CI LDO M EI RELES E NELSON LEI RNER ­ OUTRAS ARTES, OUTROS CRI TÉRI OS Objetivos Analisar o trabalho artístico de Cildo Meireles e Nelson Leirner, a partir de uma perspectiva cultural de resistência. Tópicos 1. N els on Leirner : um neoconcreto 2. Cild o M eireles: Circuitos I d eológ icos 1 . Nelson Leirner: um neoconcreto Se os anos 1950 e 1960 viram surgir uma grande efervescência criativa no mundo da arte, os anos 1970 e 1980 presenciaram o mesmo acontecimento no Brasil. A forte censura imposta pela Ditadura Militar brasileira levou os artistas a encontrarem novas e criativas maneiras de superar a opressão e o silêncio. Maneiras nem sempre bem­comportadas e muitas vezes polêmicas, mas sempre criativas. A produção brasileira dessa época é muito rica – a começar pelos neoconcretos, que continuam produzindo seus trabalhos durante os anos 1970, e que inspiram os artistas mais novos em sua busca de soluções que fujam do convencional e do acadêmico. A seguir, trataremos de dois artistas que começaram a produzir seus trabalhos na virada da década de 1960 para a de 1970 e que continuam em franca atividade, constituindo exemplos fundamentais de criadores que transcendem as fronteiras da obviedade, e ainda surpreendem pela originalidade dos conceitos com os quais trabalham, questionando constantemente as regras da arte e das instituições que os cercam. Qual o Critério? Sou um jogador; fiz da arte um jogo, fiz as minhas regras e as dei ao público. ­ Nelson Leirner A frase acima não é leviana. Nelson Leirner foi (e continua sendo) um dos artistas brasileiros mais questionadores – tanto das regras da arte quanto as instituições que cercam os procedimentos que dela cuidam: leia­se, museus e curadores. A prova mais contundente de que Leirner nunca esteve de brincadeira com relação à arte (por mais lúdica que ela seja, em diversos momentos de sua carreira, especialmente o atual) está no famoso episódio do IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, em 1967. Nelson inscreveu duas obras: O Porco , que consistia em um porco empalhado dentro de um caixote de madeira com um
presunto amarrado ao pescoço, e Tronco com cadeira, onde vemos uma tora de madeira com uma lacuna na forma de uma cadeira, que se encontra acoplada ao tronco. As duas obras foram aceitas, e imediatamente Leirner enviou para os membros do júri uma carta com a seguinte pergunta: “Qual o critério dos críticos para aceitarem esse trabalho no Salão de Brasília?” O próprio Nelson comenta sua atitude (que desagradou aos jurados): “É a primeira vez que um artista cria caso para saber por que foi aceito num Salão”. Essa atitude iconoclasta de Leirner não pode ser reduzida a simplificações, mas tem como pelo menos um dos pontos de origem a relação com seu pai, Isai Leirner. Polonês radicado no Brasil desde 1927 (Nelson nasce em 1932), Isai Leirner era empresário e apreciador das artes. Foi diretor­tesoureiro do MASP (Museu de Arte Moderna de São Paulo) e integrou a diretoria da Bienal de São Paulo. Sua esposa, Felícia, era artista plástica. Apesar dessa influência artística em seu lar, Nelson não pensava em se tornar também um artista. Foi morar nos Estados Unidos entre 1947 e 1952, onde iniciou um curso de Engenharia Têxtil no Lowell Technological Institute, mas não chegou a conclui­lo. Só depois de voltar ao Brasil, em 1953, ao estudar a obra de Paul Klee, Leirner começa a sentir interesse em pesquisar e desenvolver trabalhos com um viés artístico. Como observa Tadeu Chiarelli em seu livro N els on Leirner – arte e não A rte, “esse novo interesse pelas artes plásticas e duas primeiras tentativas de pintura fizeram com que seus pais tentassem ajudá­lo.” Em 1961, sem Nelson saber, seu pai conseguiu que a Galeria São Luiz (a mais importante de São Paulo na época) fizesse uma exposição individual de Nelson. Detalhe: a dona da galeria sequer havia visto as obras. Essas experiências marcaram profundamente Nelson. Anos depois, em vários depoimentos, ele diria que “a qualidade de meu trabalho não possuía a importância que lhe foi dada. Era uma pura questão de prestígio social. Quem trabalha seis meses não pode surgir de repente e ter seu trabalho aceito. Pode mostrar apenas que tem talento.” Mas o talento de Leirner não se restringia à questão plástica. Com a consciência desse tipo de acontecimento, ele começou a desenvolver um olhar bastante crítico com relação aos critérios de julgamento das obras de arte. É este olhar que, entre outras coisas, cria a polêmica do Salão de Brasília, mas também levará a outros questionamentos que marcaram o cenário das artes plásticas, como a série de desenhos Trabalhos Feitos em Cadeira de Balanço Assistindo Televisão , de 1998. Nessa série, inovadora a começar pelo título (que explicita o procedimento de criação do trabalho e destrói a idéia, ainda cultivada por muitos, de que o artista precisa de paz, silêncio e quase que inteiramente de inspiração para realizar seus trabalhos), Leirner reutiliza fotografias da americana Anne Geddes, famosa por suas fotos de bebês gorduchos. Leirner identifica elementos potencialmente pornográficos e pedófilos nessas fotos e os ressalta desenhando falos e elementos de forte conotação sexual. O trabalho, que chegou a ser exibido, foi censurado pelo Juizado de Menores, causando polêmica que provoca um movimento de artistas e pessoas da área contra a censura nas artes. "Acho que ela é que devia ser processada. Ela, que usa as criancinhas, colocando­as sobre botões fálicos de rosa, que é pedófila e não eu", Nelson afirmou na época, associando essa falsa singeleza no trato dos bebezinhos nus com os pais que exultam vendo os filhos a dançar a Dança da Garrafa. "Ninguém quer enxergar”. No mesmo ano, Nelson recebeu o Prêmio Johnnie Walker de Artes Plásticas. O artista, que até 1964 apenas pintava, abandona a pintura e passa a trabalhar com elementos prontos, fabricados industrialmente. Recolhe objetos de uso e desloca o seu sentido, como em Que Horas São D. Candida (1964). Dois anos depois, a participação do espectador é incorporada em obras como Você faz parte I e II (1966). Ainda em 1966, funda o Grupo Rex, com Wesley Duke Lee, Geraldo de Barros, Frederico Nasser, José Resende e Carlos Fajardo (1941). O coletivo promove happenings e publica o jornal Rex Time . O grupo se volta a problemas como as relações da arte com o mercado, as instituições e o público. Tudo isso abordado a partir das linguagens radicais dos anos 1960. A partir da década de 1970, o teor questionador do trabalho migra da ação direta, para um sentido alegórico, que muitas vezes envolve o erotismo. O happening tem menor presença que o desenho e a instalação. Nesta época, Leirner se dedica a outras linguagens, como o design, os múltiplos e o cinema experimental.
A presença de elementos da cultura popular brasileira, marcante desde os anos 1960, cresce a partir da década de 1980. Em 1985, realiza a instalação O Grande Combate, onde utiliza imagens de santos, divindades afro­brasileiras, bonecos infantis e réplicas de animais. A partir de 2000, seu trabalho se apropria de imagens artísticas banalizadas pela sociedade de consumo. Com bom humor, trabalha com reproduções da Gioconda [Mona Lisa] , de Leonardo da Vinci, e a Fonte de Marcel Duchamp como tema artístico. Em 1977, começa a lecionar na Fundação Armando Álvares Penteado ­ Faap, em São Paulo, e influencia na formação de muitos artistas da chamada Geração 80. Em 1997, muda­se para o Rio de Janeiro e passa a dar aulas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage ­ EAV/Parque Lage. Em 2004, o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, realizou uma retrospectiva de sua obra recente, intitulada N. Leirner 1994 + 10. No mesmo ano foi realizado um documentário sobre a vida e a obra do artista, que apresenta depoimentos de Tadeu Chiarelli e uma série de entrevistas bem­humoradas (mas não menos polêmicas) com Leirner. 2 . Cildo Meireles: Circuitos I deológicos Quando Cildo Meireles (filho e sobrinho de indianistas e primo de Apoena Meireles, assassinado em 2004) faz sua inserção no circuito da arte, em 1967, o Brasil se encaminha a passos largos para o pior período da ditadura militar iniciada em 1964. O Ato Institucional Número 5, decretado em 1968, autorizava o presidente da República a decretar o recesso do Congresso Nacional, cassar mandatos parlamentares, suspender os direitos políticos de qualquer cidadão por dez anos e suspender a garantia de habeas­corpus. E exercer poder oficial de censura aos meios de comunicação. É nesse período que acontecem algumas das manifestações culturais mais ricas de significado nas artes em geral, desde o espetáculo musical Opinião (com Nara Leão e Zé Kéti) e a peça Roda Viva , de Chico Buarque, que questionam (às vezes de maneira figurada, outras vezes de forma explícita) o regime vigente e o cerceamento das liberdades dos cidadãos. E, numa performance feita em Belo Horizonte em 1970, uma das obras mais contundentes e corajosas de Cildo: Tiradentes: totem­monumento ao preso político, em que amarra uma dúzia de galinhas vivas num estaca e ateia fogo ao conjunto. Pode parecer chocante para o espectador de hoje (como certamente o foi para o público que estava na galeria naquele dia), mas eram tempos sombrios. Orig ens: inves tig ações d o es p aço Embora Cildo conhecesse Hélio Oiticica desde o tempo em que ambos moraram em Nova York, quando o neoconcretismo (movimento em que Oiticica e Lygia Clark alcançaram maior possibilidade de expressão artística e que os consagrou no Brasil e no exterior) explodiu no Rio de Janeiro, ele morava em Brasília, e não entra para o grupo de cara. Isso acontece posteriormente, a partir de 1967, com suas primeiras instalações, Desvio para o Vermelho e os Espaços Virtuais: Cantos.
Obras que reproduzem fielmente cantos de parede, os Espaços Virtuais partem de uma preocupação primordial de Cildo com a investigação abstrata do espaço. Desvio para o Vermelho, apesar do título dúbio (derivado da astrofísica, onde expressa a velocidade de afastamento das galáxias, evento que produz um desvio para a cor vermelha no espectro de luz), não deixa de questionar e incomodar, ao mostrar para o espectador um ambiente todo em vermelho, onde há até mesmo uma pia de onde corre um líquido vermelho bem parecido com sangue humano (é corante, claro, mas o efeito provocado impressiona). Na verdade, Cildo não chega a ser exclusivamente um neoconcreto: ele realizou uma transição entre a arte neoconcreta e as propostas da arte conceitual, como instalações e performances. E estendeu o conceito de disseminação da arte a partir da sua série Inserções em Circuitos Ideológicos, em que fez circular peças de consumo adulteradas (ou, para usarmos um termo dos dias de hoje, “hackeadas”), como o Projeto Coca­Cola (1970), em que decalcou, em garrafas desse refrigerante palavras de ordem como “yankees go home” (“ianques, voltem para casa”, uma referência direta aos americanos que estavam no Vietnã e que haviam ajudado os militares brasileiros no golpe de 1964), fazendo em seguida com que elas voltassem à circulação. Entre 1974 e 1978, Cildo retoma as inserções, com o Projeto Cédula, desta vez não interferindo, mas criando cédulas novas de um valor inexistente no mercado, o Zero Dollar e o Zero Cruzeiro . Sem valor monetário (embora produzidas com lito offset sobre papel, o que provocava uma grande semelhança com o papel­moeda para os mais desatentos), apresenta nas efígies da nota de Zero Cruzeiro os desvalidos da realidade nacional: o Índio e o Louco. Independentemente de realizar intervenções nos modos de circulação de produtos, Cildo sempre continuou a exercer um poderoso trabalho de crítica social, onde faz com que os espectadores de sua obra pensem no que estão vendo, e em quais são as implicações das situações por ele reveladas. É o caso de Missões: como construir catedrais , de 1987, em que oitocentas histórias, dois mil ossos e seiscentas mil moedas se conjugam para criar, como diz o texto de apresentação ao livro Cild o M eireles , “uma metáfora da violenta aniquilação dos povos da América”. Os circuitos ideológicos de Cildo não passam pela anti­significação ou pela ausência de significado, mas se assumem como profundamente políticos e sociais. É arte, é mensagem, é o Brasil revelado no que tem de mais interessante – e também no que tem de mais cruel. 3 . Bibliografia ARCHER, Michael. A rte Contem p orânea – um a his tória concis a . São Paulo: Martins Fontes, 2004. CHIARELLI, Tadeu. N els on Leirner – arte e não A rte. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. HERKENHOFF, Paulo. Cild o M eireles. São Paulo: Cosac & Naify, 1999.
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