DO INDIVÍDUO À CULTURA Um estudo sobre Freud ANA CAROLINA SOLIVA SORIA ©2012 Ana Carolina Soliva Soria Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc, sem a permissão da editora e/ou autor. So687 Soria, Ana Carolina Soliva Do Indivíduo à Cultura: um estudo sobre Freud / Ana Carolina Soliva Soria. Jundiaí, Paco Editorial: 2012. 144 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-64367-84-5 1. Freud 2. Indivíduo 3. Fantasia 4. Cultura .I. Soria, Ana Carolina Soliva. CDD: 190 Índices para catálogo sistemático: Filosofia Crítica Cultura e Processos Culturais Carácter - Personalidade - Psicologia Cultural IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depósito Legal Rua 23 de Maio, 550 Vianelo - Jundiaí-SP - 13207-070 11 4521-6315 | 2449-0740 [email protected] 142 301.2 155.2 Para André, Floriana, Milena e Melissa Agradecimentos: O trabalho que resultou nesta obra foi originalmente apresentado em 2005 ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, como dissertação de mestrado e contou com o financiamento da CAPES. Para a atual publicação foram realizadas algumas modificações no texto original. Gostaria de agradecer à professora Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola, que orientou esse trabalho com rigor e liberdade intelectuais, dando-me autonomia para interpretar os textos de Freud e expor as ideias aqui contidas. Sua seriedade, generosidade e amizade deram as condições de concretização desse texto. Além disso, sou imensamente grata por seu paciente e cuidadoso trabalho de revisão das traduções das citações do alemão apresentadas nesse estudo. Gostaria de agradecer também à Janaína Namba, com quem discuti muitos dos temas aqui apresentados. Sua amizade e contribuição intelectual foram fundamentais para a realização desse trabalho. Foram também importantes as contribuições dadas pelos professores Irene de Arruda Ribeiro Cardoso e Luiz Roberto Monzani, participantes do exame de qualificação e da banca examinadora do mestrado, bem como as dadas pelos professores Thelma Silveira da Mota Lessa da Fonseca, Pedro Paulo Garrido Pimenta, Marcio Suzuki e Jean Briant. Quero agradecer também aos colegas Ivanilde Fracalossi, Marília Cota, Camila Salles Gonçalves, Flamarion Caldeira Ramos, José de Medeiros Machado Junior, Valter José Maria Filho, aos demais membros do grupo de Filosofia Alemã Clássica do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e aos funcionários desse mesmo departamento, Marie, Maria Helena, Verônica, Geni, Luciana, Roseli, Ruben e Mariana. Além disso, foi indispensável o apoio recebido de meu marido, Luís Fernandes dos Santos Nascimento, e de meus familia- res Ariane Soliva, Antonio Soria, Arthur, Ana Luisa e André, Augustin e Helena Soliva, Nicola e Rosa Soria, Domingos e Érika Fasanella, D. Lili, Edna Maria Fernandes dos Santos Nascimento, Fátima Paris e Geraldo Carlos do Nascimento. “O etnólogo Claude Lévi-Strauss, o psicanalista Sigmund Freud estão entre aqueles que fizeram da recusa do título de filósofo o emblema da cientificidade dos saberes que inauguravam, mas precisaram criar novos nomes de ciências para marcar seu não-pertencimento ao saber constituído. Mas será que esse limbo de saber – e, por extensão, todo saber emergente – não merece, por si só, o nome de filosofia?” Rubens Rodrigues Torres Filho (O dia da caça) Sumário Introdução.......................................................................11 Capítulo 1- Considerações iniciais sobre as pulsões..........17 1. As propriedades das pulsões..........................................20 1.1. A fonte pulsional.....................................................20 1.2. A pressão e os sentimentos de prazer e desprazer.......23 1.3. A meta da pulsão.....................................................25 1.4.O objeto da pulsão...................................................26 2. A genealogia dos sistemas psíquicos e a formação dos representantes pulsionais.........................30 3. O processo primário e o processo secundário...............37 4. Representação-coisa e representação-palavra................43 Capítulo 2 - O movimento pulsional no indivíduo.............47 1. O Eu como modificação do Isso...................................52 1.1. O sistema percepção-consciência como núcleo do Eu...........................................................52 1.2. As identificações e os investimentos eróticos objetais.......................................56 1.3. O estado de perfeição do Eu: o narcisismo primário.........................................62 2. A separação entre o Eu e o Ideal do Eu (Sobre-Eu)..................................................63 2.1. A lei contra o incesto e a proibição de se unir ao objeto de amor..........................................65 3. O Complexo de Édipo como o processo de separação das instâncias psíquicas................................67 Capítulo 3 - A vivência infantil e a predisposição à neurose.....71 1. A reformulação do conceito de sexualidade...................72 2. O relato analítico e a construção da sexualidade infantil.....75 3. Os obstáculos ao desenvolvimento da libido..................77 3.1. A inibição................................................................77 3.2. A regressão..............................................................80 4. As fantasias entre o normal e o patológico....................84 4.1. O conflito entre o Eu, o Isso e o mundo real...........87 4.2. O conflito entre o Eu e o Sobre-Eu.........................92 4.3. As origens da fantasia..............................................94 Capítulo 4 - A vivência pré-histórica e as disposições psíquicas....................................................99 1. A ação conjunta dos desenvolvimentos onto e filogenético..............................103 1.1. A formação da herança arcaica e a sua transmissão.......................................................106 1.2. A origem dos conteúdos da herança arcaica........................................................110 1.3. A repressão orgânica.............................................111 2. A formação da família primitiva..................................113 2.1. A revolta dos filhos exilados e o assassinato do pai.......116 2.2. A origem da linguagem.........................................119 3. O sentimento de culpa e a gênese da consciência moral...120 4. A dinâmica pulsional na cultura..................................126 Considerações finais.......................................................131 Referências.....................................................................135 1. Obras de Freud........................................................135 2. Obras Secundárias...................................................139 INTRODUÇÃO No ano de 1896, Freud publica os textos A hereditariedade e a etiologia das neuroses (1896a), Observações adicionais sobre as neuroses de defesa (1896b) e Sobre a etiologia da histeria (1896c) nos quais encontramos duas teses de fundamental importância para o nosso trabalho: a hipótese de que o trauma que gera a enfermidade ocorre em dois tempos (na infância e na puberdade) e a teoria da sedução real da criança. Quanto à primeira, Freud postula que o adulto enfermo foi, na mais remota infância, forçado a passar de um estado de impotência ao estado de atividade sexual, ou seja, à maturação sexual precoce. Aquele que não hesita em satisfazer os seus desejos sexuais com uma criança imprime nela uma experiência marcante que a força a passar, precocemente, a um estado que ainda não lhe é próprio. Entretanto, para que esta experiência leve à enfermidade, é preciso que a ela se contraponha a outra, advinda somente na puberdade, após o desenvolvimento moral e intelectual completo do sujeito. Segue-se, assim, o segundo momento do trauma, no qual as representações ideais do Eu se tornam incompatíveis com as experiências sexuais primárias. As representações que contêm as cenas infantis são arremessadas para fora da consciência, por meio da defesa (Abwehr), gerando o conflito psíquico (psychischen Konflikt) (FREUD, 1896c, p. 447). A patologia surge quando uma pequena ofensa de uma época posterior, facilmente associável à cena infantil, fura o bloqueio da defesa e põe em ação as lembranças da grave ofensa Ana Carolina Soliva Soria sofrida, nunca superada. Escreve Freud em Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa: Em um primeiro período – período da imoralidade infantil – dão-se os acontecimentos que contêm o germe da neurose posterior. Primeiro, na tenra infância estão as experiências de sedução que mais tarde aparecem como atos de censura. [...] O próximo período, o da doença, é marcado pelo regresso das lembranças recalcadas, portanto, pelo fracasso da defesa. (1896b, p. 386-387, grifo do autor) Quanto à tese da sedução real da criança, refere-se ao primeiro momento do trauma: os relatos das pacientes histéricas levam Freud a ver na experiência sexual prematura não uma fantasia, mas um evento verdadeiro de sedução que consistiu na manipulação do genital da criança por um adulto. Na mesma obra acima citada lemos: “Esses traumas sexuais têm de pertencer à tenra infância (à vivência antes da puberdade) e seu conteúdo tem de consistir numa irritação real dos genitais (por processos parecidos com o coito)” (1896b, p. 380. Grifo do autor). Pouco tempo depois de publicar os ensaios acima mencionados, Freud abandona a sua segunda tese – a teoria do evento original real de sedução. Isto se deve à descoberta de que os relatos de suas pacientes não passavam de fantasias. Na célebre carta de número 139, datada de 21 de setembro de 1897, Freud confidencia a Fliess sua decepção: “E já quero agora confidenciar-te o grande segredo que lentamente raiou para mim nos últimos meses. Não acredito mais em minha neurótica” (FREUD, 1887-1904, p. 283). Nesta mesma carta, Freud enumera quatro motivos que o levaram a abandonar a sua teoria das neuroses; em primeiro lugar, encontra uma dificuldade de ordem clínica: quando as pacientes tomavam consciência do evento primeiro, seus sintomas 12 Do indivíduo à cultura: um estudo sobre Freud não desapareciam; em segundo lugar, um problema estatístico: deve haver tantos ou mais perversos que neuróticos, já que nem todas as crianças que sofreram semelhante abuso na infância desenvolvem uma enfermidade; em terceiro lugar, nota que a evidência de uma recordação que parecia remeter a algo real e objetivo pode não passar de uma fantasia; e, finalmente, através da clínica da psicose, descobre que o inconsciente jamais pode superar totalmente a resistência imposta pela consciência. Freud resolve, assim, abandonar temporariamente o tratamento de suas pacientes e se dedicar à sua autoanálise e ao método de interpretar os sonhos. Sob um novo ponto de vista acerca do exame do psiquismo, em que se substitui a concretude do evento real pela realidade psíquica e no qual não há a preocupação entre a correspondência dos relatos com os fatos reais, é publicada, em 1900, A interpretação dos sonhos. Neste livro, ele apresenta uma importante teoria para o exame da fantasia – tanto consciente quanto inconsciente, a saber: a ideia de que, por trás de todo o conteúdo manifesto, subjaz um latente. Mas abandonar a tentadora hipótese de que a enfermidade teria como base um evento real, e substituí-la por outra que desse à fantasia força suficiente para gerar a doença, o levaria a uma perigosa conclusão: a de “assumir que a pulsão sexual produz, por si mesma, seus objetos” (MONZANI, 2005, p. 100). Se Freud tivesse tomado esta ideia como base para o construto teórico da psicanálise, certamente não a conheceríamos como hoje está constituída. Para não cair em algo que o obrigue a postular uma ligação predeterminada entre a pulsão e o seu objeto de satisfação, há uma “quase obsessão” (MONZANI, 2005, p. 100) por parte de Freud em buscar o evento original real. Passa, então, a procurá-lo em outra esfera, não mais dos acontecimentos individuais, mas no curso da espécie humana. Para isso, o recuo deste evento marcante deve ser tão grande para que não abranja apenas algumas pequenas comunidades, mas que seja válido 13 Ana Carolina Soliva Soria para todos os seres humanos. Sob este novo ponto de vista, Freud mantém o antigo: o desenvolvimento infantil e o surgimento da enfermidade passam a ser, então, o segundo tempo do encadeamento dos fatos, já que o primeiro se encontra em um evento real, não da pré-história do indivíduo, mas da pré-história da espécie humana. Este evento não deve ser transmitido para as gerações futuras como herança fisiológica, o que igualaria o pensamento de Freud às teorias psiquiátricas de sua época, tão contestadas no início dos Três ensaios de teoria sexual, mas como “esquemas congênitos” (MONZANI, 2005, p. 102) adquiridos, que possibilitam a expressão das características da espécie em cada um dos seres humanos, atualizáveis apenas pela experiência individual, historicamente datada. São dois os momentos em que o indivíduo pode reviver estas fixações filogenéticas: durante o desenvolvimento libidinal infantil, nos moldes de uma recapitulação abreviada, e nas enfermidades psíquicas, em que permaneceria preso no ponto de fixação filogenético acionado. Lebrun, em uma passagem de seu artigo O selvagem e o neurótico, expõe bem esse problema: Dize-me a tua idade, e dir-te-ei qual é o teu contemporâneo: animista ou fetichista... Ou ainda: dize-me a tua obsessão, e dir-te-ei de quem permaneceste contemporâneo. Com efeito, nesta codificação do desenvolvimento mental, a marca do patológico será a parada durante o percurso – o fato de se descer na estação que não é a certa. Ocasião excelente e única que temos – nós os normais – de visitá-las. – Desviar, em todo caso, será sempre regredir ou atrasar-se. ‘Quando alguém se tornou manifesta e grosseiramente perverso, é mais justo dizer que ele assim permaneceu, que ele representa uma parada na evolução’ (Cinq Psychoanalyse, p. 36) (LEBRUN, 1983, p. 99-100). (grifo do autor). 14 Do indivíduo à cultura: um estudo sobre Freud É no núcleo do inconsciente, de onde brotam as pulsões no psiquismo, que encontramos a pré-história da espécie humana. As diferentes etapas pelas quais passam as pulsões nos trazem à luz os eventos determinantes da espécie, a ponto de repetir, na microestrutura, as fixações presentes na macroestrutura. Deste modo, podemos dizer que a espécie humana e o indivíduo são feitos do mesmo estofo, ou seja, que em ambos opera o mesmo conflito pulsional, e que o desenvolvimento do primeiro não difere do desenvolvimento do segundo. Segundo Freud, em Psicologia das massas e análise do Eu: A oposição entre psicologia individual e social ou de massas, que pode se apresentar em um primeiro olhar como muito significativa, em uma observação pormenorizada perde muito de sua nitidez. A psicologia individual, na verdade, adaptou-se aos homens individuais e persegue algumas vias que o mesmo procura para alcançar a satisfação de suas moções pulsionais; mas, apenas raras vezes, sob condições excepcionais determinadas, ela se acha na posição de prescindir das relações deste indivíduo com os outros. Na vida anímica do indivíduo é bem normal tomar-se o outro como modelo, como objeto, como assistente, como adversário, e a psicologia individual é por isso, neste sentido ampliado, mas inteiramente legítimo, desde o começo e ao mesmo tempo, psicologia social. (FREUD, 1921, p. 73) Para uma compreensão mais minuciosa da interação entre a onto e a filogênese, esta obra tem por desafio relacionar a leitura metapsicológica da teoria freudiana com a análise dos textos voltados ao exame da cultura. Além disso, nossa intenção aqui não é traçar um percurso cronológico do pensamento de Freud e de sua modificação ao longo dos quarenta anos de seu exercício da psicanálise. Nosso trabalho está 15