0 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO- MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM EDUCAÇÃO Juliana HollerbachBehr DISCURSOS SOBRE INFÂNCIA NOS PROJETOS POLÍTICOS PEDAGÓGICOS DE EDUCAÇÃO INFANTIL Santa Cruz do Sul 2014 1 Juliana HollerbachBehr DISCURSOS SOBRE INFÂNCIA NOS PROJETOS POLÍTICOS PEDAGÓGICOS DE EDUCAÇÃO INFANTIL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em educação - mestrado, área de concentração em educação, linha de pesquisa em identidade e diferença na educação, universidade de Santa Cruz do sul - UNISC, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em educação. Orientadora: Prof.ª Dr.ª BetinaHillesheim Santa Cruz do Sul 2014 2 Juliana HollerbachBehr DISCURSOS SOBRE INFÂNCIA NOS PROJETOS POLÍTICOS PEDAGÓGICOS DE EDUCAÇÃO INFANTIL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em educação - mestrado, área de concentração em educação, linha de pesquisa em identidade e diferença na educação, universidade de Santa Cruz do sul - UNISC, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em educação. Dr.ª BetinaHillesheim Professora Orientadora – UNISC Dr Cláudio José de Oliveira Professor Examinador – UNISC Dr.ª Sandra Regina Simonis Richter Professora Examinadora – UNISC Dr.ª Maria Carmen Silveira Barbosa Professora Examinadora – UFRGS Dr.ª Sandra DjambolakdjianTorossian. Professora Examinadora – UFRGS 3 AGRADECIMENTOS Sonho almejado, sonho conquistado! Da idealização do meu sonho até hoje, na concretização, levou algum tempo. Mas, graças a minha persistência e a motivação de alguns amigos, cheguei até aqui. Foi em Santa Cruz do Sul, na figura do Professor Dr. Felipe Gustsack, que esse sonho começou a se tornar realidade. A ele gostaria de estender meu respeito e eterno agradecimento, pois com sua acolhida pude vislumbrar o inicio de uma nova caminhada. Ao ser recebida como aluna especial pelo Professor Dr. Claudio José de Oliveira, que em nenhum momento deixou de exigir mais ou menos de nós, alunos especiais, fui presenteada com as primeiras escritas que me auxiliaram a constituir meu projeto de pesquisa para o processo seletivo de 2012. Sua contribuição foi de extrema relevância para que eu pudesse colher os frutos que agora estou colhendo. Muito obrigada é pouco para expressar meu carinho e admiração pelo seu trabalho. Ingressada como aluna regular do Curso de Pós-Graduação – Mestrado em Educação da UNISC – mais uma surpresa me foi concebida quando recebi o convite da minha atual orientadora, Professora Dra. Betina Hileishein, para trabalhar com a temática na qual essa dissertação discute como proposta de investigação: a infância. Durante as suas aulas e nos momentos de orientação, seus ensinamentos foram muito gratificantes, principalmente, no que tange aos “conceitos” estudados/analisados por Michel Foucault. Sua imensa experiência/conhecimento em relação a esse filósofo, fomentou ainda mais o meu desejo para compreender a sistemática de pensamento do autor frente aos movimentos que foram e estão sendo constituídos pela/na educação na atual conjuntura histórico-social. À Paula Scremim Xavier (Paulinha), Fernanda Zanette e Juliana Campos, meu muito obrigada pelo companheirismo e apoio dedicados para me estabelecer em Santa Cruz do Sul/RS. À minha colega e parceira de orientação, Maria da Glória Munhoz, sou grata pela sua amizade e coleguismo em todos os momentos que estivemos juntas. Aos meus colegas de linha de pesquisa e das outras linhas que compõem o curso de Mestrado da UNISC, obrigada pelo tempo em que convivemos e, mesmo depois de separados, grata pelo apoio de cada um. 4 Não poderia deixar de fazer um agradecimento especial à Secretaria de Pósgraduação – Mestrado em Educação na pessoa de Daiane Maria Isotton, pelo seu carinho e atenção a cada momento em que íamos buscar informações, solicitar algum documento ou material e refazer a matrícula. Sou grata pelos calorosos abraços que recebi de ti! A Deus, por me dar forças para continuar lutando por um ideal de vida. Pelas inspirações e aspirações para me tornar uma pessoa cada vez melhor, comigo mesma e com os outros. À minha família e minha filha Julia. Por último? Sim! Nesse caso, deixei minha família por último porque são muitas as emoções para serem expressas, sobretudo pelo que eles fizeram para me auxiliar nessa empreitada, por vezes deixando de lado seus próprios afazeres em prol dos meus estudos. Aos meus pais, minha gratidão pelo incentivo de buscar essa condição de Mestre em Educação e pelo apoio em todos os momentos em que cuidaram da Julia para eu poder me dedicar à minha escrita. Muito obrigada são duas palavras pequenas para transmitir todo o meu amor por vocês e aqui incluo os meus irmãos, Cris e Paulo. A vocês, meus irmãos, obrigada por me apoiarem em todos os momentos da minha vida. E a ti, Julia, agradeço pela compreensão e paciência que teve comigo, pelas noites mal dormidas e pelas vezes em que ficava sozinha, assistindo TV, para que eu pudesse estar concentrada no meu trabalho. Eu tenho tanto pra ti falar, mas com palavras, não sei dizer, como é grande o meu amor, por você! (Roberto Carlos) E vou parar por aqui, porque já estou emocionada demais!!! Muito obrigada, minha família querida!!! Amo demais todos vocês!!!! 5 “Todo conhecimento começa com o sonho. O sonho nada mais é que a aventura pelo mar desconhecido, em busca da terra sonhada. Mas sonhar é coisa que não se ensina, brota das profundezas do corpo, como a alegria brota das profundezas da terra. Como mestre só posso então lhe dizer uma coisa. Contem-me os seus sonhos para que sonhemos juntos.” (Rubem Alves) 6 RESUMO Essa dissertação de Mestrado tem como proposta de pesquisa analisar as principais ideias produzidas pelos documentos oficiais de três escolas de educação infantil pertencentes ao município de Santa Maria/RS sobre a questão da infância. Constituída ao longo do tempo como uma verdade cristalizada, naturalizada pelas políticas públicas vigentes, esse trabalho propõe discutir outras perspectivas de infância articuladas aos movimentos históricos, sociais e culturais. Partindo da análise dos Projetos Políticos Pedagógicos das Escolas de Educação Infantil para produção dos dados, pontua-se que, a maioria dos enunciados que configuram os projetos políticos pedagógicos das instituições analisadas, são sustentados por uma vertente discursiva na qual a infância é constituída como uma fase, período ou etapa do desenvolvimento humano. Observa-se um investimento na criança como material dos sonhos políticos, apresentando-as cada vez mais cedo à escola para tornar-se um cidadão promissor na/para a sociedade, entrelaçando-se as figuras de aluno e criança. Nesse sentido, entende-se que as ideias sobre infância, principalmente, no âmbito da educação escolar, buscam instituir o fortalecimento de um ideal político, econômico e social a respeito das crianças. Palavras–chaves: Infância, Criança, Projetos Políticos Pedagógicos. 7 ABSTRACT This Master degree dissertation has as research proposal to analyze the main ideas produced by official documents of three schools of childhood education, belonging to the city of Santa Maria / RS, concerning the issue of childhood. Constituted over time as a crystallized fact, naturalized by existing public policies, this study proposes to discuss other perspectives of childhood articulated to the historical, social and cultural movements. Parting from the analysis of the Pedagogical Political Projects of the Childhood Education Schools to produce data, it was pointed out that most of the statements that set the pedagogical political projects of the institutions analyzed were sustained by discursive strand in which childhood was constituted as a phase, period or stage of the human development. An investment in children as material of the political dream was observed, introducing them earlier and earlier to school to become promising citizens in / for society, interlacing the figures of student and child. In this way, it was understood that the ideas about childhood, especially in the field of school education, seek to establish a strengthening of a political, economical and social ideal regarding children. Key Words: Childhood, Child, Political Pedagogical Projects. 8 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9 2 CARA OU COROA? VARIAÇÕES SOBRE A INFÂNCIA..................................... 17 2.1 Criança, infância e modernidade ..................................................................... 22 2.2 Educação Infantil – em busca de um tesouro escondido?! .......................... 26 2.3 O coração da Infância – Santa Maria/RS Coração do Rio Grande ................ 33 3 PROCURANDO NEMO.......................................................................................... 37 3.1 Correntes marítimas – infância entre poder, saber, governamentalidade e produção de verdade ........................................................................................ 43 4 NATURALIZAÇÃO DA INFÂNCIA ........................................................................ 46 5 INFÂNCIA CIDADà ............................................................................................... 55 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 62 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 66 9 1 INTRODUÇÃO Embarque nesse carrossel Entre duendes e fadas A Terra encantada, espera por nós Abra o seu coração Na mesma canção em uma só voz. (...) Venha não perca o seu tempo que até a idade Se pode escolher Venha ser uma criança, girar nessa dança ser o que quiser. (Letras.mus.br, Carrossel, Arco Iris) Embarque nesse carrossel é uma expressão que me inspirou para iniciar uma discussão sobre a temática que considero relevante no campo da educação: a infância. Na medida em que tanto a escola quanto a infância são invenções da Modernidade, muitas vezes tais concepções são entendidas como dadas e indissociáveis entre si. De acordo com os RCNEI (1998, p. 17), O atendimento institucional à criança pequena, no Brasil e no mundo, apresenta ao longo de sua história concepções bastante divergentes sobre a finalidade social. Grande parte dessas instituições nasceram com o objetivo de atender exclusivamente às crianças de baixa renda.(...) A concepção educacional era marcada por características assistencialistas, sem considerar as questões de cidadania ligadas aos ideais de liberdade e igualdade. Entretanto, ao problematizar o que é ser criança e a noção moderna de infância, esse embalo de lá para cá e de cá para lá me fez perceber o quão importante é obtermos uma compreensão sobre os movimentos que vêm sendo produzidos nas escolas de educação infantil do nosso país em torno das ideias criança e infância. Desde a instituição das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96 que integra a educação infantil à educação básica de ensino, repercussões significativas geraram grandes embates e incertezas no contexto educacional brasileiro. Fato esse também que marcou mudanças de paradigmas frente às funções da escola de educação infantil como um nível de ensino que antecede os primeiros anos do ensino fundamental. Como resposta imediata a essas medidas foram constituídos documentos legais que amparassem as escolas elucidando algumas ferramentas pedagógicas que deveriam ser usadas nessa nova proposta de educação vigente. Refiro-me aqui aos Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação 10 Infantil que foram instituídos em 1998, a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais elaborados pelo Ministério da Educação e do desporto. Assinalo que uma das intenções principais desse documento é implantar ou implementar práticas educativas de qualidade que possam promover e ampliar as condições necessárias para o exercício da cidadania das crianças brasileiras.(p.13) O que causa estranheza nesse enunciado são as concepções que foram ou estão sendo constituídos para formalizar uma educação de qualidade e os discursos pedagógicos que circulam nas escolas de educação infantil sobre os critérios de ensino a serem contemplados para garantir tal qualidade na educação das crianças pequenas. Em conformidade com a LDB9394/96, o Plano Nacional de Educação promulgado em 2001 determina que cabe à creche atender crianças na faixa etária de 0 (zero) a 3(três) anos de idade e, à pré-escola, a faixa etária de 4 (quatro) a 6 (seis) anos de idade. Contempla ainda algumas obrigações educacionais que permeiam os recursos da pedagogia para desenvolver estímulos educativos que auxiliem a criança no seu desenvolvimento e na formação da sua personalidade. Nessa perspectiva, penso ser relevante marcar as condições que deverão ser adotadas pelas instituições educativas de educação infantil para contemplar crianças na faixa etária entre 4 a 6 anos de idade. Isso sugere um (re)pensar numa outra lógica de ensino e aprendizagem, com outro espaço físico e, principalmente, numa “nova” percepção do sujeito infantil. Operando com essas ideias, a partir das reformas educacionais que foram e estão sendo implantadas desde 2011, com a referida estruturação do ensino fundamental de oito para nove anos, outros questionamentos foram levantados em relação às implicações dessa proposta para a educação infantil. Nessa perspectiva, volto-me para os efeitos que estão sendo produzidos no contexto das escolas de educação infantil, mais especificamente, nos seus projetos políticos pedagógicos, levando em conta a constituição de outras perspectivas sobre a infância. Embora a partir do clássico estudo de Àries (1981), já existam vários trabalhos sobre a questão da infância (dentre os quais destaco Corazza (2002), Hillesheim (2008), Richter (2012), Rodrigues (2010), Souza (2011) entre outros), entendo que, tendo em vista o contexto das mudanças na educação escolar brasileira, ainda são poucas as discussões sobre esse tema. Nessa conjuntura de especificidades da educação infantil como nível de ensino, a necessidade de estabelecer outras propostas de ação, 11 além do cuidado à criança pequena, foi o que possibilitou a institucionalização da escola direcionada a esse público nas últimas décadas. De acordo com o diagnóstico divulgado pelo PNE (2001, p. 9), “A educação das crianças de zero a seis anos em estabelecimentos específicos de educação infantil vem crescendo no mundo inteiro e de forma bastante acelerada, seja em decorrência da necessidade da família de contar com uma instituição que se encarregue do cuidado e da educação de seus filhos pequenos, principalmente quando os pais trabalham fora de casa, seja pelos argumentos advindos das ciências que investigaram o processo de desenvolvimento da criança. Se a inteligência se forma a partir do nascimento e se há "janelas de oportunidade" na infância quando um determinado estímulo ou experiência exerce maior influência sobre a inteligência do que em qualquer outra época da vida, descuidar desse período significa desperdiçar um imenso potencial humano. Ao contrário, atendê-la com profissionais especializados capazes de fazer a mediação entre o que a criança já conhece e o que pode conhecer significa investir no desenvolvimento humano de forma inusitada. Hoje se sabe que há períodos cruciais no desenvolvimento, durante os quais o ambiente pode influenciar a maneira como o cérebro é ativado para exercer funções em áreas como a matemática, a linguagem, a música. Se essas oportunidades forem perdidas, será muito mais difícil obter os mesmos resultados mais tarde.” Essa tensão gerada pelas “novas” formas de pensar a educação para crianças na faixa etária de 0 a 6 anos de idade é que me possibilitaram, através desse trabalho de dissertação de Mestrado em Educação – UNISC – Santa Cruz do Sul, abordar algumas questões referentes às principais ideias/concepções de infância instituídas pelas escolas de educação infantil de Santa Maria/RS, por meio dos seus projetos políticos pedagógicos. Minha intenção é propiciar um momento de reflexão sobre as verdades que giram em torno dessa temática. E, para compreender os efeitos desses discursos atrelados a essas produções de verdades, faço alusão ao pensamento de Ternes (2004, p.157), o qual afirma que “a verdade é a nossa invenção”. Numa visão foucaultiana, entende-se por produção de verdade “um conjunto regular de fatos discursivos que transcendem o aspecto linguístico em determinado nível, mas que de certa forma relaciona-se com jogos estratégicos de ação e reação, de pergunta e reposta, de dominação e esquiva, como também de luta.” (Foucault, 2002, p.9) Assim, existem duas histórias da verdade. “A primeira é uma espécie de história interna da verdade, a história da verdade que se corrige a partir de seus próprios princípios de regulação. Por outro lado, a verdade que se forma em diferentes lugares, onde um certo número de regras de jogo são definidas, as quais se caracterizam por uma história externa, exterior, da verdade.” ( p.11) Para Benjamin (apud Pereira, 2012, p. 35), 12 “a verdade é mais uma busca do que uma posse, ou seja, é aquilo que, como busca, mobiliza e confere sentido ao próprio processo de produção do conhecimento. Desse modo, a verdade não figura como produto a ser enclausurado em forma de resposta definitiva, mas ao contrário, tem por compromisso, a fertilização das questões que a fomentam.” Dessa maneira, considerando que os Projetos Políticos Pedagógicos integram o jogo de produção de verdades sobre a infância, essa dissertação propõe investigar quais são as verdades produzidas por esses documentos. Para tanto, o estudo se apoia em algumas ferramentas conceituais, a partir de Michel Foucault, para discutir os diferentes discursos sobre a infância implicados nos projetos políticos pedagógicos das escolas de educação infantil de Santa Maria/RS: saber, poder, governamentalidade e produção de verdade. Além disso, é importante, nesse momento, tecer algumas considerações a respeito dos Projetos Políticos Pedagógicos, os quais estabeleci como material de análise e que operam como instrumento de base para explicitar as linhas de ação metodológica escolhidas pelas escolas. Segundo o Inciso I do artigo 12 da LDB 9394/96 prevê que os estabelecimentos de ensino, respeitada as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de elaborar e executar sua proposta pedagógica. (s.p.) Para Ferreira (2009, s.p), o PPP. Constitui-se em um documento produzido como resultado do diálogo entre os diversos segmentos da comunidade escolar a fim de organizar e planejar o trabalho administrativo-pedagógico, buscando soluções para os problemas diagnosticados. O PPP além de ser uma obrigação legal, deve traduzir a visão, a missão, os objetivos, as metas e as ações que determinam o caminho do sucesso e da autonomia a ser trilhado pela instituição escolar. Ressalto que, de acordo com Veiga (1998, p 1-2), todo projeto pedagógico infere um projeto político. Ambos articulam compromissos sociopolíticos inerentes aos interesses reais e coletivos da população majoritária. Ainda na ideia do autor, o sentido político está vinculado à formação do cidadão em relação a um tipo de sociedade. Na dimensão pedagógica, articulam-se vários princípios de intencionalidades e compromissos da escola na formação do cidadão participativo, responsável, compromissado, critico e criativo. Por outro lado, reporto-me a um período de experiência como coordenadora pedagógica de uma escola particular de educação infantil de Santa Maria/RS, onde pude constatar, no decorrer de algumas reuniões pedagógicas, a falta de 13 esclarecimento por parte dos profissionais da área, sobre a existência de um Projeto Político Pedagógico e suas interfaces. Consequentemente, essa “inexistência” de conhecimento das ideias que fundamentam teoricamente o perfil pedagógico da instituição na qual esses profissionais atuam, foi outro aspecto que me levou a pensar sobre a relevância dos projetos políticos pedagógicos, pois percebi a pouca participação dos grupos de pessoas que constituem a escola como sujeitos coparticipantes na (re)estruturação de tal documento. No entanto, apesar desse desconhecimento, os Projetos Políticos Pedagógicos fazem circular discursos a respeito de como deve ser uma escola de educação infantil e sobre as crianças atendidas. Dessa forma, ao ser impulsionada pela temática da infância, voltei minha investigação para os discursos que são produzidos a respeito da infância e os efeitos desses enunciados na prática pedagógica dos docentes na medida em que compreendo que tais discursos constituem determinadas verdades sobre a criança e a infância. Apesar da maioria de minhas experiências profissionais terem acontecido nas escolas de educação infantil, não sabia o quê e como problematizar essa questão da infância no contexto da escola infantil. Isso porque, durante muitos anos, partilhava deum pensamento que aliava a criança a perspectivas pedagógicas que compreendiam a infância como algo da ordem de uma essência do ser criança. Para minha surpresa, ao me apropriar de algumas leituras voltadas à infância, comecei a trilhar um percurso muito interessante e complexo. Refiro-me aqui à desnaturalização de alguns conceitos de infância que, até então, trazia comigo, através da minha formação acadêmica, como sendo uma fase, período ou etapa de desenvolvimento do ser humano. Além disso, a partir das leituras realizadas, compreendi que essa tendência acadêmica de vislumbrar uma “educação de qualidade”que garantisse um ensino e uma aprendizagem significativos para a criança se tornou um discurso habitual no cenário educacional, pois como explica Sommer (2007, p.59) “o que se diz na escola somente repercute porque é referendado por uma ordem mais ampla, porque está na ordem do discurso”. Ao tratar sobre as práticas discursivas pedagógicas, Sommer ainda afirma que, 14 (...) podemos definir como práticas discursivas pedagógicas, por exemplo, a ampla produção acadêmica no campo da educação que focaliza a escola, nas mais diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, os enunciados do discurso didático, das metodologias, etc..(2007, p.58) É interessante ressaltar nessa definição as diferentes tendências que a escola incorpora pelos discursos que são produzidos no meio acadêmico e como essas teorias produzem formas de ser criança e viver a infância. Por outro lado, as práticas educativas escolares necessitam de determinadas verdades sobre a criança e a infância para poder sustentar suas ações. Entretanto, Bujes (2005, p.181) alerta que “a infância não é em si, um objeto de pesquisa; por outro lado, ela também não corresponde a um período de vida que seria universal, coisa que as teorizações modernas se esmeram em afirmar”. Nessa perspectiva, no presente trabalho a infância não é tomada como um objeto natural de pesquisa, nem se pressupõe uma essência infantil, como se as crianças fossem naturalmente portadoras de uma infância. Compreendo que, a partir dos movimentos históricos, culturais e sociais que vêm sendo produzidos pelos discursos ideológicos e pedagógicos das escolas de educação infantil a infância é uma invenção da modernidade. Com a ruptura de alguns paradigmas que efetivam a infância como um período/etapa/fase do desenvolvimento humano, estabeleço uma perspectiva de infância que possibilita pensar nessa temática a partir de enunciados que foram e estão sendo instituídos pelas/nas políticas públicas educacionais e são contemplados nos projetos políticos pedagógicos das escolas de educação infantil. Ainda no intuito de apresentar este trabalho, embarcando no carrossel, faço menção à minha trajetória como pesquisadora. Em função de minhas atividades profissionais, como participante de um projeto denominado Programa União faz a Vida!, pertencente à Cooperativa Sicredi, onde profissionais de diversas áreas, em especial da pedagogia, prestam assessoria pedagógica às escolas credenciadas, foi possível perceber muitas das angústias e dificuldades dos professores em relação à educação. Mais adiante, através de uma parceria com a Secretaria de Educação do Município de Santa Maria, com o objetivo de acompanhar as reuniões que aconteciam naquele momento para a reformulação dos projetos políticos pedagógicos de cada escola, foi possível me inteirar, gradativamente, do modo como as escolas se organizam, discutem e embasam seus trabalhos pedagógicos. 15 Uma constatação que favoreceu a consolidação da minha intenção inicial em analisar os PPPs das escolas de educação infantil refere-se aos referenciais didáticopedagógicos que sustentam as ações educativas das escolas de educação infantil, conhecido como Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Não irei me aprofundar nessa discussão sobre tal documento para não desviar do foco dessa pesquisa, mesmo porque outros autores tais como Maria Isabel Bujes (2000), já a fizeram, com muito precisão, suas análises sobre esse documento. O trabalho dessa autora constatou que a instituição desse documento propõe uma “arte de governar” as crianças na faixa etária de 0 a 6 anos de idade como “uma prática disciplinar normalizadora e de controle social.” Entretanto, embora os Referenciais Curriculares Nacionais já tenham sido substituídos pelo Conselho Nacional de educação e pelo Plano Nacional de Educação (2010), vale ressaltar que ainda servem de respaldo para as principais ideias que circundam os PPPs das escolas de educação infantil investigados nessa dissertação. Destaco que essa constatação foi realizada a partir da citação dos mesmos referenciais pelas escolas de educação infantil nos documentos analisados, o que denota a possibilidade de que esses conceitos ainda fundamentam suas linhas pedagógicas. Partindo dessas considerações, eis que se efetiva a necessidade de aprofundar um estudo voltado para os discursos produzidos pelos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas de educação infantil sobre as principais concepções de infância implicadas nos referidos documentos. Para tanto, realizei a análise desses documentos junto às escolas de educação infantil de Santa Maria, cidade de porte médio, do interior do Rio Grande do Sul. Tendo em vista as questões éticas, em nenhum momento serão citados os dados de identificação das escolas que disponibilizaram seus Projetos Políticos Pedagógicos. Apenas serão usadas as informações que estão expostas nesses documentos sobre as concepções de infância que estabelecem seus perfis metodológicos e pedagógicos de cada instituição analisada. Inicialmente, foram selecionadas para fins de análise, quatro escolas, sendo uma da rede municipal de ensino e as demais da rede privada de educação. Entretanto, após fazer uma prévia produção dos dados que seriam úteis para essa pesquisa, percebi que duas escolas, pertencentes à rede privada de ensino haviam disponibilizados seus PPPs na forma resumida. Mesmo contemplando alguns aspectos relevantes sobre as principais ideias/concepções de criança, não foi possível 16 mantê-las como materialidade de análise. Então, parti para uma quinta escola, também da rede privada de ensino, que disponibilizou o seu PPP na íntegra. De fato, foram analisados três Projetos Político Pedagógicos das escolas de educação infantil, entre elas duas da rede privada e uma da rede municipal de ensino. A dissertação organiza-se da seguinte forma: No primeiro capítulo – Cara ou Coroa, discuto os diferentes sentidos dados às palavras criança e infância, buscando uma melhor compreensão de como se constroem esses conceitos que sustentam os Projetos Políticos Pedagógicos das escolas de educação infantil de Santa Maria/RS. No capítulo seguinte – Procurando Nemo –, abordo as questões metodológicas que articulam os primeiros movimentos como pesquisadora para “definir” os critérios de seleção das escolas de educação infantil investigadas. Paralelo a esse movimento, procuro elucidar as ferramentas conceituais utilizadas, a partir de Michel Foucault, especialmente discurso, poder, governamentalidade e produção de verdade. Na sequência, no capítulo intitulado Infância Cidadã, proponho discutir as concepções que fomentam uma ideia acerca da constituição das crianças como sujeitos livres e autônomos para exercer sua cidadania. Considerando a capacidade do ser infantil para estabelecer uma participação ativa na sociedade, busco compreender a forma como as escolas de educação infantil de Santa Maria/RS produzem esses ‘conceitos’ nos enunciados presentes nos seus PPPs. Por fim, no capítulo intitulado Naturalização da Infância – Para sempre Cinderela?! –, aponto alguns discursos pedagógicos que circulam nos PPPs das escolas de educação infantil sobre as concepções que constituem a ideia de infância nos respectivos documentos institucionais. Paralelo a essa análise, destaco alguns movimentos histórico-sociais que foram e estão sendo instituídos acerca da infância enquanto práticas discursivas da pedagogia contemporânea. Para essa especificidade da análise, trago como suporte teórico outros documentos citados nos PPPs e que ainda sevem de respaldo para fundamentar as linhas de ação pedagógica de cada instituição, entre eles, cito o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Em contrapartida procuro entrecruzar esses dados produzidos pelos PPPs com outras perspectivas de infância sugeridas por autores que compartilham da ideia de uma ‘invenção ou descoberta’ da infância pela/na modernidade. 17 2 CARA OU COROA? VARIAÇÕES SOBRE A INFÂNCIA “O real não é representável, e é porque os homens querem representá-lo por palavras que há uma história da literatura.” (Em “Aula”, de Roland Barthes, apud Veppo, 2002, p. 341). Inicio essa discussão fazendo uma breve análise sobre o trecho que abre esse capítulo acerca da necessidade do homem em representar o “real” ou como nos evoca Michel Foucault, uma verdade que queremos estabelecer sobre o mundo que habitamos, por meio das palavras. Segundo o autor, “as palavras agrupam sílabas e as sílabas letras, porque há depositadas nestas, virtudes que as aproximam e as desassociam, exatamente como no mundo as marcas se opõem ou se atraem umas às outras.” (1999, p.52) O universo das palavras é muito curioso, principalmente quando nos damos conta de que elas – as palavras – podem possuir vários significados e/ou sentidos, os quais não são fixos e produzem formas de compreender e ver o mundo, pois as palavras expressam uma das formas mais significativas de linguagem. Desse modo, neste capítulo, discutem-se os sentidos dados às palavras criança e infância, em diferentes contextos pedagógicos que foram e estão sendo constituídos pelas escolas de educação infantil. Vale ressaltar que a análise em torno dessas palavras, criança e infância, foram priorizadas em razão dos discursos pedagógicos que circulam nesses documentos para referirem-se as especificidades do sujeito infantil. Entretanto, aponto que, nos PPPs das escolas de educação infantil, os conceitos de criança e infância vinculam-se, de forma estreita, à figura do aluno. Percebe-se que, com frequência, nos documentos analisados, há uma difusão de conceitos que entendem a criança ora como sujeito responsável pela/na construção do seu próprio conhecimento, ora como sujeito aluno-educando, implicado num sistema politico pedagógico voltado para os ensinamentos básicos na/para a construção de conhecimentos específicos a sua faixa etária. Tal vinculação entre as concepções de criança e aluno constituem o que Corazza (2002) denomina como infância escolar, a qual opera a partir de uma discursividade presente na própria pedagogia, visto que, desde a Didática Magna, a ligação entre infância e escolarização é naturalizada. Na sequência, tratarei de percorrer uma trajetória que marca os movimentos históricos, sociais e culturais que atravessam os conceitos de criança e infância estabelecidos como verdades na contemporaneidade. Operando com as formas pelas 18 quais esses conceitos circulam nos discursos pedagógicos das instituições de educação infantil e, entre cruzando-os comas atuais políticas públicas de educação de nosso país, é que, na última seção desse capitulo, pretendo mostrar como esses se constituem nos espaços educativos conhecidos como escolas de educação infantil. Antes de começar propriamente a tratar dessa questão, considero importante falar das motivações que me levaram a escolher esse titulo – Cara ou Coroa? Variações sobre a infância – para o primeiro capítulo dessa dissertação. Ao começar o processo de produção de dados, pesquisando nos documentos oficiais das escolas de educação infantil de Santa Maria/RS – Projetos Políticos Pedagógicos – depareime com uma dualidade linguística que, ora mensura a criança, outra a infância, como “sujeitos-objetos” de suas propostas pedagógicas. Por essa razão, julguei pertinente refletir sobre essas palavras e o que as mesmas podem representar num determinado contexto. Cara ou Coroa? é uma expressão de linguagem utilizada para representar um jogo de azar ou sorte, dependendo da perspectiva das pessoas que estão envolvidas no jogo. Nesse sentido, o mesmo pode valer para as palavras criança e infância que, quando analisadas em diferentes contextos linguísticos, podem produzir vários conceitos que ora aproximam ora afastam uma palavra da outra. Do mesmo modo, penso que ainda há um deslocamento teórico-prático que viabiliza uma compreensão mais apurada desses conceitos que atravessam as palavras criança e infância, muitas vezes utilizadas como sinônimos. No contexto dos PPPs, material de análise utilizado para a produção de dados dessa pesquisa, constata-se que os modelos discursivos pedagógicos que foram e estão sendo constituídos pelas escolas de educação infantil acerca das palavras criança, infância e aluno-educando produzem uma perspectiva de linguagem que contempla a infância como uma das etapas da vida. Nesse sentido, pretendo apontar, a partir de alguns autores contemporâneos, de que forma esse conceito de infância é uma construção histórica e social. Silva (2012), em seu texto “A produção social da identidade e da diferença”, infere uma proposição de que a linguagem é resultado de “atos de criação linguística”, que por sua vez, integram-se aos movimentos culturais e sociais de cada época. Em outras palavras, a linguagem é uma produção instituída por nós mesmos, por meio das relações que se estabelecem com o contexto cultural e social no qual estamos 19 inseridos. Ainda na ideia do autor, “a linguagem entendida como sistema de significação é, ela própria, uma estrutura instável.” (p.78) Essa instabilidade que permeia a linguagem provém de uma característica associada ao signo. Entende-se por signo “um sinal, uma marca, um traço que está no lugar de outra coisa” que não o liga diretamente com essa coisa ou ao seu próprio conceito. Dito de outra forma, é a partir das nossas “ilusões” e necessidades de representação linguística que o signo passa a substituir a presença da “coisa” ou do “conceito”. Por sua vez, Fischer, baseada numa perspectiva foucaultiana, problematiza a ideia de representatividade das palavras, pois “a palavra, o discurso, enfim, as coisas ditas não se confundem com meras designações: palavras e coisas para ele têm uma relação extremamente complexa, justamente porque são históricas, são construções, interpretações; jamais fogem à relação de poder; palavras e coisas produzem sujeitos, subjetividades, modos de subjetivação” (2003, p. 373). Efetivamente, ao referirmo-nos à linguagem, estamos estabelecendo uma relação direta com os discursos de verdade produzidos na história para instituir uma “vontade de verdade.” Foucault (1996), em sua obra A ordem do discurso, marca a ideia de que cada vez mais somos atraídos por esses discursos de verdade para suprimir um desejo ou exercer uma relação de poder intrínseca ao ato discursivo. Ainda na visão do autor, o discurso reflete uma reaverbação do que queremos possuir como verdade num determinado tempo e espaço social. Além disso, ao estabelecer uma relação de coerção entre linguagem e discurso, estamos sendo engendrados por uma espécie de poder que se instala nas formas de linguagem que nos apropriamos ao longo da história. Nessa perspectiva, pontuo a ideia que estabelece a criança-aluno como sendo uma verdade instituída pelas escolas para constituir uma espécie de “escola” que prepara o sujeito para os anos posteriores. Em outras palavras, refiro-me aqui a problemática da criança-infância enquadrada como principio constituinte das relações de poder que se estabelecem a partir das atividades propostas na educação infantil. Dessa forma, questiona-se mais uma vez, os discursos que vem sendo instituídos pelas escolas de educação infantil, através dos seus PPPs para constituir seus princípios pedagógicos e, ao mesmo tempo, contemplar as ideias que entrecruzam as questões do ser criança-infância-aluno nessa faixa etária. A partir desse enfoque analítico, aponto que as questões discutidas por esses autores nos fazem pensar sobre as formas de linguagem que usamos para 20 representar as palavras criança, infância e aluno (ou educando) em momentos distintos. Frente à produção de dados constituídos para a elaboração do capítulo que tratará de discutir as concepções de infância que circulam nos PPPs das escolas, assinalo que, em nenhum momento, no corpo dos documentos analisados, foi explicitada uma ideia de criança, infância ou aluno, especificamente; porém, tais noções aparecem de forma implícita, como se fossem naturais, universais. Por outro lado, é notável a frequência com que as escolas utilizam uma linguagem previamente elaborada – e aqui me refiro às teorias pedagógicas que atendem as expectativas da escola para explicar as denominadas etapas da infância - para sustentar suas ações pedagógicas. Ou ainda, quando tentamos buscar uma significação ou um sentido para as palavras criança, infância ou aluno-educando, logo damo-nos conta de que, no âmbito dos PPPs, há uma interdependência do entendimento de uma em relação à outra, como se fossem indissociáveis. Assinalo que, para além dos signos, um novo paradigma sobre a linguagem foi estabelecido para romper com algumas verdades ligadas a essa estrutura, conhecida, mais especificamente, desde o século XX como “virada linguística.” Na obra Virada linguística – Um verbete, Ghiraldelli Jr. (2008, p.1), diz que a expressão “virada linguística”, destina-se tipicamente ao campo filosófico. A mesma indica o “predomínio da linguagem sobre o pensamento como um dos objetos da investigação filosófica.” Para Bujes (2005, p. 186), a “virada linguística” “pôs em relevo este modo de conceber a linguagem, mostrando o papel fundamental que esta desempenha na instituição de sentidos que damos às coisas do mundo.” A autora (2005) propõe uma perspectiva de linguagem que transcende a “fiel descrição da realidade”. Nessa perspectiva, a linguagem também é uma “invenção humana, instituída nas trocas e negociações de sentido que estabelecemos intersubjetivamente”(p.186). Assim, podemos evocar que as palavras também sofrem modificações discursivas correspondentes a uma “trama cotidiana da história”(p.186). Recorrente a essa mudança na forma de conceber a linguagem como uma leitura do mundo é que se constitui a chamada “virada linguística.” Por compor um conjunto de significados e significações constituídas pelo próprio pensamento que produz uma realidade, a “virada linguística” atribui o uso das linguagens na “instituição de práticas e na constituição de identidades sociais” (p.186). O mesmo se aplica para a tentativa de exprimir uma ideia acerca da compreensão das palavras criança e infância. Na visão 21 da autora, “essas palavras que usamos para descrevê-las, para atribuir-lhes um sentido, não passam de modos contingentes arbitrários e históricos de nos referirmos a elas” (p. 189). Do mesmo modo, Veiga-Neto e Lopes (2004), também pontuam uma versão sobre a questão da “virada linguística” como sendo a problematização da relação estabelecida entre o que cada um pensa e a coisa ou fato a ser pensada, conhecida e dita. Ainda de acordo com os autores, não existe na virada linguística a hipótese de deslocamento entre o pensado e o dito para com quem pensa e diz, ou seja, mesmo que não tenhamos clareza da espécie de linguagem que usamos para expressar algo ou alguma coisa –dizer, falar ou escrever, essa linguagem, por sua vez, será representada por uma realidade cultural e social da qual fazemos parte. Essas interpretações podem variar infinitamente, porém nem sempre o significado que se estabelece para determinada palavra manterá seu mesmo padrão de significado valorativo. Por outro lado, Veiga-Neto e Lopes (2204) assumem que “as palavras possuem significados (Bedeutung), mas por si só não fazem sentido (Sinn)”(p. 9). Entretanto, implicadas como proposições ou enunciados, as palavras não possuem significado e, sim, sentidos que representam “um estado de coisas ou uma situação possível” (p.9). Para os autores, a “virada linguística”, como uma característica moderna, marca a constituição de um modo de pensar e dizer algo sobre o que se está pensando de acordo com alguns movimentos culturais e sociais da época, dizendo respeito ao significado das palavras. Para eles, ao buscarmos um conceito que articule o próprio conceito que envolve tal palavra, estamos nos apropriando não do significado em si, mas da interpretação que temos de tal palavra. Até aqui, tratei de abordar as ideias de alguns autores que, de uma maneira ou de outra, possibilitaram visualizar outras perspectivas sobre as palavras, seus significados e seus sentidos num contexto linguístico. Além disso, foi possível perceber, por meio das reflexões realizadas a partir da “virada linguística”, as mudanças que ocorreram no cenário social e cultural da(s) época(s) em que essa(s) ideia(s) se constituiu (íram) como tal. Entendo que essa discussão sobre a questão da linguagem como instrumento para ver e compreender o mundo não se esgota aqui, porém, considero que, a partir dessas ferramentas conceituais de linguagem e suas implicações de leitura de mundo, foi possível chegar a uma compreensão mais elaborada do que vem sendo 22 estabelecido como “regra” para compor uma linguagem pedagógica em torno das concepções que contemplam as significações atribuídas à criança e à infância. Tendo em vista tais considerações, na próxima seção, pretendo discutir algumas ideias sobre a invenção da criança e infância como produção histórica e moderna. Nesse sentido, discuto alguns movimentos históricos que constituem as ideias referentes à criança e à infância. Mais adiante, busco compreender de que forma as escolas de educação infantil, por intermédio de seus Projetos Políticos Pedagógicos, constituem a ideia de criança e infância para estruturar suas ações filosóficas e pedagógicas. 2.1 Criança, infância e modernidade “Uma investigação sobre a infância e os fenômenos que a ela se associam deve se centrar não no que ela e eles são mas como se constituíram de tal maneira.” (Bujes, 2005, p187) Provocada pelas reflexões acima sobre as formas como a linguagem não representa, mas constitui o mundo, trago, a seguir, como foram constituídas as noções de criança e infância pela/na modernidade. No dicionário de Língua Portuguesa – Aurélio – (2008, p.170), criança “é um ser humano de pouca idade, menino ou menina. Pessoa ingênua, infantil, imatura.” Por outro lado, tem-se como definição para a palavra infância “etapa da vida humana que vai do nascimento à puberdade; puerícia, meninice. As crianças. O primeiro período de existência de uma instituição, sociedade, etc..” (p.290).Considerando a ideia de aluno também como referência para exprimir uma perspectiva de criança e infância, destaco, segundo Aurélio (2008, p.24) como sendo “aquele que recebe instrução e/ou educação de mestre(s), em estabelecimentos de ensino ou particularmente; estudante. No Estatuto da Criança e do Adolescente (2010, p.11), considera-se criança, “para os efeitos desta lei, a pessoa de até doze anos de idade incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.” De acordo com os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (1998, p.22), a ideia de criança é “uma noção historicamente construída e consequentemente vem mudando ao longo dos tempos, não se apresentando de forma homogênea nem mesmo no interior de uma sociedade e época.” 23 A partir dessas vinhetas é que pretendo, nessa seção, situar na história outras perspectivas que atravessam os conceitos de criança, infância e modernidade. E, para articular com as principais ideias que circundam essa temática, recorro a autores como: Àries (1981), Bujes (2205), Corazza (2002), Gagnebin (1987), Narodowski (2001), Kohan (2003), Bruckner( 1988), Sommer (2007) e Kramer (2007). Historicamente, a palavra infância não era remetida social e culturamente tal como a conhecemos e a compreendemos na atualidade. Por outro lado, ao buscarmos um entendimento etimológico da palavra em si, eis que surge um fato curioso, mas que, ao mesmo tempo, justifica a “anulação” da criança enquanto um ser pequeno ou de pouca idade em épocas anteriores à modernidade. Refiro-me a palavra in-fans, cujo prefixo in significa negação (não) e fans refere-se ao falar. De acordo com Gagnebin (1997, p. 87) “a palavra infância não remete primeiro a certa idade, mas sim àquilo que caracteriza o início da vida humana: a incapacidade, mais a ausência de fala.” Nessa perspectiva, ao designar a palavra infância para representar uma pessoa pequena, de pouca idade, outras possibilidades de linguagem começam a aparecer e se naturalizar como verdades absolutas para reconhecer essa “criatura” como um sujeito que se constitui num tempo e espaço social e cultural na qual está inserido. Dessa forma, aponto que até o século XVII a criança não era considerada, pela família, um membro responsável, assim, sua presença era insignificante no contexto familiar, confundindo-se com um adulto em miniatura. Todas as formas de exposição ou expressão das crianças, sejam elas pelas artes ou pelas suas vestimentas, levavam-nos a crer na inexistência de outro ser menor integrando aquele espaço social. De acordo com Àries (1981, p. 51) “no mundo das fórmulas romanas e até o fim do século XIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens de tamanho reduzido.” Todas as intenções desejadas pelas famílias eram fortemente projetadas ou depositadas nas crianças jovens. O sentimento de infância não existia. Entretanto, na obra de Kohan - Infância entre Educação e Filosofia (2003), o autor informa que, desde a Antiguidade Grega, algumas marcas discursivas foram construídas a respeito da infância, as quais, mais tarde, foram incorporadas na modernidade sob a forma de uma determinada concepção de infância. 24 Ao discutir a ideia sobre uma concepção de infância apreendida e enraizada até o presente momento, destaco como proposição uma naturalização da infância como um período, fase ou processo do desenvolvimento humano. Considerando os estudos realizados, principalmente na área da Psicologia, para compreender e determinar algumas características que implicam a infância e seus níveis de desenvolvimento, tem-se como vertente analítica uma intencionalidade de perceber a criança em suas diferentes fases da vida. É importante ressaltar que essa discussão sobre as concepções de infância, produzidas nas escolas de educação infantil por meio de seus Projetos Políticos Pedagógicos serão abordadas no capítulo Naturalização da Infância. Ao me apropriar dos estudos de Àries (1981), historiador e pioneiro para tratar as questões da infância como sendo uma invenção ou descoberta da modernidade, outras possibilidades foram sendo compreendidas sobre essa temática. Segundo o autor, “a descoberta da infância começou, sem dúvida, no século XIII e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII” (p. 65 ). Analisando a infância enquanto invenção da modernidade, Bruckner (1988, p.57) propõe que “a vida humana começava realmente entre os 7-10 anos. O sentimento de infância nasce, na Europa, com o sentimento da família e com a constituição, pelas grandes ordens religiosas, da educação separada, que preparava a criança para a vida adulta”. Na medida em que o sentimento de infância começa a ser “reconhecido” pelas famílias e pelas grandes ordens religiosas, outras perspectivas sobre a mesma passam a ser concebidas e, principalmente, favorecendo uma proximidade afetiva entre crianças e adultos, denominada “paparicação”. Atenta-se para essa paparicação como sendo uma relação infantilizada dos adultos para com as crianças. Diferentemente de tempos anteriores, a partir de agora a criança passa a ser percebida pelos olhos dos adultos como parte integrante na constituição da família, potencializando sua inserção social e adquirindo suas primeiras evocações para se tornar um cidadão de direito. (Àries, 1981) Por sua vez, Bujes (2005) aponta que essa “infância de que tanto falamos é um efeito dos discursos que se constituíram/constituem sobre ela (...).” Nesse sentido, a aparição da infância surge como uma “construção discursiva” (p. 190), mas, a partir 25 do “aparecimento” de determinadas características que estabelecem o ser criança e a infância tal como se apresenta hoje, que outras perspectivas históricas foram constituídas para produzir essa “construção discursiva”? Para a autora, (2005, p.189) “os significados de criança e de infância que guiam nossos atos cotidianos são constituídos nos jogos da linguagem e os vocabulários que utilizamos para expressálos não têm a capacidade de descrevê-las fiel e transparentemente.” Nessa passagem, considero pertinente destacar uma ideia na qual a autora nos propõe pensar sobre os conceitos ou percepções que foram e estão sendo constituídos acerca das palavras criança e infância no contexto das escolas de educação infantil. Do mesmo modo, poderíamos pensar a partir de que perspectiva teórica as escolas vislumbram a ideia de aluno associada, de forma estreita, às ideias de criança e infância, e, assim, atribuir o mesmo valor as palavras criança e infância utilizadas com mais frequência nos discursos pedagógicos de seus PPPs. É evidente que para cada linha de ação pedagógica uma concepção de criança, infância ou aluno é constituída. Nessa perspectiva, analisando os significados atribuídos a essas palavras que circulam nos discursos pedagógicos das escolas de educação infantil, destaco como propósito uma redundância de paradigmas que instituem a ideia de criança e infância como uma fase da vida humana, sem levar em consideração outros aspectos que poderiam(ão) constituir novas perspectivas a respeito dessa temática. Nesse sentido, penso que, a partir dessas “construções discursivas” que sustentam a infância e suas peculiaridades, é que a pedagogia escolar busca lapidar suas ações pedagógicas e “fixar certas certezas, produzir determinados saberes a respeito da infância e do saber....(Narodowski, p. 187) Narodowski (2004), ao discutir as ideias do pai da pedagogia moderna, Comenius, pontua que este “se vale de nomear a infância por motivos relacionados à ordem natural inerente às coisas” (p. 47). Assim, “a infância não pode ser outra coisa senão onde se assenta, portanto, a base a partir da qual se atingem as metas superiores” (p.44). Nessa lógica de pensamento, o discurso de Comenius reforça que é pela infância que se inicia o processo formal de aprendizagem sequencial e gradativo – ponto de partida –, “um lugar que existe porque deve ser completado” (p.45). Em contraposição ao pensamento de Comenius, Rousseau diz que a criança era considerada um fenômeno natural, que se constitui de modelos desde o momento da concepção até a sua inserção na sociedade, sendo corrompida pela mesma – 26 perdendo sua pureza de estado para um ser conveniente para tal sociedade (Streck, 2004). Impulsionada por essas diferentes concepções sobre a criança e a infância, compartilho da ideia de Sommer (2007) quando o mesmo propõe que crianças são sujeitos oriundos de um movimento histórico e social, expressas pelas contradições da sociedade em que estão inseridas. O autor também afirma que crianças são detentoras de direitos, que produzem cultura e por ela são produzidas. Nessa lógica de pensamento, Sommer (2007) também traz uma ideia de infância, de um lado ligada a uma categoria social e categoria da história humana e do outro, como período da história de cada um que, em nossa sociedade, vai do nascimento até, aproximadamente, dez anos de idade, o que o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente confirma, apenas com uma divergência na faixa etária, aonde considera criança a pessoa até doze anos de idade incompletos. É visível que essa definição, que institui a palavra criança a uma pessoa com até 12 anos de idade incompletos, abdica de um conceito mais elaborado entre criança e infância. Por outro lado, podemos considerar que infância e criança admitem uma mesma especificidade, dependendo do contexto em que ela está inserida. Para Kramer (2007, p 14), “... as visões sobre a infância são construídas social e historicamente. A inserção concreta das crianças e seus papéis variam com as formas de organização da sociedade. Assim, a ideia de infância não existiu sempre e da mesma maneira. Ao contrário, a noção de infância surgiu com a sociedade capitalista, urbano-industrial, na medida em que mudavam a inserção e o papel social da criança na sua comunidade”. Partindo dessa análise constitutiva da infância numa determinada sociedade é que pretendo, na seção seguinte, pontuar algumas ideias sobre a instituição das escolas de educação infantil no Brasil. 2.2 Educação Infantil – em busca de um tesouro escondido?! “Certamente, em qualquer época, o ser humano teve que educar os seus filhos.” (Stein, p. 71) Certamente, a educação é uma preocupação que movimenta e mobiliza a história de cada época. Mais ainda, quando as crianças, que se mantinham 27 escondidas à margem da figura dos adultos, começam a ser inventadas para atender uma expectativa de cada tempo e espaço social. Em outras palavras, ao fazer emergir uma ideia de criança e infância, outras possibilidades passaram a ser pensadas para educá-las e transformá-las em cidadãs e cidadãos de direitos. Um dos maiores movimentos que possibilitou a inserção da criança na sociedade civil foi a constituição de espaços educativos que, com a intenção de auxiliar as famílias no processo de desenvolvimento das crianças, tornaram-se grandes centros de ensino e aprendizagem, conhecidos como escola. No que concerne a essa ideia de constituição da escola, em especial da educação infantil no Brasil, farei os apontamentos necessários no decorrer desse texto. Richter (2012) aponta, no seu trabalho de dissertação de mestrado, um conceito de infância no qual essa é entendida como um termo construído e compreendido com os avanços da modernidade. Esse conceito que constitui complexa construção social e cultural possibilitou o enquadramento da criança pequena a sujeito de direitos civis. Nessa perspectiva, pensando na possibilidade que o CNE – Conselho Nacional de Educação– órgão responsável pela elaboração das “leis” que conduzem a educação de nosso país, vem trazendo sobre a obrigatoriedade do ingresso de crianças a partir dos 4 (quatro) anos de idade na escola de educação infantil – hoje já prevista no Plano Nacional de Educação aprovado em 2010 - é que pretendo, nessa seção, fazer emergir os primeiros movimentos de instituição das escolas de educação infantil no Brasil. Nessa trajetória histórica, onde a educação voltada para as crianças pequenas começa a ser priorizada pelos governos – federal, estadual e municipal - e pela sociedade em geral, é que discuto algumas questões que transcendem ao simples olhar para a criança como um sujeito pequeno ou de menor idade. Inicialmente, penso ser interessante começar essa discussão fazendo uma reflexão sobre alguns aspectos que atravessam as questões legais a respeito da obrigatoriedade escolar a partir dos 4 (quatro) anos de idade: o primeiro refere-se aos discursos que vêm sendo produzidos e, de certa forma, implementados pelas instituições de educação infantil sobre as concepções de infância. Como já havia assinalado anteriormente, percebe-se nos projetos políticos pedagógicos das escolas de educação infantil uma carência teórica que possibilite articular a existência ou não de uma ideia de criança e infância; o segundo aspecto está vinculado às questões de preconização do processo de alfabetização no contexto das escolas de educação 28 infantil em função da ampliação do ensino fundamental de 8 (oito) para 9 (nove) anos, quando outras práticas educativas foram e estão sendo adotadas para garantir uma educação de qualidade para todos. Mas, em que consiste uma educação de qualidade para todos no Brasil? Como essa educação de qualidade para todos está sendo pensada no contexto da educação infantil? A partir desses questionamentos, tratarei de situar na história brasileira os primeiros movimentos que foram produzidos para/na institucionalização desses espaços de cuidado à criança pequena e à escola de educação infantil. Levando em consideração que a educação das crianças provinha do seio familiar e do convívio com outras crianças da mesma classe social, surgiu a necessidade, por parte de alguns setores da sociedade capitalista, dentre eles “os religiosos, os empresariais e educacionais” (Richter, 2012, p. 18), de expansão de uma educação voltada a essas crianças fora do âmbito familiar. Em decorrência desses novos contornos que passam a desenhar a criança separada da vida adulta é que começam a ser estabelecidas novas configurações de educação moral e formação técnica, que se prolongam da aprendizagem familiar à “aprendizagem pelo contato com outros indivíduos que passariam a ensinar habilidades e competências” (Stein, 2003, p. 73). Por educação moral compreende-se o ato educativo de ensinar e aprender por meio das relações que se estabelecem entre a criança, consigo mesma e com os demais. Concomitantemente ao aspecto moral, alia-se a formação técnica, que por sua vez, possibilita a criança desenvolver habilidades e competências que lhe permitam atingir metas e objetivos para saber “lidar com o mundo exterior” (Stein, 2003, p.73). Ainda na visão do autor (Stein, 2003, p.74), “uma vez atingido esse estágio de divisão de processos de aprendizagem, iria tomar forma um conjunto de instituições que ficariam encarregadas de assumir a responsabilidade desses dois processos de aprendizagem: o processo moral da educação e o processo técnico da formação.” Nesse sentido, com a propagação de novas lutas políticas, econômicas e sociais da época, em 1879, pela figura do Ministro do Império Leôncio de Carvalho, instituíram-se os primeiros Jardins de infância no Brasil, cujo objetivo era atender crianças de três a sete anos de idade. Essa reforma foi considerada como a “primeira referência à educação da criança menor de sete anos nos documentos oficiais brasileiros” (Soares, 2008, p. 86). 29 Contrapondo-se às intenções iniciais propostas pelo Ministro do Império aos Jardins de infância, Rui Barbosa, Deputado da época e grande defensor de uma reforma no sistema de ensino, declara e defende, por meio de seus pareceres, a criação dos Jardins de infância, bem como o emprego de um método intuitivo para instruir a educação das classes populares. Conforme Krieger (2008, p. 23), no ano de 1882, “Rui Barbosa, apresentou um projeto de reforma de instrução do País, pois considerava o jardim-de-infância a primeira etapa do ensino primário.” Machado; Lara e Lucas (apud Soares 2008, p 85-86), marcam que, Os pontos fundamentais da reforma proposta por Rui Barbosa defendiam a laicidade, a gratuidade e a obrigatoriedade do ensino, propondo mudanças nos programas e métodos com o objetivo de superar a memorização e o ensino livresco. Ele defendia que os jardins de crianças eram instituições educadoras que possuíam enorme grandeza como já apontado anteriormente. Por isso, o parlamento brasileiro não poderia continuar com os braços cruzados, mesmo que isso implicasse no desembolso de consideráveis quantias por parte do Estado, para educar, por meio de brincadeiras e passatempos, crianças de quatro e cinco anos. [...] Rui Barbosa também citou o exemplo da Europa e da América setentrional para mostrar a importância de investimentos nessa área. Também a República Argentina, desde 1876, já havia nacionalizado esta idéia, disse ele. Esses exemplos foram utilizados como estratégia para sensibilizar o Estado brasileiro a investir nesse nível de ensino (MACHADO; LARA; LUCAS, 2004, p. 27). Porém, todos os esforços investidos, tanto pelo deputado Rui Barbosa como pelo Ministro do Império Leôncio de Carvalho para consolidar seus projetos em torno dos Jardins de infância, não foram suficientes para convencer o Estado a contemplar a educação das crianças pequenas na legislação brasileira. Durante muito tempo, o Brasil resistiu em estabelecer um projeto nacional de educação para as crianças pequenas, fazendo menção apenas “as leis que buscavam proteger a infância pobre, destinadas ao combate às altas taxas de mortalidade” (Soares, 2008, p 86). Diante desse cenário, é a partir do século XVIII que a criança começa a ser percebida como tal e a receber uma atenção especial aos olhos dos adultos, tornandose alvo de uma educação assistencialista. Entende-se por “educação assistencialista” todo e qualquer atendimento que visa oferecer subsídios básicos para a existência humana, em especial, as crianças pequenas. Entre as práticas mais casuais despendidas nesse cuidado à criança pequena destaca-se a preocupação com a alimentação, a segurança física e a higiene pessoal. 30 Outra perspectiva de educação assistencialista está disposta no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998, p.17 ) e expressa que esse tipo de “atendimento era entendido como um favor oferecido para poucos, selecionados por critérios excludentes [....] sem considerar questões de cidadania ligadas aos ideais de liberdade e igualdade”. A adesão cada vez maior por ambientes que atendessem a demanda das famílias configurou espaços educativos como creches e programas pré-escolares, constituídos pelo “acompanhamento das intensificações urbanas, a participação da mulher no mercado de trabalho e as mudanças na organização e estrutura das famílias” (RCNEI, p.11). Essa proposta de um cuidar e educar sistemático possibilitou a ampliação da educação infantil no Brasil e no mundo. Entretanto, outro enfoque analítico do Referencial Curricular Nacional para a educação infantil (1998, p. 17) registra que, O atendimento institucional à criança pequena, no Brasil e no mundo, apresenta ao longo de sua história concepções bastante divergentes sobre sua finalidade social. Grande parte dessas instituições nasceram com o objetivo de atender exclusivamente as crianças de baixa renda [....] Constituirse em um equipamento só para pobres, principalmente no caso das instituições de educação infantil, financiadas e mantidas pelo poder público, significou em muitas situações atuar de forma compensatória para sanar as supostas faltas e carências das crianças e suas famílias. No Brasil, as especificidades da educação infantil foram reconhecidas primeiramente na Constituição Federal de 1988, onde “a partir de então a educação infantil em creches e pré-escolas, passou a ser, ao menos do ponto de vista legal, um dever do Estado e um direito da criança” (RCNEI,p. 11). A legitimidade do texto descrito na Constituição Federal de 1988 profere que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” Outras atribuições são distinguidas nessa legislação no que diz respeito aos princípios que devem nortear o ensino, tais como: “I – Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte eo saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; 31 IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII – garantia de padrão de qualidade; VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos da lei federal.”(s. p.) Por consequência dessa regularização da educação infantil como sistema de ensino pertencente à educação básica, outros documentos foram produzidos para garantir o acesso à educação de qualidade para todos. A Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que designou o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelece que tal documento “nada mais é do que um instrumento de cidadania, (...) é uma lei, fruto da luta de movimentos sociais, profissionais e de pessoas preocupadas com as condições e os direitos infanto-juvenis no Brasil.”(BRASIL, 1990.s. p.) Essa lei prevê, no seu art. 53 do capítulo IV, que: “ A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-lhes: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II- direito de ser respeitado por seus educadores; III – direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores; IV – direito de organização e participação em entidades estudantis; V – acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência;” (s.p. ) Posteriomente, com a aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional 9394/96, vem afirmar que, A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até 5 (cinco) anos de idade em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. Além disso, a lei dispõe que a educação infantil será oferecida em: I – creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade; 32 II – pré-escolas, para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade. Nesse sentido, com a inserção das escolas de educação infantil na educação básica de ensino, a mesma legislação estabelece no seu artigo 89 que “as creches e pré-escolas existentes ou que venham a ser criadas deverão, no prazo de três anos, a contar da publicação desta lei, integrar-se ao respectivo sistema de ensino” (LDB, s.p). Novamente faço menção à Constituição Federal de 1988, onde fica claro no seu artigo 30, inciso VI que compete ao município “manter com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental.” (s.p). Ressalto que essas alterações de atendimento à criança na educação infantil, com determinação específica das faixas etárias para cada nível de ensino, foram promulgadas a partir da reforma educacional nº 11.274/2006, que antecipa o ingresso de crianças com 6 (seis) anos de idade completos no 1º (primeiro) ano do ensino fundamental. Considerando os aspectos legais que a LDB 9394/96 dispõe sobre as implicações de uma educação voltada para o desenvolvimento integral da criança, destaco o que Cordeiro (2007, p.58) nos traz sobre a importância dessa legislação vigente ao estabelecer as instituições de ensino de educação infantil finalidades para que “esses espaços de creches e pré-escolas não se configurem como um lugar em que as crianças são confinadas exclusivamente para atender a exigência legal.” Pontuo que essa é uma preocupação que deve estar constantemente na pauta dos gestores e de todos que, direta ou indiretamente, estão implicados nessa formação da criança no que se entende por criança cidadã. Tal questão, o entrelaçamento de criança e cidadania, discuto no capítulo Gestão democrática e Infância Cidadã, onde analiso alguns conceitos que também circulam nos documentos legais das escolas de educação infantil sobre essa questão. Paralelo a essa análise, minha intenção é fazer uma aproximação das questões que envolvem a gestão democrática no ensino público em prol de uma infância cidadã. Nessa lógica, faço alusão às diretrizes do PNE (2001, 13) que afirmam: A educação infantil é a primeira etapa da Educação Básica. Ela estabelece as bases da personalidade humana, da inteligência, da vida emocional, da socialização. As primeiras experiências da vida são as que marcam mais profundamente a pessoa. Quando positivas, tendem a reforçar, ao longo da vida, as atitudes de autoconfiança, de cooperação, solidariedade, responsabilidade. As ciências que se debruçaram sobre a criança nos últimos 33 cinquenta anos, investigando como se processa o seu desenvolvimento, coincidem em afirmar a importância dos primeiros anos de vida para o desenvolvimento e aprendizagem posteriores. E têm oferecido grande suporte para a educação formular seus propósitos e atuação a partir do nascimento. A pedagogia mesma vem acumulando considerável experiência e reflexão sobre sua prática nesse campo e definindo os procedimentos mais adequados para oferecer às crianças interessantes, desafiantes e enriquecedoras oportunidades de desenvolvimento e aprendizagem. A educação infantil inaugura a educação da pessoa. Nesse contexto, penso que essa projeção em torno da educação, em especial, da educação infantil, etapa pertencente à educação básica, sugere uma emergência no processo de escolarização das crianças pequenas, acentuando uma lógica de pedagogização que pretende preparar a criança para os próximos níveis de ensino. Entretanto, assinalo que este processo de pedagogização não é novo e, sobre essa temática, discuto-a mais detalhadamente no capítulo Naturalização da Infância, em que analiso os efeitos dos discursos que foram e estão sendo produzidos sobre a infância nos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas de educação infantil, a partir das reformas educacionais instituídas nos últimos dez anos. 2.3 O coração da Infância – Santa Maria/RS Coração do Rio Grande Tanta vida diferente, tanta gente vem e vai Incerteza de quem entra, mas saudade de quem sai... (letras. mus.br, Beto Pires, Santa Maria, s.p) Tendo trabalhado até aqui com os aspectos legais que possibilitaram a constituição das escolas de educação infantil no Brasil, é que a partir desse momento faço um mapeamento dos aspectos legais do Município de Santa Maria/RS, amparada pelas Diretrizes Curriculares para a Educação Municipal (DCEM), no que tange às exigências previstas para a educação infantil dessa cidade. Antes da análise, inicio esse trabalho, apresentando algumas características que marcam a cidade de Santa Maria e das respectivas escolas selecionadas para a produção de dados dessa dissertação. Pontuo que a minha intenção na escolha das escolas pertencentes a esse município, partiu da necessidade de compreender o perfil pedagógico de cada uma das instituições que representam as diferentes categorias de ensino – pública, privada, laica e confessional - e suas especificidades. Todas elas reconhecidas e devidamente credenciadas ao Conselho Municipal de Educação de Santa Maria-RS. 34 Santa Maria – Coração do Rio Grande – é assim conhecida por todos os que vêm e que passam por essa cidade, localizada no interior do Estado do Rio Grande do Sul. Também chamada de cidade flutuante – pois por aqui se fazem carreiras militares e estudantis por um tempo determinado – Santa Maria desfruta de um polo educacional privilegiado, contando inclusive com uma das melhores universidades do país, a UFSM – Universidade Federal de Santa Maria/RS. A partir desse contexto, Santa Maria, assim como os demais municípios que têm a responsabilidade de acompanhar, orientar, organizar, avaliar o ensino público em seus níveis de atuação – refiro-me aqui à educação infantil e ensino fundamental, conforme a Constituição Federal de 1988 – possui um documento legal que produz os recursos necessários para conduzir a educação das crianças pequenas, jovens e adultos, conhecido como Diretrizes Curriculares para a Educação do Município (DCEM). Nessa perspectiva, farei uma breve abordagem sobre as questões que estão sendo pensadas e discutidas pelo sistema de educação vigente em torno da educação infantil desse município, mais especificamente. A primeira escola a ser constituída no município data de 1838. Com o passar dos anos e com o crescimento demasiado de escolas que atendessem tanto crianças e jovens da zona rural como da zona urbana, outras instituições foram sendo incorporadas ao sistema de ensino público do município. Em 1997, com a Lei Municipal nº 4.123 de 22 de dezembro, foi instituído o Sistema Municipal de Ensino de Santa Maria, composto de: “Secretaria de Município da Educação; Conselho Municipal de Educação; Escolas Municipais do Ensino Fundamental; Instituições de Educação Infantil mantidas pelo Poder Público Municipal e pela iniciativa privada e Escolas de Ensino Profissionalizante da Rede Municipal.” (DCEM, p.19 - 20) Como apontam as Diretrizes Curriculares para a Educação do Município, esse documento teve seu início em 2005, proposto pela Secretaria Municipal de Educação (SMED) e veio a se concretizar no ano de 2011. Sua finalidade é oferecer uma política de currículo que sirva de parâmetro às escolas municipais de Santa Maria/RS. Além disso, o documento objetiva “a articulação do processo de organização da Educação Básica, a (re) estruturação dos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas, bem como a adequação e o cumprimento da legislação atual.” (p.4) Conforme o DCEM, o cenário da educação do município de Santa Maria/RS organiza-se da seguinte maneira: 35 • 01 escola de artes – EMAET; • 01 escola de ensino profissionalizante – EMAI; • 45 escolas de ensino fundamental na zona urbana – EMEF; • 09 escolas de ensino fundamental do campo – EMEF; • 19 escolas de educação infantil na zona urbana – EMEI; • 01 escola de educação infantil do campo – EMEI; • 04 escolas de educação infantil conveniada – EEI. (DCEM) Considerando apenas o contexto da educação infantil do município, essa se desenvolve em 20 escolas municipais de educação infantil (EMEI), 4 escolas de Educação Infantil conveniadas e em 20 escolas Municipais de ensino fundamental (EMEF), que atendem crianças de até 6 anos de idade, em turmas de maternal e préescola B (DCEM, p.11) Entre tantas ações estabelecidas pelo sistema de educação do município nos últimos anos, destaco como um dos propósitos das Diretrizes Curriculares para a educação municipal de Santa Maria/RS a criação de documentos específicos para cada nível de ensino, que prevê para a educação infantil, foco desse estudo, a seguinte premissa: Educação Infantil – Infância Cidadã – o direito a educação de 0 a 5 anos – que reflete os princípios necessários ao desenvolvimento infantil, a importância da educação para este desenvolvimento, bem como a ação dos educadores nele envolvidos. (...) Apresenta também as ordens do conhecimento e aspectos da vida cidadã.” (p.25) Nessa perspectiva, entende-se que a educação infantil é um espaço que permite a criança fazer novas descobertas, ampliar seus conhecimentos e experiências individuais, familiares, culturais e educativas além do ambiente familiar. Além disso, a educação infantil é considerada uma possibilidade de transição e a continuidade para o Ensino Fundamental. A partir dessa concepção de educação infantil – nível de transição e de preparo para o nível posterior, é perceptível que ainda estamos sendo impulsionados por uma prática discursiva que se perpetua nas nossas ações pedagógicas cotidianas. Por outro lado, aponto que as discussões em torno dessa temática, a infância, ainda são restritas no que tange às novas propostas educacionais que vêm sendo constituídas em nosso país. 36 Tendo realizado os marcos iniciais da pesquisa, trago, no próximo capítulo, os caminhos que percorri para a produção e análise de dados realizados nessa dissertação. 37 3 PROCURANDO NEMO Em algum lugar além do mar Ela está lá olhando para mim E se eu pudesse voar como pássaros no alto Então diretamente para seus braços vou velejar (...) Eu sei além da dúvida Meu coração vai me levar lá em breve Nós nos encontraremos, eu sei que vamos nos encontrar além da certeza (...) (Tradução da música trilha sonora do Filme Procurando Nemo) Para navegar pelas profundezas dessa imensa e infinita possibilidade que a infância nos reporta, inicio nesse capítulo uma descrição pelas diferentes marés que percorri para encontrar os materiais de análise dessa pesquisa. Ao ser arrastada por uma corrente marítima desconhecida, mas ao mesmo tempo envolvente, aventurei-me por esses redemoinhos para buscar compreender os efeitos dos discursos como produção de verdades em nossas práticas educativas, em especial pelos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas de educação infantil a respeito da infância. Refiro-me aqui às questões teóricas na qual estudamos e nos debruçamos durante muito tempo, para embasar e justificar nossas ações pedagógicas sobre os processos de desenvolvimento infantil. De acordo com Pereira (2012, p.30), “...todo conhecimento produzido traz junto de si as marcas da perspectiva estética e política a partir da qual foi construído”. Foi esse sentimento de (im)potência que esse estudo investigativo me proporcionou ao iniciar os primeiros movimentos de familiarização com os PPPs das escolas de educação infantil de Santa Maria/RS. Digo isso, porque ao pensar nos diferentes contextos em que essas escolas estão inseridas, exigiu uma habilidade mais aguçada para tentar produzir os dados necessários a fim de estabelecer as relações com que esses discursos foram ou estão sendo constituídos com as propostas que legitimam a educação infantil como uma etapa da educação básica. Em contrapartida, ao realizar uma leitura mais esmiuçada para tentar entender o que cada escola concebe por infância, também foi um exercício bastante envolvente e complexo nesse momento da pesquisa. Ao buscar outros elementos textuais como a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96 e o Plano Nacional de Educação 38 que pudessem me auxiliar num melhor entendimento sobre as linhas legais que fundamentam a proposta educativa das escolas de educação infantil sobre a problemática em questão, percebi que ainda há uma forte tendência na utilização de documentos, tais como os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, que já sofreram alterações ou que estão sendo considerados ultrapassados por alguns autores contemporâneos. Pereira (2012, p. 42) afirma que, “...pensar a infância não significa isolá-la em sua própria experiência, mas reconhecer nessa experiência os estilhaços da dinâmica social.” Como referi em capítulos anteriores, pensar a criança/infância não é uma temática muito simples, pois quando pensamos nesse sujeito como um cidadão repleto de direitos e deveres perante a legislação vigente, nos deparamos com outras questões que nos impedem de admitir que a essência infantil não existe, ela é uma invenção da modernidade. E é uma invenção para produzir efeitos em um determinado tempo e espaço físico cultural da época em que está se discutindo tal assunto. Como afirma Ghiraldelli Jr. (2000, p.46), “quando se trata de julgar questões que envolvem 'direitos da infância', em geral temos dois grupos de pessoas. Há um grupo que acredita na ideia da infância como sendo um período prolongado, que se caracteriza principalmente pela inocência. [...] há um outro grupo que defende a ideia de que a infância, [...] pode ser pensada como possuindo uma série de características, mas nunca as de inocência e bondade como essenciais.” Então, para tal empreitada, selecionei algumas instituições de educação infantil do município de Santa Maria/RS para analisar as concepções que sustentam suas ações pedagógicas em seus documentos oficiais e delimitam o seu perfil educativo – Projetos Políticos Pedagógicos. Transitando pelos diferentes contextos escolares, tanto da rede privada como da rede pública, num primeiro momento, consegui obter os PPPs de quatro instituições de ensino, três delas pertencentes à rede privada e uma da rede pública. Porém, ao iniciar a produção de dados dessa pesquisa, deparei-me com algumas situações que inviabilizaram a permanência de duas escolas da rede privada de educação para análise de tais documentos. Uma delas havia disponibilizado o PPP da escola na forma resumida, pois o documento em sua íntegra permanece na escola central do estado e a outra estaria passando por uma transição administrativa. Foi então que decidi recorrer a uma quinta escola, 39 também da rede privada, para agregar outros recursos de análise a que esse trabalho se propõe. Atravessando por essa gama de percepções que os PPPs produzem em torno dessa temática, pretendo nessa discussão fazer uso dos principais conceitos que configuram a noção de discurso em Michel Foucault, bem como, sua linha de pensamento sobre saber, poder, governamentalidade e produção de verdades. Corroborando com essa ideia, faço alusão ao que Fischer (2001, p.1) afirma:“ para analisar os discursos, segundo a perspectiva de Foucault, precisamos antes de tudo recusar as explicações unívocas, as fáceis interpretações e igualmente a busca insistente do sentido último ou do sentido oculto das coisas – práticas bastante comuns quando se fala em fazer o estudo de um 'discurso'”. Ao mapear os documentos que poderiam servir de base para essa análise investigativa, percebi o potencial que os Projetos Políticos Pedagógicos teriam nessa produção de dados para “diagnosticar” as concepções que prevalecem no meio educacional sobre a questão da infância. Essa proposta foi vislumbrada quando atuei como coordenadora pedagógica de uma escola de educação infantil particular de Santa Maria/RS, mas que, num primeiro momento, despertou a minha atenção para outras questões que considerava mais pertinentes na época, como por exemplo, a inteiração/conhecimento dos professores por tal documento. Porém, ao descobrir as possibilidades que poderiam ser extraídas dos PPPs, especificamente sobre a ideia de infância, essa proposta tomou outros rumos que me permitiram visualizar a infância como uma problemática atual. Essa viagem pelo mundo da problematização, como sugere o filósofo Michel Foucault, para uma nova perspectiva de pesquisa em educação é, segundo Peters e Besley (2008, p. 31), “dar um passo para trás....questionar significados, condições e metas é ao mesmo tempo liberdade em relação ao que se faz. É tratar o objeto de pensamento como um problema”. A partir disso, tomei a iniciativa de acompanhar as reuniões pedagógicas que vinham sendo realizadas no final de 2012 pelas escolas municipais de Santa Maria/RS em parceria com a Secretaria de educação do município. Ao me apresentar à secretária de educação que estava à frente da Secretaria de educação do Município nesse período, fui recebida muito calorosamente, mas ao mesmo tempo, com certo ar de desconfiança sobre o que eu pretendia realizar junto a esse órgão. Após uma breve conversa com a secretária para explanar sobre a minha intenção de pesquisa, fui 40 encaminhada para a coordenadora responsável pela organização das escolas municipais de educação infantil. Nesse momento me senti acolhida pela mesma, porém, no princípio de nossa conversa, também percebi um receio em abrir as portas das escolas de educação infantil para que eu pudesse vir a observar de que maneira estavam sendo conduzidos os trabalhos na reestruturação dos projetos políticos pedagógicos das instituições de ensino. Concluído esse processo de apresentação, comecei a frequentar as reuniões pedagógicas, que eram agendadas pela própria coordenadora em concordância e disponibilidade das escolas, ou seja, cada reunião era realizada numa escola diferente. O público alvo desses encontros, os professores de educação infantil, participava das palestras ministradas pela coordenadora e após a sua apresentação teórica, era aberto aos profissionais um tempo para que eles pudessem emitir suas opiniões, angústias, anseios e realizações vivenciadas no seu espaço educativo. O interessante dessas colocações dos professores em relação ao seu cotidiano escolar relacionava-se às dificuldades que eles encontravam para aplicar seus planejamentos e, a partir dessas ideias, obterem total aproveitamento dos alunos nas atividades propostas. Outra queixa muito comum correspondia às expectativas que escola e família têm uma com a outra. Infelizmente, como estávamos nos aproximando do final do ano, acabei perdendo o contato com a Secretaria Municipal de Educação e parti para outras possibilidades mais palpáveis. Foi então que, ao organizar meu projeto de pesquisa para a qualificação do mestrado, escolhi fazer uma análise mais adequada dos projetos políticos pedagógicos das escolas de educação infantil de Santa Maria/RS e suas concepções sobre a infância. Para selecionar as escolas que seriam envolvidas nessa situação, comecei a pensar em algumas instituições onde eu pudesse ter fácil acesso por conhecer alguns profissionais que nelas atuam. A seguir, faço uma breve descrição das escolas participantes desse estudo: A primeira escola visitada possui como perfil institucional os valores cristãos aliados a uma pedagogia confessional. A escola pertence à rede privada de ensino e está situada num bairro nobre da cidade. Sua clientela é bem variada, pois, além de atender a comunidade na qual está inserida, ainda contempla um trabalho filantrópico. Ao me dirigir à diretora responsável pela escola para transmitir minha intenção de pesquisa, fui informada de que o projeto político pedagógico da escola estaria passando por um processo de reformulação. Mesmo assim, insisti para adquirir o material antigo, pois minha ideia era analisar a(s) concepção(ões) da escola em 41 relação ao tema a ser discutido nessa pesquisa: a infância. Ao mesmo tempo, dispus do argumento de que não citaria o nome da escola no meu trabalho e nem faria um julgamento sobre a proposta pedagógica da mesma. Então, foi-me prometido que tal documento seria encaminhado via e-mail e, para que eu pudesse compreender as bases teóricas que fundamentam a proposta institucional, fui presenteada com um livro que retrata a história do fundador da congregação. A outra escola selecionada caracteriza-se por ser uma instituição de ensino municipal, com aproximadamente 290 (duzentos e noventa) alunos que vivem nessa comunidade, onde a sede educativa está instalada, sendo a grande maioria crianças com vulnerabilidade sócial, economica e emocional. A escola, considerada de porte médio, está localizada no centro da cidade. Antes mesmo de se tonar uma escola, esse espaço oferecia atividades recreativas com o apoio da UFSM, atendendo crianças na faixa etária de 4(quatro) a 5 (cinco) anos de idade. Com o passar dos anos, a creche vinculou-se à Secretaria Municipal de Bem Estar Social, mantida pela Prefeitura Municipal de Santa Maria/RS. Instituída a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 9394/96, a mesma foi transferida para a Secretaria Municipal de Educação, assumindo, a partir de então, suas peculiaridades como escola de educação infantil. Visivelmente, é uma escola organizada, com espaços físicos apropriados para atender crianças de 0 (zero) a 5 anos de idade. Ao conversar com a diretora da instituição a fim de adquirir o Projeto Político Pedagógico da escola, agendei um dia e horário para fazer uma visita formal à coordenadora e, assim, requisitar o material de análise. Ao chegar à escola na data e horário estabelecidos fiquei aguardando por alguns minutos a chegada da coordenadora pedagógica, mas com a sua demora, a própria diretora se comprometeu comigo para disponibilizar o documento, via e-mail. No que se refere à terceira escola, fiz contato com uma professora que trabalha numa escola particular de ensino, no setor da educação infantil, para averiguar a viabilidade de conseguir o projeto político pedagógico da instituição na qual ela atua. Alguns dias depois, voltei a me encontrar com ela para confirmar a minha solicitação e, no mesmo momento, me foi explicado que o projeto político pedagógico da escola, na versão integral, fica numa central em outra cidade do estado. No entanto, a professora dispunha do documento na forma resumida. Assim mesmo, resolvi aceitar tal proposta para analisá-la e verificar os dados que compunham a mesma. Particularmente, não conheço as dependências dessa escola, 42 mas o que se sabe é que a instituição dispõe de um espaço físico privilegiado e, atualmente, atende em torno de 450 alunos entre a educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. Vale destacar que a escola possui um trabalho filantrópico e faz parte de uma rede de ensino confessional, localizada no centro de Santa Maria. A quarta instituição de ensino a qual requeri tal documento também integra a rede de ensino particular. Sua estrutura física é de porte pequeno e fica situada num bairro afastado do centro da cidade. A escola conta com uma clientela de, no máximo 40 (quarenta) crianças entre 2 a 6 anos de idade. Ao saber que a escola havia sido vendida no início de 2013,fui ao encontro da nova gestão para me apresentar e solicitar o material desejado. Nesse instante, a Diretora da escola tentou justificar que, com a mudança de proprietário, a escola estaria passando por um processo de transição, inclusive fazendo uma revisão do Projeto Político Pedagógico da gestão anterior. Após algumas dificuldades para conseguir o material tive acesso a um documento ainda incompleto. Para reiterar os detalhes sobre o material que havia sido entregue, conversei com uma professora que havia atuado nessa instituição sobre o antigo projeto político pedagógico e fui informada de que a antiga proprietária havia solicitado a um grupo de professores que elaborasse um documento que constasse uma referência teórica para ser apresentado ao Conselho Municipal de Educação. Ao término dessa construção, o documento foi encaminhado ao seu destino e nenhuma cópia ficou arquivada nos registros da escola. Em virtude da falta de recursos de algumas escolas que pudessem contribuir de forma significativa para a produção de dados dessa pesquisa, tomei a liberdade de recorrer a outra instituição de ensino privado, de porte médio, localizada às margens da BR 158, para requerer o seu Projeto Político Pedagógico. Ao ser recebida pela coordenadora de educação infantil da escola, fui logo justificando a necessidade de obter o documento solicitado para a realização da pesquisa. Senti que, num primeiro momento, a gestora ficou um pouco confusa com a minha explanação. Além disso, percebi certo desconforto da coordenadora em revelar que a escola não teria um Projeto Político Pedagógico atualizado, em virtude de algumas mudanças como espaço físico, nome e filosofia institucional. Então, requisitei o documento que pertencia à escola anterior e, mesmo assim, houve resistência para a disponibilização do mesmo, sendo necessário agendar uma visita à direção da escola para obter a liberação do documento desejado. Uma semana depois, no horário e dia marcados, 43 fui ao encontro da diretora da escola que, no mesmo instante, possibilitou a cópia do Projeto Político Pedagógico da educação infantil. Circulando por um conjunto de documentos que sistematizam a ação educativa das escolas, comecei, assim, a investigação sobre a questão da infância, utilizando como ferramentas os conceitos de saber, poder e governamentalidade, os quais discuto a seguir. 3.1 Correntes marítimas – infância entre poder, saber, governamentalidade e produção de verdade [...] todas as verdades científicas são construções sociais e portanto carregadas de valores e interesses sociais e políticos . (Oksala, 2011, p.65) Entrecruzando as ideias esboçadas até aqui sobre a problemática que essa pesquisa se propõe a discutir é que pretendo, neste capítulo, aproximar minha intenção de pesquisa – a infância e os discursos que implicam esse tema nos documentos oficiais sobre/de educação infantil –, com alguns conceitos sobre saber, poder, governamentalidade e produção de verdades, constituídos pelos estudos de Michel Foucault. Por que pesquisar a infância numa perspectiva foucaultiana? Primeiramente, pela possibilidade que seus estudos proporcionam para compreender os movimentos históricos como experiências de cada tempo e espaço social. Também, porque ao estabelecer as relações entre infância, saber, poder, governamentalidade e produção de verdades, será possível perceber de que modo à educação, especialmente a educação infantil, vem sendo enquadrada numa “arte de governar sob a razão do Estado” (Foucault, 2003). Tal expressão nos remete a uma compreensão de Estado que, como explica Foucault (2003, p. 295) “se governa segundo as leis racionais que lhe são próprias, que não se deduzem das únicas leis naturais ou divinas, nem dos únicos preceitos de sabedoria e prudência”. Diante das mudanças que vêm ocorrendo no cenário educacional brasileiro, penso que seria de grande relevância iniciar essa discussão sobre os movimentos que vêm sendo articulados pelas políticas públicas de “inclusão escolar” – não me refiro aqui à inclusão de alunos com necessidades especiais – em relação à obrigatoriedade do ingresso de crianças a partir de 4 anos de idade na instituição infantil, até 2016. Na sequência, pretendo fazer um paralelo entre a tramitação legal referente ao sistema educacional vigente e as formulações das propostas pedagógicas das escolas de 44 educação infantil acerca dos discursos que tentam alicerçar uma “educação de qualidade para todos”. Partindo dessa premissa sobre a obrigatoriedade do ingresso das crianças a partir de 4 anos de idade na escola de educação infantil, aponto que essa emergência para conduzir as crianças cada vez mais cedo para a escola pode ser considerada uma estratégia política de governamento para garantir um controle sobre a população e, consequentemente, um maior gerenciamento sobre a conduta dos cidadãos. Nessa perspectiva, buscando compreender as relações que se estabelecem a partir dessa reforma com o pensamento foucaultiano, entende-se que essa prática discursiva que designa uma arte de governar voltada para “uma população” está associada a uma estratégia de poder denominada governamentalidade. Segundo Gadelha (2009), entende-se por governamentalidade “tipos de racionalidade que envolvem conjuntos de procedimentos, mecanismos, táticas, saberes, técnicas e instrumentos destinados a dirigir a conduta dos homens” (p. 120). Temos, ainda, outra possibilidade de compreender a inserção obrigatória de crianças a partir dos 4 anos de idade na escola, como uma forma de assegurar determinadas produções de verdades aliados a discursos de poder. Foucault (1977, p. 229), nos assinala que “Há efeitos de verdade que uma sociedade como a sociedade ocidental, e hoje se pode dizer a sociedade mundial, produz a cada instante. Produz-se verdade. Essas produções de verdades não podem ser dissociadas de poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos atam.” (1977, p.229) Entende-se por poder e mecanismos de poder todo o movimento produzido por uma determinada época para instituir uma verdade e mantê-la sempre no poder. Ou seja, ao pensarmos em produção de verdade associada às relações de poder instituídas no campo da educação, é notável como esses discursos vêm potencializando o atual sistema de educação, em especial, a educação infantil de nosso país. Refiro-me, novamente, às últimas reformas educativas promulgadas a partir de 2006 para tentar instituir uma política de saber-poder, onde a criança, na faixa etária entre 4 (quatro) a 5 (cinco) anos, se torna alvo dessas práticas discursivas. A partir das ferramentas conceituais sobre saber, poder, governamentalidade e produção de verdade, as quais atravessam as questões que envolvem a infância 45 como “material de sonhos políticos” é que pretendo no próximo capítulo, Infância Cidadã, discutir as linhas de ação pedagógica instituídas pelas escolas de educação infantil na construção de uma infância cidadã. 46 4 NATURALIZAÇÃO DA INFÂNCIA Para sempre cinderela?! “...é muito importante que a investigação procure tanto a discursividade ligada a uma reflexão sobre as capacidades humanas como a própria supervisão e estruturação do campo onde decorre à ação dos indivíduos.”...Depara-se-nos então uma imensidão de documentos e procedimentos que conectam, em redes muito delicadas, o pensamento, as decisões e as aspirações de cada um dos actores seja com as racionalidades de governo, seja com grupos e organizações sociais.( Ó, 2009, p.103) Procurando compreender de que forma as escolas de educação infantil, por meio dos seus PPPs, constituem uma ideia de infância, inicio esse capitulo fazendo uma breve análise do trecho que abre essa seção, onde o autor nos possibilita vislumbrar diferentes perspectivas sobre discursos, documentos, governo, grupos e organizações sociais para a produção de dados de uma pesquisa investigativa. Chama-se a atenção para a “cumplicidade” entre alguns elementos fundamentais que foram ou serão considerados importantes para a estruturação dessa análise. Refirome à fusão entre os discursos que foram e estão sendo produzidos para instaurar uma ideia sobre a temática a ser investigada, bem como, à ação dos indivíduos envolvidos nessa proposta de trabalho. Considerando o contexto e a realidade de cada instituição de educação infantil de Santa Maria/RS, é que a partir desse momento começo a inferir algumas ideias que circulam nos documentos oficiais dessas instituições sobre uma possível naturalização da infância construída ao longo da história. Vale ressaltar que os apontamentos que determinam essa perspectiva de infância serão transcritas ao longo do texto e sinalizadas pela legenda (A, B e C) estabelecida para caracterizar cada uma das escolas analisadas. Frente à materialidade disponibilizada para a produção de dados dessa pesquisa – os Projetos Políticos Pedagógicos – faço menção a um fragmento do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998) que diz, “...a maioria das propostas concebe a criança como um ser social, psicológico e histórico, tem no construtivismo sua maior referência teórica, aponta o universo cultural da criança como ponto de partida para o trabalho e defende uma educação democrática e transformadora da realidade, que objetiva a formação de cidadãos críticos. ...Não são explicitadas as formas que possibilitam a articulação entre o universo cultural das crianças, o desenvolvimento infantil e as áreas de conhecimento.” (p.43) 47 Tendo em vista a ideia de criança que se estabelece na maioria das propostas escolares, destaco como vertente analítica para/na formulação desses conceitos a preferência por uma linha teórica que valoriza/prioriza o sujeito e o compromete na construção do seu próprio conhecimento, de acordo com o seu contexto cultural. Entre os discursos analisados, destaco: Implantar uma educação de qualidade, que reconhece e valoriza as diferenças entre as crianças e, que dessa forma, beneficie a todos no que diz respeito ao seu desenvolvimento e a construção dos seus conhecimentos. Criar um ambiente que propicie a vinculação natural da criança ao ambiente escolar, despertando a responsabilidade, a verdadeira liberdade, a criticidade e a generosidade, num espírito de confiança e respeito mútuo, e de cooperação e solidariedade (Escola A). É bom lembrar que a criança participa de um determinado contexto cultural e social, num determinado contexto histórico. Esse contexto marca sua vida, influencia seu destino. Portanto, está presente e precisa ser considerado no seu processo de desenvolvimento e aprendizagem (Escola B). A partir de estudo, encontros e reflexões a escola reafirmou o compromisso de trabalhar com a Pedagogia de Projetos, que por sua vez, valoriza as experiências dos alunos, seus conhecimentos prévios, sua curiosidade e seus interesses, respeitando as características de cada contexto e as diferenças individuais das crianças (Escola C).Por outro lado, considero relevante marcar que, ao tentar operar com essas ferramentas conceituais para enquadrar a criança numa perspectiva de infância, outros elementos que a constituem permanecem desarticulados. Em outras palavras, parece-me que a escola encontra dificuldades para estabelecer uma interlocução entre o sujeito-criança e suas implicações no meio social a qual ele(a) pertence com outros instrumentos pedagógicos considerados fundamentais para a constituição de novos saberes articulados à questão da infância. Nesse sentido, Foucault (2002, p. 26-27) nos aponta que “a ideologia é a marca, o estigma destas condições políticas ou econômicas de existência sobre um sujeito de conhecimento que, de direito deveria estar aberto à verdade”. Fazendo uma análise sobre essa passagem, parece-me que ao depararmo-nos com a possibilidade de a escola poder estabelecer uma educação voltada para o sujeito em busca da conquista da sua própria liberdade mais nos tornamos imbricados por uma relação de poder que nos compromete uns com os outros e, consequentemente, com as ações que implicam nossas práticas educativas. 48 Nessa perspectiva, aponto que a educação infantil, além de ser um espaço educativo que visa potencializar o sujeito como sujeito ativo na sociedade, passa a exercer concomitantemente, uma atividade pedagógica focada em “conceitos” que perpassam as questões do ser infantil. Articulando essas teorias que fomentam práticas discursivas e não discursivas na configuração do perfil pedagógico das escolas de educação infantil às questões relacionadas à infância ressalto, novamente, uma discordância de proposições acerca dessa problemática. Refiro-me aqui aos princípios pedagógicos que sustentam uma linha de ação teórica e as práticas aplicadas no cotidiano escolar. Entre as questões pontuadas, destaco alguns enunciados presentes nos PPPs, como a educação infantil tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança, contemplando os aspectos sociais, cognitivos, emocionais e corporais (Escola B).Numa outra esfera pedagógica, a educação é um contínuo adaptar-se às necessidades, às etapas e aos ritmos de crescimento vital das pessoas, pois cada ser possui uma forma original para captar os estímulos provenientes de seu mundo exterior. Esta pedagogia exige do educador uma grande flexibilidade, capacidade de adaptação a novas situações, espírito criativo e sensibilidade psicológica para captar as novas necessidades pessoais e do grupo e fazê-las fluir visando o desdobramento e crescimento dos que lhe são confiados (Escola A). Para a Escola C, a educação vislumbra uma pedagogia em que educar através da brincadeira, da exploração e da expressão das diversas linguagens, proporcionando a formação da criança em um ser feliz, autônomo, criativo e ético, que contribua de forma harmoniosa para o desenvolvimento do meio em que esta inserido, respeitando a diversidade. Diante desses discursos pedagógicos que ora privilegiam a criança como um sujeito a ser trabalhado para garantir um futuro promissor, ora estabelece uma relação entre a criança e o ser em busca da sua própria felicidade, indaga-se: como pensar a infância numa outra perspectiva pedagógica? Segundo Narodowski (2001, p.21) “ a infância representa o ponto de partida e o ponto de chegada da pedagogia. O desenvolvimento de instrumentos capazes de reconhecer o rumo inicial do discurso pedagógico precisa antes de mais nada observar de perto esse elemento anterior e fundamental, essa conditio sinequa non da produção pedagógica: a infância.” 49 Nessa conjuntura, parece-me que as escolas de educação infantil estão reforçando experiências históricas, onde as condições pedagógicas estão voltadas apenas para o saber infantil. A aceleração do processo de alfabetização, em razão da reforma nº 11.274/2006 que institui o ingresso de crianças a partir dos 6 (seis)anos de idade completos no ensino fundamental, tem sido o elemento mais relevante nas práticas pedagógicas dos educadores que atuam diretamente com crianças nessa faixa etária. Mais uma vez, reporto-me à ideia de Comenius quando ele sugere, em sua obra Didactica Magna, uma proposta de trabalho que visa “uma nova arte, cada vez mais racional e mais política, que entra em consonância com a potência de um Estado, cuja meta é aumentar esta mesma potência tanto em intenção quanto em extensão” (CORAZZA, 2002, p.156) Ainda do ponto de vista de Narodowski (2001, p. 21 ), “a pedagogia, enquanto produção discursiva destinada a regrar e explicar a produção de conhecimentos no âmbito educativo-escolar, dedica seus esforços a fazer desses pequenos “futuros homens de proveito” ou “adaptados à sociedade de maneira criativa, ou “sujeitos críticos e transformadores”, etc.. A pedagogia obtém na infância seu pretexto irrefutável para educar e reeducar na escola, para participar da formação dos seres humanos e dos grupos sociais.” Reafirmando essas condições básicas para uma formação integral do sujeito, destaco que, a partir das novas reformas políticas educacionais, a educação infantil passou a valorizar/transformar os conhecimentos espontâneos em conhecimentos científicos, envolvendo a criança nesse processo como sujeitos ativos e responsáveis pela aquisição de novos conhecimentos. Essa relação que se estabelece entre criança e conhecimento é que permitirá a esse sujeito projetar-se no mundo adulto, através de instrumentos que facilitarão a sua participação organizada e ativa da democratização da sociedade. Instrumentos esses que vinculam os interesses infantis com o conhecimento do mundo e as relações existentes entre os mesmos. Conforme Barbosa e Horn ( 2008, p. 28), “as diversas mudanças ocorridas nos últimos 50 anos levam-nos a observar grandes transformações nos modos como as crianças vivem as suas infâncias [....] passou-se de uma concepção segundo a qual as crianças eram vistas como seres em falta, incompletos, apenas a serem protegidos, para uma concepção das crianças como protagonistas do seu desenvolvimento, realizado por meio de uma interlocução ativa com seus pares, com os adultos que as rodeiam, com o ambiente no qual estão inseridos.” 50 A partir dessa configuração de infância observa-se fortemente nos discursos pedagógicos das escolas de educação infantil, por meio de seus projetos políticos pedagógicos, sejam elas laicas (rede pública ou privada de ensino), filantrópicas e/ou confessionais, uma intenção filosófica que embasa e fundamenta a educação e suas práticas educativas. Essas percepções filosóficas se constituem nesses espaços educativos de aspectos relacionados às questões sociais, psicológicas, políticas, econômicas (Escolas B e C) e, também, de situações/condições que interpretam o homem/criança como imagem e semelhança de Deus (Escola A). Em todas elas, a ênfase na criança supõe que ela é o centro da pedagogia. Todos os recursos pedagógicos são pensados e estruturados de acordo com a faixa etária da criança e seu processo maturacional, pois[...] nesse período da vida, a pessoa se constitui como individualidade, constitui sua identidade, constrói valores, conhecimentos e significados, desenvolvendo sua singularidade e pluralidade. (Escola B) Ainda dentro dessa perspectiva filosófica, é interessante salientar a constituição de princípios/objetivos que permeiam as escolas em seus propósitos educativos. Para essa especificidade cito as questões culturais que a criança evidencia por meio de suas ações no contexto escolar, permitindo um “aperfeiçoamento” de suas práticas reflexivas como condição para a construção de sua autonomia, criticidade, cooperação, ética, entre outros. Articulando interesses comuns entre a Pedagogia da autonomia e outras tendências que submergem de um sistema educacional particular de cada instituição, faço menção a uma proposta que se estabelece a partir de alguns princípios, objetivos e processos vitais chamados “estrelas guia” (Escola A). “Estrela guia”é uma expressão, que no meu entendimento, evoca uma concepção pedagógica de infância que articula o cuidar e o educar de uma criança em desenvolvimento, levando em consideração o que ela traz na sua bagagem de conhecimentos aliados aos ensinamentos pedagógicos e religiosos. Sua subdivisão permeia algumas características que se interligam em todo o sistema educacional, são elas: Pedagogia do Ideal, Pedagogia da Vinculação, Pedagogia da Aliança, Pedagogia da Confiança e Pedagogia do Movimento ou Correntes da Vida(Escola A). Cada uma dessas metodologias adequadas à realidade educacional da instituição possui intenções diferentes, mas com um propósito em comum, a formação do novo homem na nova comunidade (Escola A). Essa produção de ideias acerca da possibilidade de o indivíduo/criança tornarse um ser na sua plenitude pode ser considerada uma tendência audaciosa e 51 inovadora no/para o cenário da educação infantil. De acordo com os eixos norteadores que embasam outras estruturas pedagógicas, a educação infantil deve contribuir para que a infância seja vivida de forma intensa e prazerosa no presente (Escola B). As relações que iremos construir com nossos alunos têm como referência as relações que acontecem entre escola e as famílias. Temos que somos espelhos das famílias e, consequentemente dos nossos alunos (Escola C). Consideramos o grande valor da orientação religiosa na educação que visa formar e configurar a vida dos educandos. Ela quer abranger a vida prática e de todos os dias, formar princípios, interferir na vida diária, quer se trate da vida familiar, quer de outras formas de vida comunitária (Escola A). Em contraposição a esses discursos, aponto que essa possibilidade da criança/infância ser o alvo da pedagogia moderna incita uma ideia de que é a partir da sua ‘voz ativa’ que a educação busca formalizar suas propostas educativas, considerando seus conhecimentos prévios, necessidades, curiosidades e interesses. Por outro lado, coloca-se em evidência a integridade desses discursos infantis para estabelecer uma linha de ação única/homogênea, sendo que, o trabalho pedagógico deve estar fundado nas diferenças individuais e na consideração das peculiaridades das crianças da faixa etária atendida pela educação infantil (Escola B). Em outras palavras, proponho a pensar a integridade do discurso das crianças para expressar seus conhecimentos, necessidades, interesses e curiosidades, sem que esses elementos sofram interferência de qualquer tipo, modo ou situação de um adulto. Contrapondo esse conjunto de discursos pedagógicos que sinalizam uma possível condição na estruturação familiar da criança, faço menção à outra característica de criança enquadrada num contexto de vulnerabilidade social, econômica e emocional. Mas, qual(is) a(s) ferramenta(s) conceitual(is) utilizada(s) pelas escolas para distinguir uma família estruturada para outra considerada desestruturada? Que ideia de infância entrecruza as questões sociais em que a criança está inserida? Como a escola percebe e se movimenta para amenizar a diferença entre as classes sociais? Infelizmente, os PPPs das escolas de educação infantil, com diferentes perfis pedagógicos, que atendem uma demanda com diferentes níveis sociais, têm dificuldade para prever uma ideia de infância voltada para essas diferentes realidades. Em outras palavras, ao definir como parâmetro pedagógico a “obediência” a algumas características que “normatizam” as crianças e seu processo de desenvolvimento é perceptível que outras perspectivas de infância deixam de serem pensadas e tornarem-se verdades no tempo e espaço que se está 52 vivendo/ experienciando. Nessa perspectiva, reforço a ideia de que a população “pequena” vem sendo alvo de políticas históricas, culturais e sociais que tentam capturar esses sujeitos cada vez mais cedo para/na escola para gerenciar e conduzir suas condutas. Essa estratégia de poder e governamento, como bem nos explicita Foucault (2008, p.140) diz que, “... a população vai ser o objeto que o governo deverá levar em conta nas suas observações em seu saber, para chegar efetivamente a governar de maneira racional e refletida. A constituição de um saber de governo é absolutamente indissociável da constituição de um saber de todos os processos que giram em torno da população no sentido lato, o que se chama precisamente “economia”.” Baseada nessas conjunturas familiares, chamo a atenção para o papel da escola como um espaço educativo que busca uma concordância com esses ensinamentos familiares com o intuito de constituir um canal aberto (Escola C) e, assim, dispor de um conjunto de ações em prol dessa criança em seu pleno processo de desenvolvimento. Além disso, é notável o comprometimento da escola com os aspectos relacionados à vida, estendendo suas atribuições à comunidade escolar, com o intuito de fazer ser e agir para que a vida aconteça verdadeiramente (Escola C). Nesse sentido, um discurso comum que circula em um dos projetos políticos pedagógicos, em especial, das escolas confessionais, ressalta a importância dessa etapa para despertar os educandos para a realidade de serem imagem e semelhança de Deus, valorizando-os em sua dignidade de filhos de Deus, para que seu agir – desde a mais tenra idade- seja coerente com o seu ser (Escola A). Outra característica que permeia essa naturalidade das coisas, do ser e do agir, refere-se ao homem remido que, por natureza e graça, pertence à ordem da natureza e à ordem da graça. Por sua vez, a educação é convertida em “harmonizar estas duas dimensões, considerando que o desenvolvimento se dá num crescimento lento, de dentro para fora, e de uma totalidade orgânica a outra totalidade orgânica (Escola A). Argumenta, ainda, que a infância é educável, mas não pedagogizante. Em outras palavras, a infância não é uma etapa preocupante, sendo que os “critérios de graduação, ordem e racionalidade presidirão o processo de seu amadurecimento” (p.47). 53 Aqui, mais uma vez, retoma-se a ideia da família como princípio natural de vida das crianças. A importância do adulto na (in)formação da criança se revela como uma base essencial e indispensável na formação desse ser. Entrecruzando essas implicações/orientações dos adultos no processo de desenvolvimento infantil é visível que, para que a criança se torne um adulto promissor é de extrema importância a presença constante da família na condução e supervisão dos conhecimentos de que ela irá se apropriar. Por sua vez, Corazza (2002) também discute algumas características inerentes ao pensamento de Comenius sobre a infância a partir de duas perspectivas: a influência da religião – relação entre Jesus e as criancinhas – e o discurso educacional instituído por Comenius. Segundo a autora, pode-se dizer que a obra de Comenius, intitulada Didactica Magna, revela “práticas que, para falar do infantil, articularão saberes e poderes religiosos com os conhecimentos científicos e políticos”. (p. 140) Para vislumbrar essa concepção do ser infantil e sua aproximação com questões religiosas, científicas e políticas é interessante marcar que a escola, enquanto instituição de ensino, tem como objetivo principal proporcionar condições para o desenvolvimento integral da criança, valorizando seus conhecimentos, garantindo-lhes um espaço propício para a ampliação de “novas” experiências de vida, interligadas ao sobrenatural para a formação da cidadania. Agregando outras formas de experimentação para aquisição do conhecimento, elegem-se os temas transversais como uma possibilidade para ampliar uma discussão sobre os problemas sociais e, ao mesmo tempo, valorizar a capacidade de questionar das crianças. Creio que, para além dos conteúdos pedagógicos de aprendizagem, os temas transversais representam, segundo os PPPs das escolas, uma gama de atividades orientadas que possibilitam à criança, através do lúdico, desenvolver as capacidades mínimas de compreensão do mundo e das relações interpessoais. Diferentemente do pensamento de Comenius, Rousseau (Streck, 2004) considerava que para entender a criança e sua gramática é necessária uma compreensão dos movimentos que a criança mesma estabelece para apreender as coisas que estão a sua volta. Para ele, o processo educativo deve ocorrer pelas experiências da infância. É visível que, na concepção de Rousseau, a criança tornase o centro do processo educativo, mas é a partir de suas experiências/vivências naturais que ela constrói os saberes que futuramente serão úteis para levá-la ao 54 encontro da ciência. À busca de um conhecimento pela criança Rousseau denomina de “método da criança”. Partindo desse princípio, torna-se visível o papel da educação infantil como um espaço educativo que vincula naturalmente a criança nesse ambiente; proporciona experiências de conhecimento nato e religioso; desperta a responsabilidade, a verdadeira liberdade de cada ser, num espírito de confiança e respeito consigo mesmo, com os outros, com a natureza e com Deus. Por outro lado, de que modo essas experiências singulares poderão contribuir significativamente no processo de formação da criança no momento em que ela vivencia essa formação? É interessante perceber que, tanto Comenius como Rousseau, tiveram a preocupação de mencionar em seus estudos a infância como princípio da vida. Para Comenius, a infância não gerava nenhum tipo de “violência” para a sociedade, pois na sua constituição não havia inteligência para tal ação, já para Rousseau, a criança era considerada um fenômeno natural que se constitui de modelos desde o momento da concepção até o momento em que é inserida na sociedade, sendo corrompida pela mesma – perdendo sua pureza de estado para um ser conveniente para tal sociedade. (Streck, 2004) Frente a essas diferentes posições teóricas, Kohan (2003, p.247 - 248) propõe uma educação que, Permite viver a infância como novidade, como experiência, como descontinuidade, como multiplicidade, como desequilíbrio, como busca de outros territórios, como história sempre nascente, como devir, como possibilidade de pensar o que não se pensa e de ser o que não se é, de estar em outro mundo daquele no qual se está. Se há algo a se preparar por meio da educação, é a de não deixara infância, a experiência. Preparamo-nos para recuperá-las, se as perdemos. Se a educação é educação dos que não estão na infância, dos excluídos da experiência – sejam crianças ou adultos -, a tarefa de uma tal educação é inventar essa infância e não deixar que se volte a perder. Considerando que a infância constitui-se historicamente uma invenção moderna, penso que essa pesquisa foi e ainda é um trabalho provocativo aos velhos e novos pesquisadores da educação, para que, como nos chama a atenção a autora Kramer (2007, p.16), “olhar o mundo do ponto de vista da criança pode revelar contradições e uma outra maneira de ver a realidade.” 55 5 INFÂNCIA CIDADà “(...) uma época não se deixa capturar por seus contemporâneos a partir dos grandes movimentos, haja vista que a realidade social e cultural é sempre mais ampla que a perspectiva de visada possível a compreensão humana.” (Pereira, 2012, p.28) Esse capítulo discute de que maneira as escolas de educação infantil de Santa Maria/RS produzem o que denominei, para fins da análise realizada, como ‘Infância Cidadã.’ Para tal proposta far-se-á uma compreensão dos discursos que estão dispostos nos Projetos Políticos Pedagógicos das respectivas instituições selecionadas para essa pesquisa. Paralelo a essas questões, proponho também discutir como as escolas vêm operando com esses conceitos de infância cidadã para produzir sujeitos de direitos civis. Nesse sentido, Foucault (1982) aponta que, (...) conceituação não deveria estar fundada em uma teoria do objeto – o objeto conceituado não é o único critério de uma boa conceituação. Temos de conhecer as condições históricas que motivam nossa conceituação. Necessitamos de uma consciência histórica da situação presente.” (p.274) Considerando os movimentos políticos, econômicos e sociais das últimas décadas sobre a institucionalização da escola de educação infantil, assunto este já discutido no capítulo intitulado Cara ou Coroa? variações sobre a infância, é notável a busca incessante das escolas para constituir práticas discursivas que viabilizem um projeto pedagógico voltado para a formação do cidadão. De acordo com Sommer (2007, p. 58), (...) há determinadas regras que sancionam ou interditam a produção e circulação de práticas educativas escolares.” Nesse sentido, rompendo com alguns paradigmas que estabelecem os “procedimentos” para a reestruturação dos Projetos Políticos Pedagógicos, reportome a um discurso fortemente presente nesses documentos para exprimir uma ideia que associa gestão democrática e infância cidadã. Entre elas, cito o que está disposto no PPP da escola da rede pública de ensino, referindo-se a essa prática como um “atributo indispensável na melhoria do desenvolvimento e desempenho das escolas de educação infantil.” Salienta-se que essa premissa – gestão democrática- instituída na Constituição Federal de 1988 e reverenciada na LBD 9394/96 e que prevê uma possibilidade de fomentar uma discussão participativa entre todos os envolvidos com 56 a educação escolar – gestores, professores, funcionários e comunidade escolar- na estruturação dos PPPs, institui um discurso devidamente adaptado ao nível de compreensão de cada escola. Digo isso, porque a partir da análise das questões que aproximam a ideia de Gestão democrática e infância cidadã, foi possível conhecer as “fontes inspiradoras” que determinam o perfil pedagógico de cada instituição. Por outro lado, assinalo que, ao tentar articular uma relação entre gestão democrática e infância cidadã uma tensa e intensa pluralidade de ideias permitiu difundir essa temática e, assim, abrir outras perspectivas para atender essa demanda educativa. De acordo com as Diretrizes Curriculares para a Educação Municipal (2011), “a gestão democrática propõe a descentralização de decisões com a participação, mesmo representativa, da comunidade educacional, na construção do Projeto Político Pedagógico.” (p.38) Nesse sentido, considero pertinente destacar que, ao me referir a “competência” da gestão democrática escolar, minha intenção é analisar a concordância desse dispositivo pedagógico as questões que aliam as ideias que foram e estão sendo instituídas nos discursos dos PPPs sobre a formação de uma infância cidadã. Entretanto, importa ressaltar que, gestão, “do latim gestio, refere-se a acção e ao efeito de gerir ou de administrar.” O termo pode ser instituído em diferentes contextos, incluindo um tipo bem específico associado à educação denominado gestão do conhecimento. Esse tipo de gestão “trata de um conceito aplicado às organizações, que se refere à transferência do conhecimento e de experiências existentes entre seus membros.” (http://conceito.de/gestao)Já democrática, vem de democracia, ou seja, uma forma de governo. O termo origina-se do grego antigo demokratia, ou seja, governo do povo. (http://www.significados.com.br/democracia.) De acordo com a Constituição Federal de 1988, a expressão gestão democrática no ensino público marca uma ideia de que é a partir desse dispositivo que a escola deverá buscar subsídios legais para uma formação de princípios que nortearão a Educação nacional. Em outras palavras podemos considerar que essa prática discursiva legitimada na legislação vigente pressupõe outras possibilidades a escola para elencar novos valores educativos às suas ações pedagógicas. Refiro-me aqui, fundamentalmente, à ideia de cidadania que circula nos documentos pedagógicos das instituições para proferir os direitos e deveres da criança e suas implicações na formação de um sujeito livre. 57 Hillesheim (2008), na sua tese de doutorado, nos assinala uma possibilidade de pensar a infância cidadã a partir de uma perspectiva platônica como um “material de sonhos políticos.” (p.75) Essa intenção de tornar a infância alvo de estratégias políticas e econômicas nos permite vislumbrar a construção de uma sociedade mais justa para todos. Ao buscarmos uma compreensão dos aspectos legais que incidem sobre a criança, vista como um sujeito de direitos e deveres sociais, eis que surgem algumas questões sobre o que a criança pode ou deve representar para nossa sociedade no futuro. Como a autora nos aponta, “as crianças não valem pelo que são, mas pelo que virão a ser, sendo que necessitam ser educadas para fazê-las partícipes de uma polis previamente sonhada.” (p.75) Nessa perspectiva, Kohan (2003, p.27) destaca que, para Platão, “há uma conexão direta entre as qualidades de uma polis e as dos indivíduos que a compõem, qualidades que não estão dadas de uma vez por todas, mas que dependem fortemente do contexto onde se desenvolvem”. Diante disso, fica visível que numa perspectiva platônica a concepção de infância não está vinculada diretamente às crianças pequenas, sendo essas consideradas jovens educáveis para obter condições necessárias para governar o conjunto. É interessante observar que nesse período histórico a educação era o único recurso viável para garantir aos jovens uma inserção social e política privilegiada. Circulando ainda pelo território de Platão, considera-se que “a infância é um problema filosoficamente relevante enquanto se tenha de educála de maneira especifica para possibilitar que a polis atual se aproxime o mais possível da normatizada”(Ibidem, p.28-29) . Nesse sentido, Platão alerta: “é necessário pensar outro cuidado, outra criança, outra educação, uma experiência infantil da verdade e da justiça, que preserve e cultive o que nessas naturezas há de melhor e o ponha a serviço do bem comum” (Ibidem, p.28). Atravessados por esses discursos, penso ser pertinente pontuar, inicialmente, o conceito de cidadania que subsidiará uma discussão sobre esse assunto e, ao mesmo tempo, gerar novas perspectivas de compreensão sobre essa temática. Após essa análise conceitual, sinalizo a partir dos discursos pedagógicos das escolas de educação infantil de Santa Maria algumas concepções de cidadania que estão sendo produzidos nesses contextos educacionais. E, para tal empreitada, far-se-á uso da mesma legenda que sinaliza os discursos pedagógicos das escolas analisadas (A, B e C) constituída no capitulo anterior para destacar as principais ideias de infância cidadã de cada escola. 58 Entende-se por cidadania um conjunto de ‘direitos e deveres civis’ que permitem o sujeito intervir, direta ou indiretamente, no cenário social, político, econômico e cultural da sociedade em que vive. “A cidadania está relacionada com a participação social, porque remete para o envolvimento em atividades em associações culturais (como escolas) e esportivas.” http://www.significados.com.br/cidadania/. Segundo essa concepção de cidadania, é visível que, à educação compete preparar o cidadão para exercer sua cidadania. Numa perspectiva foucaultiana, “enquanto o sujeito humano é colocado em relações de produção e significação, é igualmente colocado em relações de poder muito complexas”(Foucault, 1982, p.274). Ainda para o autor, Essa forma de poder aplica-se à vida cotidiana imediata, que categoriza o indivíduo, marca-o com a sua própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros têm de reconhecer nele. É uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos. (1982, p. 278) Nesse sentido, tentarei compreender de que forma as escolas de educação infantil contemplam alguns objetivos teórico-práticos para constituir instrumentos pedagógicos que auxiliam na formação cidadã. A seguir passo a transcrever o que dizem os PPPs das escolas analisadas. Escola A ...possibilitar a construção de autonomia, cooperação, criticidade, responsabilidade, formação do autoconceito positivo, vinculado ao sobrenatural para a formação da cidadania.” (p.3) ...despertar os educandos para a realidade de serem imagem e semelhança de Deus, valorizando-os em sua dignidade de filhos de Deus, para que seu agir – desde a mais tenra idade – seja coerente com seu ser.” (p.4) Fazendo uma análise entre a ideia que permeia a palavra cidadania, referida no início dessa seção e a questão do agir da criança por sua imagem e semelhança de Deus, penso que essa perspectiva de infância estabelece um ideal de sujeito que perpassa qualquer possibilidade de compreensão do ser infantil. Ou seja, tenta-se potencializar um discurso, onde a criança é induzida a assumir características associadas a algo ligado ao sobrenatural. Essa compreensão de criança e de conhecimento natural será abordada no capítulo seguinte, onde discuto a questão da naturalização da infância implicados nos PPPs. 59 Escola B “A nossa prática educativa se baseia na visão de uma sociedade justa, solidária, ética e sustentável, vislumbrando a existência de um mundo saudável, democrático e plural. Acreditamos, assim, contribuir para a formação de cidadãos conscientes e comprometidos na construção de um mundo melhor. (s.p.) “A infância não tem seu valor justificado apenas por ser um tempo de preparação para que no futuro, a pessoa tenha um bom desempenho escolar, seja um bom cidadão, apresente habilidades requeridas pelo mundo de trabalho, etc.. A educação infantil deve contribuir para que a infância seja vivida de forma intensa e prazerosa no presente.” (s.p.) No que diz respeito à infância cidadã, considero interessante destacar nesses enunciados uma divergência de ideias que embasam uma mesma proposta pedagógica. De um lado, quando a escola se refere a uma prática educativa voltada para uma perspectiva de sociedade mais justa, solidária, ética e sustentável, creio que essa projeção na figura da criança para transformar uma sociedade e/ou o mundo, como habitualmente nos referimos, exige que as escolas adotem uma postura pedagógica, onde a questão da cidadania seja constantemente analisada, pensada e discutida em todas as ações propostas pelas diferentes áreas do conhecimento. Isso leva-nos a pensar que, somente por meio dessas reflexões a criança será capaz de intervir de forma produtiva no contexto em que ela está inserida. Porém, aponto que essa percepção de cidadania ao qual essa escola de educação infantil vem operando não condiz com as noções de infância até então apresentadas pela mesma. Por outro lado, ao enfatizar uma ideia de infância a ser vivida com prazer no presente, penso que esse embate entre ser consciente dos seus atos e ser criança por criança sugerem uma incompatibilidade de pensamentos que tentam alicerçar a importância da formação do sujeito e sua inserção na sociedade. Escola C “No momento em que a escola prioriza a vida, ela assume o compromisso de valorizá-la, cultivá-la e fazê-la desabrochar em todos os sentidos. Assim, o seu papel será de sensibilizar e de humanizar a comunidade escolar a fim de tornarem-se cidadãos capazes de perceber e agir na realidade para que a vida aconteça verdadeiramente.” (p.13) Em relação ao aspecto político que envolve a cidadania, pode-se entender que, em grande parte, é na escola (segundo grupo social ao qual pertencemos) que 60 aprendemos a exercer nossos direitos e deveres de cidadão participando ativamente das decisões.” (p.13) Neste contexto, a educação pode e tem o papel de contribuir para que as pessoas possam entender a realidade, transformando, interagindo e recriando-a, com educandos capazes de escolher e tomar suas decisões, tornando-se verdadeiros cidadãos, realizando projetos em que a família participe opinando, decidindo e valorizando as questões sociais.” (p.14) No primeiro trecho mensurado pela escola C, é perceptível a relação que se estabelece entre escola e os princípios que norteiam o seu papel educativo na formação de cidadania. Nessa lógica, fica evidente que a criança, para se tornar um cidadão “completo”, necessita desenvolver habilidades que possibilitem a ela uma ação eficaz, para, assim, atuar de forma produtiva no meio social em que ela está inserida. Neste contexto, a educação nos permite pensar que, a partir de determinados discursos, é possível caracterizar o que se entende por cidadania na contemporaneidade. Em outras palavras, é somente na escola que o educando adquire instrumentos importantes e elementares para a plena conquista da cidadania. Por outro lado, no segundo enunciado, a escola C busca justificar por meio dos parâmetros conceituais instituídos legalmente, sustentar as práticas discursivas que estão sendo constituídas no seu contexto educativo, a partir da ideia de que é na escola que a criança aprenderá a exercer sua cidadania. O que causa estranheza nessas afirmações é a forma como a escola vem articulando seus discursos pedagógicos para referir-se a ideias tão complexas e que dependem de outros contextos que possibilitam outras perspectivas de intervenções sociais que subjetivam esse sujeito - a criança. Dessa forma, aponto que, no último fragmento que prevê o que a escola pode e tem a oferecer para os verdadeiros cidadãos do futuro, ela mesma tenta instituir um sentido aos vetores escolares que facilitarão o processo de formação cidadã e, concomitantemente, atingir os objetivos propostos nas linhas de ação anteriores. Por outro lado, torna-se visível que, ao tentar induzir uma lógica de pensamento, onde somente a escola dispõe de ferramentas discursivas pedagógicas na condução de práticas de cidadania, marco como proposição a fragilidade do atual sistema educativo na tentativa de articular esses saberes – exercício dos direitos e deveres – numa outra perspectiva de educação para crianças pequenas. Mais uma vez, reforço a ideia de que as instituições de educação infantil vêm apresentando 61 grandes embates para constituir novas linhas de ações pedagógicas que ultrapassem os discursos pedagógicos que se naturalizaram como verdades ao longo da história. Nesse sentido, para compreender mais e melhor as ‘tendências’ que atravessam os discursos pedagógicos escolares referentes às suas concepções de criança e a infância, é que, no capítulo seguinte, destaco as linhas teóricas que embasam essas ideias e que, naturalmente, a tomam como verdades únicas e absolutas. 62 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Todo conhecimento começa com o sonho. Iniciar a última etapa dessa dissertação com a epígrafe de Rubem Alves me parece apropriado, tendo em vista a minha motivação para fazer este estudo. A partir de um sonho, segui em busca do conhecimento necessário para concretizá-lo: investiguei a temática da Infância na tentativa de compreender os mecanismos que movem o intrincado jogo da educação infantil, especialmente no que tange às concepções de 'Criança' e de 'Infância'. Uma das questões que assinalo são os documentos que embasam os projetos políticos pedagógicos das instituições de educação infantil de Santa Maria/RS e que se mantêm como referência para fundamentar suas ações pedagógicas. Entre eles, faço menção ao Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, documento esse que tem como propósito auxiliar as escolas “no seu trabalho educativo diário junto às crianças pequenas.” (p. 5) Pensando sobre os ideais pedagógicos instituídos nesse documento, assinalo que o mesmo já foi investigado e analisado por autores contemporâneos, tais como Bujes (2001), que o considera um instrumento didáticopedagógico ultrapassado no que tange às ideias que circundam o ser criança e a infância. Por outro lado, considero pertinente destacar que poucos são os documentos mencionados nos PPPs das escolas de educação infantil que possibilitem pensar a infância por outro viés analítico. O sonho nada mais é que aventura pelo mar desconhecido... (Rubem Alves) e foi nas ondas desse desconhecido marque me impulsionei para mergulhar em profundezas que fossem capazes de me proporcionar formas de sobrevivência e, a partir dessas experiências estabelecer novas situações de aprendizado. Nessa incansável busca pelo desconhecido, percebi que podem existir diferentes movimentos que tentarão instruir nossas ações pedagógicas e legitimá-las como verdades. Analisando os discursos produzidos sobre infância pelas escolas de educação infantil de Santa Maria/RS, é perceptível a redundância de teorias que produzem uma ideia de infância como sendo um período/etapa ou fase do desenvolvimento humano. Do mesmo modo, assinalo que, a partir desses mesmos enunciados que sustentam uma prática discursiva que legitima uma determinada ideia de infância, percebe-se certa resistência das instituições em abrir novas discussões e, assim, ampliar outras possibilidades sobre a temática em evidência. Evidência essa que permite difundir a ideia de criança-infância e aluno como sinônimos de um mesmo 63 sujeito, sem mesmo analisar ferramentas conceituais que possam estabelecer as correlações e diferenças entre elas. Além disso, considero relevante marcar que, ao deparar-me com os conceitos de criança e infância seguidos pelas instituições de educação infantil, foi possível vislumbrar uma tendência que atribui para ambas as palavras um mesmo significado representativo de um discurso pedagógico, como se as crianças fossem naturalmente portadoras de uma infância e as características que são atribuídas às mesmas fossem universais. Nessas circunstâncias em que a escola vem demonstrando sua fragilidade pedagógica acerca dessa temática, aponto que outras possibilidades de educação estão sendo implantadas no nosso país. Destaco a lei nº 11.274/2006, que obriga o ingresso de crianças com 6 (seis) anos de idade completos no primeiro ano do ensino fundamental. Analisando as condições com que essas políticas públicas vêm constituindo seus discursos para instituir uma educação de qualidade para todos, penso que esse conceito de educação que vem sendo incorporado pela legislação vigente, de certa forma, marca o momento em que essas leis estão sendo estabelecidas no campo da educação. Refiro-me também aqui à possibilidade do ingresso obrigatório de crianças a partir de 4 (quatro) anos de idade na escola de educação infantil, que já está em vigência no Plano Nacional de Educação (2001), que deverá ser universalizada até 2016. Buscando compreender a lógica acerca dessa proposta nos discursos legais, supõe-se que essa ação pode ser considerada uma estratégia de governamento para capturar e gerenciar a conduta dos sujeitos cada vez mais cedo. Ainda, de acordo com essa perspectiva de educação, penso que as intenções subentendidas nessas políticas públicas educacionais trouxeram uma repercussão significativa, principalmente para o cenário da educação infantil, a começar pelas questões que estão direta ou indiretamente ligadas àconcepção de infância que cada instituição de educação infantil estabelece no seu Projeto Político Pedagógico. Concomitantemente, surgem indagações sobre a função desse nível de ensino que, por sua vez, já é parte institucional da educação básica. Nessa perspectiva, Veiga-Neto (2000) sinaliza a necessidade de analisarmos a gama de mudanças que estão acontecendo no setor educacional, nas relações entre escolarização e as novas configurações advindas dessas mudanças no mundo contemporâneo, mais especificamente no novo formato de governamentalização surgido nas últimas décadas. 64 Aponto que, diante dessa proposta– obrigatoriedade do ingresso de crianças a partir de 4 (quatro) anos de idade – é pertinente que as escolas de educação infantil sejam instigados a produzir outras possibilidades de pensamento em torno das ideias de criança e infância. Penso que, ao buscar outra compreensão de criança e de infância como uma ‘invenção’ ou ‘descoberta’ da modernidade, e não como algo já dado, “natural”, bem como problematizar alguns dos sentidos que se têm atribuído às mesmas, como, por exemplo, a ideia da infância como preparação para a vida adulta e a constituição de uma infância cidadã, as escolas terão como constituir outros sentidos educativos às crianças nessa faixa etária. Tendo em vista a necessidade de estabelecer outras vertentes analíticas que pudessem auxiliar as escolas a refletir sobre novas perspectivas de infância, naveguei por uma corrente de incertezas, rupturas e muitos embates. Dessa forma, na medida em que me apropriava do pensamento foucaultiano, mais se tornava evidente a necessidade de desnaturalizar/descristalizar um pensamento fortemente enraizado, cultivado e calcado por um determinado ideal pedagógico. Diante dessa complexidade de ensinar e aprender na educação básica, e, especificamente na educação infantil, suponho que ainda estamos muito calcados na ideia de que é na escola que as crianças são “ensinadas” a serem cidadãos do mundo e que, por meio dessa relação, elas adquirem o saber necessário para operar com alguns elementos essenciais à vida no presente e no futuro. Outro aspecto que chama a atenção associada à questão da cidadania refere-se aos termos usados pelas escolas de educação infantil para inferir uma ideia de Infância Cidadã. Autonomia, criticidade, respeito mútuo, são palavras muitas vezes utilizadas nos documentos, como se estivessem acima de quaisquer suspeitas e não enraizadas em determinadas formações históricas e culturais, sendo que cada uma dessas palavras expressa uma especificidade da educação na formação de sujeitos com direitos e deveres civis. Assim, estar comprometido com a formação da cidadania das crianças é estar, concomitantemente, imbricado em relações de poder que nos subjetivam enquanto partícipes de uma organização social que se estabelece a partir de ações mútuas de poder. Dessa forma, considero relevante destacar que, ao pensarmos a escola como a única forma para garantir a formação de um sujeito cidadão do e para o mundo pode ser um equivoco. É importante que, enquanto profissionais da educação, possamos produzir outras discussões que venham ao encontro dos movimentos sociais e 65 culturais da época em que estamos inseridos. Em especial, as questões que foram ou estão sendo constituídas sobre criança e infância nos referenciais teórico-práticos que instituem o perfil pedagógico das escolas de educação infantil de Santa Maria/RS. 66 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÀRIES, Philippe. História Social da criança e da família (2ª Ed.).Rio de Janeiro: LTC, 1981 ARROYO, Miguel. 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