3 desa fio A Adolescência como desafio 1. Desafio diante de uma sociedade violenta A pesquisa A Voz dos Adolescentes revelou que 85% dos adolescentes consideram o Brasil um país violento. Essa violência é percebida desde as relações familiares até os acontecimentos mais explícitos do cotidiano, como os seqüestros, assaltos, mortes violentas e as suas causas estruturais e sociais. Não existem números nacionais sobre o quanto dessa violência é praticada no contexto familiar, assim como não existem indicadores de outras formas de violência doméstica praticadas contra adolescentes. Entretanto, é possível observar que as disparidades econômicas, étnicas, de gênero e regionais influenciam diretamente as condições familiares, produzindo situações de graves violações de direitos nas quais, muitas vezes, o espaço familiar – que deveria ser um espaço de proteção – constitui-se num lugar perigoso e inseguro. A pesquisa A Voz dos Adolescentes (UNICEF/Fator OM/2002) identificou 6% dos adolescentes entrevistados que informaram sofrer agressão dos pais que batem com objetos e 18% que já foram agredidos com gritos e xingamentos. // Tabela 1 - Adolescentes, por classe social, segundo correção em que os pais batem com objetos (nacional), 2001/2002 (%) Classe social Classe A Classe B Classe C Classe D Sem resposta Pais que corrigem filhos batendo com objetos Sim Não Sem resposta 2,2 97 0,8 4,5 94,2 1,3 6,1 92 1,9 9,3 88,6 2,1 11,3 85,5 3,2 Total 100 (134) 100 (963) 100 (3.278) 100 (843) 100 (62) Fonte: Pesquisa “A Voz dos Adolescentes”, UNICEF/Fator OM/2002. Essa violência que ocorre no ambiente familiar é ao mesmo tempo uma reprodução da violência social e um fator que corrobora para a Situação da Adolescência Brasileira continuidade de uma cultura de violência. A violência presente na sociedade atinge de forma contundente o adolescente. Somente no ano 2000 foram 9.302 mortes de adolescentes 18 nacional de 52 mortes por grupos de 100 mil. A Fundação SEADE (Sistema Estadual de Análise de Dados de São Paulo) identificou por causas externas (MS/DATASUS/2000-Dados preliminares). Entre essas causas, destaca-se a mortalidade por homicídio. Os cálculos usados para a constituição de médias nacionais são polêmicos e não se referem sempre às mesmas faixas de idade. A UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) usa como referência de cálculo a população de 15 a 24 anos e obteve no ano de 2000 a média bairros na cidade de São Paulo onde a taxa de mortalidade de adolescentes de 15 a 19 anos chega a 532 por 100 mil. O Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ) – uma combinação da taxa de crescimento populacional de 1999 e 2000; percentual da população de 15 a 19 anos; taxa de mortalidade por homicídios; mães com idade entre 14 e 17 anos; valor do rendimento do chefe de família; e percentual de adolescentes que não freqüentam a escola – classificou as regiões da cidade de São Paulo para identificar os locais que demandam uma ação prioritária. As causas externas são divididas em mortes por homicídio (40,5%), acidentes em meios de transportes (23,5%), afogamento acidental (13,4%), suicídios (3,7%), exposição ao fogo (0,7%), intoxicações acidentais (0,1%) e outras causas (16,7%). Fonte: Fundação Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde, 2000. Comunidade, espaços de lazer, família, escola e diferentes espaços de convivência não ficam imunes ao problema da violência. Uma combinação de fatores complexos vem gerando na sociedade brasileira situações nas quais toda a população, mas especialmente as crianças e os adolescentes, é submetida a circunstâncias de vulnerabilidade, transformando-se em vítima de processos cada vez mais visíveis de violência, acobertados pela impunidade dos agressores, por falta de políticas de proteção e especialmente pela ausência de um sistema de garantia de direitos e proteção. “É certo que os meios de comunicação não estão dando a ênfase que vinham dando na década de 80 e sobretudo nos anos 90, tornando bastante visível a atuação dos grupos de extermínio que vitimavam milhares de jovens brasileiros. Contudo, é certo também que o problema persiste ou até esteja agravado pelo novo modus operandi do crime organizado. Os grupos de extermínio operam às escuras, em locais ermos, com desovas de difícil investigação e com singular participação de agentes do Estado. O que verificamos hoje são delinqüentes do crime organizado, operando de forma mais aberta, com maior audácia, com indiscutível poder de confronto com o Estado, praticando execuções quase em massa. É o que constatamos na ocorrência de chacinas que têm como vítimas maiores os adolescentes.” Dr. Augustino Veit - Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados 2. Desafio diante das novas formas de organizações familiares nas diferentes classes sociais brasileiras, o padrão de família idealizada (pai, mãe e filhos) confronta-se no cotidiano das pessoas com o perfil da família real e vivida, que é bastante diferente. As reorganizações familiares, a partir do divórcio ou da reconstrução de vínculos conjugais e de outras tantas mudanças nesse padrão, resultam em situações diversas a ser administradas pelas famílias, intermediadas por instâncias reguladoras, responsáveis, no fim, por garantir a convivência familiar e comunitária, conforme estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Outro aspecto importante é o número de filhos de cada família, que vem apresentando uma nova configuração como pode ser visto abaixo: Situação da Adolescência Brasileira Embora ainda ocupe espaço importante no imaginário sobre a família 19 (1) IBGE, Censo 2000, dados preliminares para divulgação, 2002, mimeo “As informações preliminares do Censo Demográfico de 2000 não só confirmam a tendência, já observada nos censos anteriores, de queda da taxa de fecundidade, como também mostram a redução dos diferenciais regionais. Os níveis estimados da fecundidade para as Grandes Regiões encontram-se bastante próximos ao da média nacional (2,3 filhos por mulher, em 2000). A menor taxa de fecundidade foi verificada na Região Sudeste (2,1 filhos por mulher) e a mais alta na Região Norte (3,2).”1 // Tabela 2 - Taxas de Fecundidade Total Brasil e Grandes Regiões: 1940-2000 Brasil e Grandes Regiões Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Anos Censitários 1940 1950 6,2 6,2 7,2 8,0 7,2 7,5 5,7 5,5 5,7 5,7 6,4 6,9 1960 6,3 8,6 7,4 6,3 5,9 6,7 1970 5,8 8,2 7,5 4,6 5,4 6,4 1980 4,4 6,4 6,2 3,5 3,6 4,5 1991 2,9 4,2 3,7 2,4 2,5 2,7 2000 2,3 3,2 2,6 2,1 2,2 2,2 Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991 e Resultados Preliminares do Censo Demográfico 2000. Chama a atenção, nessas novas composições familiares, o crescimento da participação das adolescentes. Embora haja um decréscimo nas taxas de fecundidade das diferentes faixas etárias, na faixa que inclui as adolescentes essa mesma taxa cresceu, o que revela um aumento no número de crianças filhas de adolescentes. // Tabela 3 - Taxas específicas de fecundidade segundo grupos de idade das mulheres Grandes Regiões e grupos de idade da mulher Situação da Adolescência Brasileira 15 a 19 anos 20 a 24 anos 25 a 29 anos 30 a 34 anos 35 a 39 anos 40 a 44 anos 45 a 49 anos Taxas específicas de fecundidade 1980 1991 2000 Brasil 0,0797 0,0874 0,0910 0,2130 0,1618 0,1335 0,2260 0,1429 0,1138 0,1730 0,0941 0,0751 0,1170 0,0545 0,0408 0,0526 0,0243 0,0133 0,0108 0,0056 0,0020 Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1980-2000. 20 (2)IBGE, Censo 2000. Mantivemos a representação %0, que designa por mil. Então 80%0 = 80 por 1.000. “Em 2000, no Brasil, para cada grupo de 1.000 mulheres de 15 a 19 anos de idade, mais de 90 tinham pelo menos 1 filho. Em 1980, essa taxa era de 80 %0. Na Região Norte, em 1980, para cada grupo de 1.000 mulheres de 15 a 19 anos, quase 130 delas já haviam tido pelo menos 1 filho. Em 2000, a respectiva taxa ultrapassa os 140%0. Com isso, a idade média da fecundidade sofre um processo de rejuvenescimento e cai de 1980 para 2000, no Brasil e em todas as Regiões. Nesse período, a idade média da fecundidade no Brasil declinou de 28,9 anos para 26,3 anos.”2 O adolescente desempenha uma função importante de protagonista no interior de sua própria família. Com sua voz crítica, assume o lugar daquele que denuncia necessidades de mudança. Muitas vezes, essa denúncia é feita por palavras e outras, por sua conduta. Nessa perspectiva, o adolescente sempre se comunica por seus atos contestatórios. Precisa, portanto, de canais de comunicação com sua famílias para processar suas angústias e amadurecer em direção a uma postura adulta na família e na sociedade. Entretanto, por vezes, esse protagonismo reveste-se de uma obrigatoriedade e de uma responsabilização precoce como chefe do lar. Os dados abaixo expressam que mais de 83 mil adolescentes são chefes de família. Essa situação acrescenta complicadores ao processo de desenvolvimento do adolescente, uma vez que lhe exige o desempenho de tarefas e papéis para os quais, na maioria das vezes, não está preparado nem dispõe dos recursos e das oportunidades para cumprilos. Políticas específicas no apoio sociofamiliar podem representar uma forma de resgatar a oportunidade da vivência da adolescência e contribuir para que a família constitua-se em retaguarda de apoio e não em peso a ser sustentado. Urbana Homens 10 a 14 anos 15 anos 16 e 17 anos 18 e 19 anos 20 a 24 anos 25 a 29 anos 30 a 34 anos 35 a 39 anos 40 a 44 anos 45 a 49 anos 50 a 54 anos 55 a 59 anos 60 a 64 anos 65 a 69 anos 70 a 74 anos 75 a 79 anos 80 anos ou mais Total Mulheres Rural Homens Mulheres 6.578 3.136 31.197 148.734 1.545.511 2.944.979 3.669.091 3.818.443 3.488.203 2.959.791 2.399.226 1.784.073 1.471.792 1.121.685 832.207 505.355 398.954 3.082 2.895 19.454 60.218 389.454 648.292 877.792 1.089.443 1.174.989 1.109.335 1.007.541 861.296 830.814 728.941 612.718 410.194 379.453 2.409 1.179 10.362 43.315 398.469 676.217 804.791 822.543 735.504 656.636 586.321 503.411 434.142 321.223 235.137 146.967 126.885 520 391 2.098 4.751 26.004 40.449 56.165 68.192 77.542 82.288 89.977 97.964 101.317 93.569 82.859 61.459 69.179 27.128.955 10.205.911 6.505.511 954.724 Fonte: IBGE - Censo Demográfico 2000 Situação da Adolescência Brasileira // Tabela 4 - Pessoas responsáveis pelos domicílios particulares permanentes 21 Teatro transforma vidas Em escolas e espaços comunitários de Salvador, Bahia, adolescentes do Centro de Referência Integral para Adolescentes, CRIA, apresentam peças de teatro que falam da escola, da família e de suas paixões. As encenações mudam a vida de quem está no palco e de quem está na platéia. “Seu” José Ferreira é vigilante noturno em Salvador. Vira as noites trabalhando. Mal o dia amanhece, ele coloca a mochila com o figurino nas costas, sobe no palco e entra em cena na peça “Diálogos”, montada no pátio de escolas públicas da capital baiana. Um de seus companheiros no tablado é seu filho caçula. O tema da peça é a importância da conversa entre pais e filhos sobre a sexualidade e o autocuidado. “Seu” José é um ator e um pai cheio de orgulho. “Minha vida mudou 100%, eu fiquei mais consciente e o meu filho se tornou meu grande amigo”, conta. Desde 1994, o CRIA aposta nas artes cênicas para informar, mobilizar e melhorar a vida de milhares de adolescentes em Salvador. Atualmente, o Centro trabalha diretamente com 80 jovens, chamados de multiplicadores. Eles formam as trupes de teatro e percorrem escolas de Salvador, apresentando peças com temas de interesse dos adolescentes. Há textos sobre prevenção de doenças sexualmente Situação da Adolescência Brasileira transmissíveis e gravidez precoce, a escola e a melhoria no sistema de ensino, o diálogo com os pais, a participação comunitária, o 22 vestibular, violência e drogas. “O grande diferencial das peças é que falamos sobre coisas muito sérias, mas de uma forma leve e de fácil compreensão”, explica o ator Cássio Vinicius da Silva, 18 anos. Por sua capacidade de falar diretamente com milhares de adolescentes, o CRIA, embora seja uma organização não-governamental de pequeno porte, consegue impactar as políticas públicas que garantem os direitos à saúde, educação, cultura e participação dos adolescentes. “Nosso objetivo é abrir um espaço de escuta para as questões da juventude e, a partir dessa escuta e da construção coletiva, elaborar propostas de intervenção na sociedade”, esclarece a coordenadora pedagógica do projeto, Eleonora Rabelo. As apresentações do CRIA são sempre seguidas de debates com a platéia. Nas escolas, alunos e professores trocam idéias e opiniões, esclarecem dúvidas e sugerem estratégias e soluções. “Trabalhamos muito com o conceito de mobilização social e nossa intenção é fazer de nossos meninos cidadãos conscientes e exigentes”, diz Rabelo. Arte & Cidadania Além do trabalho de educação pelo teatro, o CRIA é responsável 200 instituições sociais para debater e formular propostas de políticas públicas de saúde e educação para adolescentes. Os adolescentes participam ativamente propondo estratégias para a melhoria de suas escolas, de seus bairros, de atendimento em postos de saúde, entre outras. O MIAC surgiu em 1997 depois que um dos adolescentes do grupo de teatro do CRIA foi preso e torturado pela polícia. Atualmente, em seus festivais anuais, o MIAC reúne mais de 3 mil pessoas, entre crianças, adolescentes e adultos, em torno de temas como a arte e os direitos humanos. Situação da Adolescência Brasileira também pela coordenação do Movimento de Intercâmbio Artístico Cultural pela Cidadania (MIAC), uma rede que agrega mais de 23 3. Desafio na promoção do conhecimento, da educação e da inserção no mundo do trabalho Como fase da vida de rápida aprendizagem, de curiosidade e busca, de desprendimento para viver novas descobertas, a adolescência constituise também em um desafio para a integração de políticas que possibilitem o seu desenvolvimento integral. Associar a questão do conhecimento às demais experiências da vida é um importante desafio a ser enfrentado. Nessa perspectiva as políticas de educação não podem continuar centradas na escolarização pura e simples. A educação dos mais de 21 milhões de adolescentes brasileiros é, sem dúvida, o maior desafio das políticas sociais do País neste início de milênio. Entretanto, esse desafio precisa ser enfrentado por um trabalho conjunto entre a escola, a família, comunidade, ONGs e demais instituições responsáveis pela proteção à infância e à adolescência. Nesse processo, a escola é obviamente uma instituição de vanguarda. Juntamente com a família, desempenha papel decisivo na formação dos adolescentes como sujeitos plenos, capazes de exercitar seus direitos e corresponder com seus deveres na sociedade que integram como cidadãos. Entretanto, isoladamente, a escola não consegue responder à sua principal tarefa de dar as condições necessárias para o exercício da cidadania. Além dessa necessidade de integração de políticas em torno de um processo Situação da Adolescência Brasileira de educação integral, há desafios específicos a serem enfrentados. 24 Como mostram as análises dos dados disponíveis, há graves distorções na oferta de ensino de qualidade aos adolescentes brasileiros. Enquanto no País 91,7% dos adolescentes estão matriculados na escola, apenas 33% com idade entre 15 e 17 anos estão matriculados no Ensino Médio. Regionalmente, as disparidades são ainda mais impressionantes. No Estado de São Paulo, 54,7% dos adolescentes de 15 a 17 anos estão matriculados no Ensino Médio. Em Alagoas, esse índice é de 11,8%. Em todo o País, existem mais de 1,3 milhão de adolescentes analfabetos. Ou seja, de cada 100 adolescentes, mais de 5 (5,2%) não sabem ler nem escrever. Em Alagoas, esse índice chega a 18% – a maior taxa de analfabetismo de adolescentes no País – e, em Santa Catarina – a menor –, 1,3%. No ano 2000, apenas 11,2% dos adolescentes com idade entre 14 e 15 anos concluíram o Ensino Fundamental. Oito estados brasileiros (vide tabelas ao final) obtiveram desempenho superior à média nacional e 19 obtiveram uma média inferior à média nacional. Houve um crescimento importante na taxa de conclusão do Ensino Fundamental e no acesso ao Ensino Médio. Entre 1991 e 1999, o índice de matrícula de adolescentes de 15 e 17 anos no Ensino Médio passou de 17,6% para 32,6%, um crescimento anual médio de 11,5% ou mais de 4 milhões de novos estudantes na terceira fase da educação básica. A educação básica: um direito do adolescente como cidadão O processo educativo básico contribui não apenas com uma melhor qualificação profissional e melhores salários, como assegura o acesso dos indivíduos a um conjunto de conhecimentos necessários para participar da vida pública e enfrentar as dificuldades impostas pelos processos das diferentes formas de globalização. Dentro desses desafios, a adolescência é um período de vida precioso para o desenvolvimento de habilidades intelectuais necessárias a essas novas realidades. Isso inclui fundamentalmente o desenvolvimento da inteligência, que na adolescência atinge a fase do pensamento formal, condição essencial para todo o trabalho de raciocínio mental e abstrato. Nessa fase importante da formação da personalidade, a escola constitui referencial estruturante. Em seu projeto pedagógico, a escola deve promover atividades que estimulem o amadurecimento do adolescente. Portanto, cabe à escola, além das ações específicas da escolarização, assumir um papel de instância formadora para exercício da cidadania em todas as suas dimensões. O estímulo ao pensamento crítico, ao debate, às descobertas, aos desafios intelectuais são muito importantes. Nesse momento, as A escola: espaço para o exercício da participação Assim como na família, o adolescente precisa encontrar, na escola, espaços para exercer sua participação, enfrentando os limites impostos pela sociedade e pelas leis de convivência social e aprendendo a negociar em vez de apenas submeter-se ou se impor. Para garantir o direito à participação, a escola deve oferecer espaços para que os adolescentes se expressem. Nesse sentido, são fundamentais atividades artísticas e de expressão de todo o gênero: literárias, cênicas, musicais, esportivas. Esses canais de expressão podem representar recursos preciosos e funcionar como oficinas de Situação da Adolescência Brasileira experiências vividas na escola pelos adolescentes são muito valiosas em seu processo de socialização e de desenvolvimento. 25 discussão sobre temas de interesse, nas quais exercitem a habilidade de expressão verbal de seus sentimentos e de seus posicionamentos e aprendam a construir propostas, em processos participativos e coletivos de resolução dos problemas. Além disso, adolescentes podem – e devem – participar na elaboração dos planos e projetos pedagógicos da escola, bem como ser estimulados para o associacionismo, seja em grêmios estudantis ou em outras formas organizativas. Essas atividades, a serem realizadas no contexto de outras atividades educativas na escola, estimulam o desenvolvimento emocional e cognitivo dos adolescentes e lhes dão oportunidades de exercitar, na escola, seu desenvolvimento social do ponto de vista de sua participação coletiva, como cidadãos de direitos e de deveres. A garantia do direito à participação é mais que um exercício complementar na escola. Na verdade, os processos participativos da gestão escolar, do processo pedagógico e das relações entre educador e educando têm muito a ver com o desafio de melhoria da qualidade do ensino, baseada no aprimoramento dos processos de ensino e aprendizagem. Estudos recentes apontam que um dos mitos mais importantes derrubados por terra no final dos anos 80 foi o da evasão precoce. O estudante brasileiro permanece, em média, oito anos e meio na escola fundamental. Porém, avança somente até a 4ª série. Assim, a maioria dos alunos com enorme defasagem entre idade e série cursada não entrou tardiamente no sistema escolar por falta de escola ou por necessidade de trabalho, como em alguns momentos se pensou. A defasagem é gerada internamente, no próprio sistema educativo. É importante lembrar que os quatro primeiros anos do Ensino Fundamental são decisivos para o desenvolvimento cognitivo rumo ao estágio das operações formais e das habilidades intelectuais subjacentes para acompanhar o programa de ensino. Pesquisas recentes sobre as dificuldades do adolescente em prosseguir os estudos a partir da 5ª série do Ensino Fundamental apontam para a importância da qualidade da alfabetização como fator de fixação e continuidade na escola. Em seu processo classificatório, é importante que a escola se preocupe em não perpetuar desigualdades e injustiças sociais próprias do sistema ao desconsiderar, por exemplo, as disparidades produzidas pela próprio modelo econômico, social e cultural predominante no Situação da Adolescência Brasileira País. Na adolescência, assim como na infância, as dificuldades escolares 26 por defasagens ou diversidades culturais não podem ser confundidas com déficits intelectuais, sob o risco de legitimar um discurso há muito combatido, denominado “a cultura da pobreza”. O adolescente, por características próprias de sua idade, torna-se especialmente sensível aos olhares discriminatórios e de injustiça. Esses aspectos permitem-nos perceber dois tipos de excluídos da escola. Os excluídos que estão dentro da escola e os que estão fora da escola. 27 Situação da Adolescência Brasileira Todos mais bonitos Duas meninas encontram-se em um projeto chamado Arte de Viver e decidem transformar sua vida e a vida dos adolescentes de seu bairro em Belém. Com outras oito amigas, conquistam o apoio de outros adolescentes e de adultos e abrem os portões de uma escola para a alegria, a arte e o respeito pelo outro. Há três anos, a Escola de Ensino Fundamental Comandante Katau, no bairro do Barreiro, em Belém, é um lugar mais bonito. Os adolescentes que brincam, conversam e dançam no pátio da escola também são mais bonitos. Há rodas de capoeira, aulas de dança, reforço escolar. A música enche o ar, traz da rua para a escola crianças e adolescentes e transforma histórias de exploração em relatos de alegria. As atividades são parte do projeto “Fazer o Outro Bonito”. O projeto foi idealizado e criado por dez meninas do bairro, um dos mais pobres de Belém, onde não há saneamento básico e as famílias contam com o trabalho de seus filhos para complementar a renda. Gisele Tenório da Costa, 21 anos, e Glaciene Rodrigues, 17 anos, são duas das criadoras do projeto. Depois de experiências de exploração sexual e de vender balas nas ruas durante todo o dia para conseguir algum dinheiro, elas quiseram fazer mais bonitas a vida delas e a vida de seus amigos. “As meninas que protagonizaram o Fazer o Outro Bonito encontravam-se em situação de extremo risco. Estavam constantemente sujeitas às drogas, à prostituição e à miséria. Hoje elas se tornaram referência para outras meninas”, conta o padre Bruno Sechi, coordenador do Movimento de Emaús, onde as meninas Situação da Adolescência Brasileira encontraram-se pela primeira vez. Atualmente, todas elas estudam em 28 programas de aceleração escolar, são monitoras do projeto Fazer o Outro e recebem bolsa-auxílio. A Escola Comandante Katau é a sede do projeto e todos ali estão envolvidos de alguma forma nas atividades. Fora dos horários de aulas regulares e principalmente nos finais de semana, o colégio abre suas portas para 300 adolescentes que freqüentam as oficinas de capoeira, teatro, dança e artes plásticas. Também são organizados debates sobre temas que interessam a comunidade, como participação comunitária, segurança, abuso de drogas e sexualidade. A essência do projeto Fazer o Outro Bonito é resgatar a auto-estima desses adolescentes e despertar neles a dignidade e a noção de direito e cidadania. O nome do projeto foi escolhido pelas próprias meninas que o criaram. “A partir do momento em que saímos da rua e notamos a nossa capacidade de ajudar os outros, começamos a nos sentir mais bonitas, mais autoconfiantes. E é isso que estamos tentando fazer outras pessoas sentirem”, explica Glaciene Rodrigues. O projeto tem apoio do UNICEF e da Secretaria Municipal de Educação Situação da Adolescência Brasileira de Belém. 29 Adolescência, escola e mundo do trabalho Além de vencer os processos de exclusão que ainda caracterizam grande parte do sistema de ensino, há ainda o desafio de vinculá-lo às expectativas dos adolescentes em relação ao mundo do trabalho. A educação profissional realizada de forma segmentada e apartada do sistema de ensino, por meio de cursos de curta duração e sistemas distintos e desarticulados, faz com que não se tenha no País uma rede de programas de educação que concilie os conteúdos do ensino formal com as necessidades do mundo do trabalho. A contribuição das organizações não-governamentais e do setor privado tem sido relevantes para o desenvolvimento de metodologias e abordagens da profissionalização que necessitam ser incorporadas a um sistema público e universal. A legislação brasileira proíbe qualquer forma de trabalho antes dos 14 anos de idade e dos 14 aos 16 só admite na condição de aprendiz. Entretanto, essa aprendizagem não pode substituir a escolarização, nem se dar descolada dela, sob o risco de tornar precária a formação integral do adolescente, promover sua inserção precoce e limitada no mercado de trabalho e diminuir suas chances de realização pessoal e profissional nesse universo, em função da obrigatoriedade de satisfação das necessidades imediatas. A inexistência de dados sobre a educação profissional em relação aos adolescentes e a informação de que apenas 11,2% dos adolescentes de 14 e 15 anos de idade concluíram o Ensino Fundamental, demonstra a fragilidade dos processo formativos neste campo e a urgente necessidade Situação da Adolescência Brasileira do País em estruturar uma rede de educação profissional fundada em uma reestruturação e melhoria do sistema público de ensino. 30 31 Situação da Adolescência Brasileira Profissionalização & arte no Projeto Axé No candomblé, Axé significa a força ou a energia criativa que permite que todas as coisas do Universo existam e dá a elas um sentido para sua existência. Axé é o nome do projeto, com 12 anos de atuação, para a garantia dos direitos de meninos e meninas em situação de pobreza em Salvador, Bahia. No Projeto Axé, arte e educação não são complementos, nem sequer palavras com sentidos diversos. Arte e educação têm o mesmo significado para os mais de 1,5 mil crianças e adolescentes que participam do projeto e para seus educadores. “Quando colocamos os meninos em contato com a obra de arte, seja qual for a origem, isso desperta neles noções de cidadania. A arte incita nos jovens o desejo e proporciona a construção de um projeto de vida”, ressalta o educador e coordenador do projeto, Cesare La Rocca. Robson de Souza é um desses meninos “desejantes” do projeto. Aos 17 anos, orgulha-se em ter o Axé como sua segunda casa. Antes de encontrar o projeto, Robson dormia nas ruas de Salvador e pedia dinheiro nos sinais de trânsito da cidade para jogar fliperama. Nos primeiros contatos com os educadores do Axé, desconfiou. “Pensei que fosse gente do juizado de menores* e saí correndo”, lembra, sorrindo. Para Robson, o projeto mudou sua vida e de seus cinco irmãos, que também estão envolvidos em atividades do Axé. O adolescente voltou a morar com a família e cursa a 1ª série do Ensino Médio. “Quero ser um cidadão e sei que vou conseguir ser” diz, cheio de confiança e de boas expectativas para o futuro. Situação da Adolescência Brasileira Como Robson, Nívea Rita Franco, 17 anos, também tem no Axé sua segunda casa. Seus colegas e monitores são seus grandes amigos. 32 “Aqui eu me abro, conto minhas alegrias e problemas para os educadores e para os meus amigos”. * Embora ainda seja parte do discurso de muitas pessoas, os Juizados de Menores deixaram de existir desde a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente. O atendimento a crianças é feito em diferentes instâncias dentro do chamado Sistema de Garantia de Direitos, que inclui conselhos tutelares, conselhos de direitos, centros de defesa, delegacias especializadas no atendimento a crianças e adolescentes, promotores e juízes nas Varas da Infância e da Juventude. A mistura de arte e educação inclui ainda a profissionalização. Os amigos Nívea e Robson, por exemplo, participam das atividades do Modaxé, um dos braços do Axé voltado à formação profissional dos adolescentes em moda com destaque para o senso estético, para a beleza. “No curso, aprendemos muito mais que costurar”, conta Nívea. As aulas incluem noções de história da arte e de literatura. Assim, os adolescentes criam suas próprias coleções. O trabalho inclui também debates sobre a realidade dos adolescentes, temas como drogas, violência, a situação do bairro onde vivem, entre outros. “Procuramos desenvolver a percepção crítica dos educandos e fazê-los inventar a partir da realidade que os cerca”, explica Licínia Lírio, educadora do Axé. Para participar do trabalho no Axé, os adolescentes precisam freqüentar a escola formal. Um dos desafios do Projeto é estimulá-los a freqüentar as aulas e ter bons resultados. Por isso, há quase três anos, o Axé gerencia a Escola Municipal Barbosa Romeu, da rede municipal de ensino. Na escola, os professores são da prefeitura, a proposta pedagógica é elaborada em parceria com os educadores do Axé e conta com a participação dos próprios alunos. Todo o processo é aprovado e acompanhado pelo Conselho Municipal de Educação. Atualmente, a escola atende cerca de 1,1 mil alunos – 600 são crianças e adolescentes atendidos pelo Axé, as outras crianças vivem na comunidade do Bairro Desde sua criação, o Axé conta com o apoio do UNICEF e de outras instituições. Situação da Adolescência Brasileira de São Cristóvão, próxima à escola. 33 4. Desafio para a valorização da vida, para o desenvolvimento da saúde e da sexualidade Informações epidemiológicas sobre adolescentes são escassas e estão quase sempre influenciadas pelo referencial das doenças e de comportamentos de risco. Além disso, em geral, as estatísticas de saúde não estão organizadas por faixas etárias específicas, o que dificulta as comparações entre comunidades ou regiões. Na adolescência, os cuidados com a saúde extrapolam a atenção médica e pedem atendimento multidisciplinar, com um enfoque de promoção de saúde num sentido mais amplo, com equipes especializadas e competentes, capazes de acolher os adolescentes na complexidade de suas demandas, incluindo políticas de promoção de saúde mental, com serviços especializados para adolescentes. Essa abordagem da saúde integral entende o adolescente em seus aspectos físicos, afetivos, cognitivos, numa interação dinâmica com o seu contexto sociocultural. Nessa fase da vida, as políticas de saúde do adolescente devem fortalecer programas preparados para a abordagem de questões próprias da adolescência como o desenvolvimento da sexualidade, as relações amorosas, o lazer, o consumo de drogas, a iniciação sexual e a prevenção das DST/AIDS, as relações familiares, os grupos de pares, a escolha profissional. Nesse sentido, desempenham papel importante os espaços próprios e adequados ao adolescente nos serviços da rede pública, serviços que lhes permitam cuidar de sua saúde tanto física como mental. Fundamental também é o caráter preventivo de todo o investimento na promoção de saúde do adolescente, afinal trata-se de uma idade de consolidação e de aquisição de hábitos de vida que irão marcar todos os comportamentos adultos relativos aos cuidados com a saúde: hábitos alimentares, uso e abuso de drogas, relações sociais e afetivas, práticas de violência, práticas sexuais e comportamentos de risco. Uma política de estímulo ao autocuidado e autoproteção configurase em um desafio de múltiplas políticas nas quais educação, saúde, cultura, esporte, lazer, assistência social desempenham tarefas específicas mas profundamente articuladas em um processo no qual o acesso à informação tem ligação direta com o acesso aos serviços, condição básica para a mudança de atitude. Situação da Adolescência Brasileira A sexualidade é uma das dimensões essenciais no desenvolvimento 34 humano e, portanto, no desenvolvimento dos adolescentes. A iniciação sexual na adolescência é uma experiência marcante que terá repercussões também no decorrer da vida sexual adulta. Os adolescentes podem ser apoiados para que dêem início à vivência da sexualidade com a devida maturidade e responsabilidade. Ou seja, com condições de assumir a vida amorosa e afetiva com o parceiro em todas as suas conseqüências. Para isso, é fundamental que sejam considerados como pessoas e não apenas em seus impulsos, sejam eles sexuais ou de qualquer outra natureza. Acompanhamento e diálogo com os adolescentes precisam ser oferecidos tanto pela escola como pela família. Os programas de educação e de saúde sexual para adolescentes devem prever também espaços de discussão para os pais, educadores e outros profissionais que lidam com adolescentes. Sendo a adolescência uma fase privilegiada na aquisição de muitos dos hábitos de vida que poderão ser ou não saudáveis, esse é um momento fundamental para a promoção da saúde em um caráter preventivo. Porém, isso nem sempre é possível. Além das dificuldades da própria família e de profissionais envolvidos com os adolescentes e de questões culturais, os adolescentes têm forte tendência a viver basicamente o presente. Exemplo disso é a relação dos adolescentes com o consumo de bebida alcoólica. Sabe-se que o alcoolismo é uma dependência química que se instala lentamente e se revela em geral na vida adulta. No entanto, é na adolescência que o hábito de beber tem início e que a prevenção deve ocorrer. A ingestão abusiva de bebida alcoólica por adolescentes, ainda que não caracterize estado de dependência, tem sido responsável por considerável índice de mortes entre os jovens, tanto por práticas de violência como por acidentes de trânsito. Além disso, o consumo de bebidas alcoólicas pode gerar desadaptação escolar, desentendimentos familiares ou outros problemas na condição física e psíquica do adolescente. A pesquisa Avaliação das Ações e Prevenção de DST/AIDS e Uso Indevido de Drogas nas Escolas de Ensino Fundamental e Médio em Capitais Brasileiras, produzida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Cultura e Ciência (Unesco/2001) revela que, em 14 capitais brasileiras, a porcentagem do uso de drogas ilícitas pelos alunos variou de 2%, no Ceará, a 15%, no Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Segundo a pesquisa A Voz dos Adolescentes (UNICEF/Fator OM/2002), que trabalhou com público semelhante, 15% dos adolescentes entrevistados disseram que usam ou já utilizaram algum tipo de droga. adolescência a pesquisa A Voz dos Adolescentes (UNICEF/Fator OM/2002) constatou que 32,8% dos adolescentes mantém ou já tiveram relação sexual. Desses, 16,6% já engravidaram, e, dos que engravidaram, 28,8% declararam que não tiveram o bebê. A mesma pesquisa indicou que, pelo menos, 48,5 % dos adolescentes que mantém ou já tiveram relação sexual não usam preservativo ou não usam sempre. Situação da Adolescência Brasileira Em relação ao tema da sexualidade na 35 Acolhimento e equilíbrio em situação de risco Para enfrentar o desafio da inclusão social de cerca de 100 mil crianças e adolescentes vivendo em estado de indigência e exclusão – segundo o IPEA –, um projeto em Porto Alegre dá prioridade ao atendimento a meninas e meninos expostos à exploração do trabalho infantil, à exploração sexual, à violência física e psicológica, ao uso abusivo de drogas e à situação de rua. Mãos sujas de argila e papel marchê, sorriso no rosto, cuidados e atenção. Nesse cenário acolhedor, estão as meninas e os meninos que participam do Programa Municipal de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua – PAICA-Rua, coordenado pela Prefeitura de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. O programa, criado em 1997, tem o desafio de lidar com um dos mais complexos problemas enfrentados por adolescentes, o uso abusivo de drogas. Por isso, é ampla a rede de atendimento do projeto, desde o atendimento de saúde na chamada Casa Harmonia até a Casa de Acolhimento Noturno e a Escola Porto Alegre. Como o próprio nome diz, o projeto dá assistência integral aos meninos, diminuindo ao máximo os fatores de risco e ajudando-os a mudar de condição. Criada há dois anos com apoio do UNICEF, a Casa Harmonia é parte do Programa. Ali, adolescentes em situação de rua e com histórico de abuso de drogas encontram apoio e atividades educativas durante o dia. A casa funciona das 8h às 18h, e os adolescentes podem participar de oficinas de teatro, artes plásticas, capoeira e rap, além de receber acompanhamento médico e psicológico. Ao lado da Casa Harmonia, está a Escola Porto Alegre (EPA). A Escola tem uma missão bem maior do que alfabetizar e trabalhar o conhecimento com os meninos em situação de rua que vivem na cidade. “O objetivo é ser uma instituição de travessia e reintegração social”, explica a diretora da escola, Maria Lúcia dos Reis. O trabalho da escola é apoiar os adolescentes em um período de transição, oferecendo ensino formal especializado até sua matrícula em uma escola da rede pública de ensino. Segundo Maria Lúcia, apesar da EPA ser exclusiva para meninos em situação de rua, ela não tem o objetivo de isolá-los da sociedade. A equipe da Escola Porto Alegre ajuda o adolescente a resgatar sua história pessoal e, quando seus laços familiares rompemse, estimula-os a reatar a relação com a família. Durante a manhã, os meninos freqüentam as aulas de aceleração escolar do Ensino Fundamental. À tarde, participam de atividades complementares, como oficinas de informática, de artes e de temas educativos. “O mais interessante é que foram os próprios adolescentes que pediram essas atividades. Foi uma maneira que encontraram de ficarem mais tempo longe das drogas”, esclarece a diretora. O Programa de Atenção Integral também apóia as famílias dos adolescentes, oferecendo acompanhamento psicológico e assistência social. Na maioria das vezes, são famílias com baixíssima renda e acesso restrito a bens e serviços de necessidade básica. Esse trabalho com as famílias é feito a partir do Núcleo de Apoio SócioFamiliar (NASF) e inclui, em alguns casos, complementação de renda e atividades comunitárias entre famílias de um mesmo bairro. Além de apoiar os adolescentes já em situação de rua, o núcleo tem um trabalho preventivo importante. Programa de Atenção Integral e hoje é um exemplo para todos os outros meninos do programa. Ele foi aluno da Escola Porto Alegre, freqüentou a Casa Harmonia, os abrigos noturnos e, recentemente, o curso profissionalizante Papel Social. Rafael conseguiu juntar dinheiro para comprar a própria casa, onde mora com a esposa – que conheceu na rua – e com a filhinha, que tem menos de um ano. “Só penso em trabalhar e criar minha menina. Não quero nem mais ouvir falar em droga. Para mim, isso é passado”, conta. Situação da Adolescência Brasileira Marcus Rafael, 20 anos, foi um dos adolescentes atendidos pelo 37 A prevenção da gravidez e das DST/AIDS na adolescência // Número de adolescentes que declararam ter relação sexual segundo o uso de preservativo Fonte: A Voz dos Adolescentes, UNICEF/FatorOM/2002 – Pesquisa Nacional com 5.280 adolescentes. Assumir uma vida sexual ativa na adolescência implica prevenir os possíveis problemas dela decorrentes, como as doenças sexualmente transmissíveis (DST) – com destaque para o HIV/AIDS – e a gravidez na adolescência. Uma política de prevenção nessa área deve ter como enfoque a educação sexual como um todo. Embora seja possível presenciar versões romantizadas sobre a experiência de ser mãe ou pai adolescente, é preciso considerar que, na área específica da saúde física, problemas decorrentes da gravidez, parto, pós-parto e de abortos constituem Situação da Adolescência Brasileira uma das causas de maior incidência de hospitalizações e mesmo de óbitos de adolescentes do sexo feminino. 38 Isso sem levar em conta as implicações em outras esferas da vida dos adolescentes (escolaridade, profissionalização, relação com sua família e amigos). Essas dificuldades, além de outros aspectos subjetivos, levam muitas adolescentes que engravidam a optar pela interrupção da gravidez em clínicas clandestinas ou usando práticas caseiras, correndo sérios riscos para sua saúde e, por vezes, riscos de morte. A pesquisa A Voz dos Adolescentes (UNICEF/Fator OM/2002) informa que 28,8% dos adolescentes que engravidaram (meninas) ou engravidaram alguém (meninos) não tiveram o filho. Por outro lado, adolescentes que decidem ter o bebê, quase sempre sem condições psicológicas e financeiras para isso, acabam prolongando, ainda mais, seu período de dependência da família, em diferentes níveis. Além disso, a possibilidade de um adolescente assegurar a seu filho todos os seus direitos é condicionada por fatores que vão desde sua condição financeira, escolaridade e maturidade até seu grau de dependência em relação à sua própria família e às condições desta. // Número de adolescentes com relação sexual em relação à gravidez e a ter o filho Fonte: A Voz dos Adolescentes, UNICEF/FatorOM/2002 – Pesquisa Nacional com 5.280 adolescentes. Esses indicadores revelam que a adolescência brasileira enfrenta situações de vulnerabilidade que devem ser enfrentadas de forma ampla e imediata. Os desafios colocados demandam políticas com princípios baseados na preservação da vida, da integridade psíquica e física e da liberdade, respeito e dignidade como seus valores fundamentais. íntimo e pessoal são garantias que devem ser asseguradas a todos os adolescentes. Sua participação em todos os processos será valorizada como forma de dar coerência à política com as reais necessidades e direitos dos adolescentes. A integração de políticas, programas e serviços das diferentes áreas das políticas públicas será o princípio básico para a otimização de recursos e garantia de efetividade, bem como o envolvimento da família como núcleo básico de vivências, apoio e aprendizagens. Além disso, o grande desafio a ser enfrentado para a redução da vulnerabilidade na adolescência é a garantia do direito à informação associado ao acesso a serviços básicos. Situação da Adolescência Brasileira O respeito à subjetividade, a privacidade e às decisões de caráter 39 Meninas & mães Em São Luís, no Maranhão, num dos bairros mais populosos da cidade, garotas recebem orientação sobre planejamento familiar em divertidas oficinas de teatro para gestantes, com atendimento pré-natal e apoio para cuidar de seus bebês. Do outro lado do muro da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) está o bairro de Vila Embratel, uma das regiões mais populosas de São Luís. Ali, é comum ver o esgoto correndo a céu aberto, poucas são as ruas asfaltadas e praticamente não existem áreas de lazer para as crianças e os adolescentes. E os problemas de infra-estrutura estão longe de serem os únicos. Na comunidade da Vila, há um grande número de adolescentes grávidas. Para dar uma resposta positiva a essa situação, professores e alunos da Universidade romperam as barreiras do campus e foram atuar na comunidade vizinha. O projeto “O Jovem de Bem com a Vida”, desenvolvido pela Universidade, com apoio do UNICEF, tem como objetivos prevenir e reduzir os riscos de gravidez entre meninas de 10 a 19 anos, além de apoiá-las na busca de novas perspectivas para sua vida. O projeto, criado em 1999, transformou a vida de mais de 500 adolescentes da capital maranhense e oferece programas de saúde e também atividades educativas, culturais e profissionalizantes. “O Jovem de Bem com a Vida é um projeto interdisciplinar. Nosso foco de trabalho é a questão do sentido da vida e a valorização da pessoa”, completa o professor de medicina da Universidade e coordenador do projeto, Fernando Ramos. O Centro de Saúde Dom Oscar Romero, uma entidade filantrópica ligada à Igreja Católica localizada na Vila Embratel, é umas das principais unidades do projeto. Nele, as adolescentes grávidas têm acompanhamento pré-natal, pós-natal e ginecológico, além de tratamento pediátrico para seus filhos. Todas as semanas, são atendidas mais de 60 jovens mães e crianças. Situação da Adolescência Brasileira Aos 17 anos e no quinto mês de gestação, Gláucia de Holanda Silva foi pela primeira vez ao centro de saúde para dar início aos exames 40 pré-natais. Mãos dadas com a mãe, ela conta que soube do projeto por outras amigas que também fizeram acompanhamento da gestação no centro de saúde. Segundo a mãe, dona Raimunda, a filha demorou a procurar acompanhamento médico, porque mantinha a gravidez em segredo. “Fiquei desesperada, parecia que o mundo ia acabar”, lembra a jovem. Ansiosa, Danielle Viera Marinho também espera a consulta no centro. Grávida aos 15 anos, ela abandonou os estudos na 8ª série do Ensino Fundamental. O ex-namorado, pai da criança, não quer assumir o bebê. Sentada no banco de espera, Danielle a todo instante ajeita-se na cadeira. É a sua primeira consulta com um ginecologista. “Estou um pouco nervosa, não sei como é. Sei que vou sentir muita vergonha de falar as coisas com ele.” Além do atendimento das meninas grávidas, o projeto desenvolve um trabalho preventivo na Oficina de Planejamento Familiar. “Nós trabalhamos muito para adequar a gravidez a um momento propício e planejado”, explica Maria de Jesus Pacheco, pediatra e professora da Universidade. O projeto também ajuda a quebrar a resistência das adolescentes a visitar o posto de saúde. “No Brasil, as pessoas procuram o hospital em caso de doença, não há o costume de se prevenir”, diz Maria de Jesus. E completa: “É também um desafio conseguir atrair os adolescentes homens para a oficina”. A maior parte dos freqüentadores são meninas. A cada oficina são mais de 20 adolescentes e, em sua maioria, mães. Lucilia, 17 anos, é uma das exceções. Depois que a irmã de 15 anos ficou grávida, ela resolveu precaver-se. “É difícil ser mãe adolescente, você perde muitas oportunidades. Eu vi que não queria isso para mim agora, por isso, resolvi participar da Oficina de Planejamento Familiar”, explica. monitoras da Oficina de Planejamento Familiar. Ela entusiasma-se em poder sair da sala de aula da universidade. “É muito bom ter a oportunidade de poder apoiar alguém com o que se aprende na faculdade”, explica. Situação da Adolescência Brasileira O projeto reúne também jovens de diferentes classes sociais. Estudante do curso de Pedagogia da UFMA, Mariana Rocha, 21 anos, é umas das 41 5. Desafio para o desenvolvimento integral por meio do esporte, da cultura e do lazer O adolescente é um desbravador do mundo, curioso por natureza e sedento de novas experiências que ampliem seu mundo familiar e escolar. A adolescência implica exatamente sair do círculo restrito familiar para participar da sociedade que lhe acolhe como cidadão de direitos e deveres, a partir da transmissão dos valores de sua cultura. Em muitas sociedades, essa passagem é comemorada por rituais de reconhecimento do jovem em sua nova condição. Adolescentes precisam ser acolhidos e valorizados pela sociedade que se enriquece com a sua participação na construção de uma cultura de solidariedade, de participação e de maior justiça social. Para isso, o adolescente precisa encontrar na sociedade os canais que necessita para a expressão de seus sentimentos, de suas inquietudes, de sua reflexão crítica e, sobretudo, de sua criatividade e sensibilidade face às desigualdades sociais. Atividades de arte, cultura, esporte e lazer representam espaços privilegiados de evasão das energias positivas, mas também para canalizar impulsos destrutivos, angústias, depressão, insegurança e mesmo o desespero que por vezes assaltam seus corações e mentes. A carga impulsiva, o turbilhão de sentimentos e idéias que afloram nesse momento da vida do ser humano representam ao mesmo tempo sua potencialidade e seu risco. Mesmo determinadas experiências de transgressão podem trazer crescimento e amadurecimento, desde que reconhecidas em seu significado e assumidas como aspectos de um processo de busca de Situação da Adolescência Brasileira referências de autoridade e de limites em uma fase em 42 que seu desejo é transpor a tudo e a todos. Nesse cenário de demandas de expressão e, também, de desejo de participar de sua cultura e de descobrir os seus valores e sua história, é fundamental a garantia dos direitos dos adolescentes à participação em atividades de cultura, arte, esporte e lazer. Existem pesquisas recentes que estabelecem importantes relações entre ser sujeito produtor e consumidor de cultura e sentir-se uma pessoa com responsabilidades sociais e mais gratificada consigo mesma. Entretanto, os adolescentes brasileiros não têm um acesso facilitado a esse tipo de serviços. A pesquisa A Voz dos Adolescentes (UNICEF/Fator OM/2002) ouviu 5.280 adolescentes em todo o País e revelou que “ ir à casa dos amigos é o principal entretenimento dos adolescentes, citado por 53% dos entrevistados. A TV vem logo a seguir, como a segunda principal fonte de diversão e lazer. Entre 20 opções possíveis (e não excludentes) apresentadas no questionário, 51% dos adolescentes entrevistados citaram a televisão. A porcentagem de adolescentes entrevistados que respondeu “televisão” é maior que a dos que citaram atividades mais dinâmicas, realizadas no espaço público, como passear pela rua e praticar esportes (ambos com 47%)” Ainda com dados da referida pesquisa, observa-se que o tempo médio dedicado diariamente pelos adolescentes à TV é de 3h55min, índice que mais do que revelar uma preferência pela TV pode ser explicado pela falta de outras opções. Apenas 24% dos adolescentes entrevistados informaram ter a possibilidade de participar de alguma atividade artístico-cultural fora da escola; 83% não têm acesso a clubes de lazer; 74,5% não podem freqüentar um cinema; 60% não têm onde praticar esportes; e mais de 80% não dispõem de equipamentos públicos ou comunitários que assegurem o direito ao esporte, cultura e lazer Essas informações são parte da explicação para o quadro de violência que envolve adolescentes especialmente no meio urbano e mais precisamente nos cinturões de pobreza onde a inexistência dessas atividades socializadoras abre espaço para outro tipo de socialização entre pares resultando em atos anti-sociais como as chamadas “gangues” ou “galeras”. Situação da Adolescência Brasileira gratuitamente. 43 Estudos em andamento nos Espaços Criança Esperança demonstram que a criação de espaços para o desenvolvimento de atividades artísticas, culturais e esportivas tem forte impacto na redução da violência nessas comunidades. A auto-imagem positiva e a confiança em suas próprias qualidades são ingredientes fundamentais para que o adolescente possa projetar-se positivamente no futuro. O fato de vislumbrar um projeto de vida no qual se situe familiar, profissional e socialmente parece ser a melhor garantia para que o jovem não se envolva na prática de atos violentos. Alguns estudos sobre adolescentes em conflito com a lei revelam que esses meninos e meninas sofrem por perceber uma imagem social negativa a seu respeito, vêem-se sem condições de pensar no seu futuro e, portanto, sem perspectivas de mudança de atitude. A grande via de transformações aberta pela participação em atividades culturais e artísticas, em suas diferentes formas e natureza, é o desenvolvimento da sensibilidade que faz o ser humano voltar-se para o belo, para o estético e também para o outro e para o ético. Essa dimensão da alteridade é ingrediente fundamental para a construção de redes afetivas e sociais. Portanto, têm grande valor os projetos que visam, por meio da arte e da cultura, mobilizar adolescentes para ações de solidariedade e para a formação de multiplicadores atuantes na promoção de cidadania entre seus pares. No Brasil, existem muitos exemplos de projetos dessa natureza, com bons resultados tanto do ponto de vista da prevenção à violência e ao abuso de drogas, como de canais de reinserção de jovens já envolvidos com drogas ou em conflitos com a lei. O alcance educativo e preventivo da participação juvenil em atividades de cultura, esporte e lazer dependerá, antes de tudo, da qualidade das propostas pedagógicas e de socialização desses projetos. Nessa perspectiva, atividades de artes, esporte ou cultura não devem ter um fim em si mesmas, mas constituem canais de expressão e vias de acesso ao mundo das emoções, do belo e do sensível a ser valorizado e resgatado nos adolescentes. Essas atividades podem fazer parte de programas alternativos extraclasse ou, melhor ainda, como atividades complementares à escola regular e parte da própria proposta pedagógica da instituição, assim como fonte de renovação das relações dos adolescentes com essas instituições. A criação de clubes de cultura, de grupos de artistas, equipes de esporte, organizações ecológicas podem ser embriões preciosos de estímulo para a participação coletiva dos adolescentes. As vivências Situação da Adolescência Brasileira grupais são muito importantes na motivação e no aprendizado das habilidades necessárias aos adolescentes para uma participação efetiva 44 no coletivo, ainda na adolescência ou na vida adulta. 45 Situação da Adolescência Brasileira Educação, esporte e proteção Não é fácil lidar com o estigma. Adolescentes do Jardim Ângela, em São Paulo, sempre se vêem referidos como habitantes de um dos mais violentos bairros do mundo. Porém, em um lugar chamado Espaço Criança Esperança, eles fazem o bairro transformar-se em um espaço de aprendizagem, esporte e solidariedade. De segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, crianças e adolescentes ocupam o complexo esportivo do bairro, um lugar com piscina, quadras poliesportivas, salas de aula e espaços verdes. Ali, 2 mil meninas e meninos praticam esportes sob a orientação de monitores capacitados, têm reforço escolar e alimentação balanceada. O lugar é alegre, como as crianças e adolescentes reunidos nas atividades. Aos 17 anos, Michele Sofia Lima é uma das freqüentadoras do Espaço Criança Esperança. Para ela, a tranqüilidade é o maior atrativo do lugar. “Aqui não tem encrenca, é só calma”, explica. É verdade, a violência do Jardim Ângela fica do lado de fora e, no Espaço, procurase construir um presente diferente para esses meninos e meninas. “Pretendemos bem mais do que formar atletas ou artistas. Queremos preparar cidadãos. Nós nos empenhamos em mostrar para os adolescentes os direitos que eles possuem”, diz o diretor do Espaço, Geraldo Salvador de Souza. O Espaço Criança Esperança é um projeto mantido com recursos da campanha Criança Esperança. O Espaço é resultado de uma parceria entre a Rede Globo, o Instituto Sou da Paz, o Governo do Estado de São Paulo e o UNICEF*. A Polícia Militar também participa da iniciativa, ajudando a proteger o Espaço e encaminhando para a coordenação pedagógica crianças e adolescentes em situação de risco. * Há ainda um Espaço Criança Esperança no Rio de Janeiro, na comunidade do Cantagalo, Pavão, Pavãozinho. Ali também são oferecidas atividades educacionais, culturais e esportivas, complementares à escola regular. No Rio, o Espaço é resultado de uma parceria da Rede Globo, UNICEF, Viva Rio e Governo do Estado do Rio de Janeiro. Além das atividades esportivas e do parquinho para as crianças menores, o projeto oferece também a crianças e adolescentes um núcleo multimídia, com sala de informática, um estúdio de som e uma rádio comunitária. “Isso permite aos adolescentes o uso da tecnologia para produzir documentários, fazer páginas na Internet, criar o jornal do Espaço Criança Esperança”, explica Sergio Sampaio, coordenador pedagógico do Instituto Sou da Paz. Uma das principais preocupações dos parceiros do projeto é o alto nível de capacitação dos monitores e educadores, identificados principalmente na própria comunidade do Jardim Ângela. Outro parceiro fundamental do projeto são as famílias das crianças e dos adolescentes. Elas são estimuladas a também freqüentar o Espaço e acompanhar o desenvolvimento de seus filhos nas atividades. Os pais reconhecem a importância do projeto e se sentem mais tranqüilos. “Nosso maior objetivo é tirar os adolescentes do convívio com a violência e a droga e colocá-los em uma atividade física e cultural”, explica o professor de educação física Sílvio José de Almeida. Morador do Jardim Ângela, ele entende com profundidade a realidade dos seus alunos. “Tudo o que um menino de periferia precisa é a chance de estudar e se divertir com saúde e segurança. O bairro não é violento por causa das pessoas que Situação da Adolescência Brasileira moram aqui e sim pela falta de oportunidades para elas”. 47 6. Desafio em função da prática de atos infracionais e do conflito com a lei A prática de atos infracionais por adolescentes gera polêmica, temores e propostas de soluções desmedidas na sociedade brasileira. O entendimento sobre a prática de infrações por adolescentes oscila entre a atribuição exclusiva de responsabilidade ao próprio adolescente ou a responsabilização das condições sociais nas quais o adolescente está inserido. Essas percepções extremistas dificultam a compreensão de que o delito é uma produção social e que o infrator age sempre num contexto de condições objetivas que podem ora estimular ora inibir sua atuação, mas que não servem como explicações únicas ao fenômeno do conflito com a lei por parte de adolescentes. Entre aqueles que atribuem exclusiva responsabilidade ao adolescente pela prática de atos infracionais, costumam prosperar mitos sobre a periculosidade do jovem, sua participação no aumento da violência e a necessidade do agravamento de penas a eles aplicadas. A idéia de reduzir a idade de inimputabilidade penal para 16 ou 14 anos origina-se dessa percepção equivocada da infração e poderá ter graves conseqüências no aumento da criminalidade, uma vez que inserido no sistema penal de adultos suas oportunidades de recuperação e mudança de vida restringem-se significativamente. Ainda não existe no País um sistema de registro de informações que permita dimensionar com precisão o problema do cometimento de atos infracionais por adolescentes. Essa ausência constitui a base para interpretações distorcidas, baseadas em dados localizados e que geram na sociedade um sentimento de temor em relação à violência dos adolescentes. Pesquisas desenvolvidas com o apoio do UNICEF procuraram traçar um quadro geral que permite apenas identificar alguns aspectos importantes desse contexto: A incidência de atos infracionais praticados por adolescentes é menor do que 8% da soma de delitos praticados por adolescentes e adultos. A prática de delitos por adolescentes concentra-se nos delitos contra o patrimônio, constituindo-se em 75% do total de delitos. Aproximadamente 30 mil adolescentes são privados de liberdade a cada ano. Situação da Adolescência Brasileira O desenvolvimento de uma política de controle do conflito com a lei por parte dos adolescentes, a partir da consideração dos fatores pessoais e sociais que o envolvem, implica a aplicação das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente e concebidas no marco da Convenção sobre 48 Nesses casos, o Estado deve investir em processos socioeducativos, a fim de que os comportamentos transgressivos que os adolescentes expressaram em os Direitos da Criança. Tanto o Estatuto quanto a Convenção determinam os 18 anos como idade mínima para a responsabilização penal. Portanto, antes dos 18 anos completos, a legislação prevê atenção prioritária, diferenciada e específica por parte da família, da sociedade e do Estado aos adolescentes em conflito com a lei. infrações não venham a se tornar, por força da negação de seus direitos e pela falta de oportunidades, em traços constitutivos de sua própria personalidade. 49 Situação da Adolescência Brasileira Há três importantes desafios a serem enfrentados para assegurar um atendimento digno aos adolescentes em conflito com a lei: - Ampliar o atendimento aos adolescentes nas medidas em meio aberto, especialmente pelos programas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade. Esses programas de base municipal devem ser apoiados tanto pelo governo federal quanto estadual, pois se constituem na melhor alternativa para superar a concentração do atendimento em regime de privação de liberdade. - Elaborar políticas estaduais e municipais que integrem serviços de diferentes áreas para o atendimento aos adolescentes em conflito com a lei, permitindo-lhes construir uma trajetória de inclusão social, garantia de direitos e participação positiva na sociedade. - Extinguir as instituições que não se reordenaram conforme as diretrizes da legislação brasileira, substituindo-as por uma política descentralizada de atendimento a adolescentes em pequenos grupos e próximos da sua comunidade origem. Os estados mais ricos do País convivem, paradoxalmente, com os piores sistemas de encarceramento de adolescentes, preservando estruturas físicas totalmente obsoletas onde relações pedagógicas são inibidas em função da violência e repressão a qual são submetidos os adolescentes. Oferecer aos adolescentes em conflito com a lei um projeto de inclusão social é tarefa de toda a sociedade. Seus resultados serão a ampliação da visão de mundo e das relações sociais não só dos adolescentes autores de atos infracionais, mas de todos os atores sociais envolvidos nesse processo. O maior desafio nessa área é o de Situação da Adolescência Brasileira construir um sistema educativo no qual o projeto pedagógico possa ser desenvolvido a partir dos diversos recursos de uma rede articulada 50 para o oferecimento de atenção integral e especializada aos adolescentes. 51 Situação da Adolescência Brasileira Medidas fora do papel Em Macapá, no Amapá, o Estatuto da Criança e do Adolescente sai do papel. As medidas socioeducativas são aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei, com educação formal, participação da família e atividades esportivas. Dona Leuza Moraes não esconde a emoção quando fala de seu caçula. Com os olhos cheios de lágrimas e a voz embargada, não consegue dissimular a preocupação e a tristeza de ter de abrir mão da convivência diária com o garoto. “O lugar é muito bom, ele está estudando e sei que os direitos dele são respeitados, mas está longe da gente”, diz com um nó na garganta. O lugar a que Dona Leuza refere-se é o Centro Educacional Aninga, uma unidade de internação da Fundação da Criança e do Adolescente (FCRIA), responsável pela aplicação de medidas socioeducativas a jovens em conflito com a lei. Essa experiência em Macapá (AP), promovida pelo governo estadual, é um exemplo para todo o Brasil. “Procuramos atender os adolescentes em todos os aspectos, desde as atividades lúdicas até a assistência a suas famílias”, explica Sandra Regina Smith Neves, diretora-presidente da FCRIA. Dentro do centro funciona uma escola estadual onde são desenvolvidas oficinas de teatro, dança, capoeira, judô e futebol. Há mais de um ano, Cléber* cumpria sua primeira medida socioeducativa. Nunca tinha freqüentado a escola em Jari, município próximo a Macapá onde moram sua mãe e cinco irmãos. “Só ficava na rua, usando drogas, nunca pensei em estudar”, explica. No Centro, ele freqüenta o programa de aceleração escolar, faz aulas de teatro, capoeira e joga bola. Cléber não esconde a saudade da família, mas garante: “Não tenho vontade de fugir”. Um dos grandes diferenciais do Centro Aninga é o sistema de gestão Situação da Adolescência Brasileira compartilhada. Os adolescentes internados participam das decisões que dizem respeito ao uso do espaço e dividem responsabilidades com 52 a equipe de educadores. Nas Oficinas de Integração, pedagogos e adolescentes internos elaboram as normas e regras do Centro, escolhem o cardápio e discutem o planejamento bimestral das atividades de recreação. Segundo Sandra, “os adolescentes empenham-se muito para cumprir as decisões e chegam a sugerir sanções para quem desobedecer ao que foi acertado”. Aos 14 anos, Vitor* foi obrigado a cumprir medida socioeducativa de três meses de internação por envolvimento com drogas. Para ele, participar da escolha das atividades do Centro é uma grande ajuda na reintegração social dos meninos do Aninga. “Ficamos mais responsáveis e nos recuperamos mais rápido”, diz, em tom sério. Como previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, os jovens do Aninga têm acesso a cursos de profissionalização, embora o ensino regular e a recreação tenham prioridade. Nos primeiros seis meses de internação, os adolescentes experimentam atividades como a capoeira, artes plásticas, teatro, judô, futebol. Há também trabalhos de orientação sexual com os adolescentes. Os internos têm acesso a preservativos e participam de palestras sobre prevenção de DST/AIDS e saúde sexual. “A gente não nega a existência de relações entre meninos. Isso não quer dizer que eles sejam homossexuais, mas essa é a única forma encontrada para exercer a sexualidade”, esclarece a coordenadora. Outro grande diferencial é o trabalho com a família dos jovens internados. A Oficina da Palavra funciona como um canal de diálogo para os pais e também um espaço de reflexão. “As mães têm extrema dificuldade de entender o que está acontecendo com o seu filho. Elas sofrem muito e sentem-se culpadas”, explica Maria Goreth Souza, diretora técnica do Centro. Durante as oficinas, os pais dos internos trocam experiências e tiram dúvidas com o apoio de uma psicóloga. Em média, ficam sob a responsabilidade do Aninga aproximadamente 40 internos. Cerca de 10% do total são meninas. Elas convivem no mesmo espaço que os garotos, mas dormem em alojamentos diferentes. Sandra garante que a interação entre ambos os sexos é uma experiência inovadora e saudável. “Ajuda a criar um ambiente descontraído, as meninas até recebem cartas”. O namoro entre os adolescentes privados de liberdade não é incentivado, mas também não é proibido. registro de rebeliões no Centro. Os problemas enfrentados pelos educadores, garante a diretora, são os mesmos de anos atrás. O que mudou foi a forma de encará-los. “Tumultos acontecem, mas sempre são resolvidos com reuniões e conversa com os próprios meninos. Quase sempre, são uma forma de pedir socorro”, explica a diretora. Por causa do sucesso do trabalho no Centro Educacional Aninga, o Amapá possui um dos menores índices de reincidência de jovens infratores, uma taxa que oscila entre 8 e 10%. * Nomes fictícios usados para proteger a identidade dos adolescentes em conflito com a lei. Situação da Adolescência Brasileira Desde a implementação do modelo de atendimento do Aninga, não há 53 7. Desafio diante da mídia Um complexo universo de possibilidades e riscos, a mídia brasileira representa um espaço contraditório de aprendizagem. Embora tenha evoluído na abordagem da questão da adolescência, segundo dados da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI/2001), ainda persistem nos meios de comunicação social abordagens equivocadas, informações distorcidas e uma tendência a tratá-la simplesmente como público consumidor. Falando sobre adolescentes Numa análise das matérias publicadas nos 50 maiores jornais do País e nas oito maiores revistas semanais, observou-se que nos últimos anos vem crescendo a presença do adolescente como um tema abordado por esses meios, conforme indica o seguinte gráfico. Fonte: ANDI/2001 Este crescimento quantitativo – de 10.700 inserções do tema em 1996 para 64.396 em 2000 –, embora represente uma atenção maior para com o tema, nem sempre foi acompanhado de uma melhoria na abordagem. Os principais problemas encontram-se especialmente na dificuldade em Situação da Adolescência Brasileira contextualizar as questões abordadas; a imprecisão na terminologia; a confusão no uso de dados estatísticos e uma ausência da opinião do próprio adolescente. Esse último aspecto bem evidenciado na pesquisa da ANDI na qual 72,6% das matérias não ouviram nenhum adolescente. O pior desempenho ocorre na cobertura sobre a questão da prática de atos infracionais por adolescentes. É o segundo tema em número de inserções e aquele no qual aparecem os maiores equívocos, revelando uma imprensa predisposta a condenar o adolescente assumindo a visão única dos boletins de ocorrência da polícia e reproduzindo visões repressivas e sensacionalistas. 54 O melhor desempenho está no fato de que quase 48% da matérias do ano 2000, ainda segundo pesquisa da ANDI, inserem-se na perspectiva da busca de solução para os problemas apresentados, destacando iniciativas e mostrando bons exemplos. Falando para adolescentes Os programas de rádio e televisão, cadernos especiais, revistas e outras mídias produzidas para o público adolescente não obtiveram ainda por parte de pesquisadores, especialistas em comunicação social e instituições ligadas à defesa dos direitos dos adolescentes, uma análise ampla e profunda que permitisse fazer uma análise geral da questão. Entretanto, estudos específicos vêm apontando preocupações cada vez maiores com o poder que esses meios tem em impor valores e atitudes. A boa notícia vem de alguns dos chamados cadernos teens, encartados nos jornais em todo o País. Com aparência, linguagem e temáticas especialmente produzidas para comunicar-se com os adolescentes, representam o melhor esforço na tentativa de deixar de tratá-los como consumidores e tratá-los como cidadãos. Centrando a pauta no temas de interesse do adolescente, abordam desde questões do meio ambiente e da sociedade em que o adolescente está inserido até questões mais íntimas da sua sexualidade, seus sonhos e seus desejos, apresentando informações mais precisas e conteúdos mais realistas. O rádio e a televisão, meios que mais atingem os adolescentes, são marcados pela ambigüidade. Convivem num mesmo universo iniciativas de debate crítico dos problemas sociais, informações consistentes sobre abuso de drogas, prevenção da gravidez e das doenças sexualmente transmissíveis e da AIDS, orientação para educação e a escolha profissional com programas de banalização da violência, erotização exacerbada da adolescente com respectiva valorização de comportamentos machistas dos adolescentes, como pode ser verificado nas análises de mídia dos jovens produzida pela ANDI anualmente. Há ainda as revistas especialmente dirigidas a esse público, criadas para alavancar o mercado dos produtos para adolescentes. Constituíramse elas mesmas em produtos descartáveis com informação e abordagens superficiais e por vezes prejudiciais ao desenvolvimento sadio e harmonioso dos adolescentes. Provocadas pelo debate público e por alguns estudos críticos, algumas delas começam a descobrir sua função social mais relevante, incluindo em suas pautas uma preocupação em contribuir para a informação de qualidade e a divulgação de experiências nas quais adolescentes são protagonistas de iniciativas para enfrentar problemas sociais e contribuir para um mundo melhor. de todos os setores preocupados com a promoção e a garantia dos direitos dos adolescentes, no sentido de estabelecer critérios éticos que lhes assegurem uma atenção adequada, seja como sujeitos da programação ou como público leitor, ouvinte ou telespectador. Situação da Adolescência Brasileira Com o objetivo de situar o debate sobre mídia e adolescência, essas rápidas observações apontam para a necessidade de uma maior atenção 55