A Segurança Pública no Brasil
INTRODUÇÃO
Q
uando lidamos com textos oficiais devemos atentamente observar seu conteúdo
denotativo, porém cônscios de que ninguém, nem mesmo formalmente, escreve
sem a intenção de influenciar. Com efeito, os signos lingüísticos sempre nos
levam a inferir significantes e significados que compõem a unidade lingüística, inclusive
nos permitindo interpretá-los por comparação com outras línguas. Para tanto,
estudiosos se esforçam no sentido de preservar a linguagem oral e escrita, destarte
garantindo a unidade cultural de um povo e/ou de povos afins, sem, entretanto,
prejudicar a licença poética, transgressão típica da arte literária. Contudo, na
elaboração de leis e outros documentos formais é imprescindível haver uma linguagem
maximamente literal, sob pena de se instituir interpretações dúbias e, por vezes, até
perigosas. Esta é a razão em virtude da qual devemo-nos acautelar na redação ou na
leitura de textos oficiais, mas, não obstante a cautela, eles nem sempre traduzem uma
literalidade ótima.
Na verdade, há sempre uma conjunção de interesses influenciando letras, palavras,
pontos e vírgulas, culminando por nos condicionar em demasia à interpretação do
Judiciário. Não significa, porém, que todas as conclusões judiciais resultem ajustadas à
intenção original do legislador. Por outro lado, armadilhas legislativas muitas vezes se
mantêm na forma cística para emergir em hora própria (ou imprópria), cabendo ao
poder dominante a palavra final, geralmente afastada da vontade de cidadãos livres e
do bem comum. Enfim, prevalece a autoridade do ter sobre a autoridade do ser,
predominando o muque em vez da vontade do povo. Isto não é salutar em nenhum
regime que se diz democrático ou que pretenda sê-lo... Ora bem, feito o intróito,
vamos ao desenrolar da idéia.
ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DA SEGURANÇA PÚBLICA
Do generalíssimo campo da segurança, desde o concerto entre nações amigas com
vistas à segurança coletiva, ou em prol dos interesses nacionais com a segurança
externa, ou adentrando a segurança nacional, enfim, fugindo dos cenários
internacional e nacional (topo) para os regionais e locais (base), prender-se-á o foco
apenas na segurança pública, sendo certo, porém, que existe uma segurança pública
nacional, embora no Brasil seja incipiente o seu valor globalístico (o todo maior que a
soma das partes).
Com efeito, esclarece-nos a doutrina da ordem pública que a segurança pública
(garantia da ordem pública) é o somatório globalístico das seguranças individual e
comunitária, ambas situadas no contexto da ordem pública material (o ser da
convivência social) e/ou da ordem pública formal (dever ser), o que remete aos
cidadãos a segurança pública como um direito a ser provido pelo Estado, antes de lhes
ser responsabilidade, como prescreve a Constituição Federal (Art. 144, caput).
A segurança pública não deve ser concebida a partir do aspecto negativo do Poder
do Estado (repressão por via de força destrutiva, já que o Estado é detentor do
monopólio do uso da força), mas por seu aspecto positivo, ou seja, o de um Estado
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transformador de atitudes e comportamentos sociais compatíveis com os direitos e
garantias individuais e fomentador do desenvolvimento num clima de paz e harmonia.
Embora a nossa idéia seja focalizar esta sucinta reflexão no cidadão munícipe, é
primordial situar a ordem pública como um bem nacional, abrangendo todas as
nuances da vida em sociedade, excluindo-se os fatores de segurança interna, – e de
garantia da ordem interna, – situação de gravidade que pode alcançar o perigoso
estágio de exceção legal. Porque a preservação da ordem pública não se resume à
coibição da desordem, mas antes idealiza uma situação de paz, harmonia e igualdade
na convivência social sob a égide dos direitos universais da pessoa humana, de
preferência sem a necessidade de intervenção estatal para fazê-los respeitados.
A ordem pública material (o ser) é deveras importante. Num entendimento
rudimentar, é só imaginar a mãe que, ao perceber ou ser informada sobre a
possibilidade da ocorrência de chuva, coloca um abrigo na mochila do filho que vai à
escola. A chuva ocorre de caminho, o filho veste o abrigo e a proteção lembrada pela
mãe evita que ele se resfrie; daí, com esta simples prevenção familiar, a mãe evita
que seja acionado um sistema de saúde que, se particular, acarretará desordem no
orçamento familiar; se público, este será sobrecarregado em virtude de um mal que
poderia ser evitado. Nada disso tem a ver com lei alguma (dever ser), mas se integra
à acepção material (descritiva) da ordem pública.
Ignorando-se os preconceitos (semânticos, políticos, ideológicos, dogmáticos etc.)
ainda absurdamente verificados na prática da segurança pública no Brasil, a verdade é
que há uma aberrante dissonância entre a boa doutrina (ora inexistente) e a lei
vigente (atualmente imprópria). Pois não é possível, como se deduz da Constituição
Federal, praticar o que prescreve a hodierna doutrina de ordem pública neste país que
se intitula democrático, mas está longe de o ser.
Seguindo esta lógica, – e para provocar uma reflexão particular, – vale sublinhar o
manancial doutrinário da Escola Superior de Guerra, com a ressalva de que muitos
administrativistas pátrios colaboraram na formulação desse corpus doutrinário,
conforme demonstra vasta bibliografia citada em Manual Doutrinário da ESG datado de
19891, ou seja, depois de promulgada a Carta Magna:
Na medida em que uma doutrina busca oferecer uma
interpretação dos fatos e orientação para a ação, ela
corresponde
a
uma
padronização
de
relações
intersubjetivas e de significados que, ao mesmo tempo,
condiciona a forma pela qual a realidade é percebida e
fornece prescrições acerca do modo pelo qual as ações se
devem dirigir à modificação desta realidade... (grifos
nossos).
Deve-se realçar o significado de intersubjetivo, adjetivo filosófico atribuído a Hegel
(de difícil padronização, por sinal). Vejam o que diz o Aurelião2:
1. Estado-Maior das FFAA. Escola Superior de Guerra (ESG). DOUTRINA. Rio de Janeiro, 1989.
2. Dicionário Eletrônico Aurélio. Positivo Informática Ltda. 2004.
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1. Que se passa entre sujeitos diversos. 2. Filos. Relativo
a fenômenos individuais e subjetivos que são socialmente
produzidos através do auto-reconhecimento de cada sujeito
em cada um dos outros, como ocorre, por exemplo, na
criação de identidades culturais.
Significa, pois, intersubjetividade, a busca individual de um padrão de conduta a
partir de valores éticos (neles englobados as leis, a moral e os costumes)
internalizados por cada indivíduo diante do espelho, para depois esse indivíduo se
somar aos que concordam com os mesmos valores, tornando-os cultura natural de
todos, o que ressalta a importância da individualidade e reforça a idéia de que a ordem
pública material sobreleva numa sociedade civilizada, pois depende pouco da
imposição de poderes negativos por parte do Estado.
Informa-nos a ESG3 que segurança é uma necessidade e um direito inalienável,
reportando-se inclusive à Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigos 3º e 7º,
respectivamente: Todo indivíduo tem direito à segurança de sua pessoa; e todos têm o
direito de ser protegidos.
Não há dúvida de que o primeiro foco da segurança é o indivíduo singularmente
considerado e depois convivendo em comunidades (segundo foco). A partir deste
ponto, serão iluminados alguns conceitos que vinculam a ordem pública à segurança
pública, e esta à defesa pública. Ainda escorado no Direito Administrativo da Ordem
Pública, destaca-se o conceito operativo gravado pelo Professor Diogo de Figueiredo
Moreira Neto:
Ordem pública, objeto da segurança pública, é a
situação de convivência pacífica e harmoniosa da
população, fundada nos princípios éticos vigentes na
sociedade. (grifo nosso).
Na medida em que a ordem pública é objeto da segurança pública, conclui-se que a
segurança pública é o sujeito de sua garantia; segurança que, por sua vez, só se
materializa a partir do ato, que é a defesa pública, poder instrumental do Estado
geralmente de concepção negativa: coerção com o fim de preservar ou restaurar a
ordem pública.
Tornando ao Manual da ESG4 2vale sublinhar os conceitos de segurança pública e de
defesa pública:
Segurança Pública é a garantia que o Estado
proporciona à Nação, a fim de assegurar a Ordem Pública.
(grifo nosso).
Defesa Pública é o conjunto de atitudes, medidas e
ações adotadas para garantir o cumprimento das leis, de
3. Ibidem 1.
4. Ibidem 1.
5. Ibidem 1.
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4
modo a evitar, impedir ou eliminar a prática de atos que
perturbem a Ordem Pública. (grifo nosso).
O objetivo desta digressão é deixar claro, a uma, que o foco da segurança pública é a
Nação, que é, em síntese, povo politicamente organizado. O Estado, portanto, deve ao
povo o serviço para o qual foi criado e de quem recebeu delegação para cumprir a sua
função-síntese, que se poderia resumir no binômio gravado no Pavilhão Nacional:
Ordem e Progresso.
Enfim, a segurança pública, como garantia da ordem pública, tem no cidadão sua
célula primordial (segurança individual), na família o seu tecido, e na comunidade o
seu corpo social (segurança comunitária). É, portanto, um processo que funciona da
base para o topo da pirâmide.
A partir desta constatação, fruto de exaustivos estudos envolvendo uma gama de
conhecimentos de Ciências Sociais, incluindo-se a Filosofia, demais da História das
Sociedades através dos tempos, o mundo ocidental vem tentando se ajustar a uma
ordem minimamente negativa e maximamente incentivadora do progresso,
ressalvadas as exceções dos regimes tiranos e de quaisquer ideologias cerceadoras de
direitos e liberdades individuais.
A segurança pública num regime democrático é ou deve ser posta como um direito
voltado para o alcance do bem-estar e da felicidade do cidadão. Portanto, tudo que
interfira no sentido inverso desta ordem desejada deve ser controlado, reorientado e,
por fim, sem mais alternativa, reprimido pelo Estado por delegação da sociedade.
Quanto maior for o sentimento de felicidade e bem-estar de um povo, menor será a
necessidade de repressão, caminho ideal senão único para os que almejam integrar-se
a uma sociedade efetivamente civilizada. O resto é pura retórica de terceiromundistas, entre os quais, infelizmente, destaca-se o Brasil.
É forçoso sublinhar a definição de defesa pública contida no manancial doutrinário
das ESG5 após a promulgação da Constituinte de 1888. A própria ESG diferencia
conceitualmente o alcance da segurança (amplo, completo e mais atual que o de
defesa). Dentro desta lógica conceitual, o manual segue em sua doutrinação
sublinhando-se o general Lyra Tavares, em 1966, a distinguir os dois termos:
A Defesa se organiza com o fim especial de repelir um
ataque previsto, ao passo que a Segurança, no sentido em
que a encaramos, é estabelecida como cobertura integral a
qualquer tipo de ameaça que ela própria – na Segurança –
torna inoperante e desencoraja.
E sintetiza:
Segurança é um estado, ao passo que Defesa é um ato
diretamente ligado a determinado tipo de ameaça
caracterizada e medida. (Grifos nossos).
O marechal Castello Branco, em 1967, salientou o plano mais amplo e
elevado da segurança:
O conceito tradicional de Defesa Nacional coloca mais
ênfase sobre os aspectos militares da Segurança e,
correlatamente, sobre os problemas de agressão externa. A
noção de Segurança é mais abrangente. Compreende, por
assim dizer, a defesa global das instituições, incorporando,
por isso, os aspectos psicossociais, a preservação do
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5
Desenvolvimento e da estabilidade política interna; além
disso, o conceito de Segurança, muito mais explicitamente
o de Defesa, toma em linha de conta a agressão interna,
corporificada na infiltração e subversão ideológica... (Grifos
nossos).
Neste ponto, sobreleva considerar que logo na introdução o referido manual, ao
definir doutrina, entre outras afirmações correlatas assegura:
(...) Assim, a Doutrina representa idéias básicas que
visam a imprimir normas à conduta humana nos diversos
setores em que atua. Nesse sentido, é um sistema de dever
ser e incorpora um propósito normativo, além de
condicionar as ações individuais e coletivas. (Grifos nossos
e dos autores).
Já é desnecessário aprofundar os significados de doutrina e de defesa. Basta
reiterar que o manual da ESG é posterior à Constituição Federal promulgada em
1988... Apenas se deve observar que doutrinar é ensinar alguém a fazer algo de
acordo com o ensinamento. Ou seja, uma impregnação de atitudes visando a gerar
comportamentos, segundo prescreve, grosso modo, a Psicologia Social.
A CARTA MAGNA
Longe de representar avanço, a Constituição Federal de 1988, – até hoje festejada
como um “primor democrático”, – na verdade pouco avançou na segurança pública.
Predominou, como sempre, o interesse de grupos dominantes (elite), forjando-se um
ordenamento jurídico-constitucional desconfiado, de roupagem imperial e em
conformidade com a doutrina da ESG anterior e posterior. Enfim, nada mudou.
As contradições são aberrantes e indicam rumo inverso daquele que prescreve a
boa doutrina numa democracia de fato e de direito. É, enfim, um sistema legal imposto
do topo para a base, calcado em premissas opressoras e destruidoras dos ideais de
transformação da sociedade brasileira. Em tudo e por tudo o capital venceu o trabalho,
a propriedade permaneceu mais importante que a honra e a dignidade da pessoa
humana, num pragmatismo perverso e impeditivo do progresso natural dos indivíduos.
Não há pressuposto defensor deste modelo constitucional de segurança pública. Nas
entrelinhas constitucionais, os grilhões permaneceram e suas chaves continuam nas
mãos dos burocratas estatais, os mesmos de antes e depois, todos lotados em
eternidade no que a Carta Magna designa por instituições democráticas. Ora, uma
instituição é uma organização com um fim a alcançar. É formada por pessoas atuando
segundo regras preestabelecidas. E, se essas regras não forem democráticas (a
começar pelas leis), as instituições jamais o serão.
A lei funciona como fator importantíssimo de mudança, desde que manifeste a
vontade popular (legalidade = legitimidade). Com base nela, as instituições
democráticas buscam seus aprestos e recursos humanos são treinados no sentido de
fazer valer o que está escrito. Mas, se a natureza do povo for tendente ao
conformismo, – e é o nosso caso, – no final acaba consagrando leis impróprias e vivese uma ilusória democracia. Por isso é imprescindível que o rumo de um povo em
direção à democracia inicie-se no seu Contrato Social: a Carta Magna. Mas esta,
brasileira, comete pecados conscientes no sentido inverso da valorização do indivíduo
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enquanto membro de sociedade democrática e civilizada. Voltemos, pois, aos grilhões
supracitados, a começar pelo título constitucional referente.
Como um portal de entrada rumo à desgraça lá está o TÍTULO V: Da Defesa do
Estado e das Instituições Democráticas. Em seguida, – e em consonância com o título
imposto, – emerge em prioridade o poder negativo3 (destruidor) do Estado e de suas
instituições democráticas: CAPÍTULO I: Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio; ou
seja, dois dispositivos de exceção legal que se deveriam situar como alternativas
últimas, pois seus efeitos são catastróficos.
Na seqüência, gravou-se o CAPÍTULO II: Das Forças Armadas. Relembrando
Maquiavel: no primeiro capítulo, a boa lei; no segundo, a boa arma. E no Art. 142,
além da defesa da pátria, – suficiente num regime democrático, – inseriram a
possibilidade de ações referentes à garantia dos poderes constitucionais e, por
iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem (grifo nosso).
Assim se garantiu o preparo das Forças Armadas para a defesa interna (defesa de
poderes e não de cidadãos) em situação de exceção legal convenientemente ajustada
ao capítulo primeiro. E surge no último vagão da locomotiva antidemocrática o
CAPÍTULO III: Da Segurança Pública. E logo no caput a Lei Maior disse a que veio:
A segurança Pública, dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos, é exercida para a preservação
da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio, através dos seguintes órgãos: (...). (Grifos
nossos)
Ressalvado o fato de que é difícil inserir alguma incolumidade relativa à honra e à
imagem das pessoas nesta gravação constitucional, há no texto uma sutileza de difícil
crença de que não haja sido proposital. Fala-se apenas em preservação da ordem
pública; omite-se a possibilidade de sua restauração, de modo a melhor esclarecer em
que ponto da desordem as Forças Armadas interferirão, sendo certo que a gradação
da desordem, – ressalvados os casos extremos de calamidades naturais (fenômenos
naturais) e artificiais (greves, revoluções, guerras etc.), – é a partir de conflitos sociais
plenamente controláveis pelo serviço policial e pela força policial, a par de outras
medidas antecedentes como a negociação com manifestantes e grupos
momentaneamente sublevados, geralmente desarmados. Portanto, a preservação se
mantém no nível de poder local, e a restauração somente dependerá de força federal
ultima ratio. Mas citar a preservação da ordem pública e omitir sua restauração evitou
explicar a diferença entre uma coisa e outra.
Também releva considerar a expressão responsabilidade de todos. Como? Quais
são os instrumentos desses todos para cumprir o dito constitucional? Como um
favelado cercado de bandidos armados arcará com sua responsabilidade? Ora, isto é
falácia, pois até mesmo os Estados-membros e os Municípios estão cerceados em seus
poderes e não podem cumprir com o dever nem com a responsabilidade ditados pela
Lei Maior em relação à segurança pública.
Ora bem, a ordem pública material (o ser), além de se restaurar sozinha ou por
iniciativa isolada de cidadãos (aí sim, de acordo com o princípio da intersubjetividade),
ainda conta com a ação coercitiva do Estado-membro e dos Municípios, em alguns
casos nem prevista em lei (Poder de Polícia), embora se punam os excessos. A ordem
material, portanto, antecede-se à lei (ordem formal). A que ordem, então, se refere o
caput do Art. 142 da Carta Magna? E a que lei?
3
. Foucault, Michel. Microfísica do Poder. 18º edição. GRAAL. 2003. Rio de Janeiro (Do texto introdutório de
Roberto Machado, p. XVI).
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Explica-se, deste modo, a centralização federal do poder de agir na segurança
pública, a começar pelo título constitucional, que focaliza a Defesa do Estado e das
Instituições Democráticas. O título, cá pra nós, não parece considerar o fato de que o
Poder do Estado é descentralizado e disseminado entre União, Estados-membros e
Municípios, demais dos micro-poderes, estatais ou privados, que interagem em
concordância ou conflito no cotidiano da convivência social, sem que isto signifique
desordem pública a ser caracterizada e medida pelo Estado. Mas enquanto a União
pode tudo, os demais níveis de Poder do Estado estão limitados em suas ações por um
princípio de desconfiança que se dissemina e afeta a sociedade brasileira no seu todo.
Isto é, sem embargo, resíduo autoritário, o que, aliás, tem origem nos tempos
imperiais e precisa ser urgentemente vencido.
Outra coisa: o que se quis dizer com instituições democráticas? Quem será capaz
de definir com exatidão o que é uma instituição democrática? De quem é o direito ou a
responsabilidade de apontar o significado real da expressão? Seria a família uma
instituição democrática? Ou a Escola? Ou a Igreja? A Lei? Ou seria a Abin?... Vamos ao
Aurelião?
Instituição (u-i) [Do lat. institutione.]
Substantivo feminino.
1. Ato de instituir; criação, estabelecimento.
2. A coisa instituída ou estabelecida; instituto:
instituições legais.
3. Associação ou organização de caráter social,
educacional, religioso, filantrópico, etc.
4. (...)
5. Sociol. Estrutura decorrente de necessidades sociais
básicas, com caráter de relativa permanência, e
identificável pelo valor de seus códigos de conduta, alguns
deles expressos em leis; instituto.
A questão é saber o que mudou institucionalmente no país após a abertura. No
caso da segurança pública, jorraram uma cortina de fumaça para manter o que antes
existia. Nada mudou. As estruturas são as mesmas e as Polícias Militares devem
obediência ao Exército Brasileiro, que, inclusive, exerce o controle de todas as armas
de fogo apreendidas no país. Por quê? Será a medo de governantes estaduais se
sublevarem e aproveitarem essas armas para distribuí-las à população? Qual será, na
realidade, a verdadeira motivação da União? Há exagero nosso? Então esmiúcem o
Inciso XXI do Art. 22 da Carta Magna:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
XXI – normas gerais de organização, efetivos, material
bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias
militares e corpos de bombeiros militares.
Tornemos agora ao § 6º do Art. 144, que se integra ao TÍTULO IV da Carta Magna:
As polícias militares e corpos de bombeiros militares,
forças auxiliares e reserva do Exército...
Nem mais é preciso para provar que os governantes estaduais arcam com a
elevada despesa das estruturas estaduais de policiais-militares e bombeiros-militares,
mas não podem flexioná-las livremente com o fim de atender aos reais e
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multifacetados reclamos das populações regionais no tocante à segurança pública.
Tudo passa pelo Poder Central e dele é dependente, menos a despesa... Era assim
antes e continua assim, ou seja, um grilhão constitucional a impedir que autoridades
públicas municipais e estaduais ajam para cumprir com o dever e a responsabilidade
aludidos na Carta Magna.
Com efeito, é forma sutil de manutenção do foco cultural na defesa interna,
naqueles antagonismos e pressões, ou seja, nos óbices aos ONP mui bem descritos no
referido Manual da ESG (1989), de texto nitidamente ideológico. Isto se chama
ambigüidade, mas que se mantém desnecessariamente, já que, em situações de
anormalidade extrema, e em regime de exceção legal, todas as forças podem e devem
ser acionadas, desde que haja vontade política. Ou então elas se movimentarão como
em 1964...
A questão crucial é que o sistema impropriamente cristalizado na Carta Magna não
está atendendo às reais necessidades da sociedade brasileira em relação à violência e
ao crime, fatores sociais sempre cobrados dos governantes estaduais, e estes,
impossibilitados de flexionar suas estruturas de segurança pública para lograr êxito
contra esse tipo de calamidade social, ficam apenas tentando curar fratura exposta
com esparadrapo. Claro que tudo tem a ver com os ditames constitucionais cujo foco
não é seguramente o Cidadão Brasileiro nem a Sociedade Brasileira, mas a Defesa do
Estado e das Instituições Democráticas.
Aliás, o desprezo pela democracia e o descuido dos legisladores constituintes
atingiram o cúmulo de se gravar na Lei Maior um dos mais aberrantes sofismas
doutrinários, conforme se infere do § 5º do Art. 144:
Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a
preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros
militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe
a execução de atividades de defesa civil. (grifos nossos)
Ó Deus! Reduzir a execução de atividades de defesa civil a Corpos de Bombeiros é
inequívoca prova de que os constituintes não se importaram ou desconheciam o
assunto. Pois a defesa civil é tão complexa que jamais se poderá resumir a esta
redundância constitucional; demais disso, errônea. Ora, é claro que aos Corpos de
Bombeiros incumbem a execução de atividades de defesa civil, assim como a todos os
organismos governamentais em seus três níveis de poder do Estado (União, Estadosmembros e Municípios), dentre muitas outras instituições nacionais e internacionais
(governamentais ou particulares) que se movimentam para socorrer populações
atingidas por calamidades em tempos de paz ou de guerra. E muitas calamidades, por
sua natureza, às vezes nem requerem ação de bombeiros.
Na realidade, a defesa civil num sistema democrático é tão imprescindível que
deveria possuir estrutura ministerial, assim como os Estados-membros e os Municípios
se deveriam organizar de modo idêntico. Mas misturar atividades típicas de bombeiromilitar com as de defesa civil como se as segundas fossem mero remate das
primeiras, é simplesmente absurdo! Porque é certo que as atividades básicas de
bombeiro-militar apenas se integram ao imenso rol de atividades de defesa civil
executadas por tudo que é órgão público ou particular em vista de calamidades,
muitas das quais não guardam qualquer vínculo, nem indireto, com a nobre missão
dos bombeiros.
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CONCLUSÃO
Este incompleto esforço objetiva demonstrar a necessidade de se mudar o sistema
de segurança pública a partir de Emenda Constitucional que coloque os bois na frente
da carroça. Não é caso de apresentar nenhum modelo estrutural. Isto deve ser
discutido entre políticos, juristas, universidades, cientistas sociais e demais instituições
democráticas de todos os naipes. Vai aqui, na verdade, apenas uma sugestão
conjuntural: que o TÍTULO IV da Carta Magna seja: Da Defesa do Cidadão e da
Sociedade Brasileira!... Que o foco primeiro desta defesa se situe nos cidadãos
detentores de direitos, e depois nas instituições que os servem, permitindo-lhes
possuir e manejar os aprestos necessários ao cumprimento integral dos ditames
constitucionais!... Que os deveres dos cidadãos e as situações de exceção legal sejam
grafados nos derradeiros artigos do último capítulo! Que se institua uma doutrina de
segurança pública extramuros de quartéis por iniciativa da Sociedade Civil!
Releva, por derradeiro, considerar a possibilidade (por que não?) de Municípios,
como ocorre com os Estados-membros e a União, se subdividirem em três poderes,
instituindo-se sistemas municipais completos de segurança pública (delegados,
promotores, juízes, presídios etc.) para controlar a violência e o crime a partir do
munícipe.
Basta ser nacional, como de fato o é, o imperativo das Leis Penais e Processuais
Penais, o que igualmente ocorre com os demais ramos do Direito. Nada, portanto,
impede que muitos Municípios sejam incluídos no sistema segundo regras
preestabelecidas na Constituição da República e em Leis Federais. O resto é ensinar
corretamente (doutrinar) no sentido de consolidar um Sistema Nacional de Segurança
Pública plural, democrático e globalístico. Afinal, ninguém tem o direito de desconfiar
de ninguém, e democracia se faz da base para o topo, do Cidadão para a Sociedade, e
desta para o Estado, que é (ou deveria ser) apenas um eficiente e eficaz agente a
serviço do povo brasileiro. Ora, chega de “Polícia do Estado”! Vamos à luta para
consagrar a “Polícia do Cidadão”! Depois, é só doutrinar e o tempo cuidará do resto.
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