PARECERES Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados CONSULTA N.º 33/2008 Conflito de Interesses CONSULTA Veio o Senhor Advogado, Dr. ..., titular da cédula profissional n.º..., solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa, quanto à seguinte questão: Em 1998, o Senhor Advogado consulente exerceu o patrocínio judicial no âmbito de um divórcio por mútuo consentimento, com regulação do poder paternal relativamente a um menor, filho do casal. Nos termos do referido acordo, o exercício do poder paternal foi confiado à mãe, cliente do Senhor Advogado consulente. Recentemente, o Senhor Advogado consulente foi contactado pela avó materna do menor, com o propósito de intervir no processo de regulação do poder paternal, a fim de ver declarado o direito de poder privar com o menor, que lhe foi abruptamente cerceado pela mãe do menor e antiga cliente do Senhor Advogado requerente. Considerando o exposto, vem o Senhor Advogado consulente solicitar esclarecimentos quanto à existência de algum impedimento para aceitação do mandato, à luz do disposto no artigo 94º do E.O.A. triénio 2008-2010 Volume I 147 PARECERES Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados PARECER &1 Da Competência Consultiva do Conselho Distrital O âmbito da competência consultiva do Conselho Distrital de Lisboa está definido na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, segundo o qual cabe a cada um dos Conselhos Distritais da Ordem dos Advogados, no âmbito da sua competência territorial, “pronunciar-se sobre as questões de carácter profissional”. Estas “questões de carácter profissional” são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que comandam ou orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente os que relevam das normas do E.O.A., do regime jurídico das Sociedades de Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei aos órgãos da Ordem. Da forma como a questão colocada está delineada, não temos dúvidas de que a matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital se subsume, precisamente, a uma “questão de carácter profissional”, nos termos definidos. Passemos então à sua análise. &2 Da questão suscitada à luz do Estatuto da Ordem dos Advogados “A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia.” – António Arnaut, Iniciação à Advocacia – História – Deontologia – Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996. O Advogado, no exercício da sua profissão está, assim, vinculado ao cumprimento de um conjunto de deveres consignados no Estatuto da Ordem dos Advogados e ainda àqueles que triénio 2008-2010 Volume I 148 PARECERES Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem. O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão. O Título III do Estatuto da Ordem dos Advogados trata da “Deontologia Profissional”, fixando no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando no Capítulo II, a questão das relações entre o Advogado e o cliente. É neste último Capítulo e, mais especificamente no seu artigo 94º, que se encontra regulado o denominado “Conflito de Interesses”. Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio. Esta norma tem em vista evitar a existência de conflito de interesses na condução do mandato por Advogado e assume a uma dupla função: a) defender a comunidade em geral e os clientes de um Advogado, em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes; b) defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes. Assim, diz-nos o artigo 94º do E.O.A. que: “ 1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária. 2 – O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado. 3- O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes. 4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito. triénio 2008-2010 Volume I 149 PARECERES Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados 5 – O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o nova cliente”. Em suma, à luz deste preceito, a questão que se coloca é de saber se o facto do Senhor Advogado consulente ter patrocinado a mãe do menor no processo de divórcio por mútuo consentimento, com regulação do poder paternal o impede de aceitar mandato da avó materna do menor, para intervenção nesse mesmo processo de regulação do poder paternal, a fim de ver declarado o direito de privar com o menor. Adiante-se, desde já que, somos de parecer que, dado o teor do disposto no n.º 1 do artigo 94º do E.O.A., o Senhor Advogado consulente se encontra manifestamente impedido de aceitar mandato da avó materna da sua antiga cliente. De facto, a situação relatada cai directamente na factispecie do n.º 1 do artigo 94º do E.O.A. Compreende-se que, por razões de decoro, o Advogado não deva representar a parte contrária àquela que representa, ou já representou, na mesma questão ou em questão conexa. É, pois, absolutamente pacífico que o Advogado que patrocinou uma questão (processo judicial ou não) não poderá, finda esta, intervir noutro pleito em íntima conexão com aquela outra ou no mesmo pleito (como no caso concreto), e no qual defende interesses opostos ao do seu anterior constituinte. Ora, no caso concreto, a aceitação do mandato implicaria que o Senhor Advogado consulente interviesse no mesmo assunto, porque o que está em causa é, essencialmente, a regulação do poder paternal do menor, filho da sua antiga cliente, primeiro, como representante da mãe do menor e agora como representante da avó do menor, com interesses divergentes dos da mãe do menor, tal como decorre dos elementos fácticos trazidos ao conhecimento deste Conselho Distrital pelo Senhor Advogado consulente. E ainda que assim não se entenda, nunca poderemos esquecer que a mens legis do artigo 94º do E.O.A. é necessariamente preventiva. triénio 2008-2010 Volume I 150 PARECERES Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados Ora, a mera possibilidade da existência de um conflito de interesses é, a nosso ver, inaceitável para a Advocacia, profissão que se quer independente (artigo 84º do E.O.A.), mas também exemplo de honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade (n.º 2 do artigo 83º do E.O.A.) e acima de tudo, inaceitável à luz dos valores de lealdade e confiança que o cliente deve poder manter com o seu Advogado (e vice-versa). Não se pode permitir, nem como mera probabilidade que um cliente possa ter como possível que o seu Advogado se possa posicionar no mesmo assunto como representante de duas partes com interesses conflituantes. Assim, e mesmo que se tenha por possível e provável que o Senhor Advogado consulente actuaria com toda a probidade, entendemos que, no caso concreto, por evidente conflito de interesses, o Senhor Advogado consulente não deve aceitar o mandato da avó materna. Em suma: Somos de parecer que o Senhor Advogado consulente deve declinar a representação da avó materna do menor e filho da sua antiga cliente, em virtude de ter tido intervenção no acordo de regulação do poder paternal alcançado em sede de divórcio por mútuo consentimento Lisboa, 25 de Julho de 2008 A Assessora Jurídica do C.D.L. Sandra Barroso Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados, Lisboa, 25 de Julho de 2008 O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa Carlos Pinto de Abreu triénio 2008-2010 Volume I 151