores do processo ensino-aprendizagem, faz-se mister
evidenciar quais são os elementos necessários para a viabilização coerente e eficaz desta
modalidade de ensino, no que se refere às competências, conhecimentos e habilidades
necessários aos professores e estudantes nos exercícios de seus papéis. Para tanto,
realizou-se um estudo bibliográfico cujo objetivo fora verificar quais os tipos de
competências, conhecimentos e habilidades são requeridos para essa modalidade de
ensino a distância.
PALAVRAS-CHAVE: educação à distância; didática; competências; habilidades.
Referencial Teórico
Nos últimos anos, com o processo gradual crescente de inclusão educacional e
digital faz emergir desafios a educação escolarizada no Brasil, de um modo geral e,
outros mais específicos relacionados à educação online. Assim, fica mais evidente a
preocupação em torno de um modelo pedagógico que corresponda às demandas postas
pelo social, pelos processos de ensino-aprendizagem desenvolvidos na Educação à
Distância (EaD).
Desse contexto, constata-se o fato de está se estruturando na educação on line um
espaço pedagógico peculiar baseado no desenvolvimento de competências e habilidades
específicas, de respeito ao ritmo individual, a formação de comunidades de
aprendizagem, e redes de convivência (Behar, 2005, citado Behar Passerino e Bernardi
2007).
Assim sendo, a modalidade de EaD apresenta uma coleção de ferramentas para
criação de material educacional, que inclui a criação de aplicativos (texto, imagem, etc)
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1121
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria
com ferramentas para gerenciamento do desenvolvimento do aluno, testes, avaliações e
trabalhos extra classe (Moore e Kearsley, 1996). Com relação ao profissional da
educação na EaD, verifica-se que há vários tipos de docentes: o que elabora o material
didático, o tutor presencial, o tutor que atua totalmente a distância. Lembrando que o
tutor é um mediador, dá suporte e atua como orientador da aprendizagem dos alunos.
Deste modo, verifica-se que as ferramentas e o ambiente de aprendizagem da EaD
são de natureza distinta ao ensino presencial. Contudo, ressalta-se que na EaD evidencia
características em comum com essa modalidade de ensino, tais como: as ações dos
tutores/professores na Ead são executadas em função das ações dos alunos; as situações
de aprendizagem na EaD também podem ser feitas no presencial, caracterizando-se
como semipresencial; a comunicação é facilitada por meios impressos, eletrônicos,
mecânicos e outros, beneficiando-se do planejamento, direção e instrução da
organização do ensino como também é realizado no ensino presencial.
Ressalva-se, que embora haja distância física na educação à distância, há
comunicação e interação, pois a figura do professor (tutor) continua e permanece,
continuando com a necessidade de problematizar, de mediar à relação entre o aluno e o
conhecimento. Além dessas semelhanças, destaca-se ainda que, como nas demais
modalidades de educação escolarizadas, a EaD também se utiliza de:

postura pedagógica baseada nos princípios democráticos e éticos;

definição flexível de opções metodológicas;

utilização / adaptação de recursos adicionais, de acordo com o perfil dos
alunos a ser atendida no curso, não se resumindo a simples métodos
estáticos de ensino;

consideração da pluralidade cultural dos alunos, entre outros aspectos;
Deste modo, constata-se que continuam sendo importantes e fundamentais as
competências, os conhecimentos e as habilidades já conhecidos e, portanto, utilizados e
requeridos no ensino presencial. Contudo, apesar das semelhanças existentes nessas
duas modalidades de ensino, há diferenças significativas entre ambas e, por isso, faz-se
necessário adquirir novos conhecimentos, novas competências e novas habilidades.
Primeiramente saber quais são as diferenças entre essas modalidades de estudo. A esse
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1122
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria
respeito, Oliveira, Ferreira e Dias (s/d), apresentaram algumas diferenças dessas
modalidades de ensino, e estas serão discutidas ao longo do texto a seguir.
Semelhanças e diferenças na educação presencial e na Educação à Distância
Interação
Segundo esses autores, na educação presencial o centro geográfico de ensino é a
sala de aula; esta considerada como o lócus privilegiado das interações e da deflagração
das aprendizagens. Neste ambiente de aprendizagem demandaria, segundo os autores,
estratégias didáticas de natureza presencial, em outras palavras, exigiram estratégias
didáticas que incluísse o contato físico, tais como, a voz, o olhar, entre outras. Na EaD,
por sua vez, não há um lócus privilegiado de aprendizagem, pois o aluno estuda onde e
quando desejar, a população é dispersa e há separação física entre professor e aluno.
Devido a esses aspectos, surge a necessidade por novas estratégias didáticas, que
incluam as ferramentas adequadas para viabilizar a interação neste tipo de modalidade
de ensino.
Com relação ao aspecto da interação efetivada na educação presencial, sabe-se que
esta é de cunho essencialmente presencial, no qual, as atividades propostas acontecem
face - a – face. Para este tipo de interação, os métodos e recursos utilizados demandam
diversificação e variação entre a do tipo expositiva à manipulação de materiais referente
aos conteúdos, problemáticas significativas, tendo como propósito instigar a motivação
dos estudantes, culminando na aprendizagem. Na EaD tem-se, de modo similar, a
interação. Esta possibilitada pela mediação propiciada pelo tutor/professor. Para tanto,
torna-se fundamental a usabilidade das ferramentas específicas desta modalidade de
ensino. Ademais, é necessário conhecer os ambientes virtuais, pois serão nestes que a
interação ocorrerá. Ocorrerá desde que haja a presença do sujeitos e, nessa presença se
estabeleça a relação necessária para que haja o processo de ensino-aprendizagem.
Assim, percebe-se, que na EaD a natureza da interação que é efetivada é distinta
da presencial, pois há separação, um distanciamento entre professor e aluno e, isto já
mobiliza ações e reflexões diferenciadas. Por outro lado, de modo análogo ao ensino
presencial, ressalta-se que na educação online o foco não está direcionado
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1123
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria
exclusivamente a um único aspecto do processo de ensino-aprendizagem, quer seja a
figura do professor, quer seja na figura do aprendiz, nem nas atividades realizadas facea-face, tão pouco nos recursos tecnológicos. Entretanto, há de se considerar a
importância significativa dada ao material didático disponibilizado nos ambientes de
aprendizagem, na usabilidade da tecnologia de informação e comunicação. Estes,
considerados como ferramentas pedagógicas pelas quais o aluno poderá ter acesso às
informações, problematizá-las e, realizar suas relações de significação e sentido,
construir conhecimento. Para tanto, o material didático deverá ter características
próprias, distintas do chamado livro didático.
Processo do ensino-aprendizagem
O processo de ensino-aprendizagem estabelecido na educação presencial, tem
uma forte tendência de ser centralizado na figura do professor, pois comumente é ele
que se detém no estabelecimento, na seleção de conteúdos e na forma de estabelecê-los
e efetivá-los em sala de aula. Neste formato de ensino, embora o profissional da
educação considere as experiências, os conhecimentos prévios dos alunos e se posicione
como mediador, este tende a ser considerado como “fonte” do conhecimento, haja vista
ser considerado o principal transmissor das informações.
Na EaD, por exemplo, a aprendizagem é propiciada pela independência e
autonomia dos educandos, pois estes se tornam mais ativos em relação ao processo, pois
o controle da aprendizagem é direcionado pelo próprio aluno, requerendo deste, maior
engajamento e responsabilidade. Em outras palavras, há uma estratégia direcionada a
“auxiliar o estudante a se organizar e buscar o conhecimento em locais e horários
fixados por ele próprio” (Oliveira, Ferreira e Dias (s/d).
Destaca-se que os tutores na EaD consideram a Didática como a orientação do
processo ensino - aprendizagem, fazendo a ligação entre a teoria e a prática educativa,
como normalmente é concebida. No entanto, ela vai além das formas de ensinar e seus
recursos, devendo-se considerar todos os elementos que dela participam, direta ou
indiretamente (Oliveira, Ferreira e Dias, s/d ).
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1124
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria
Matérias didáticos
Na educação presencial, sabe-se que os recursos didáticos utilizados são bastante
conhecidos, a saber: lousa, cartazes, transparências, fichas de leitura, resumos,
apresentação de seminários e etc. Na modalidade de ensino a distancia, têm-se como
material didático a própria tecnologia de informação e comunicação (TIC). Isto é, há
uma gama de ferramentas tecnológicas que possibilitam a interação, estas podendo ser
síncronas e assíncronas. As ferramentas utilizadas são: Internet, correio eletrônico, chat,
fórum, vídeo-conferência, softwares e a própria sala de aula virtual.
Tempo e espaço Pedagógico
Segundo Zabala (1998, citado por Behar Passerino e Bernardi 2002), as variáveis
tempo/espaço são pouco explicitadas nos modelos pedagógicos, contudo, tornam-se
elementos importantes em qualquer espaço de intervenção pedagógica. Os autores ao se
referirem as variáveis tempo/espaço na educação presencial, afirmaram que estas duas
variáveis “parecem” imutáveis na organização escolar já que tempos (organizados como
períodos) são fixos assim como as salas de aula. Para a educação a distancia, os autores
pontuaram que na EaD, estas categorias se tomam dimensões que ainda precisam ser
mais exploradas nas práticas educativas dos professores que trazem suas concepções de
uma educação presencial muito arraigada.
Vantagens da EaD
Segundo Quadro e Martins (2009). A EaD é reconhecida na comunidade
internacional como estratégia para a difusão, socialização e capitalização de
conhecimento e valores em escala global e, mediante ao seu estagio atual de
desenvolvimento apresenta algumas vantagens em relação ao ensino presencial. São
eles:

uso intensivo da interatividade intrínsecos nas interfaces propiciadas pelos
ambientes e ferramentas baseadas na tecnologia da web;
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1125
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria

uso intensivo da imensa capilaridade das redes, particularmente da
Internet no âmbito regional, nacional e internacional;

Estimulou a realização de atividades pedagógicas renovadas, com ampla
autonomia
e manipulação do saber pela enorme massa de dados
disponíveis na web;

Familiarização com o uso das tecnologias da comunicação e da informação
de maneira a promover
a atualização com as tendências da
contemporaneidade;
Mediante as características e vantagens supra citadas da modalidade do ensino a
distância, em relação ao ensino presencial, Oliveira, Ferreira e Dias (2003) e Keegan
(1991) elecaram os fatores centrais e necessários para a esta modalidade de ensino, a
saber:

utilização de meios técnicos de comunicação, unindo o professor e os alunos e
mediando a construção do conhecimento;

existência de uma organização acadêmica característica (planejamento,
sistematização, didática, avaliação), distinta da organização da educação
presencial;

utilização de meios tecnológicos ;

separação física entre o professor e os alunos;

possibilidade da existência de encontros entre o tutor e os estudantes do grupo
de aprendizagem (forma semi – presencial de EAD);

previsão de uma “comunicação de mão dupla”, assim como de iniciativas de
“dupla via”.
Ressalta-se que na própria modalidade de ensino a distância tem-se diferentes
tipos e modelos de EaD. A esse respeito, Peters (2001) afirmou que há diferentes
modelos de EaD, tais como: correspondência; modelo clássico (imprensa, tv, rádio,
leitores); o modelo com base na pesquisa (cursos de ensino a distância; pesquisa
parcialmente obrigatória em seminários); modelo Grupal, definido pela programação
didática por rádio e televisão requisitando a presença; o modelo autônomo, por planejar,
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1126
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria
organizar e implementar isoladamente; e o modelo da teleconferência, oferecido por
meio dos fatores centrais supra descritos. Neste artigo, será enfatizado o tipo/modelo de
educação à distância - o modelo com base na pesquisa. Para realizar tal curso, são
disponibilizados distintos ambientes virtuais de aprendizagem (ava) que serão descritos
a seguir.
Ambientes Virtuais de aprendizagem - AVA
Os espaços pedagógicos de aprendizagem da EaD são comumente identificados
como Ambientes Virtuais de Aprendizagem - AVA. Estes, segundo Santos e Okada,
(2003 citado por Vasconcelos et al, 2008), os AVA’s são espaços fecundos de
significações, no qual os sujeitos e os objetos técnicos interagem entre si, potenciando a
construção de conhecimentos. Os ambientes de aprendizagem devem, por sua vez,
possuem suas próprias características e devem oferecer também oportunidade de
integração, interação e interatividade entre todos os participantes (Christiansen e
Dirckinck-Homfeld, 1995, citado por Vasconcelos et al, 2008).
Nesta perspectiva, Behar Passerino e Bernardi (2007) afirmaram que considera-se
um ambiente virtual de aprendizagem como ambiente coletivo que favorece a interação
dos sujeitos participantes. Os autores ainda destacaram que o AVA é um todo
constituído pela plataforma e por todas as relações estabelecidas pelos sujeitos usuários
a partir do uso das ferramentas de interação, tendo como foco principal a aprendizagem.
Segundo os autores, plataforma seria uma infra estrutura tecnológica composta pelas
funcionalidades e interface gráfica que compõe o AVA .
Os AVA’s são sistemas de ensino e aprendizagem integrados e abrangentes
capazes de promover o engajamento do aluno. A partir da revisão bibliográfica
realizada, constou-se que há aproximadamente dez ambientes mais utilizados como
espaço pedagógico de aprendizagem. A saber:
 Firstclass Colaborative Classroom: apoia a conferência via computador que
reune tecnologias do correio eletrônico e das listas de discussão. Funciona em
hardwars simples e não necessita de um administrador em tempo integral.
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1127
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria
 Learning Space Forum: desenvolvido pela Lotus/IBM, Facilita a participação
dos alunos nos cursos e permite aos instrutores criar conteúdo, bem como facilita
o desenvolvimento de cursos, não sendo necessário qualquer conhecimento de
linguagem e programação. Pressupõe o apoio a atividades assincrônicas,
propiciando o trabalho colaborativo entre grupos com multiplos níveis de
comunicação.
 TeamWare Workplace: proporciona locais onde as pessoas podem reunir-se para
trabalhar e formar comunidades. Os estudantes podem interagir com a ativamente
com o material do curso.
 Webct: criação de ambientes sofisticados para aprendizagem, sem necessidade
de recursos ou conhecimentos técnicos. Criação de ambientes baseados em www.
Desenvolvimento de design das páginas dos cursos, desponibilização de
ferramentas.
 WebBoard: contendo fóruns e Software para chat, voltado para web, soluciona a
comunicação para um grande número de comunidades.
 Eureka: ambiente colaborativo a distância via internet destinado ao
estabelecimento de comunidades virtuais de estudo. Há diversas funções: chat,
fórum de discussão, chat-room e conteúdo.
 Aula Net : baseado na web, desenvolvido no Lab de engenharia da PUC do Rio
de Janeiro. Foi construído sob uma abordagem cooperativa para a instrução
baseada na web procurando migrar para um modelo de “comunidade dinâmica
para a aprendizagem”.
 Learnloop: é um projeto de código aberto e distribuído sob licença GNU (GPL).
 TelEduc: ambiente para a criação participação e administração de curso na web.
Òtimo para o processo de formação de professores para a informação educativa. É
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1128
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria
um ambiente de educação à distância pelo qual se pode realizar cursos através da
Internet. Está sendo desenvolvido conjuntamente pelo Núcleo de Informática
Aplicada à Educação (Nied) e pelo Instituto de Computação (IC) da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp).
 Proinfo - Curso a distância. Uma dentre as principais ações da secretaria de
Educação a Distância do MEC ( criada em 1995), com o objetivo de promover o
desenvolvimento e o uso da telemática como ferramenta pedagógica.
 Moodlle: O moodle é um software livre de apoio à aprendizagem, pode ser
instalado em várias plataformas que consigam executar a linguagem php tais como
Unix, Linux, Windows. MAC OS. Como base de dados podem ser utilizados
MySQL, PostgreSQL, Oracle, Access, Interbase ou ODBC.
Conforme Vasconcelos et al (2008), um dos projetos atuais no Brasil sobre EaD, é
o projeto Universidade Aberta do Brasil (UAB). Este, utiliza tecnologias
computacionais de informação e comunicação através de Ambientes Virtuais de
Aprendizagem (AVA) para promover cursos de graduação em nível de Licenciatura e
Bacharelado. Conforme os autores, estes cursos ocorrem por meio de uma proposta
semi-presencial, em que são realizados encontros presenciais em Pólos de Ensino. Além
da intensiva complementação de atividades à distância (UAB/MEC, 2008).
Ainda de acordo com Vasconcelos et al (2008), o objetivo do projeto Universidade
Aberta do Brasil (UAB) é:
deste programa é de estimular a articulação e integração de um
sistema nacional de educação superior, promovendo desta forma
acesso participativo e universal do cidadão brasileiro ao
conhecimento. Esse sistema é formado por instituições públicas
de ensino superior, as quais se comprometem a levar ensino
superior público de qualidade aos municípios brasileiros
Dentre todos os ambientes e ferramentas utilizadas, verifica-se que há alguns
aspectos que favorecem e possibilitam uma maior viabilização do ensino e da
aprendizagem, tais como:
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1129
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria

Não há dependência de um formato proprietário já que a transmissão é
padronizada para organização independente.

Atualização constante do conteúdo;

A distância não afeta o acesso aos conteúdos;

Flexibilidade de horários;

Permite diversos graus de interação entre pessoas;
Em função das ferramentas e dos ambientes de aprendizagem, característicos da
educação à distância, pode-se citar como conhecimentos e habilidade necessários para
esta modalidade de ensino:
• Anexar arquivos em email;
• Saber utilizar um navegador de Internet, como o Netscape ou o Internet
Explorer;
• Fazer uso de um editor de texto, como o Word da Microsoft;
Além dos conhecimentos e habilidades tecnológicas requeridas aos alunos e
professores, faz-se mister aos primeiros, que obtenham determinadas competências para
que o encaminhamento e qualidade das atividades sejam logradas. A saber:
• Possuir o objetivo de querer construir seu conhecimento dentro de seu processo
de aprendizado;
• Saber trabalhar independentemente; sem a ajuda presencial do professor, mas
com a ajuda virtual do tutor;
• Fazer as atividades propostas no curso dentro dos prazos estabelecidos para
evitar o acúmulo de tarefas;
• Estabelecer tempo/hora para a rotina de estudo. Em geral 2h/dia é o tempo
suficiente para EaD;
• Estar em dia com a agenda do curso;
• Contactar o tutor quando houver dúvidas a serem sanadas;
• Estar motivado e ser disciplinado para acompanhar o curso devidamente;
• Ser capaz de se comunicar clara e objetivamente através da habilidade escrita.
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1130
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria
Reflexões para a EaD
Oliveira, Ferreira e Dias (s/d) afirmaram que na educação a distância é
fundamental promover ao máximo a interação dos estudantes com seus tutores,
compensando problemas inerentes aos processos de ensino e aprendizagem nesta
modalidade de ensino, como a distância física e as possíveis dificuldades cognitivas e
motivacionais dos alunos que possam aparecer.
Além deste fator, para que se obtenha uma aprendizagem significativa na
modalidade EaD, faz-se necessário refletir sobre o tipo de avaliação que se é efetivada
quando das realizações das atividades pelos alunos. A definição de um processo de
avaliação coerente, tem sido uma das dificuldades que se destacam na modalidade da
Educação a Distância, pois a discussão sobre a avaliação nos remete, por vezes, a um
aspecto de cunho burocrático (Souza e Gracias, s/d).
Assim, faz-se necessário que a avaliação realizada não seja de forma restrita, por
meio da quantificação de participações e acessos e da realização de provas objetivas
como testes de múltipla escolha. Pontua-se que, ao serem utilizados recursos
tecnológicos à educação, não significa que os problemas com a forma de avaliar os
alunos desapareçam. A prática de avaliação na perspectiva tradicional acontece quando
esta é realizada através de “atividades de caráter meramente verificacionista,
classificatório e tradicional, por meio de instrumentos que aferem o desempenho dos
alunos” (Vasconcelos et al, 2008 p. 1)
Deste modo, avaliar significa valorizar as trocas comunicativas que acontecem
durante um curso a distância e não somente a leitura dos materiais seguida da
elaboração de atividades solicitadas ao final de cada aula (David et al,2007, citado por
Vanconcelo et al, 2008). A esse respeito serão discutidas a seguir a natureza das
comunicações e como elas são estabelecias no ambiente EaD.
Comunicação e/ou interação na EAD
Conforme Borba e Gracias (s/d), a educação é um processo complexo que utiliza a
mediação de algum tipo de meio de comunicação como complemento ou apoio à ação
do professor em sua interação pessoal e direta com os estudantes. De acordo com os
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1131
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria
autores, o que diferencia o modelo apresentado é o tipo de avaliação e interação. Na
EaD, a interação estabelecida entre o professor e aluno é indireta, mediatizada por uma
combinação dos mais adequados suportes técnicos de comunicação. Este fato torna esta
modalidade de educação bem mais dependente da mediatização que a educação
convencional (BELLONI, 1999, p. 54, citado por Borba e Gracias, s/d).
Belloni (1999) aponta a importância dos meios de comunicação como mediadores
do processo EaD. A mediatização à qual nos referimos está relacionada com a escolha
de um meio adequado de comunicação para um determinado fim, e, “em função deste,
conceber e elaborar o discurso que constitui a forma de revestir a substância do tema
ou matéria a transmitir” (Rocha-Trindade, 1988 apud Belloni, 1999, p. 63).
Assim, ao se pensar na elaboração de um curso a distância, além de considerar as
questões pedagógicas é importante considerar os meios técnicos de mediatização que
permitirão a interação, a qual pode ser uni ou bidirecional. O aspecto bidirecional da
comunicação tem sido enfatizado atualmente em função das possibilidades oferecidas
pelas NTICs (Zentgraf, 1999). Os meios de comunicação, o tipo de relação dialógica, a
interatividade e a temporalidade, permitem a caracterização de um modelo
comunicacional de um processo educacional a distância.
Sincronia e assincronia das interações
Sabe-se que as redes telemáticas, os recursos mediáticos proporcionam
interatividade simultânea ou não. As interações síncrona e assíncrona dizem respeito à
relação temporal. Neste sentido, pode-se afirmar que na interação síncrona, ou
simultânea, professor e estudantes comunicam-se entre si ao mesmo tempo, embora em
espaços distintos. Na interação assíncrona, ou diferida, por sua vez, a comunicação entre
professor e estudantes não é necessariamente simultânea. Os meios de comunicação
utilizados como mediadores, o tipo de relação dialógica, a interatividade e a
temporalidade, aspectos que acabamos de abordar, permitem a caracterização de um
modelo comunicacional de um processo educacional à distância.
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1132
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria
Metodologia
Este estudo é de cunho bibliográfico no qual fora realizado um estudo analítico na
literatura nacional e internacional de teóricos que abordam sobre a EaD. E, desta forma,
a análise é de natureza qualitativa e descritiva.
Resultado
Como resultado de nossa pesquisa teórica, identificamos elementos específicos da
EaD, e suas caracterizações, aspectos pontuados, também, dos escritos de Borba e
Gracias (2009) – a partir de um modelo de curso de extensão à distância.
Verificou-se que a utilização do computador integrado as tecnologias fez surgir
uma nova forma de conhecimento - o conhecimento operacional. Este se apresenta
diferentemente do tempo circular da oralidade e do tempo linear das sociedades da
escrita, está em tempo real (Lévy, 1993, 1999). O modelo digital demanda e possibilita
ser
explorado de forma interativa, prática, dinâmica e com considerável grau de
autonomia de ação e reação (Lévy, 1993). Desta maneira, a partir desta demanda,
habilidades, competências e estilos de aprendizagem são demandados do profissional de
ensino, elementos que devem ser mais explorados nas pesquisas e, devem ser
estabelecidos na prática pedagógica nessa forma e utilização do conhecimento,
estabelecidos a partir do uso de redes midiáticas.
Sobre as competências do professor, Demo (1998), ao destacar a importância
crucial do professor na Educação a Distância, resume desta forma as competências que
ele deve possuir:
(...) a teleducação não dispensa o professor, embora agregue a
seu perfil outras exigências cruciais, como saber lidar com
materiais didáticos produzidos com meios eletrônicos, trabalhar
em ambientes diferentes daqueles formais da escola ou da
universidade, acompanhar ritmos pessoais, conviver com
sistemáticas diversificadas de avaliação. (p. 200)
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1133
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria
A tecnologia de Informação e comunicação (TIC) abriu um universo de
possibilidades para o cotidiano do trabalho docente, constituindo-se em um meio de nos
aproximarmos da educação, quando não a podemos realizar regularmente. Significa,
ainda, disponibiliza recursos, ao aluno, para obter informação e aprender
autonomamente, de acordo com os indicativos motivacionais e o ritmo de aprendizagem
de cada um. É necessário, no entanto, que haja, por parte do professor, a flexibilidade e
a ousadia necessárias diante do novo, para criar novos procedimentos e metodologias,
“garimpar” atalhos para a interação efetiva, construindo uma “didática inovadora”.
Tudo o que foi dito salienta à importância da Didática para todo o tipo de atuação
docente, independentemente de ser ela presencial ou à distância.
Na realidade, e percebemos isto na pesquisa realizada, a chamada “transposição
didática” ainda continua sendo o grande desafio no processo ensino – aprendizagem. A
criação de uma linguagem comum ao professor / tutor e ao estudante, no momento do
processo de desconstrução / reconstrução do conhecimento, ainda significa um longo
“caminho a ser feito”, no processo ensino – aprendizagem.
Sugerimos, para que isto efetivamente aconteça, duas ações: a efetiva atenção à
formação de tutores, já que a Educação a Distância é uma realidade atual e presente, e a
atitude que o notável Pierre Lèvy propõe, em relação a estas inovações tecnológicas –
inclusive as aplicadas à Educação.
(...) peço apenas que permaneçamos abertos, benevolentes,
receptivos em relação à novidade. Que tentemos compreendêla, pois a verdadeira questão não é ser contra ou a favor, mas
sim reconhecer as mudanças qualitativas na ecologia dos
signos, o ambiente inédito que resulta da extensão das novas
redes de comunicação para a vida social e cultural. Apenas
dessa forma seremos capazes de desenvolver estas novas
tecnologias dentro de uma perspectiva humanista (Lèvy, 1999,
p.12).
Concluímos esta exposição fazendo uma referência a Oliveira e Sá (2003), que
reafirmam, à semelhança da proposta da Didática Fundamental, de Candau (1984), uma
Didática na Educação à Distância que promova a reflexão, a crítica e a transposição de
conteúdos, independentemente da interação direta entre professor e aluno.
Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1134
Especificidades da Modalidade de Ensino a Distância e “Competências Didáticas” Desejáveis a Ação de Tutoria
Conclusões.
Verificou-se que nesta proposta de ensino a distância, apesar das semelhanças ao
ensino presencial, tem-se na EaD uma natureza distinta e, portanto, características e
habilidades distintas. Desta forma, é importante pensar nas etapas ou “metodologias”
específicas desta modalidade de ensino. Assim, podem ser discutidos alguns aspectos
que caracterizam as “competências didáticas” desejáveis para um tutor:

capacidade de promover a autonomia do aluno, quanto à sua própria
aprendizagem;

exploração de todas as possibilidades do material didático;

domínio das ferramentas de interação e das várias modalidades tecnológicas de
informação e comunicação;

conhecimento dos vários processos de interação e mediação;

disponibilidade para a comunicação diferenciada no espaço e no tempo.
Tudo isto destaca a importância da ação tutorial, alicerçada em um sólido ciclo de
ação – reflexão – ação, em uma prática presencial com os educandos. Presença aqui
não entendida no sentido de corpo (matéria), mas no sentido da atenção fundamental
para a devida avaliação e intervenção, sempre que necessário e, em tempo, nos
movimentos do processo ensino-aprendizagem.
Nesse sentido, há de se questionar: quem são os tutores que atuam no Ensino a
Distância no Brasil? Qual é o nível de conhecimento que os mesmos possuem sobre
questões pedagógicas? Qual o nível de comprometimento que os mesmos expressam no
que se refere à aprendizagem de seus alunos? Qual a compreensão que os mesmos
possuem de suas práticas pedagógicas, do papel social que assumem?
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Roseline Nascimento de Ardiles & Roseane Nascimento da Silva
1138
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
RECORDANDO IMAGENS EM MOVIMENTO: AS
MEMÓRIAS TELEVISIVAS COMO ESTRATÉGIA
DE FORMAÇÃO DOCENTE
Sandro da Silva Cordeiro
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
RECORDANDO IMAGENS EM MOVIMENTO: AS MEMÓRIAS
TELEVISIVAS COMO ESTRATÉGIA DE FORMAÇÃO DOCENTE
Sandro da Silva Cordeiro
Secretaria Municipal de Educação - SME
Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGEd/UFRN
RESUMO: Este artigo objetiva mostrar uma experiência realizada com um grupo de
professoras de escolas públicas da Grande Natal/RN, na qual foi proposta a redação das
“memórias televisivas” do grupo. Intenta mostrar essas recordações como instrumento
de qualificação profissional, resgatando vivências, dando margem para a instalação de
um processo de auto-avaliação, revertendo-se numa ressignificação das ações docentes
desenvolvidas no passado, com vistas a uma melhoria das ações presentes e futuras.
Evidencia a validade dessa atividade, permitindo a reflexão sobre o processo formativo
das envolvidas, numa tomada de consciência sobre os espaços ocupados e dos
momentos significativos ocorridos ao longo da sua existência. Encara esse processo de
auto-análise como sendo de formação, culminando com a elaboração de um parecer
crítico, oportunizando troca de saberes, já que falando sobre si mesmo é possível reviver
e rever visões de mundo e posturas tanto em âmbito pessoal quanto profissional.
PALAVRAS-CHAVE: Memórias – Formação Docente – Imagens em movimento.
Imagens iniciais...
Pinçando recordações da infância, percebe-se que a TV é parte integrante de
muitas situações. Lembramos das novelas, dos desenhos, dos comerciais veiculados em
meados da década de 1980. Quando chegava da escola, concluía rapidamente a lição de
casa concluída, corria imediatamente para frente do aparelho, a fim de acompanhar
todos os programas, mesmo aqueles não destinados a minha faixa etária. O prazer era
tanto, que acabava esquecendo de ir brincar na rua com meus colegas. Geralmente,
assistia em companhia das minhas irmãs, além da minha mãe, que também
compartilhava desses momentos. À noite, encerrado o expediente de trabalho do meu
pai e do meu irmão, a família estava completa e todos se reuniam em torno da TV. Era
um momento de união familiar, de risadas, de comentários, de acompanhar as novelas
como forma de distração.
De vez em quando, na escola, conversávamos com os amigos sobre a
programação dos dias anteriores. Alguns não tinham TV e mesmo assim
Sandro da Silva Cordeiro
1142
Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
acompanhavam a programação, indo assistir na casa de vizinhos ou familiares. Sempre
fui de pouca conversa na sala de aula. As professoras do ensino fundamental,
antigamente chamado de ensino primário, não se sentiam à vontade para tratar das
vivências dos seus alunos, não estabelecendo um paralelo entre os nossos
conhecimentos prévios e àqueles trazidos por ela. O importante era repassar os
conteúdos presentes nos livros didáticos e as discussões não deveriam fugir do roteiro já
determinado.
Muitas vezes, sentíamos vontade se socializar as imagens vistas na TV, tecer
algum comentário, mas não havia abertura na escola para tratar de assuntos que não
estivessem relacionados ao conteúdo trabalhado. Além disso, sempre elogiava os alunos
calados. Os alunos questionadores eram mal vistos, encarados como transgressores da
ordem. Por isso, preferia permanecer em silêncio e guardar comigo aquelas idéias.
Iniciamos esta discussão partindo de um relato sobre nossas próprias memórias
enquanto telespectador, situando o papel desempenhado pela televisão como elemento
de união familiar, de sociabilidade, de entretenimento. O relato também expressa um
contexto histórico específico, marcando um tipo particular de “ideário pedagógico”,
mencionando uma postura educativa 1 diante das experiências trazidas pelos discentes.
Como ficou evidenciado, foram trazidas algumas informações significativas
sobre preferências, hábitos familiares, proposta pedagógica das escolas freqüentadas,
dentre outras. Este constitui-se num dos benefícios dos relatos que rememoram os fatos
do passado: reconstituir experiências, analisando-as à luz do presente.
Bergson em seu livro “Matéria e memória” lembra que o presente não é a parte
mais intensa de nossas vidas, mesmo estando relacionado à sensorialidade e as ações
imediatas. O passado, mesmo não agindo de forma imediata, pode retornar ao presente
de uma forma particular, adquirindo novamente vitalidade quando materializado
(BERGSON, 1999). Nesse sentido, quando realizamos um trabalho com viés
memorialístico, uma série de acontecimentos significativos emerge, fazendo-nos reviver
tais acontecimentos sob o crivo do presente. Passados dias, meses, anos de um dado
1
Nos anos de 1980, apesar do aparecimento de correntes pedagógicas tratando sobre a abordagem
construtivista, nas escolas que freqüentamos (rede estadual de ensino da cidade do Natal/RN) a proposta
de trabalho ainda girava em torno do ensino tradicionalista, tendo a figura do professor como autoridade
máxima, privilegiando a ordem no espaço da sala de aula, o que não permitia a participação ativa dos
alunos em seu próprio processo de ensino e aprendizagem.
Sandro da Silva Cordeiro
1143
Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
evento, quando buscamos alcançá-lo por intermédio da memória, esse evento ressurge e
é interpretado sob uma nova ótica, com novas formas de compreensão, isso porque
passamos nesse intervalo de tempo por novas experiências.
Tendo intenções formativas, o uso das memórias acaba servindo como
instrumento de qualificação profissional. No trato com um grupo de professores, é
possível utilizar as memórias como possibilidade de resgatar vivencias, experiências,
dando margem para a instalação de um processo de auto-avaliação, revertendo-se numa
ressignificação das ações docentes desenvolvidas no passado. Isso é convertido em
melhoria no trabalho pedagógico, pois procura-se ficar atento as ações e posturas
presentes e futuras. Sabendo desses benefícios, resolvemos propor às professoras
participantes de um projeto de extensão2 a redação das chamadas “memórias
televisivas” durante a realização das sessões de recepção dialogada3.
Lembrar, contar, escrever sua própria história...
É fascinante a atividade de contar histórias. Esta permite a formação de imagens
mentais, de modo a vivenciarmos os fatos narrados de uma forma peculiar, no plano do
imaginário. Quando a narrativa é baseada da realidade factual, o narrador revive nesse
momento a experiência, destacando cenários, cores, formas, tudo num mesmo circuito.
2
O projeto de extensão denominado ‘Lendo imagens, formando professores” constituiu-se no campo de
pesquisa de uma tese de doutorado (em andamento), visando propiciar momentos de qualificação
profissional a um grupo de docentes da rede municipal de ensino da cidade do Natal/RN. Para tanto,
utilizou-se a etnografia como opção metodológica, a fim de promover uma aproximação com o grupo e
captar suas impressões acerca do universo da pesquisa (mídia televisiva e educação). Nesta ocasião, as
professoras participaram durante 1 semestre letivo de reuniões, com vista a discutir sobre a sua própria
prática enquanto professoras, assim como debateram sobre referenciais dentro do campo da mídia e
educação, com o intuito de motivá-las a elaboração de projetos pedagógicos, tendo como principal
elemento a mídia televisiva como objeto de estudo. A escrita das memórias televisivas foi a primeira
atividade recomendadas às professoras.
3
O nome dado às sessões remete-se ao pensamento de Orozco (1996), quando afirma que assistir
televisão não se limita apenas ao momento de exposição à tela. É um processo estendido para além
instante, permitindo a elaboração de novas conjecturas nos mais diversificados lugares. O fato de
estabelecermos relações com o conteúdo midiático, rememorando os trechos considerados significativos,
internalizando estas imagens e trazendo à tona quando conveniente, comprovam esta afirmativa. Por isso,
consideramos que as sessões constituíram-se em momentos de recepção televisiva, já que as discussões
giraram em torno do tema “televisão”, focalizando os programas e os acontecimentos explorados por este
meio de comunicação no momento. O termo também é influenciado pela idéia de dialogia defendida por
Freire (2005) e Bohm (2005), ambos acreditando no potencial do diálogo como mola propulsora para o
desenvolvimento humano e a troca de saberes.
Sandro da Silva Cordeiro
1144
Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
No processo de contar histórias à imaginação também é acionada, requerendo
disposição e criatividade para descrever e externar situações vividas, seja num plano
real ou imaginário. Quando obtidas por intermédio do primeiro, acabamos
incrementando com novos detalhes e isso não deve ser considerado negativo. Quando
essa lembrança vem à tona em diferentes contextos, esta passa por uma “oxigenação”,
assegurando a incorporação de outros elementos que muitas vezes não estavam
presentes nos primeiros relatos sobre o mesmo assunto. Essa atualização é benéfica,
como forma de adicionar novos elementos e informações ao relato, enriquecendo o
relato. Por este motivo, essas histórias são dinâmicas, sendo construídas e reconstruídas
sempre que vêem à tona, adquirindo novas cores e nuances quando são contadas e
recontadas, porque nossa memória é constantemente atualizada a cada nova
oportunidade de revelá-la, dada as nossas diversas vivências cotidianas. Ou seja, nossa
memória é reorganizada mediante as experiências ocorridas no contexto social mais
amplo. A conjuntura histórica e o momento vivido pelo narrador determinarão o curso
dessas narrativas.
Falar sobre nós mesmos, expondo nossas histórias pessoais, não é uma tarefa tão
simples. Precisamos nos despir de alguns pudores, de certos incômodos, para tornar as
palavras mais fluidas. Precisamos criar um clima de intimidade, tendo predisposição
para tratar de algo tão delicado e precioso: nossas experiências.
Seja através da oralidade ou da escrita, expressar nossas vivências possibilita aos
ouvintes ou leitores uma oportunidade impar, na medida em que permitem uma troca de
saberes, de aprendizagens e até mesmo de energias.
Descrever uma história de vida, a trajetória de formação de um indivíduo,
permite ao narrador4 refletir sobre o seu próprio processo formativo, numa tomada de
consciência acerca dos espaços ocupados e dos momentos significativos ocorridos ao
longo de sua existência.
Por este motivo, refletir sobre nossos próprios atos pode ser encarado como um
momento de formação, de auto-análise. Isso pode culminar com um parecer crítico,
levando o narrador a chegar a algumas conclusões naquele momento, já que esse
posicionamento “final” jamais será obtido, dada a dinamicidade do pensamento e dos
nossos posicionamentos.
4
O narrador seria aquele que conta a sua própria história, privilegiando os momentos considerados mais
importantes, tanto da sua vida pessoal quanto profissional, dependendo da sua proposta de trabalho.
Sandro da Silva Cordeiro
1145
Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
Quando um trabalho dessa natureza é realizado no interior da educação, no
âmbito da formação de professores, é possível oportunizar momentos de formação e
troca de saberes, já que falando sobre si mesmo é possível reviver e rever visões de
mundo e posturas tanto em âmbito pessoal quanto profissional. Sobre a oportunidade de
pensar e transformar a prática do professor, pondera Ferrarotti:
Todas as narrações (auto) biográficas relatam, segundo um
corte horizontal ou vertical, uma práxis humana. Ora, se “a
essência do homem (...) é, na sua realidade, o conjunto das
relações sociais” (Marx, VIª Tese de Feuerbach), toda a práxis
humana individual é actividade sintética, totalização activa de
todo um contexto social. Uma vida é uma práxis que se
apropria das relações sociais (as estruturas sociais),
interiorizando-as e voltando a traduzi-las em estruturas
psicológicas, por meio da sua actividade desestruturante
reestruturante. Toda a vida humana se revela, até nos seus
aspectos menos generalizáveis, como a síntese vertical de uma
história social (...) o nosso sistema social encontra-se
integralmente em cada um dos nossos actos, em cada um dos
nossos sonhos, delírios, obras, comportamentos. E a história
deste sistema está contida por inteiro na história da nossa vida
individual (FERRAROTTI, 1988, p. 26).
Se uma prática pedagógica é abraçada por um professor num dado momento
histórico, por exemplo, isso ocorre porque naquele momento esta prática estava em
evidência. É o retrato de uma época.
Em se tratando da Nova História Cultural, movimento e que desencadeou
modificações significativas no rumo da escrita histórica, o resgate das vivências de
pessoas comuns passou a ser valorizado. As críticas envolvendo a não inclusão de
assuntos de ordem popular nas pesquisas até então desenvolvidas, aliada a ênfase na
cultura tradicional, permitiram perceber a relevância dos microcomportamentos como
elemento para a compreensão dos fatos históricos.
Burke, em seu livro “O que é história cultural”, revela as contribuições dessa
corrente de estudos para a historiografia mundial. Para tanto, faz um panorama histórico
desse movimento, apontando as novas configurações e perspectivas de estudo na
atualidade. Revela críticas, avanços e recuos, além dos principais estudiosos envolvidos.
Trazendo para o palco das discussões a cultura e suas relações com os fatos históricos, a
Sandro da Silva Cordeiro
1146
Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
NHC consegue penetrar nos diversos acontecimentos desprezados pela história oficial.
Tem serviço, ao longo de sua existência, para mostrar outras possibilidades de
investigação, com temáticas localizadas e de relevância social, servindo para aperfeiçoar
a escrita histórica.
Num paradoxo entre o pessoal e o universal, procura-se a união entre estes dois
campos de significação, percebendo-se as correlações existentes. Por este motivo, as
narrativas pessoais visam mostrar como esse contexto global marca profundamente as
histórias individuais, confrontando esses dois universos imbricados. É importante frisar
que mesmo passível às correspondências com um contexto mais amplo, as escritas de si
mesmo são personalizadas, carregando preciosas particularidades de quem a vivenciou.
Para Souza (2006), escrever sobre si mesmo submete o sujeito a uma situação de “autoescuta”, requerendo sensibilidade sobre a sua própria história.
À medida que tecemos comentários de nossa própria vida, encontramos
interconexões com outros acontecimentos ocorridos naquele mesmo instante. Isso
ocorre porque as ações de cada sujeito não se encontram desligadas de uma conjuntura
sócio-política e cultural mais ampla. Por este motivo, essas narrativas visam mostrar
como esse contexto global marca profundamente as histórias individuais, confrontando
esses dois universos imbricados. É importante frisar que mesmo passível às correlações
com um contexto mais amplo, os relatos de si mesmo possuem características próprias,
são personalizadas, carregando preciosas particularidades de quem a vivenciou.
Souza, em sua obra O conhecimento de si: estágio e narrativas de formação de
professores discute sua experiência com um grupo de alunos da graduação, na qual a
tônica é a construção do itinerário escolar de futuros professores. Para este autor,
escrever sobre si mesmo submete o sujeito a uma situação de “auto-escuta”, requerendo
uma sensibilidade sobre a sua própria história.
Seguindo uma perspectiva contemporâneo sobre o entendimento do saber
histórico, a história da vida cotidiana é valorizada, desbancando a visão de historicidade
atrelada aos grandes vultos e acontecimentos de repercussão nacional e internacional.
Cada indivíduo possui sua historia, repleta de singularidades. Numa crítica a esse
modelo de história unilateral, Bosi emite o parecer a seguir:
Sandro da Silva Cordeiro
1147
Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
A história que estudamos na escola não aborda o passado
recente e pode parecer aos olhos dos alunos uma sucessão
unilinear de lutas de classes ou de tomadas de poder pro
diferentes focas. Ela afasta, com se fossem de menor
importância,
os
aspectos
do
quotidiano,
os
microcomportamentos, que são fundamentais para a Psicologia
Social (BOSI, 2003, p. 13).
Nesse sentido, os velhos, as mulheres, os negros, os trabalhadores manuais,
camadas da população excluídas dos eventos históricos ensinados na escola, tomam a
palavra. A história, que se apóia unicamente em documentos oficiais, não pode dar
conta das paixões individuais que se escondem atrás dos episódios. A literatura conhece
já esta prática pelo menos desde o Romantismo: Victor Hugo faz surgir Notre Dame de
Paris num quadro popular medieval que a história oficial havia desprezado (BOSI,
2003, p. 15).
É importante frisar que quando escrevemos uma história, seja de nos mesmos ou
de uma outra personalidade, cristalizamos na narrativa os acontecimentos vividos, pois
escrevemos nossas impressões naquele dado momento. É verdade que, ao narrar uma
experiência profunda, nós a perdemos também, naquele momento em que ela se
corporifica (e se enrijece) na narrativa (BOSI, 2003, p. 35). Mesmo se fixando num
recorte de tempo específico, a cada nova narrativa sobre o mesmo fato são adicionados
novos elementos e olhares, encorpando o texto com outras nuances. Isso ocorre porque
a memória é constantemente atualizada e, a cada descrição dos acontecimentos, os
nossos conhecimentos de mundo (que também passam por uma atualização) são
acionados no instante de reviver essa memória. Por isso, o contexto e o período de
tecitura da narrativa são elementos importantes na interpretação e entendimento das
memórias.
Propondo memórias: impressões iniciais
Uma das atividades apontadas para o curso de extensão foram as chamadas
“memórias televisivas”. A idéia de redigir as memórias televisivas surgiu durante a
execução do projeto realizado com os alunos em 2007, cuja experiência encontra-se
sistematizada em formato de relatório. Recomendamos como atividade para casa uma
Sandro da Silva Cordeiro
1148
Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
entrevista com os pais, avós ou demais familiares, solicitando um depoimento sobre os
seus primeiros contatos com a TV. Essas conversas renderam algumas descobertas
significativas. Percebemos que grande parte das famílias teve acesso a TV somente no
início dos anos de 1990. Encontramos relatos de algumas avós, por exemplo, que
tiveram seus primeiros contatos com a TV no ambiente de trabalho (na condição de
empregadas domésticas). A casa dos vizinhos também mostrou-se como alternativa para
o contato.
Os relatos eram curtos, mas repletos de nostalgia. Rememoravam cenas de
quando assistiam a televisão, os programas preferidos, o modo como as casas
acomodavam um grande contingente de pessoas no “horário nobre” para ver as
telenovelas, as sociabilidades engendradas nesse espaço e o processo de recepção.
Essa entrevista despertou-nos o interesse em aplicá-la com outras finalidades.
No caso, empregando-as com o grupo de professoras participantes da pesquisa. Nessa
ocasião, a proposição das memórias televisivas poderia configurar um trabalho mais
apurado, com maior riqueza de detalhes. Tal atividade teve como principal finalidade
resgatar as memórias televisivas das professoras, reavivando suas experiências com as
imagens em movimento (imagens, sons e textos da mídia televisiva). Como essas
professoras narram suas experiências com as imagens do passado, estabelecendo
relações com o presente? Essa questão permeou a escritura dessas narrativas,
conduzindo o discurso proferido pelas professoras.
Assim, tivemos a chance de fazer o entrelace entre mídia, memória e formação
docente. Quando aplicada num contexto formativo, as memórias adquiriram novas
possibilidades, explorando a expressão de sentimentos pessoais e profissionais. Esta
atividade teve como principal finalidade resgatar as memórias televisivas das
professoras, reavivando suas experiências com as imagens em movimento presentes na
mídia televisiva. Como essas professoras narram suas experiências com as imagens do
passado, estabelecendo relações com o presente? Assim, instigamos a redigirem sobre
suas próprias vidas, acreditando na possibilidade de realizarem uma auto-reflexão sobre
tais experiências.
Quando propomos a escrita desse trabalho durante as reuniões, não notamos
inicialmente um entusiasmo por parte das professoras. No decorrer do tempo
estabelecido para a entrega desta tarefa, percebemos mudanças de opinião, pois
Sandro da Silva Cordeiro
1149
Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
começaram a suscitar questionamentos quanto a redação dos escritos e, em algumas
situações, comentavam sobre o prazer em reavivar algumas lembranças. Esta ausência
de vontade inicial na elaboração das memórias talvez seja explicada pela citação de
Placco e Souza: (...) “a oportunidade de rememorar nos assusta, traz desenquilíbrios,
destrói certezas e nos fragiliza para enfrentar situações que parecem conquistadas”
(PLACCO, SOUZA, 2006, p. 31). Remexer em imagens do passado poderia trazer à
tona momentos desagradáveis, não superados nos instante em que foram vividos. Por
outro lado, pensamos que essas recordações poderiam potencializar
novas
aprendizagens quando aglutinadas com eventos do presente. A memória, neste caso,
seria empregada como uma aliada na aprendizagem dos adultos professores. E como
ocorre esse processo de aprendizagem? Tendo como instrumento a memória, o adulto
recorre ao seu repertório de experiências e, em contato com outros relatos
compartilhados, empreende-se um intercâmbio de idéias e discernimentos numa teia de
novos significados.
O próprio Halbwachs (2006) considera que o ato de lembrar auxilia na
reconstituição das experiências, sob uma ótica atual. Por isso, vivências do passado
seriam revitalizadas, com o intuito de perceber os possíveis avanços e recuos em nossas
ações,
retirando
proveito
desses
momentos
do
passado.
Isso pressupõe enveredarmos pelo caminho da avaliação desses atos, emitindo um
parecer diante do jogo de cenas posto em evidência.
Fizemos, na verdade, um exercício de “provocação da memória”, propondo
relembrar as imagens televisivas que, por sua vez, estavam inseridas num determinado
contexto histórico e social. Evocar a memória profissional dos professores permitem
perceber uma série de aspectos, além daqueles fixados como prioritários para este
trabalho (memórias televisivas). Podem revelar, também, nossas afinidades ou
distanciamentos da carreira de professor.
Não fazer referencia às histórias de professores é uma lacuna
imperdoável na formação. Essas histórias contêm pistas
importantes, em seus embates e oportunidades, do que fazermos
agora, do que nos motiva ou paralisa, das condições com que
nos deparamos (PLACCO, SOUZA, 2006, p. 36).
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Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
Numa das sessões destinadas às apresentações das memórias, uma das
professoras afirmou que a atividade de redigir, aliada a vocalização do texto para o
grupo e a escuta dos demais relatos, exercia um papel “terapêutica”. Um momento
coletivo de expressão de sentimentos, alegrias, decepções, frustrações e tristezas.
Através da troca de vivências, é possível repensar atitudes e projetar ações futuras
através da superação de possíveis obstáculos e entraves do passado. A partir desta
afirmação, é possível visualizar os benefícios desse tipo de trabalho. Quando adotado na
prática profissional das instituições educativas, abre-se um espaço significativo para o
diálogo e a expressão das angústias profissionais dos professores. O próprio formato do
curso de extensão favorecia a livre expressão, pois em todos os momentos destinávamos
um espaço para a fala dos participantes.
Em relação ao relato, recomendamos que as professoras o redigissem
individualmente. Para sistematizar a escritura das memórias, entregamos um pequeno
texto contendo alguns encaminhamentos. Através de um roteiro previamente elaborado,
tiveram um referencial a seguir, partindo de alguns marcos para a organização textual.
Essas informações seguiam uma cronologia de vida, passando pelas fases da infância,
adolescência e adulta, distribuídas nos tópicos Memória pessoal – Eu e a TV; Memória
profissional: Eu, o trabalho e a TV.
Esclarecemos o caráter de “referência” do roteiro, servindo apenas como uma
sugestão para a redação das memórias. Não necessariamente deveriam seguir a risca
todas as recomendações explicitadas neste documento. O importante seria relembrar o
contato de cada professora com a televisão, buscando estabelecer um paralelo com a sua
vida presente, seja no âmbito pessoal e/ou profissional.
Recolhemos ao todo 11 relatos. Não exigimos que a entrega do texto fosse
digitada. Algumas conseguiram organizar dessa forma. Outras entregaram manuscritos.
Sejam digitadas ou escritas pelo próprio punho, traziam naqueles escritos trechos de
vidas, recortes da trajetória de mulheres e professoras. Pessoas comuns, que contribuem
diariamente com seus esforços, tanto físicos quanto intelectuais, para educar seus alunos
nos mais variados recantos do estado.
Para reificar o apego e a importância atribuída pelas professoras às suas
memórias, abrimos um parêntese para tratar brevemente de um episódio ocorrido
durante os encontros. Depois de apresentadas as memórias para o grupo, carregávamos
Sandro da Silva Cordeiro
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Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
conosco alguns desses textos para analisá-los em momentos apropriados durante a
jornada diária de trabalho. Um certo dia, quando íamos em direção ao bairro de
Petrópolis, acabamos perdendo uma pasta contendo textos e documentos. Dentre eles,
estava uma das memórias. Como tratava-se de um texto manuscrito, ficamos
apavorados, pois não teríamos como recuperá-lo. Esta professora em todas as sessões
perguntava sobre a leitura das memórias, indagando sobre as nossas impressões em
relação ao trabalho. Quando entramos em contato com ela para resgatar o texto (através
de um possível rascunho) ou mesmo a redação de outro texto, notamos um
desapontamento por parte desta professora. Ela disse em tom preocupado: e agora? As
minhas memórias estão por aí, perdidas! Ficamos preocupados, pois transpareceu
descuido de nossa parte com o próprio material de pesquisa.
Felizmente, conseguimos encontrar a pasta com os textos e a memória num
supermercado no setor de achados e perdidos. O sentimento de culpa se esvaiu e um
texto, com caligrafia impecável, foi recuperado. Este relato é para exemplificar o
quanto as professoras se identificaram com esta atividade, atribuindo-lhe sentido e
importância.
Relato das sessões de recepção dialogada: as memórias televisivas em ação
Durante a sessão III as professoras foram estimuladas a socializar suas
memórias, conforme acertado nos encontros anteriores. Algumas se sentiram a vontade
para ler. Outras, mesmo depois da insistência, não cederam e preferiram não revelar os
seus escritos. Metade do grupo leu, a outra parte ouvir o relato das colegas. Foi instigante
ouvir aquelas histórias, ver e ouvir a forma como cada uma delas mostrou sua intimidade,
detalhes de suas vidas. Algumas revelaram que muitos dos detalhes escritos nunca haviam
sido mostrados antes.
Para reconstituir os relatos, algumas precisaram recorrer aos pais, a fim de
recordar detalhes obscurecidos pelo tempo. O fato é que as professoras foram unânimes
em afirmar a relevância de escrever sobre a própria vida, percebendo traumas, momentos
agradáveis e desagradáveis e, de algum modo, reviver uma parte significativa de suas
vidas.
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Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
O exercício de rememoração traz momentos de emoção, tristeza, alegria, num
misto de sentimentos, de sensações. É uma oportunidade rica de aproximar o grupo, de
estabelecer laços, de conhecer a intimidade do outro. Quando o elemento “mídia
televisiva” entra em cena, o resgate da memória é facilitado. As imagens e cores dão um
toque de movimento ao cenário, criando uma atmosfera de nostalgia e saudosismo.
Juntando memórias: imagens em comum
Lendo as memórias entregues pelas professoras, torna-se complexo estabelecer
pontos de semelhança entre os textos. Mesmo tendo partido de pontos em comum
(roteiro), cada narradora tratou de conduzir de uma forma particular seus escritos e,
muitas vezes, as narrativas tomam dimensões diferenciadas.
As vivências estão impregnadas de curiosidades, fatos pitorescos e dramas
pessoais. Neste instante, percebe-se um “despir-se” diante dos acontecimentos,
livrando-se de alguns ranços e pudores do passado. É evidente que muitas informações
foram omitidas, dada a necessidade de preservar-se diante dos olhares alheios. A visão
alcançou apenas aquilo que foi revelado pelas depoentes, embora a imaginação dos
leitores e ouvintes seja de domínio próprio e passível a reelaborações, a novas
conjecturas, podendo extrapolar os dados revelados. Portanto, é possível haver uma
limitação nas falas em termos de conteúdo, visando resguardar a intimidade das
participantes. Esse fato é compreensível, considerando que o redator tem o direito de
mostrar apenas o que é conveniente.
Além disso, é importante esclarecer acerca da leitura feita neste trabalho sobre as
memórias. Estas devem ser encaradas como interpretações particulares dos
pesquisadores envolvidos. Buscou-se, em linhas gerais, uma aproximação aos
acontecimentos narrados, imprimindo discernimentos baseados não somente nos textos,
mas nos relatos orais das professoras e no contato diário ocorrido durante a realização
do curso. Mas isso não implica dizer que, de fato, atingimos na integralidade este
objetivo.
Conforme solicitado no roteiro de elaboração das memórias, as professoras em
sua maioria conseguiram atingir os objetivos esperados com a atividade, redigindo a
contento os textos. A qualidade das produções pôde ser constatada. Alguns textos
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Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
possuem mais fôlego na escrita, estendendo-se ao longo de várias páginas. Outros foram
mais sucintos, mas não perderam a qualidade textual devido a essa característica.
Em muitos casos, percebe-se o esforço em empreender uma contextualização
histórica, estabelecendo uma relação entre os acontecimentos mais amplos com as suas
histórias particulares. De modo geral, os períodos referidos concentram-se entre as
décadas de 1960 e 1990, períodos nos quais as tramas são desenvolvidas, repletas de
acontecimentos significativos para as professores. Os anos supracitados são marcados
por mudanças profundas, quebra de paradigmas, reivindicações sociais e efervescência
política. O mundo presenciou revoluções, mudanças de mentalidade e novas correntes
de pensamento são afloradas, encontrando terreno fértil para difusão. Os eventos são
mencionados em alguns relatos, servindo como “pano de fundo” para o desenrolar dos
fatos. As professoras compreenderam que tais acontecimentos se refletem nas suas
histórias e, muitas vezes, tomadas de decisão foram acionadas considerando o momento
vivido.
Em relação ao contato com a TV, este ocorreu geralmente de forma prazerosa,
empregada muitas vezes como elemento de descontração e lazer. Havia uma espécie de
encantamento com as imagens transmitidas por intermédio de um equipamento
multifacetado. A mistura de sons, imagens e letras fascinavam as depoentes,
descortinando um mundo repleto de cores e noticias. Foram lembrados diversos
programas veiculados entre as décadas de 70, 80 e 90, períodos estes delimitados pelas
professoras como sendo de suas vivências com esta mídia. É reconhecido o valor da TV
enquanto veículo de aquisição de novas informações, de contato com outras cidades,
estados e países. Os momentos de recepção mostravam-se como situações repletas de
participantes, aparecendo figuras como familiares, vizinhos ou empregadas domésticas.
Muitos relatos fazem referência à infância vivida na zona rural, num período em que
este espaço diferia consideravelmente do contexto urbano (hoje, percebe-se que as
fronteiras entre “zona urbana” e “zona rural” são bastante tênues, destacando-se poucas
diferenças, dada a expansão dos serviços oferecidos.
As telenovelas apareceram como o gênero televisivo assistido com maior
freqüência. Essa “contadora de histórias” proporcionava instantes de socialização não
somente com a família, mas com vizinhos e amigos, já que a algumas décadas atrás
ainda figurava como um equipamento de alto custo. Hoje, com a sua popularização, é
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Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
possível adquirir um aparelho de TV por um baixo preço, tendo ainda a facilidade no
pagamento. Em muitos relatos encontramos esse contato obtido através da TV,
aproximando as pessoas que apreciavam um programa em comum. Esse dado vem a
confirmar o poder da TV de aglutinação da população e o fato de não permanecerem
passivas diante das mensagens transmitidas. As situações de recepção ocasionaram
trocas significativas entre os membros dos grupos de recepção constituídos, geralmente
numa residência, cujos comentários permeavam as discussões em outras ocasiões.
Vendo imagens e histórias criadas na tela, é possível nos transportar para outros
contextos, cultivando o desejo de viver também as cenas visualizadas. Seja direta ou
indiretamente, acabamos transferindo tais modelos de comportamento para o plano
prático. Por esse motivo as vestimentas, as frases de efeito e os estilos de vida lançados
pela TV são introjetados e externados quando conveniente. Mas isso não implica dizer
que estamos totalmente alheios e destituídos de um senso crítico pelo fato de
absorvermos essas diretrizes mostradas pela televisão.
Ao lermos os relatos, percebemos uma escrita carregada de sentimentos, de
nostalgia, numa tentativa de reviver situações do passado sob o crivo do presente. Nessa
reavaliação do pretérito há a presença da criticidade, compreendendo a relevância de
repensar o vivido e enxergar os acontecimentos sob um prisma positivo, encarando os
erros como possibilidade de crescimento.
Ao apontarmos a divisão do relato em dois momento distintos mas interligados,
intencionamos conhecer o cotidiano das professoras e perceber de que modo a TV
esteve presente em suas vidas. De que modo elas enxergavam esse contato? Como
aproveitavam as imagens em movimento? Essas e outras indagações vieram à tona nos
escritos, elucidando trajetórias de vida entremeadas pelo conteúdo televisivo.
Sugestão: os relatos analisados em conjunto podem seguir a estrutura do roteiro
entregue as professoras: “eu e a TV”, “memória profissional: eu, o trabalho e a TV”.
Memória pessoal: eu e a TV
Na primeira categoria de análise recomendada para a construção das dissertações
memorialísticas, foi solicitado das professoras tecerem comentários sobre os seus
contatos com a TV, nas diversas etapas vividas. De modo geral, foram divididas entre as
fases da infância, adolescência e adulta.
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Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
Genericamente falando, as narrativas seguiram por um itinerário histórico,
estabelecendo-se datas de relevância e delimitando marcos determinantes na história de
vida das narradoras. Quando possível, conseguiram estabelecer relações com um
contexto social mais amplo, estabelecendo paralelos com acontecimentos de
abrangência local, nacional e internacional.
A partir dos relatos recebidos, é perceptível o alcance dos objetivos
esperados, pois constatamos a redação de textos substanciais e com qualidade, tanto nos
aspectos de coesão e coerência textual, quando nos gramaticais e ortográficos. É
perceptível que houve uma preocupação na revisão do texto, pois os problemas de
língua portuguesa são quase inexistentes. O código escrito é fonte de comunicação e
expressão de idéias e, por este motivo, é valorizado socialmente. Respeitando-se o estilo
de escrita das participantes, encontramos produções de fôlego, tendo uma quantidade
maior de páginas, assim como aquelas mais sucintas, dizendo em poucas palavras os
seus percursos e contatos com a TV. Em alguns relatos, há uma predominância de
marcas da oralidade, mostrando uma diversificada variedade lingüística e delimitando
um estilo próprio de escrever. É preciso salientar que isso não implica revelar uma
precariedade na escrita mostrando, pelo contrário, autenticidade. Mesmo tendo um
roteiro prévio norteando a escritura desta atividade, as docentes seguiram um itinerário
próprio, destacando pontos relevantes de sua trajetória pessoal.
Se formos estabelecer um período abarcando as escrituras em análise,
poderíamos instituir as décadas de 1970 e 1980 como os principais períodos históricos,
já que as professoras iniciaram seus contatos com a TV no decorrer desses anos. Nos
anos de 1970 a TV ainda era considerado um equipamento de custo elevado. Sua
aquisição era restrita a apenas poucas famílias. Algumas depoentes relatam que os
primeiros contatos ocorreram em casas de vizinhos, parentes e amigos nas proximidades
de suas residências, os quais socializavam a aquisição desse aparelho com os mais
próximos. O regime ditatorial brasileiro e o processo de redemocratização do país
constituem-se em marcos históricos de relevo nesta demarcação temporal, sendo
lembrados pelas professoras nos escritos. Esses dois acontecimentos acabam
influenciando em diversos aspectos da vida social inclusive na programação televisiva
existente, a qual atendia a objetivos específicos de preservação e manutenção da ordem
social.
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Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
Os relatos apontam para uma relação prazeroso com o aparelho de TV,
percebendo-o a partir dos atributos “entretenimento” e “informação”. O primeiro é
marcado pelo contato com programas assistidos com o intuito de distração, de
divertimento nas horas vagas e companhia nos momentos de descanso. Desenhos,
novelas, minisséries e jornais foram amplamente lembrados. O aspecto seguinte –
informação – é relevado através do acesso as noticias de repercussão na cidade, no
estado, no país e no mundo. É atribuída importância a estes programas, utilizando como
argumento o fato da necessidade de manterem-se informadas quanto aos acontecimentos
ocorridos no mundo. Segundo elas, os jornais e documentários desempenham esse
papel, sendo recordados e apontados como veículo importante na obtenção de dados. As
notícias veiculadas pelos programas supracitados, até o momento da redação das
memórias, não foram questionadas pelas docentes em seus textos. Daí empreende-se
que os dados obtidos não estavam passíveis a reavaliações, sendo encarados como
“verdades absolutas”. Posteriormente, tivemos a oportunidade de discutir esse assunto
com o grupo, pondo em dúvida as notícias “produzidas” pelas emissoras de TV.
A infância é mostrada como um momento mágico, de descobertas, de
brincadeiras. A TV aparece compondo este cenário lúdico, suscitando o imaginário,
relacionando-se com as vivências cotidianas. Alguns relatos evidenciam momentos de
criança ocorridos no interior...
A escola aparece como espaço de socialização e de acesso ao conhecimento
sistematizado. Em muitos textos são narrados a identificação do modelo de ensino em
vigor, com viés tradicionalista. A TV não encontra-se desvinculada das propostas de
ensino das escolas, não sendo explorada para fins pedagógicos.
Memória profissional: eu, o trabalho e a TV
De modo geral, as professoras iniciaram este item falando um pouco sobre a sua
trajetória profissional, destacando as motivações para as escolhas, as afinidades com a
área, assim como o desencanto com a vivência na profissão. Alguns relatos tratam de
uma suposta “vocação” para a docência. Já outras revelam que a escolha ocorreu devido
a concorrência no vestibular, por exemplo. As licenciaturas, se comparadas às demais
habilitações universitárias, são menos concorridas. Essa forma de ingresso acaba
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Recordando Imagens em Movimento: as Memórias Televisivas como Estratégia de Formação Docente
gerando um desconforto por parte do professor, quando se percebe exercendo uma
atividade da qual não sente prazer.
Quando mencionam o seu contato com a TV na condição de professoras, acabam
descrevendo esse uso como sendo assistemático, encarando-o apenas como recurso
complementar aos conteúdos curriculares. Alguns textos mostram um emprego
destinado apenas à “distração e/ou lazer” dos alunos, sem fins pedagógicos claramente
definidos. As escolas possuem os equipamentos (TV, vídeo cassete e DVD) mas, no
entanto, não possuem uma organização em termos de inserção da análise das imagens
em movimento na rotina escolar. Algumas até possuem um cronograma de utilização
desses recursos tecnológicos. No entanto, são pouco explorados pelas docentes, tendo
em vista a falta de perspectivas e estratégias eficazes. Grande parte demonstrou
conhecer apenas o uso enquanto suporte aos conteúdos, ou mesmo para o
entretenimento, conforme já mencionado.
Apesar de mostrarem propostas de uso limitado da TV na escola, as professoras
têm consciência sobre a importância dessa mídia na construção de novos
conhecimentos, para a formação de cidadãos críticos e conscientes. Algumas chegam a
relacionar a prática desenvolvida em suas experiências formativas (escolas do ensino
médio e universitário) ao modo como empregam na atualidade em suas salas de aula.
Ou seja, nota-se uma reprodução de saberes profissionais, sem haver um acréscimo em
termos de leituras e novas idéias.
Como a proposta da redação das memórias televisivas foi lançada nos primeiros
encontros, as docentes não possuíam muitas leituras sobre o assunto. Algumas até
expressam que depositam nas sessões a esperança de aprenderem sobre o uso das
imagens em movimento com intenção educativa, visando utilizar este recurso midiático
de modo proveitoso. Existe um entendimento sobre o papel dos veículos de
comunicação, especialmente a televisão, como portadores de informações, cabendo a
escola a tarefa de seleciona e aproveitar esse manancial de dados em seu proveito.
Apenas uma das professoras havia participado de um curso voltado para o uso
das novas tecnologias na educação. Cursando o “TV na escola e os desafios de hoje”,
conseguiu adquirir alguns conhecimentos da área de mídia e educação, atribuindo maior
importância aos recursos audiovisuais em sua prática educativa. No entanto, ainda
continuou percebendo a TV enquanto auxiliar de seus projetos e conteúdos
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desenvolvidos na escola. Sendo da área de história, os filmes e documentários com viés
histórico eram amplamente aplicados em suas propostas, servindo como um relevante
auxiliar na compreensão dos temas destacados pela disciplina acadêmica.
Em alguns relatos encontramos uma expectativa em relação aos encontros,
depositando nestes a possibilidade de adquirir novos conhecimentos que permitam
perceber as potencialidades da mídia televisiva. Esperamos que as sessões tenham
propiciado tais conhecimentos, atingindo aos objetivos e anseios das participantes.
Considerando os relatórios entregues no final dos encontros, notamos que algumas
sementes foram plantadas, permitindo a construção autônoma de estratégias de
intervenção a partir do conteúdo da mídia televisiva, até porque durante os encontros
trabalhamos com a perspectiva de que cada professora teria condições de arquitetar suas
próprias estratégias, sem necessariamente recorrer a “receitas” de como utilizar a seu
favor esse meio de comunicação. Através da observação dos discentes, de sondagens
com o alunado, é possível construir uma proposta contextualizada com a televisão,
aproveitando as preferências televisivas dos participantes e inserindo propostas de
leitura crítica da mídia no interior da sala de aula.
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Sandro da Silva Cordeiro
1160
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