Revista de
Direitos Humanos
Uma publicação da Associação dos Magistrados Brasileiros - Brasília, janeiro de 2012
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Garantida
CORREIOS
Mala Direta
Postal
9912247698-DR/BSB
AMB
CORREIOS
21 TIROS NA DEMOCRACIA
Os disparos que assassinaram brutalmente a Juíza Patrícia Acioli, na
fatídica noite de 11 de agosto, em Niterói (RJ), atingiram também
o coração da democracia e deixaram ameaçado o Estado de Direito
Das cinzas, surgiu há 5
anos o símbolo da luta
contra violência doméstica
42 mil mulheres foram
assassinadas de 1998 a
2008, revela pesquisa
Medo da falta de apoio
financeiro e da morte
ainda inibe denúncias
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 1
SCN Quadra 2, bloco D, torre B, conjunto 1302 - Centro Empresarial Liberty Mall - CEP: 70712-903 - Brasília/DF
Juntos,
em nome da democracia
Arquivo/AMB
Nelson Calandra*
Pela primeira vez em sua rica história de 62 anos, a AMB criou, na atual gestão,
uma Secretaria inteiramente dedicada à mulher Magistrada, num claro reconhecimento
de seu papel e importância para o Judiciário e toda a sociedade.
Quando iniciamos nossa caminhada, percebemos que não havia como falar de
integração da Magistratura se não reconhecêssemos a presença, o valor e a força da
mulher Magistrada. Posso dizer, sem hesitar, que a Magistratura e o Judiciário ficaram
melhores com a presença delas.
Não incentivo as diferenças entre homens e mulheres: não somos opostos, na
verdade, somos compostos. E é essa composição que buscamos e queremos para que a
AMB seja realmente forte e de todos os Magistrados e Magistradas.
Apesar de suas múltiplas atividades, elas são uma grande força dentro do Poder
Judiciário, num caminho desbravado, no final dos anos 30, pela Desembargadora cearense Auri Moura Costa, seguida pela Desembargadora Thereza Tang, nos anos 50, até
os dias hoje, quando elas já são cerca de 40% do Judiciário.
Além de reconhecer o valor das mulheres, a nova AMB vem dando seguidas contribuições para a conscientização de graves questões sociais, que, histórica e culturamente, desafiam toda a sociedade, especialmente a vida em família.
Realizamos o I Seminário Internacional de Direitos da Mulher, em Juazeiro do Norte, numa região brasileira em que as mulheres mais sofreram agressões, e, agora, esta
Revista de Direitos Humanos expõe e debate, com profundidade, o tamanho e o alcance do drama em todas as suas manifestações.
A nota positiva em tudo isso é que, há cinco anos, as agressões contra mulheres
passaram a ser tratadas com mais rigor, por meio da Lei Maria da Penha. Proteção
é o seu feito maior. Essa mudança mais a credibilidade no Judiciário encorajaram as
mulheres a denunciar.
Há casos mais graves, próximos da barbárie, aos quais precisamos combater em
nome do Estado de Direito, como foi o frio e covarde assassinato de uma mulher, mãe
de família e uma das mais qualificadas Juízas brasileiras, nossa colega Patrícia Acioli,
da Comarca de São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Ela foi vítima do crime organizado por
dedicar-se à Justiça cidadã e aos direitos humanos.
Nós perdemos uma batalha, mas a guerra não está perdida. Juntos, homens e
mulheres, faremos um País melhor, em nome da afirmação do primado do direito e da
sociedade civil.
(*) Presidente da AMB
Índice
Presidente
Nelson Calandra
Vice-Presidente
de Comunicação
Raduan Miguel Filho
Vice-Presidente
de Direitos Humanos
Renata Gil
de Alcântara Videira
Diretoria da Secretaria
de Direitos Humanos
Diretor
Gil Francisco de Paula Xavier
Fernandes Guerra
Diretores-Adjuntos
Fabiana da Cunha Pasqua
Eduardo Antonio Klausner
Maria Roseli Guiessmann
Lilian Lygia Ortega Mazzeu
Paulo César Cavalcante Macêdo
Marilsen Andrade Addario
Revista Direitos Humanos
da AMB
Em 10 anos, 42 mil mulheres são mortas
Artigo: Femicídio: uma realidade oculta
Por Adriana Ramos de Mello
CINCO ANOS DA LEI MARIA DA PENHA
6
10
Das cinzas, surge o símbolo da luta
contra a violência doméstica
14
Entrevista: Maria da Penha Maia
18
Voz contra a violência doméstica
Artigo: A violência pública e privada
Por Iriny Lopes
25
Dependência financeira e medo
da morte inibem denúncias
Lado a lado com o agressor
28
32
Artigo: Cenário internacional fomentou
avanços internos - Por Mônica Barroso
Especial
34
21 tiros desafiam o Estado e tiram
a vida da Juíza Patrícia Acioli
38
Presença feminina reforça sucesso das UPPs
44
Entrevista: José Mariano Beltrame
Secretário de Segurança do Rio
46
Edição
Orion Teixeira
Uma nova Polícia para combater
a criminalidade violenta
Reportagem
Lúcio Flávio
Você é vítima da violência institucional?
50
Artigo: Violência Institucional sob a ótica
de um serviço virtual - Por Laura Mury
53
Mulheres no Judiciário: elas exibem força
56
Artigo: Judiciário se feminiza
cada dia mais - Por Sérgia Miranda
60
Desigualdade afeta mulheres em situação de prisão
62
Diagramação
Marconi Martins
Página da AMB
na internet:
www.amb.com.br
E-mail:
[email protected]
Twitter:
http://twitter.com/magistrados
Youtube:
http://www.youtube.com/
ambmagistrados
Entrevista: César Barros Leal
Presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos
“É preciso erigir penitenciárias específicas
para as mulheres em situação de prisão”
65
História de lutas
e conquistas
Arquivo pessoal
Renata Gil*
A aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em Paris, em 1948,
trouxe aos homens um arcabouço jurídico cujo escopo foi extirpar da sociedade as
injustiças perpetradas por séculos, especialmente após as grande guerras mundiais.
O documento histórico exprime ideais e anseios de libertação das amarras impingidas pela pobreza, pelo medo e pelo cerceamento político, religioso e de expressão, reconhecendo os direitos de todos os seres humanos “sem distinção alguma de
raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de qualquer outro tipo, origem
nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição”.
A despeito da importante participação da América Latina na aprovação desse
documento, responsável pela inserção de algumas das mais relevantes normas, vivenciamos a dificuldade de efetivarmos os direitos gerais, razão pela qual nos deparamos com as ditaduras, com o trabalho escravo, com a miséria fruto da negligência
e corrupção nos governos, com a impunidade, mesmo nas democracias de direito,
além da violência de gênero.
A trajetória das mulheres na sociedade é uma história de lutas e conquistas.
Somos protagonistas das maiores transformações sociais já ocorridas e, em todo o
mundo, as mulheres têm tido um papel relevante em favor dos direitos humanos.
Depois de criar a 1ª Secretaria da Mulher Magistrada, a AMB tem dado inúmeras contribuições de reconhecimento e de valorização da mulher no Judiciário
e na sociedade.
Queremos estimular a mulher a seguir em frente e para o alto, buscar o lugar
que é seu também. Até porque, nada poderá deter seu crescimento, seu talento, sua
competência e eficiência. Nem o preconceito muito menos a violência.
Com esta edição, discutimos a dura e triste realidade que ainda teima em ignorar as causas da violência e os direitos humanos da mulher, até mesmo os mais
básicos. Não dá para recair no maniqueísmo que impõe aos homens o papel de algoz
e às mulheres, o de vítimas.
Queremos estabelecer novos paradigmas de conceitos e de abordagem, e o
primeiro deles é desnaturalizar a violência e identificar suas raízes na desigualdade de gênero.
Dedicamos esta publicação à coragem e à determinação da mulher, mãe e Juíza
Patrícia Acioli, vítima da violência de gênero e de um atentado ao Estado de Direito.
(*) Juíza titular da 40ª Vara Criminal do Rio de Janeiro
e Vice-Presidente de Direitos Humanos da AMB
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 5
HOMICÍDIO
Em 10 anos,
42 mil mulheres são mortas
O
s números de homicídios envolvendo
mulheres brasileiras são alarmantes.
Um estudo publicado pelo Instituto
Sangari sobre o Mapa da Violência no Brasil
2011, com fontes do Ministério da Saúde (MS),
Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) e
Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS), revela
que, entre 1998 e 2008, 42 mil mulheres foram
assassinadas. A maioria dessas mortes foi causada por armas de fogo, cerca de 50% dos casos,
sendo que 40% deles, registrados nas próprias
residências das vítimas.
A pesquisa revela ainda que 24% das vítimas foram mortas por armas cortantes ou penetrantes e 6% por estrangulamento ou sufocação. Considerado desde 1990 pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) como problema de
saúde pública, o crime de morte contra a mulher vem sendo denominado nos países latinoamericanos de femicídio. Titular do I Juizado da
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,
do Rio de Janeiro, onde atualmente, têm mais
6 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
de 23 mil casos em andamento, a Juíza Adriana
Ramos Mello, do I Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, do Rio de Janeiro,
uma das especialistas no assunto, diz que o problema esbarra em questões sociais.
“A maioria dos casos se concentra no âmbito privado e decorre de desigualdades de poder entre os gêneros, o que agrava a situação”,
observou a Magistrada, que destacou ainda a
entrada das mulheres no mercado de trabalho
como uma das causas dos conflitos. “A mudança nos papéis tradicionais de gênero, com o
homem perdendo a condição de provedor e de
chefe de família, faz com que muitos deles reajam à situação de forma agressiva, aumentando
a violência de gênero”, analisou.
Atualmente defendendo tese de doutorado
sobre o tema, pela Universidade Autônoma de
Barcelona, a Juíza Adriana Mello levantou outra
questão contundente envolvendo a situação: a
da invisibilidade de violência perpetrada contra
mulheres de baixa renda, negras e prostitutas. “E
Elza Fiúza/ABR
Quarenta e duas mil mulheres foram assassinadas de 1998 a 2008; a maioria, por armas de fogo, registradas nas próprias residências das vítimas
alguns fatores sociodemográficos são associados
ao assassinato de mulheres pelos parceiros, tais
como a pobreza das famílias, a disparidade de
idade entre os cônjuges, desemprego e a discriminação contra as mulheres”, enumerou.
A preocupação da Magistrada carioca se
mostrou relevante se pegarmos números voltados
à população negra feminina no Brasil, por exemplo. Segundo Relatório Anual das Desigualdades
Raciais no Brasil 2009 – 2010, lançado no último
mês de setembro, o número de assassinatos de
mulheres de cor, em 2007, foi 41,3%, superior ao
observado entre as mulheres brancas.
Os números de casos de assassinato de mulheres por região também impressionam. O Nordeste é onde o crescimento dos homicídios, na
última década, foi mais expressivo, registrando
aproximadamente 1.100 casos em dez anos. Os
maiores índices foram apresentados nos Estados
do Maranhão, Ceará e Bahia, este último, com
mais de 200 vítimas no período. Em Goiás e no
Pará, os números também chocam. Quase 100
“Tais fatores associados ao
machismo e à misoginia
contribuem, em nossa opinião,
para a ocorrência da violência
contra as mulheres, que tem no
femicídio a forma mais extrema
de violência”
Adriana Ramos Mello,
Juíza do I Juizado da Violência
Doméstica e Familiar
contra a Mulher, do Rio de Janeiro
casos de assassinatos em cada Estado, entre 1998
e 2008. (Confira quadro na página 9).
Segundo pesquisa realizada pela Juíza Adriana Mello, baseadas em recentes estudos acadêmicos da Universidade Federal do Rio Grande do
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 7
HOMICÍDIO
Sul, mais do que uma questão cultural, os
homicídios de mulheres no Brasil estão associados às dificuldades e conflitos sociais
enfrentados por elas nos lugares onde
vivem. Acontecem, predominantemente,
em locais onde a violência é mais elevada,
como nos centros urbanos, dominados
pelo tráfico de entorpecentes e em regiões onde ocorrem conflitos de terras, grilagens, prostituição e exploração sexual.
“Tais fatores associados ao machismo
e à misoginia contribuem, em nossa opinião, para a ocorrência da violência contra
as mulheres, que tem no femicídio a forma mais extrema de violência”, apontou.
Diversos Estados brasileiros, contudo,
apresentam fortes quedas, como é o caso
de São Paulo e Rio de Janeiro, onde os números se mostram bastante positivos. Nos
dois Estados, as quedas chegaram a quase
50%, nos últimos dez anos.
Há dez anos lidando com o tema, a
Magistrada avaliou que é possível minimizar essa triste realidade no País desde
que haja atuação concreta dos Governos
e do Judiciário na prevenção da violência.
Segundo ela, uma das soluções seria investir na discussão do tema na educação
fundamental e no ensino médio, de forma incisiva. A outra seria o investimento
na formação dos operadores de Direito
pelas escolas judiciais, no sentido de diminuir o descrédito da população com
relação à Justiça.
“Isso não vem sendo feito no Brasil”,
criticou. “A existência de uma lei específica de combate à violência doméstica foi
fundamental para aumentar o acesso à
Justiça dessas vítimas, mas se a classe jurídica não tiver capacitação em gênero e direitos humanos não adiantará”, avaliou.
8 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Mapa da Violência
Entre 1998 e 2008, 42 mil mulheres foram assassinadas. A maioria dessas mortes
foi causada por armas de fogo, cerca de 50%
dos casos, sendo que 40% deles foram registrados nas próprias residências das vítimas.
A pesquisa revela ainda que 24% das vítimas foram mortas por armas cortantes ou
penetrantes e 6% por estrangulamento ou
sufocação.
* Número e taxa de homicídio feminino no Brasil
Ano
Homicídios
Taxa
20053.5034,15%
20064.0224,24%
20073.7723,92%
20084.0234,17%
Fonte: SIM/SVS/MS (2005/2008)
* Meios utilizados
Arma de fogo Objeto cortante ou penetrante Objeto contundente Estrangulamento/sufocação Outros meios Fonte: SIM/SVS/MS (2008)
50,9%
24,6%
7,7%
6,1%
10,7%
Número de homicídios
femininos por região
(1998 – 2008)
Norte
1998
2008
Pará
Amazônia
Rondônia 66 164
54
63
45
39
Nordeste
1998
2008
Bahia Pernambuco
Ceará
Alagoas
Maranhão
100
277
56
44
29
308
298
118
83
81
Centro-Oeste
1998
2008
Goiás
Mato Grosso
Distrito Federal
Mato Grosso do Sul
72
94
59
71
161
84
72
59
Sudeste
19982008
São Paulo
1.036
Rio de Janeiro
563
Minas Gerais
195
Espírito Santo 165
666
372
372
191
Sul
19982008
Paraná
Rio Grande do Sul
Santa Catarina
179
181
67
307
216
86
Fonte: SIM/SVS/MS (2008)
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 9
Femicídio:
uma realidade oculta
Adriana Ramos de Mello*
A violência contra a mulher é um problema recorrente em todo o mundo. Em 1994, a Convenção de Belém
do Pará definiu a violência contra a mulher como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que
cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no
privado”1, abrangendo, assim, um amplo rol de agressões, que, além da violência doméstica e familiar,
alcança outras esferas da vida social das mulheres – violência sexual, assédio sexual no trabalho, prostituição forçada, tráfico de mulheres, etc. Em que pese o tratado internacional, e vários estudos apontarem
essa tendência mais ampla de estudar as várias formas de violência contra as mulheres, a realidade brasileira tem se preocupado mais com a ocorrida no âmbito familiar e doméstico.
O que se objetiva com este artigo é ressaltar a gravidade do caráter oculto do femicídio, termo utilizado
para definir a forma mais extrema de violência de gênero exercida por homens contra as mulheres. O
termo femicídio foi usado pela primeira vez por Diana Russel e Jill Radford, em seu livro “The Politics
of Woman Killing”, publicado em 1992 em Nova York2. A expressão já tinha sido usada pelo Tribunal
Internacional de crimes contra as mulheres em 1976 e foi retomada nos anos 90, para ressaltar a não
acidentalidade da morte violenta de mulheres (ALMEIDA, 1998, p.1). A opção desse termo serve para
demonstrar o caráter sexista presente nestes crimes, desmistificando a aparente neutralidade subjacente
ao termo assassinato, evidenciando tratar-se de fenômeno inerente ao histórico processo de subordinação
das mulheres (GOMES, 2010).
A potencialidade lesiva inerente ao conflito doméstico é intensa, e a violência dentro de casa está refletida
em todos os relatos das suas vítimas, em matérias jornalísticas, nos casos trazidos ao Judiciário e naqueles
constantes dos registros e inquéritos policiais.
O assassinato de mulheres não é algo novo nem diferente, sempre existiu e, talvez, seja essa a questão.
A violência é resultado de um processo social, não é algo inevitável, não é algo genético que condene os
homens a serem violentos e as mulheres, vítimas.
Em termos estatísticos, o femicídio, talvez, seja o crime menos revelado nas ocorrências policiais e um
dos crimes mais subnotificados. Não se registram adequadamente as circunstâncias do crime quando este
ocorre no âmbito das relações afetivas entre companheiros/cônjuges. O homem, no entanto, na maioria
dos casos, sofre a violência na rua, nos espaços públicos, na maioria dos casos, praticado por outro homem, enquanto que a mulher sofre mais com a violência ocorrida no espaço privado, e os agressores são
(ou foram) namorados ou maridos/companheiros. Sabe-se que um grande número de agressões contra
as mulheres, no âmbito doméstico, ocorre justamente quando elas decidem pôr fim à relação ou quando
ousam manifestar seus pontos de vista contrários aos de seus maridos ou companheiros.
1
2
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – “Convenção de Belém do Pará” (1994)
Disponível em www.dianarussel.com/femicide. Acesso em 20 de outubro de 2011.
10 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
De acordo com o estudo “Mapa da Violência 2011”, realizado
pelo Instituto Sangari, entre 1998 e 2008, foram assassinadas, no País, 42 mil mulheres em um ritmo que acompanhou
o crescimento da população feminina, de forma tal que as
taxas anuais do período rondaram sempre os 4,25 homicídios
para cada 100 mil mulheres3. Outro dado importante deste estudo é o local do incidente que originou as lesões causadoras das mortes. Entre
os homens, apenas 17% dos incidentes aconteceram na residência ou habitação,
já entre as mulheres, essa proporção se eleva para perto de 40%.
Nas últimas décadas, o índice de homicídios de mulheres aumentou bastante no
País, sendo um dos maiores das Américas. O número de mulheres que foram mortas por
seus companheiros/maridos gira em torno de 10% do total de mortalidade por agressão,
fato que pode conferir importância secundária a esse evento, havendo poucos estudos
nessa área. No entanto, mesmo com frequência menor, esse crime geralmente está
relacionado à condição de gênero. O fato de um terço das mortes ter ocorrido no
domicílio reforça a ideia de que se trata de femicídio ou mortes provocadas por
parceiros íntimos, familiar ou conhecido das vítimas, ao contrário das masculinas,
que, em sua maioria, ocorrem em espaços públicos.4
A fragilidade do sistema judicial não é um problema recente, e as varas especializadas em crimes dolosos contra a vida contam com um déficit de recursos
humanos em seus quadros. Os crimes de tentativa de homicídio, ou mesmo o
homicídio contra as mulheres, não têm uma resposta rápida da justiça. A cultura machista e patriarcal enraizada na estrutura do Poder Judiciário e as falhas
nos serviços remetem à fragilidade na proteção às vítimas, acrescido ao fato de
que os processos são julgados como mais um crime de homicídio comum e sem
nenhuma perspectiva de gênero.
A questão remete às respostas dadas pelo sistema penal aos crimes de violência contra as mulheres. Se, por um lado, é comum ouvir as mulheres que sofrem violência dizer que não desejam denunciar o seu agressor, ou mesmo desistirem dos processos em andamento, o que também deve ser investigado, por
outro lado, observam-se casos em que houve negligência ou omissão frente às
mulheres que denunciaram e demandaram auxílio diante da violência sofrida.
3
4
http://www.sangari.com/mapadaviolencia. Acesso em 18 de outubro de 2011.
Femicídios: homicídios femininos no Brasil. Disponível em: www.scielo.br/rsp em 19 de outubro de 2011.
Há que se atentar para a morosidade da justiça no julgamento desses crimes como um dos fatores que
reforça a impunidade, à medida que deixa tempo suficiente de se escapar da punição; para, no caso de
homicídio, dentre as quais, a fuga do acusado; a reelaboração contínua da versão dos fatos; reconstrução
da vida familiar, convencendo o júri da falta de periculosidade e da acidentalidade do crime; e, nos casos de
tentativa de homicídio, além das estratégias anteriores, verifica-se o convencimento da vítima para depor
a favor do acusado (ALMEIDA, 1998:114). Além disso, a estratégia utilizada pela defesa é quase sempre a
de desqualificar o comportamento da vítima e minimizar o quanto possível a conduta violenta do acusado.
A Lei Maria da Penha5 representou um grande avanço no combate à violência contra a mulher, mas é apenas um mecanismo no grande processo de enfrentamento às desigualdades de gênero. É certo que a lei
representa uma resposta jurídica concreta às violências sofridas pelas mulheres, mas precisamos de outros
mecanismos de prevenção, como, por exemplo, mais investimentos da educação de gênero nas escolas, universidades, além da formação continuada dos operadores do direito, incluindo os Juízes que atuam na área.
Apesar de os homicídios contra as mulheres causarem uma grande comoção social, gerando aceitação à
punição maior, tal violência tem raízes profundas na desigualdade de gênero. A importância da categoria
gênero deve ser considerada ao analisar o assassinato de mulheres, representando uma mudança de paradigma, o que significa assumir uma posição política de desnaturalizar as mortes violentas, não as atribuindo
a fatores de natureza pessoal, restando evidente que a subordinação das mulheres em relação aos homens
ainda está muito presente na sociedade, como um dos fatores que expõe as mulheres a toda sorte de violência, que tem no femicídio a sua forma mais extrema.
A proposta deste artigo foi ressaltar a realidade oculta do femicídio, que nos permite (não) concluir, mas
apontar algumas considerações: 1) Os femicídios predominam entre os homicídios de mulheres, ou seja, a
maior causa é a violência de gênero; 2) As relações afetivas também podem ser fatais; 3) Os inquéritos e
processos judiciais por crimes de femicídio são demorados e não têm uma perspectiva de gênero; 4) Os operadores do direito, geralmente, não têm formação em gênero e direitos humanos; 5) Finalmente, o ambiente
doméstico é o espaço privilegiado onde as desigualdades são produzidas, ou seja, a casa, onde deveria ser o
local de afeto e harmonia, na verdade, é lugar de violência e opressão.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, S.S. Femicídio: algemas (in)visíveis do público-privado. Rio de Janeiro: Revinter Ltda, 1998.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kuhner. 5. Ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2007.
FROTA, M. H. P. O femicídio no Ceará: machismo e impunidade? Uma pesquisa em andamento. Disponível em: http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST11/Frota-Santos_11.pdf.
GOMES, Izabel Solyszko. Femicídio: a (mal) anunciada morte de mulheres. R. Pol. Públi. São Luis, v. 14, n. 1, p. 17-27, jan/jun. 2010.
MENEGUEL, Stela Nazareth. Hirakata, Vânia Naomi. Femicídios : homicídios femininos no Brasil. Disponível em : http://www.scielo.br/rsp.
ROMIO, Jackeline. Femicídio na Cidade. Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Disponível em: http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/
resources/anais/1278205373_ARQUIVO_femicidionacidade_Romio.pdf.
5 Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
12 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Arquivo pessoal
(*) Adriana Ramos de Mello é Juíza de Direito, titular do I Juizado de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Rio de Janeiro, Mestre
em Direito pela Universidade Cândido Mendes, Mestre em Criminologia pela
Universidade de Barcelona, na Espanha, e doutoranda pela Universidade
Autônoma de Barcelona.
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 13
CINCO ANOS DA LEI MARIA DA PENHA
Das cinzas, surge o
símbolo da luta contra
a violência doméstica
E
m 1983, a farmacêutica e bioquímica cearense Maria da Penha Maia estava dormindo, quando levou um tiro nas costas
que a deixaria tetraplégica pelo resto da vida.
O autor do disparo foi o próprio marido, o Professor universitário colombiano Marco Antonio
Herredia Viveros, condenado pela barbárie somente 20 anos mais tarde.
A punição só foi aplicada depois que a vítima
entrou com uma ação contra o Estado brasileiro
por negligência, omissão e tolerância com relação
à violência contra a mulher na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), caracterizando o primeiro relato do gênero feito ao órgão
na América Latina. O gesto de coragem culminaria num projeto de Lei elaborado por um grupo
interministerial, a partir de um anteprojeto de organizações não-governamentais. Nasceria assim,
a Lei Maria da Penha, importante instrumento de
amparo contra a violência doméstica, sancionada
pelo ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 7
de agosto de 2006.
14 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
“Essa mulher renasceu das cinzas para se
transformar em um símbolo da luta contra a violência doméstica no nosso País”, disse, na ocasião,
bastante emocionado, o então chefe da Nação,
em cerimônia que contou com a presença da própria Maria da Penha e da então Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministra Ellen Gracie.
“Foi um momento de grande emoção e satisfação
pessoal por ter atingido o meu propósito em contribuir para que uma legislação proteja as mulheres
vítimas de violência familiar”, lembrou cinco anos
depois, Maria da Penha.
Passados cinco anos desde a aplicação da norma, a pergunta que a sociedade faz é pertinente:
o que mudou desde a vigência da Lei no País? Segundo dados do Governo e da Justiça, muita coisa.
De acordo com números do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), até julho de 2010, 111 mil processos
foram sentenciados e mais de 330 mil procedimentos distribuídos sobre o assunto. E mais, nesse período, 9,7 mil prisões em flagrantes foram realizadas e
1.577 prisões preventivas de agressores decretadas.
Domingos Tadeu/ABR
Ativista Maria da Penha Maia, Ministra Ellen Gracie e o então Presidente Lula participam da sanção presidencial da Lei Maria da Penha, em 2006
E, apesar de o nível de conhecimento do conteúdo da Lei deixe a desejar por parte da população, nos últimos dois anos, 94% dos brasileiros
afirmaram já ter ouvido falar desse importante
mecanismo de combate à violência doméstica.
“A Lei mudou o tratamento legal dado aos casos
de violência doméstica no Brasil. Antes, a questão era tratada como delito de menor potencial
ofensivo. Hoje, a violência é crime, e as mulheres
estão mais confiantes em denunciar o agressor. A
legislação trouxe à luz o cotidiano de violência”,
avaliou a Ministra da Secretaria de Políticas para
as Mulheres, Iriny Lopes.
Dados do Ligue 180, central de atendimento
à Mulher criado e mantido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), registrou 734.416
atendimentos em 2010, dos quais, 108.026, relatos de violência física, psicológica, moral ou sexual. Também foram registradas 58.714 ocorrências
de lesão corporal e 15.324 de ameaças, números
que correspondem a 55% e 14,4% do total de
relatos de violência, respectivamente.
“Antes, a questão era tratada como
delito de menor potencial ofensivo.
Hoje, a violência é crime e as mulheres
estão mais confiantes em denunciar
o agressor. A legislação trouxe à luz o
cotidiano de violência”
Iriny Lopes,
Ministra da Secretaria de Políticas
para as Mulheres
A mobilização social em torno dessa triste
realidade também aumentou desde a aplicação
da Lei. Segunda pesquisa da Avon/Ipsos, feita em
2011, seis em cada 10 entrevistados afirmaram
conhecer alguma mulher vítima de agressão. Desse total, 63% afirmaram ter tomado algum tipo
de providência para ajudar.
Embora o medo de denunciar ainda seja empecilho pertinente na vida de muitas vítimas, as
estatísticas revelam um panorama positivo diante
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 15
CINCO ANOS DA LEI MARIA DA PENHA
Domingos Tadeu/ABR
Lula discursa durante a cerimônia em que sancionou a lei
da situação, tendo em vista que a confiança na
Justiça, de quem já sofreu algum tipo de violência
doméstica tem aumentado. A sociedade também
tem se mostrado mais atenta às barbáries praticadas contra o sexo frágil e, contrariando a máxima
popular de que em briga de marido e mulher ninguém mete a colher, revelando indignação diante
da questão.
Apesar de ainda ter longa jornada a ser
percorrida, o avanço diante da situação é positivo. Desembargadora do Tribunal de Justiça
do Ceará (TJCE) e Diretora da Secretaria de
Assuntos da Mulher Magistrada, da AMB, Sérgia Maria Mendonça Miranda ressaltou que,
nesses cinco anos de atuação, a Lei foi de vital importância para a mulher, revelando uma
diminuição considerável de casos, em todo o
Brasil, mas que ainda é preciso sanar algumas
lacunas. Uma delas voltadas à abrangência do
tema num país continental.
“Estamos em fase de mudanças. A submissão da mulher, no Brasil, é uma questão cultural em ebulição, mas penso que a Lei Maria da
Penha tem contribuído na medida em que criou
mecanismos processuais de proteção à mulher e
à família”, observou a Magistrada, uma das organizadoras do I Seminário Internacional de Direitos
16 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Roosewelt Pinheiro/ABR
Ministra Nilcea Freire, da Secretaria Especial de Política para as Mulheres
da Mulher, realizado no último mês de agosto,
em Juazeiro do Norte (CE). “Vê-se uma clara preocupação de todas as autoridades com o tema,
mas é claro que a situação ainda está longe do
desejado, porque as estruturas de apoio à mulher
ainda se encontram em fase embrionária, não estão disseminadas em todo o País”, advertiu.
A Ministra Iriny Lopes faz coro às observações
da Desembargadora. Segundo ela, as conquistas
foram valiosas tanto para as mulheres, quanto
para a sociedade, uma delas é o reconhecimento da gravidade da situação, mas salientou que
ainda há muito a ser feito. Defende, por exemplo, o incentivo à formação de redes de serviços
especializados no atendimento jurídico, socioeconômico, psicológico e policial. É necessário
que os Estados e Municípios façam sua parte,
criando e ampliando a rede de serviços. “O Poder Judiciário é um importante aliado na criação
dos serviços e tem estimulado vários Municípios
a criarem a rede”, diz a Ministra, que elogiou a
atuação da Magistratura nesses cinco anos de
Lei. “Na grande maioria, observa-se uma aplicação correta por parte do Judiciário Brasileiro,
que passou a entender a violência contra mulheres como um sério problema que afeta a vida das
brasileiras”, reconheceu.
Antônio Cruz/ABR
Ministra Cármen Lúcia, do STF, discute sobre prováveis alterações na lei
Superação e exemplo
Hoje, aos 66 anos, a mulher que serviu de
exemplo para todas as vítimas dessa triste realidade
no Brasil respira mais aliviada. Desde 2009 à frente
do Instituto Maria da Penha, ela mira o horizonte e,
quando olha ao redor, tem a certeza de que a situação de grande parte de mulheres, que, assim como
ela, tinha uma rotina marcada por sofrimentos e
humilhações, mudou, graças à aplicação da Lei que
leva o seu nome. “O Instituto surgiu a partir da
minha história de vida pessoal”, pontuou. “Contamos com o apoio da sociedade civil organizada
e de instituições verdadeiramente envolvidas com
seu papel de transformador social, imprescindível
para que possamos avançar”, invocou.
Mas, até por instinto de sobrevivência e aguerrido espírito de solidariedade, tem consciência de que
muita coisa ainda pode ser feita para pintar uma tela
com cores alegres na rotina de quem sofre com a violência doméstica. Líder de movimentos de defesa dos
direitos das mulheres, ela segue incansável em sua
luta por Justiça contra a violência doméstica. “Minha maior conquista foi contribuir para que, hoje, as
mulheres tenham uma Lei para ampará-las e possam
ter uma vida digna e sem medo. Para mim, o mais
importante é saber que eu participei dessa conquista
histórica”, disse, emocionada.
“A Lei Maria da Penha tem
contribuído na medida em que
criou mecanismos processuais de
proteção à mulher e à família. A Lei
só tem 5 anos, mas será aprimorada
constantemente com as mudanças
sociais. O mais importante está
ocorrendo, a vontade de mudar e
a esperança de que alcancemos os
resultados pretendidos”
Diretora da Secretaria de Assuntos da
Mulher Magistrada da AMB, Sérgia
Miranda
O Diretor da Secretaria de Direitos Humanos
da AMB, Gil Guerra, considerou a lei um avanço,
especialmente na defesa dos direitos humanos.
“A Lei Maria da Penha atende à finalidade para a
qual foi criada, e está de acordo com a evolução
da defesa dos direitos humanos no Brasil.”
O Diretor-adjunto dessa Secretaria, Eduardo
Antonio Klausner, avaliou como necessária a lei.
“Creio que a eficácia social dela é fantástica tanto na contenção da violência doméstica quanto
na contenção de crimes mais graves que acabavam sendo cometidos justamente por falta de
um freio”.
Para a Juíza Fabiana Pasqua, outra Diretora-adjunta, é importante também destacar os
cinco anos dessa norma. “É um novo conceito
no processo de mudança de paradigma e de
postura com relação à forma como tem sido
encarada a situação das mulheres e de pessoas
em situação frágil. Qualquer forma de violência
tem que ser condenada, sobretudo, aquela que
afeta as pessoas mais frágeis”, disse, ao tratar
a lei como uma evolução.
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 17
Instituto Maria da Penha/Divulgação
A cearense Maria da Penha Maia
é farmacêutica e bioquímica e
empresta seu nome à Lei que
virou instrumento de combate à
violência doméstica
18 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Entrevista:
Maria da Penha Maia
Voz contra a
violência doméstica
Aos 66 anos, a ativista feminista cearense
Maria da Penha hoje é símbolo máximo, no Brasil, da luta contra a violência doméstica. Líder de
movimentos de defesa dos direitos das mulheres, em 2006, ela conseguiria uma grande vitória
ao fazer com que sua triste experiência de vida
se transformasse na Lei 11.340, norma que leva
o seu nome. “As pessoas se identificam com a
minha história pessoal: uma mulher comum, vítima de violência doméstica como tantas outras,
mas, que teve a coragem de lutar”, disse. “Por
isso, mantenho o compromisso de não desistir
dessa luta e ver, cada vez mais pessoas e instituições, contribuindo para efetivação da Lei Maria
da Penha (MP)”, garantiu.
Sancionada, há cinco anos, pelo Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei Maria da Penha promoveu várias mudanças no combate à violência
contra a mulher, entre elas, o rigor das punições
das agressões. Mas um longo caminho ainda é
preciso ser percorrido para que a questão seja
amenizada drasticamente.
Nessa entrevista à Revista dos Direitos Humanos, da AMB, ela observou que a violência doméstica passou a ser mais reconhecida na sociedade e enfatizou que o problema ainda é uma
questão cultural. Entre as medidas que defende
para que a Lei seja mais eficiente, no futuro, estão a sensibilidade e capacitação constantes dos
profissionais que combatem a violência doméstica e familiar, além de mais empenho dos gestores
públicos na criação de serviços de amparo e proteção à mulher. “Não podemos fazer com que todos calem diante desse tipo de violência por acreditarem, erroneamente, que, em briga de marido
e mulher, ninguém mete a colher”, advertiu.
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 19
Entrevista: Maria da Penha Maia
A voz contra a violência doméstica
AMB – Na avaliação da senhora, o que
mudou nesses cinco anos de aplicação da Lei
no Judiciário?
mano à sisuda Justiça, em prol da harmonização
e pacificação, verdadeira, da sociedade.
AMB – E na sociedade?
Maria da Penha Maia – Nos municípios onde
a Lei Maria da Penha foi devidamente implementada, os resultados são positivos, isto é, a violência
contra a mulher diminuiu, a reincidência quase zerou, e, por acreditar nas instituições, as mulheres
estão denunciando mais. Devidamente implementada significa serem criadas as políticas públicas que
fazem com que a Lei MP seja aplicada, corretamente, o que tem acontecido, com raras exceções, nas
grandes cidades, geralmente as capitais.
Devidamente implementada quer dizer
também capacitação dos profissionais envolvidos a fim de que, em breve, a aplicação da
Lei, independa das interpretações pessoais de
alguns Magistrados que, baseados em sua formação e cultura machista, muitas vezes, tomam decisões equivocadas que favorecem a
impunidade, novas violências e até o assassinato da mulher vítima.
Por outro lado, a Lei 11.340/2006 trouxe,
para o seio do Poder Judiciário, o debate sobre a
violência doméstica, principalmente na otimização dos procedimentos, tanto na esfera criminal
como na cível, para se chegar, mais rapidamente,
à tutela jurisdicional almejada, de ambas as naturezas. Além disso, o contato do Magistrado (a)
com os partícipes da violência, olho no olho com
o agressor e a atenção especial às vítimas diretas
e indiretas desse mal, deu um caráter mais hu-
20 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Maria da Penha Maia – A Lei Maria da Penha
já faz parte do inconsciente coletivo. Pesquisas do
Instituto Avon e parceiros, realizadas em 2009 e
2011, revelam que 78% e 94%, respectivamente, dos entrevistados afirmaram conhecer a Lei
Maria da Penha e sabem que a violência contra
a mulher é crime. Esses dados nos fazem concluir
que o trabalho desenvolvido por pessoas, instituições e imprensa comprometidas com a causa está
atingindo o objetivo de informar e conscientizar.
Violência contra a mulher é uma questão
cultural (o álcool e as drogas são incentivadores
para que a maioria das agressões ocorra) e foi
à custa de muita luta que a mulher conquistou
cada espaço que ocupa hoje, seja na vida social,
profissional ou amorosa. Por isso, é necessário investir na mudança da mentalidade da sociedade
oriunda de uma educação machista, preconceituosa e sexista. E mudança de mentalidade é um
processo lento onde há muita resistência. É bom
refletir que a principal finalidade da Lei MP não é
a de punir os homens, mas, sim, proteger a mulher e punir o homem agressor. Daí o por quê de
não apenas as mulheres estarem buscando a sua
eficácia. São incontáveis os homens empenhados
na sua verdadeira implementação, pois, só assim,
estaremos garantindo um futuro sem violência
para as nossas descendentes.
AMB – Na opinião da senhora, como tem
sido a atuação do Poder Judiciário perante a Lei?
Maria da Penha Maia – Muitas mulheres
me escrevem ou quando me encontram se emocionam e dizem terem sido salvas pela Lei. Isso é
excelente, pois demonstra que, nesses casos, o
Poder Judiciário foi ágil e se mostrou comprometido com a causa.
Infelizmente, em algumas situações, ele tem
atuado muito a desejar. Sem mencionar os casos
que terminaram em assassinatos e tiveram destaque na imprensa. Chegam ao nosso conhecimento os diversos tipos de condutas benevolentes
onde os operadores tentam convencer a mulher a
dar mais uma oportunidade ao agressor.
Salvo raríssimas exceções; quando a mulher vai
a uma delegacia, há muito, ela já sofreu vários tipos
de violência, mas, por falta de informação, só se considera vítima quando é machucada fisicamente ou
quando suas crianças passam a ser agredidas. Antes
disso, porém, os tipos de violência que não lhe deixaram marcas no corpo, já a motivou a buscar na
religião o seu consolo, ou a fez seguir orientações de
amigas e de familiares, etc, etc, porém, sem êxito.
Ora, se já é devidamente comprovado que a
violência doméstica obedece a um ciclo, que, se não
for interrompido, pode ocasionar o assassinato da
mulher, é importante que, no momento em que ela
decida denunciar, o Estado não a frustre e cumpra
o seu papel de punir a quem cometeu um crime
e acolher a quem precisa ser acolhida. Se o casal
deseja se reconciliar, que o faça por conta própria.
AMB – Como a senhora avalia a posição
do Estado, do poder público diante da situação? As políticas públicas que amparam a Lei
têm capilaridade, ou seja, atende às demandas de todo o País?
Maria da Penha Maia – Infelizmente, de
forma plena, ainda não, porém, os organismos
de políticas para as mulheres, através da rede de
atenção às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, têm monitorado e buscado soluções
para esse tipo de deficiência.
A própria Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, através da sua
Ouvidoria, tem disponível o telefone 180, que
funciona, ininterruptamente, 24 horas, todos os
dias da semana, para informar onde as vítimas
podem buscar ajuda e também receber denúncias sobre a má aplicação da lei.
Os 27 entes federados aderiram ao Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a
Mulher, e existem 24 organismos estaduais de
políticas para as mulheres.
AMB – A abordagem do tema nos grandes centros urbanos ainda é diferenciada das
pequenas cidades?
Maria da Penha Maia – Infelizmente, sim,
sabemos que, quanto maior a distância dos grandes centros urbanos, menor é o acesso à informação. E o grande desafio é municipalizar a Lei
11.340/2006, enfocando a visão de gênero.
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 21
Entrevista: Maria da Penha Maia
A voz contra a violência doméstica
AMB – Na opinião da senhora, o que falta
para a Lei ser completamente eficiente?
Maria da Penha Maia – Seria importante que
as ações pelo enfrentamento à violência contra a mulher fossem mais rápidas, pois, são vidas humanas que
estão em perigo.
Sensibilização do gestor público para que crie
em seus municípios as estruturas que atendem à
Lei: Centro de Referência, Delegacia da Mulher,
Casa Abrigo e Juizado de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher. No Estado do Ceará,
por exemplo, existe uma lei que determina que,
nos municípios com mais de 60 mil habitantes,
deveria ser criada uma delegacia da mulher. Infelizmente, essa lei não é cumprida em Fortaleza,
uma cidade com mais de 2,5 milhões de habitantes, possui apenas uma Delegacia da mulher.
Sensibilização e capacitação constantes dos
profissionais que atuam no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher para que os autores de crime de violência doméstica sejam punidos.
Responsabilização e ressocialização dos autores
de crime de violência doméstica (seja de natureza
leve ou não) com a punição, e não apenas aconselhado ou encaminhado para tratamentos terapêuticos.
Ainda existe muito preconceito, desconhecimento e até mesmo insensibilidades por parte de
alguns profissionais que insistem em não aplicar a
lei como deveria. A lei não criou uma situação nova,
a violência sempre existiu e, por muitos anos, foi
tratada como crime de menor potencial ofensivo,
22 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
como um crime de menor importância, tratado nos
Juizados Especiais Criminais. E o que acontecia? Um
sentimento generalizado de impunidade.
Muitas mulheres foram mortas nesse período,
muitas desistiam do processo, porque, no final,
elas viam os agressores prestando serviços à comunidade e, muitas vezes, elas é que pagavam a
pena pecuniária aplicada. Muitas delas narraram
o deboche dos agressores com esse tipo de pena.
E ainda há quem diga que a Lei Maria da Penha
é muito severa com os agressores, mas, ninguém
se lembra da luta histórica das mulheres contra a
violência de gênero, ninguém se lembra da dificuldade em provar a violência doméstica em razão da cultura machista que banaliza esse tipo de
violência e faz com que todos se calem por acreditar, erroneamente, que, em briga de marido e
mulher, ninguém mete a colher.
AMB – A Lei Maria da Penha foi sancionada em 2006, numa cerimônia que contou
com a presença do ex-Presidente Lula e da
ex-Ministra Ellen Gracie. Naquele momento,
o que passou pela cabeça da senhora?
Maria da Penha Maia – Uma grande emoção
por estar nas suas presenças: uma satisfação pessoal por ter conseguido contribuir para que uma
legislação protetiva às mulheres vítimas de violência familiar se tornasse realidade e agradecida por
ter tido a oportunidade de estar presente no solene
momento da sanção da Lei federal 11.340/2006.
Ao mesmo tempo, um sentimento de responsabilidade muito grande junto com o meu propósito
de contribuir para a divulgação desse importante
instrumento jurídico brasileiro, onde for necessário.
AMB – A senhora tem dimensão da importância que tem para causa, que sua luta
é um exemplo, a luta de várias mulheres que
passaram o que a senhora passou?
Maria da Penha Maia – Sim. As pessoas se
identificam com a minha história pessoal: uma mulher comum, vítima de violência doméstica como
tantas outras, mas, que teve a coragem de lutar por
mais de 19 anos para ver o seu agressor ser punido pelo crime que a deixou paraplégica. Essa punição ocorreu, por conta de pressões internacionais,
quando faltavam seis meses para o crime prescrever.
Essa persistência encoraja as pessoas, e eu tenho a consciência da importância do meu caso,
da minha luta na vida das mulheres e que a minha
voz é a voz de milhares de mulheres que sofreram
e ainda sofrem, caladas, a dor da violência.
Por isso, mantenho o compromisso de não
desistir dessa luta e ver, cada vez mais, pessoas e
instituições contribuindo para efetivação da Lei.
AMB – A novela Fina Estampa está abordando o tema da violência doméstica. Isso é uma
prova de que a sociedade está atenta à questão?
Maria da Penha Maia – É muito importante
que as situações que retratam a realidade de mui-
tos lares brasileiros, como é o caso da violência
doméstica, possam, de maneira responsável, serem
colocadas no horário de grande audiência da televisão, desde que, com um desfecho adequado, a
fim de que a população que se identifica com a
personagem continue se conscientizando e se encorajando a romper o ciclo de violência doméstica
e a denunciar os agressores. É preciso que, nesses
espaços, seja dada visibilidade ao que existe para
ajudar a mulher vítima (ligação gratuita nº 180 – delegacia da mulher – centro de referência, núcleo da
promotoria, núcleo da defensoria, juizado da violência contra a mulher, casa abrigo, etc).
Penso que, no momento em que um tema de
tamanha gravidade e muito presente na sociedade é
abordado, é obrigação do mesmo veículo de comunicação apontar a solução. Caso não ocorram os esclarecimentos necessários, esse veículo deveria ser penalizado.
AMB – Há quanto tempo, o Instituto Maria da Penha funciona?
Maria da Penha Maia – A Lei que leva o meu
nome veio resgatar a dignidade da mulher brasileira e, com esta mesma missão, foi criado o Instituto Maria da Penha, com o objetivo de identificar as
demandas, contribuir e efetivar ações estratégicas de
consolidação da lei 11.340/06 - Lei Maria da Penha,
estabelecendo critérios que reforcem a proposta da
lei em inibir, punir e erradicar toda e qualquer violência praticada contra a mulher; garantindo desse
modo, o respeito, a dignidade, o direito e a justiça à
mulher e à família.
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 23
CINCO ANOS DA LEI MARIA DA PENHA
Lei Maria da Penha – “cria
mecanismos para coibir
a violência doméstica e
familiar contra a mulher,
nos termos do § 8 do
art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção
sobre a Eliminação de
Todas as Formas de
Discriminação contra as
Mulheres e da Convenção
Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a
Mulher; dispõe sobre a
criação dos Juizados de
Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher;
altera o Código de
Processo Penal, o Código
Penal e a Lei de Execução
Penal; e dá outras
providências”. Para mais informações acessar:
www.institutomariadapenha.org.br
Contato: [email protected]
24 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
A violência
pública e privada
Iriny Lopes*
A violência, quando evidenciada em espaços coletivos, é algo
que causa comoção social. A sua visibilidade se dá pelo impacto e pela surpresa perversa que um indivíduo causa em
ambientes públicos. Para ficar apenas em dois casos ocorridos
neste ano, ainda está na memória de todos nós a tragédia na
Noruega, que culminou com a morte de mais de 90 pessoas, e
o massacre da escola de Realengo, no Rio de Janeiro, quando
um jovem assassinou 12 estudantes e deixou mais 13 feridos.
Para além do fenômeno drástico de um ato isolado, é interessante refletir como a sociedade, ao evitar enxergar e ouvir
o drama que se desenha, colabora para o desfecho extremo de
casos como esses. Não se trata de
justificar o ato violento, mas de
ir além da perplexidade inicial
e construir coletivamente comportamentos que evitem tragédias anunciadas. Afinal, nos dois
episódios se coloca um ingrediente de formação cultural
violenta.
No caso de Realengo, a escolha das vítimas
em potencial (dez meninas e dois garotos) evidenciou um
ódio às mulheres. No da Noruega, um comportamento xenófobo, racista, de aversão a estrangeiros.
Nos dois dramas, os protagonistas elaboraram e produziram seus
planos macabros dentro de casa, lugar que se considera privativo. Às
comunidades próximas, aos parentes e vizinhos dos homicidas fica
depois a culpa e a pergunta: “E se eu tivesse estranhado o comportamento, observado os sinais de agressividade, teria conseguido
mudar o final dessa história?”
O problema dessa percepção é que as pessoas ficam no “se”,
no pronome pessoal conjugado no modo condicional imediato
e não utilizam a própria experiência para alterar o processo de
construção ideológica (porque se trata de uma ideia, de uma
formulação) que levou àquela tragédia anunciada.
A violência contra a mulher reúne esses mesmos ingredientes formadores de
homens agressivos, mas sofre de compreensão ainda maior, porque ocorre
invariavelmente no espaço privado. O erro dessa lógica se localiza no fato de
ela extrapolar o ambiente familiar e condenar gerações inteiras a um aprendizado de desigualdade de tratamento entre homens e mulheres e de corporificar, como bem lembrou a antropóloga Débora Diniz, em um artigo sobre o
caso do goleiro Bruno, “uma ordem social perversa”.
Para a antropóloga, “a vida privada não é um espaço sacralizado e distante
das regras de civilidade e justiça. O Estado tem o direito e o dever de atuar
para garantir a igualdade entre homens e mulheres, seja na casa ou na rua”.
Há cinco anos, no dia 7 de agosto de 2006, quando da sanção da Lei Maria
da Penha, foi deflagrada uma ação de “visibilização” do problema que afeta
milhões de brasileiras e seus filhos e filhas, já que, de acordo com dados do
Ligue 180, 65% das crianças e adolescentes assistem diariamente suas mães
serem agredidas por seus companheiros, ou namorados (74%), e há mais de
10 anos (40%).
As ruas já sabem que a Lei 11.340/06, chamada de Maria da Penha, serve
para punir agressores de mulheres. Pesquisa realizada pela Avon/Ipsos (2011)
revela que “94% dos brasileiros já a conhecem”, mas poucos (13%) sabem
que a legislação vai além da punição e, talvez por isso mesmo, seja considerada pela ONU como uma das três melhores do mundo nessa área.
A Lei Maria da Penha tem a complexidade que o tema exige. Aborda as medidas preventivas, determina responsabilidades para governos e Poder Judiciário, estabelece o funcionamento da rede de atendimento a vítimas e a
punição de agressores. Desde sua implantação, mais de 70 mil mulheres
obtiveram na Justiça medidas protetivas para sair da situação de risco.
Romper o ciclo vicioso da violência urbana também requer um olhar para
dentro das casas, onde milhões de brasileiras sofrem espancamentos, humilhações morais, psicológicas e não raramente acabam mortas pelos maridos, companheiros, ou namorados. Significa sair da condicionalidade imediata do “se...” e alterar comportamentos, formação escolar e atitude social,
não compactuar mais com a dor, que não é alheia. Ela é o reflexo da nossa
mais profunda omissão coletiva.
26 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Faquini Produções
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 27
Stock.xhgcn
FALTA DE AMPARO
28 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Dependência financeira
e medo da morte
inibem denúncias
A
ssim como todo e qualquer tipo de transgressão, a violência contra a mulher fere
os princípios básicos dos diretos humanos, privando a vítima de elementos essenciais
que ajudam a formar sua dignidade, como o
privilégio à saúde, à integridade física e, sobretudo, à vida. Há cinco anos em atividade, a Lei
da Maria da Penha é um importante instrumento
de proteção a tais prerrogativas. Mas, como toda
norma, não tem o poder de transpor as barreiras
do abstrato, como o medo quase institucional de
algumas vítimas em denunciar seus algozes.
Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto Avon/Ipsos, entre os dias 31 de janeiro e 10 de
fevereiro de 2011, com quase duas mil entrevistadas das cinco regiões brasileiras, a dependência financeira e o medo da morte estão entre os
principais motivos de permanência numa relação
violenta. Para 25% das entrevistadas, a maior
preocupação ao denunciar o companheiro agressor está na falta de condições econômicas para se
sustentar. Já 20% das mulheres abordadas afir-
“O medo, nas suas mais diversas
expressões, é o que mais as
paralisa.Tudo isso fica mais
complexo para as mulheres de
baixa renda e pouca escolaridade”
Lenira Politano,
Psicóloga do Departamento
de Saúde de São Paulo
maram que o medo maior diante da situação é
não ter como criar os filhos após a denúncia.
Para a Psicóloga do Departamento de Saúde
do Servidor Municipal de São Paulo, Lenira Politano da Söveira, uma das profissionais especializada no tema citado pela pesquisa, o fantasma
da dependência, seja ele emocional e, sobretudo
material, é um dos entraves das denúncias. “O
medo, nas suas mais diversas expressões, é o que
mais as paralisa”, detectou a psicóloga. “Tudo
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 29
FALTA DE AMPARO
Elza Fiúza/ABR
Representantes do Governo e da sociedade civil debatem
isso fica mais complexo para as mulheres de baixa
renda e pouca escolaridade”, acentuou.
Outro especialista no assunto, o Juiz titular de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de
Mossoró (RN), e Coordenador da Coordenadoria
Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar, Renato Vasconcelos Magalhães,
debate a questão. O Magistrado elogiou o compromisso com a valorização da dignidade assumido pela Lei Maria da Penha, mas destacou que
é preciso criar mecanismos reais de proteção da
mulher que garantam sua integridade física, emocional e econômica. Citou exemplo bem simples.
“Como denunciar o companheiro que é responsável pelo aluguel da casa onde residem, se o
mesmo, preso, ou afastado do lar, não terá como
arcar com as despesas do domicílio? Se o Estado não garantir, além da proteção física da vítima
mulher, a sua segurança econômica, ainda que
temporária, a alternativa que se coloca a ela é ter
que suportar essa situação de violência”, advertiu
o Juiz, que destaca outros fatores inibidores de
denúncia como, por exemplo, o distanciamento
mínimo das vítimas de seus agressores.
Segundo Renato Magalhães, a única alternativa para a solução do problema seria a proteção
integral à vítima por parte do Poder Judiciário.
“Provendo-a de mecanismos que garantam uma
real proteção contra o seu agressor, como a inclu-
30 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Marcello Casal Jr./ABR
Ato Público incentiva denúncias contra agressões
são em programas para vítimas”, defendeu.
Outros dados que chamaram a atenção na pesquisa é o fato de 17% das mulheres citarem o medo
de serem assassinadas por seus companheiros como
motivo de continuarem numa relação violenta e o
reconhecimento da violência psicológica por parte
de 62% das entrevistadas. Hostilidades como agressões verbais, humilhações, ciúmes, falta de respeito
e ameaças configuram, para grande parte das vítimas, uma forma de violência doméstica.
O Juiz não acredita no papel milagroso das
leis na transformação da sociedade. Mas enfatizou que o amplo conhecimento entre a população da Lei Maria da Penha é fator determinante
no combate à luta contra a violência doméstica. E
garantiu que a Magistratura brasileira está fazendo a sua parte na construção de uma nova realidade de proteção à mulher, seja através de fórum
de debates e discussões sobre a situação da mulher ou por meio de campanhas educadoras.
“O protagonismo da Magistratura em temas
de relevo social é patente nos últimos anos e não
somente no que diz respeito à proteção da mulher”, pontuou. “Operou-se uma grande transformação na Magistratura brasileira, com o Juiz
aprendendo que neutralidade não é sinônimo
de passividade, e passando atuar ativamente na
efetivação das garantias constitucionais e, dentre
elas, a de proteção da dignidade da mulher”.
O que dizem as pesquisas
As duas principais razões para uma mulher permanecer
numa relação violenta, apontadas por 2 mil
entrevistadas, são: falta de condições econômicas para
se sustentar (27%) e falta de condições para criar
os filhos (20%).
17% das mulheres citam o medo de ser
morta como principal razão para continuar
numa relação abusiva.
Entre os diversos tipos de violência doméstica sofridos
pela mulher, 80% das entrevistadas citaram
violência física, como: empurrões, tapas, socos e,
em menor caso (3%), até a morte.
Já 62% das entrevistadas reconhecem agressões
verbais, xingamentos, humilhação, ameaças e outras
formas de violência psicológica como violência
doméstica.
Violência moral (6%) e violência sexual (6%)
também foram apontadas pelas entrevistadas.
FONTES: Data Senado e Avon/Ipsos
Pesquisa realizada entre os dias 31 de janeiro e 10 de fevereiro de 2011
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 31
DENTRO DE CASA
Lado a lado com o agressor
O perfil dos agressores e das vítimas
e as principais causas do crime
Alto, elegante e completamente insuspeito,
o ator Alexandre Nero, da Rede Globo, nem de
longe lembraria um tipo que, infelizmente, faz
parte da sociedade brasileira: a dos agressores de
violência doméstica. O personagem que o galã
encarna na novela Fina Estampa, exibida no horário nobre da emissora carioca desde o fim de
agosto, ao longo de três meses, no entanto, tem
dado rosto e gestos a um inimigo que, na maioria
dos casos, dorme do lado de suas vítimas: a do
agressor de violência doméstica.
Dados de pesquisa realizada em fevereiro de
2011, pelo instituto DataSenado, revelam que 80%
dos agressores de violência contra a mulher, se não
estão dentro da própria casa das vítimas, como os
próprios maridos, no mínimo, são frequentadores
ou alguém bem próximo das vítimas.
“As relações sociais de gênero estão profundamente marcadas por um desnivelamento de poder”,
comentou o Juiz titular de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher de Mossoró (RN) e Coordenador da Coordenadoria Estadual da Mulher em
Situação de violência Doméstica e Familiar, Renato
Vasconcelos Magalhães. “Estruturado a partir da
noção de que o masculino é superior ao feminino,
a ordem de gênero possibilita, tendo o poder como
eixo central, a submissão da mulher, violentada não
apenas simbolicamente, com a sua exclusão dos
processos decisórios, mas como objeto de realização e confirmação de poder”, aprofundou.
Números revelados pela central de atendimento
à mulher mantido pela Secretaria de Políticas para
as Mulheres, do Governo Federal, o Ligue 180, revelam que o perfil das vítimas e dos agressores são
32 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Celeste (Dira Paes) é agredida pelo marido Baltazar (Alexandre Nero) em cena da novela
bem parecidos. Registradas no primeiro semestre de
2010, as denúncias mostram que 73,4% dos agressores têm entre 20 e 45 anos, dos quais, 55,3%,
com nível fundamental de escolaridade. Já 67,35%
das vítimas que acionaram o serviço de denúncia
Divulgação/TV Globo
‘Fina Estampa’
tinham entre 25 e 50 anos, das quais, 48,3%, com
nível fundamental de escolaridade.
Já os números de pesquisa realizada pelo Instituto Avon/Ipsos apontam como principais causas
de contribuição para a violência o machismo (46%),
seguido do alcoolismo (31%). Baltazar, o personagem vivido pelo ator Alexandre Nero, na novela Fina
estampa, está longe de ser um bebum agressivo,
mas seu ciúme doentio da mulher e da filha são resquícios de uma mentalidade machista que vê imoralidade em alguns procedimentos femininos.
Para o Juiz Renato Magalhães, os números
são reflexos de uma herança patriarcal que ainda permeia a sociedade brasileira. “O machismo,
em si mesmo, é uma violência. Em sociedades patriarcais como a nossa, a diferença biológica entre
homens e mulheres é utilizada como justificativa
para tratamentos diferenciados, discriminatórios”, constatou.
Símbolo da violência contra a mulher, a biofarmacêutica Maria da Penha, vítima de agressões e
cujos dramas pessoais inspiraram a Lei que leva seu
nome, concordou com o Juiz. “A Lei não veio para
punir os homens, ela veio punir o homem agressor
que não sabe respeitar a mulher como pessoa humana”, endossou.
Desde 2009, à frente do Instituto Maria da
Penha, ela vê com bons olhos o debate promovido com a sociedade. Salienta que, por ser um
veículo de grande poder de comunicação, a televisão, assim como outras mídias, devem tratar
o tema, cada vez mais, com maior seriedade. “É
bom darmos abertura para este debate na televisão em horário nobre, mas não podemos esquecer que também é uma grande responsabilidade,
pois este espaço tem que ser utilizado para passar
informações sérias e consistentes sobre como a
mulher pode romper com o ciclo da violência”,
observou. “Acho que a televisão tem obrigação
de mostrar que, hoje, a mulher tem direitos. A
violência contra a mulher é um mal que assola a
nossa sociedade, portanto é muito pertinente sua
abordagem na mídia”, defendeu.
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 33
Cenário internacional
fomentou avanços internos
Mônica Barroso*
Após a Segunda Guerra Mundial, constatadas as atrocidades perpetradas contra
a dignidade das pessoas, os Países aliados resgataram o antigo projeto da Liga
das Nações e criaram a Organização das Nações Unidas – ONU, cujo documento
constitutivo é a Carta das Nações Unidas, que traz em si os propósitos da ONU,
que são: manter a paz e segurança internacionais, desenvolver relações amistosas entre as nações, conseguir uma cooperação internacional para resolver
problemas internacionais, promover e estimular o respeito aos direitos humanos,
e ser o centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução
desses objetivos comuns.
A Carta afirma que os povos estão dispostos “a reafirmar a fé nos direitos fundamentais dos homens, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de
direitos em homens e mulheres e das nações grandes e pequenas”.
A partir de então, dá-se nova dimensão e maior respeito aos direitos humanos que
se definem em um postulado fundamental: todas as pessoas são iguais em direitos
pela simples condição de que são pessoas.
Oportuno registrar que uma das primeiras comissões criadas pela ONU foi a Comissão de Direitos Humanos. Fruto dos seus trabalhos foi a Declaração Universal de
Direitos Humanos, que data de 1948 e que até hoje serve de esteio para legislações
e ações dos Estados Membros.
Registre-se que, em 1948, acontece a criação da OEA, na 9° Conferência Internacional Americana, realizada na cidade de Bogotá, da qual participaram 21 Países
americanos, tendo como escopo readequar o Sistema Interamericano à criação
da ONU. Nessa mesma oportunidade, os Países membros da OEA acordaram
em conceder às mulheres os mesmos direitos civis que eram assegurados aos
homens, por meio da Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos
Civis às Mulheres.
A ONU utiliza as chamadas Conferências Internacionais para coletar informações
dos Estados Membros e elaborar diretrizes sobre os assuntos que lhe dizem respeito,
das quais sempre saem documentos que contêm os compromissos assumidos pelos
governos e que servirão de diretrizes para as ações e plataformas de ações, como
uma proposta de agenda para os Estados Membros.
Os Tratados e Convenções, ao serem ratificados pelos Estados, têm força vinculante
e normativa em relação a suas políticas.
34 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Surge, então, ainda em 1948, as duas declarações de direitos humanos, tanto da ONU, como da OEA,
que reconhecem formalmente que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.1
Em todo o mundo, as mulheres têm prestado significativa ajuda na luta em prol dos direitos humanos,
seja por meio da contribuição teórica e acadêmica do feminismo, que revaloriza a diferença sexual e a
formulação da perspectiva de gênero, seja pela contribuição teórica - prática que vêm das diferentes
experiências de Movimento Mundial de Mulheres.
Uma das importantes iniciativas da Assembléia Geral das Nações Unidas, com relação aos direitos
humanos das mulheres, foi a proclamação do Ano Internacional da Mulher e a realização da Primeira
Conferência Mundial de Mulheres, na Cidade do México, em 1975. Em seguida, foi proclamada a
década da mulher: 1975-1985.
Durante essa década, realizaram-se estudos, pesquisas e formulações teóricas sobre a situação das
mulheres ao redor do mundo, dando ênfase à luta pela igualdade de oportunidade para as mulheres
nos processos de desenvolvimento.
Em 1980, aconteceu a Segunda Conferência, em Copenhague, que avaliou o Plano elaborado na
primeira conferência, observando que a luta das mulheres é ampliada para uma igualdade de oportunidades e responsabilidades que favoreçam o desenvolvimento e a participação da mulher em todas
as suas atividades: de mãe, de trabalhadora e de cidadã. Alem disso, incorporou a preocupação por
diferentes matérias de inserção das mulheres, como emprego, saúde e educação.
A Terceira Conferência aconteceu em 1985, em Nairobi, no Quênia, na qual
foi feita a avaliação dos resultados da Década das Nações Unidas para
a Mulher.
Foi, no entanto, na Conferência de Direitos Humanos, que aconteceu
em Viena, Áustria, em 1993, que resultou um
Programa de Ação, no qual consta:
“os direitos humanos da mulher e
da menina são parte inalienável,
integrante e indivisível dos direitos humanos e universais”.
Finalmente, a Quarta Conferência,
aconteceu em Pequim, em 1994, da qual
resultou uma Plataforma de Ação, que, a
1 Declaração Universal dos Direitos da Pessoa
Humana (ONU), e o Pacto de San José (OEA).
partir de estudos feitos em relação à pobreza, desemprego, meio ambiente, violência e exclusão
das mulheres, afirma a necessidade de se persistir num modelo de desenvolvimento centrado
nas pessoas, e não nos bens.
A par disso, desde o primeiro momento, as mulheres se articularam e passaram a pressionar
tanto a ONU, como a OEA para que fossem elaborados documentos na defesa de seus direitos,
principalmente aqueles referentes à violência, uma vez que esta era e ainda é o problema mais
grave e o mais banalizado no mundo inteiro.
Em 1979, a ONU aprova, então, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, mais conhecida por CEDAW (suas iniciais em inglês), que, de maneira
ampla, cuida da discriminação contra a mulher em todos os campos: trabalho, saúde, violência,
etc., e proclama que a discriminação contra a mulher é “fundamentalmente injusta e constitui
uma ofensa à dignidade humana” (art. 1°).
Apenas em 1984, o Brasil ratificou a CEDAW e, ainda, com algumas reservas levantadas a posteriori (1994). A ONU criou o Comitê sobre a Eliminação, composto por peritos eleitos pelos
Estados-Partes, para monitorar a implementação da Convenção, devendo estes, apresentar relatórios a cada quatro anos.
Em junho de 1994, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará é adotada pela Assembleia Geral da Organização
dos Estados Americanos - OEA, ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995 e promulgada
pelo Decreto 1.973, de 1° de outubro de 1996. Esta Convenção define a violência contra a mulher e estabelece sua dimensão: “[...] entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato
ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (Artigo 1°).
Sob os eflúvios dessa luta no cenário internacional, uma denúncia feita pela cearense Maria da Penha Fernandes Maia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, da
violência por ela sofrida não só do marido, como também do Estado brasileiro na apuração
dos fatos e responsabilização do agressor, redundou em várias recomendações daquela
instituição.
Dentre elas, a de que fosse regulamentado o art. 226, 8° da Constituição Federal. Surge, daí a
Lei 11.340/06, entre nós conhecida como Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher.
Para quem trabalha no atendimento de mulheres vítimas desta cruel forma de violência, tem
sido um alento, poder dispor, p.e., das medidas protetivas de urgência. O deferimento dessas
medidas tem salvado milhares de vidas diariamente no País. E a luta continua.
36 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Arquivo pessoal
(*) Mônica Barroso é Defensora Pública no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Professora de Direitos Humanos
e Fundamentais da Faculdade Christus e Coordenadora Estadual de Políticas Públicas para as Mulheres do Governo
do Estado do Ceará.
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 37
ATENTADO À DEMOCRACIA
21 tiros desafiam o
Estado e tiram a vida da
Juíza Patrícia Acioli
E
ram 23 horas do dia 11 de agosto de 2011,
quando a Juíza Patrícia Lourival Acioli cumpria mais um ritual após a intensa rotina
de trabalho no Fórum de São Gonçalo (na Região
Metropolitana do Rio de Janeiro): o retorno ao lar.
O que, de fato, não aconteceu dessa vez, já que
a Magistrada foi brutalmente assassinada com 21
tiros à queima-roupa, na porta de sua casa, na
vizinha Niterói.
Os disparos foram feitos por homens em duas
motos e dois carros. Foram disparados mais de 20
tiros de pistolas calibres 40 e 45, sendo oito diretamente no vidro do motorista. O crime chocou
não apenas a Magistratura do País, mas a toda a
sociedade brasileira. Ela foi vítima da violência de
gênero e de um atentado à democracia: morreu
por ser mulher, estava só e representava o Estado
no combate ao crime organizado.
Desde 1999 atuando na 4ª Vara Criminal
de São Gonçalo, a Juíza estava em uma lista de
doze pessoas marcadas para morrer pelo crime
38 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
organizado. De acordo com fontes da polícia,
nos últimos dez anos, a Juíza foi responsável pela
prisão de cerca de 60 policiais ligados a milícias
e a grupos de extermínio. Entre os alvos investigados por ela, estavam quadrilhas que agiam
na adulteração de combustíveis e no transporte
clandestino, entre outros crimes. Em setembro
do ano passado, seis suspeitos, entre eles quatro policiais militares, foram presos. Segundo as
investigações, todos faziam parte de um grupo
envolvido no assassinato de 11 pessoas em São
Gonçalo. A Juíza Patrícia Acioli foi quem expediu
os mandados de prisão.
A Magistrada entrou para o Poder Judiciário em 1992 e tinha estilo implacável que
intimidava os traficantes de drogas, gangues
e policiais corruptos. Há pelo menos 13 anos,
ela vinha sendo ameaçada. Investigações
apontam que a ordem para o crime teria sido
do tenente-coronel Cláudio Oliveira, que foi
comandante do Batalhão da PM de São Gon-
Fotos: ASCOM/AMB
O Presidente da AMB, Nelson Calandra, observa o carro no qual a Juíza Patrícia Acioli foi friamente assassinada com 21 tiros
çalo, Comarca onde Patrícia atuava como Juíza
criminal. Ele e mais 10 policiais estão detidos,
acusados pelo crime.
Além de chocar o País, o covarde assassinato
serviu também de alerta para as autoridades brasileiras, que passaram a olhar com mais critério
para um problema que, há tempos, vem afligindo
a categoria e que, desde o início da atual gestão,
a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
tem defendido a adoção de uma política de segurança para os Juízes.
Poucas horas depois do bárbaro ato, o Presidente da AMB, Nelson Calandra, recorreu, por
meio de ofício, ao Ministério da Justiça, Polícia Federal e ao Governador do Rio de Janeiro apelando pela adoção de uma força-tarefa para apurar
e investigar as causas do crime e punir, exemplarmente, os responsáveis.
“Quando um Juiz sofre um ataque é também um atentado ao Estado, à democracia e à
sociedade brasileira”, reagiu ele, com indignação.
“Quando um Juiz sofre um
ataque é também um atentado
ao Estado, à democracia e à
sociedade brasileira. Não vamos
nos intimidar”
Nelson Calandra,
Presidente da AMB
“Não descansaremos enquanto não forem presos os responsáveis dessa atrocidade e apurada a
autoria. Queremos uma resposta rápida, enérgica
e exemplar”, pontuou ele, à época, reafirmando
que Patrícia Acioli sempre agiu com independência, serenidade e firmeza, tendo prestado relevantes serviços à Justiça e ao País.
Calandra disse ainda, em seu pronunciamento,
que já estava na hora de dar um “basta” às intimidações que vêm sendo direcionadas aos Magistra-
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 39
ATENTADO À DEMOCRACIA
Calandra pede ao Governador Sérgio Cabral apuração rigorosa
Diretores da AMB participam de missa de 7º dia no Rio
dos do País e conclamou as autoridades brasileiras
e a sociedade organizada a reagirem contra esse
tipo de ataque à independência dos Juízes, ao Estado e à Democracia.
Lembrou ainda que, desde o dia em que tomou
posse, em dezembro passado, vem defendendo e
feito gestões junto aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, pela formulação de uma política
nacional de segurança para os Magistrados.
De acordo com a Vice-Presidente de Direitos
Humanos da AMB, Renata Gil, a morte de Patrícia
Acioli deixou um vazio na Magistratura fluminense
e nacional. “A Magistratura não se intimidará com
ameaças do crime organizado”, reagiu Renata Gil,
que também é Juíza criminal e titular da 40ª Vara
Criminal do Rio.
Segundo ela, é inadiável a adoção de uma política de segurança para a Magistratura e os fóruns.
Afinal, por que as falhas na segurança de Juízes no
Brasil ainda persistem? Para a Juíza Adriana Ramos,
titular do I Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, do Rio de Janeiro, é preciso
rever os mecanismos de proteção ao Magistrado.
“A segurança dos Juízes, no Brasil, ainda é bastante
precária, sobretudo, nos fóruns regionais, que sofrem uma carência muito grande desses serviços. É
preciso avaliar e estudar mais a questão”, advertiu.
Indignações à parte, o fato é que os números
são alarmantes. Levantamento feito pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) revela que, atualmente,
134 Juízes, no Brasil, são ameaçados de morte. Dois
quais, 43 são mulheres. Os dados foram repassados
pelos Tribunais.
Uma semana depois após a tragédia, no dia 18
de agosto, a Diretoria da AMB, em parceria com a
Associação dos Magistrados do Estado do Rio de
Janeiro (Amaerj), promoveu um emocionante ato
público, no Centro do Rio, em homenagem à Juíza
Patrícia Acioli. Dezenas de Magistrados se reuniram
em frente ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
(TJRJ) para homenageá-la.
Os Presidentes da AMB, Nelson Calandra, e
Antonio Siqueira, da Amaerj, comandaram a
manifestação que mobilizou lideranças da Magistratura e todas as associações representativas do Judiciário no âmbito estadual e federal,
entidades representativas do Ministério Público, Defensoria Pública, Procuradorias e funcionários do Tribunal.
Concentrados na entrada do Fórum fluminense, os Magistrados fizeram um minuto de silêncio
pela memória de Patrícia Acioli. Trajando uma fita
preta nas vestimentas, que simbolizava o luto, todos os participantes aplaudiram a Juíza que tinha
uma atuação dedicada e destacada contra o crime organizado no Rio de Janeiro. 40 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Calandra se solidariza com familiares de Patrícia Acioli
Em seguida, os Magistrados se deram os braços e caminharam em volta do Fórum para simbolizar a união de todos pelo fim da violência e
para clamar por mais segurança para a classe.
“A Magistratura está de luto hoje. A vida da Patrícia
Acioli, nossa colega Juíza, será o começo, uma marca para encontrarmos soluções, mais do que para a
Magistratura, para o povo do Brasil”, pontuou Calandra. “O ato foi uma demonstração de unidade
e de força da Magistratura fluminense e nacional.
Não vamos nos intimidar”, reforçou o Diretor da Secretaria de Prerrogativas da AMB, Claudio Dell’Orto.
Na véspera, o Presidente Nelson Calandra
havia participado, ao lado dos familiares, amigos e Magistrados, da missa de 7º dia pela morte da Juíza Patrícia Acioli na Capela do Colégio
São Vicente, em Niterói. A cerimônia emocionou a todos, especialmente quando o ex-cunhado e Defensor Público
José Augusto Garcia destacou a trajetória e a dedicação da Juíza assassinada em defesa da Justiça
e dos direitos humanos.
Após a missa, Calandra prestou solidariedade
aos familiares e conversou, pessoalmente, com
eles. De acordo com o Presidente da Associação,
Patrícia Acioli foi uma Juíza dedicada e uma das
mais qualificadas, e foi vítima de um ataque covarde de profissionais, habituados a atirar.
Autoridades participam de entrevista coletiva no Rio
“Eu já estive em outros quatro
funerais e missas como essa, de
colegas mortos por organizações
criminosas. Nós perdemos
uma batalha; a guerra não está
perdida”
Nelson Calandra,
Presidente da AMB
Calandra ainda pediu desculpas à família e
à sociedade de Niterói e de São Gonçalo pelas
falhas do sistema de segurança à Juíza. “Sempre que tomba alguém, nós erramos. Nós reconhecemos que erramos, porque o ideal é que
ela não tivesse sido morta, mas houve uma falha do nosso sistema de segurança”, reconheceu
ele, ao defender a apuração imediata do caso.
“Eu já estive em outros quatro funerais e missas
como essa, de colegas mortos por organizações
criminosas. Nós perdemos uma batalha; a guerra
não está perdida, mas nós precisamos mudar a legislação penal brasileira, que não prestigia a sociedade e que permite a alguém que comete um crime
de morte e leva 11 anos para começar a cumprir
sua pena em nome do princípio da presunção da
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 41
ATENTADO À DEMOCRACIA
Diretores da AMB participam de encontro no Rio de Janeiro e lançam Manifesto por Segurança de Juízes e dos Fóruns
inocência”, criticou o Presidente da AMB, ao cobrar
uma revisão do Código de Processo Penal.
O Advogado da família de Patrícia Acioli, Técio
Lins e Silva, também conversou com Calandra e os
demais diretores da Associação sobre a sensação de
insegurança na Magistratura carioca e sobre a atuação de Patrícia, com quem tinha amizade. E aplaudiu a presença da AMB no Rio para acompanhar o
caso e cobrar providências das autoridades locais.
“Essa solidariedade da AMB é fundamental
nessa hora, sobretudo para que o resultado desse
fato que é dramático não seja reduzido a uma
questão menor. É um caso gravíssimo, um atentado contra a democracia, contra o Estado de Direito. Não podemos aceitar que um Juiz sofra um
atentado, perca a vida, por estar cumprindo o seu
dever”, protestou.
No dia em que se completaram 30 dias do assassinato, a AMB também promoveu uma missa
em homenagem à Juíza Patrícia Acioli, na capital
fluminense, onde ainda elaborou e divulgou um
documento de sete pontos intitulado ‘Manifesto
por Segurança da Magistratura Nacional’. O documento foi encaminhado ao Ministro da Justiça,
José Eduardo Cardozo.
E, no dia 21 de setembro, em Brasília, durante mobilização nacional, em Brasília, pela valorização da Magistratura e do Ministério Público, o
42 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
“Essa solidariedade da AMB é
fundamental nessa hora, sobretudo
para que o resultado desse fato que é
dramático não seja reduzido a uma
questão menor. É um caso
gravíssimo”
Técio Lins e Silva,
Advogado da família de Patrícia Acioli
documento foi também entregue aos líderes do
Congresso Nacional e ao Presidente do STF.
“Não se vive em Democracia sem Justiça e
não se faz Justiça sem segurança e independência
de julgar”, pontuou o Presidente Nelson Calandra
ao anunciar as propostas contidas no manifesto.
Diretora-adjunta da AMB, a Juíza Ivone Ferreira Caetano destacou que o trabalho e atuação
da colega Patrícia Acioli sempre foram dignos de
elogio da classe. Desde 2004, titular da 1ª Vara
de Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, ela
disse que a segurança aos Magistrados no País
é precária e defendeu a criação de um grupo de
trabalho para ouvir especialistas sobre o assunto. “É preciso criar soluções para apresentação à
Administração do Tribunal de Justiça”, avaliou.
Arquivo pessoal
A Juíza Patrícia Acioli tinha 47 anos, dos quais dedicou 19 deles à Magistratura e à Justiça cidadã
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 43
POLICIAMENTO COMUNITÁRIO
Efetivo feminino
reforça sucesso das UPPs no Rio
I
mplantadas em 2008, por uma iniciativa da
Secretaria Estadual de Segurança Pública do
Rio de Janeiro, primeiramente, em duas favelas, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) têm
sido uma eficiente alternativa no combate e desarticulação de quadrilhas nestes territórios, onde
vivem quase 300 mil pessoas, e de inclusão social.
O princípio básico trabalhado pelas unidades que,
hoje, estão instaladas em 18 favelas é o da Polícia
Comunitária, na avaliação de Rodrigo Pimentel,
ex-integrante do Batalhão de Operações Policiais
Especiais (Bope), e Capitão reformado da Polícia
Militar, especialista em segurança.
Na prática, a estratégica consiste em promover
a ocupação dessas comunidades a partir de operações do Bope, com o objetivo de tirá-las do domínio
de traficantes ou de grupos armados. Segundo o
Governo, a presença física das UPPs visa promover
um policiamento preventivo, ao mesmo tempo em
que promove a acessibilidade da população local a
serviços sociais, sejam públicos ou privados.
Major da Polícia Militar, Priscilla de Oliveira Aze-
44 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
do fez história ao comandar a primeira Unidade de
Polícia Pacificadora (UPP) do Estado, a do Morro
Dona Marta, em Botafogo, implantada em dezembro daquele ano. A experiência de dois anos e três
meses, segundo a policial, deixou lembranças indeléveis. “O conjunto de experiências vividas por mim
foram muito importante para a minha carreira”,
comentou a Major, atualmente Coordenadora de
Programas Estratégicos da Secretaria de Segurança
da cidade do Rio de Janeiro.
As novas atribuições destoam, em todos os
sentidos, do trabalho que fazia à frente da UPP do
Morro da Dona Marta, mas o prazer é o mesmo.
Sobretudo por conta do retorno humanista que a
ação propicia. “São situações e ambientes de trabalho completamente diferentes, mas ainda vou às
favelas, só que, agora, em todas as que estão pacificadas, e percebo, a cada ida, como está sendo
importante o trabalho da Polícia Militar, na verdade,
de todos os envolvidos com o programa”, elogiou.
Soldada da Unidade de Polícia Pacificadora da
Cidade de Deus – comunidade famosa por servir de
SESEG/RJ
Com crianças em favela do Rio, Major Priscilla foi a primeira mulher a comandar uma UPP
ambientação de filme de mesmo nome que elevou a
autoestima do cinema brasileiro, Karyne de Oliveira Resende destacou o trabalho da mulher à frente da iniciativa que está mudando, gradualmente, a cara do Rio de
Janeiro. “As mulheres têm tido um papel fundamental
neste trabalho. Temos potencial de sensibilidade mais
desenvolvido, o que gera uma maior confiança dos moradores, no trato de diversos assuntos e problemas na
comunidade de atuação”, apontou.
Segundo informações da assessoria de imprensa
das UPPs, atualmente, o efetivo feminino na Polícia
Militar do Rio de Janeiro é de 2.119 mulheres. Desse
montante, 245 integram as unidades pacificadoras.
Para a Coordenadora de Programas Estratégicos da Secretaria de Segurança da cidade do Rio de Janeiro, Priscilla de Oliveira, a presença feminina nas ações é uma
prova mais do que significativa de que as barreiras e
os preconceitos estão sendo vencidos. “Acredito que
não existem papéis distintos entre homem e mulher; a
diferença é que estamos conseguindo mostrar nossas
habilidades e que está havendo um reconhecimento
do nosso trabalho”, observou.
“Estamos conseguindo mostrar
nossas habilidades e está
havendo um reconhecimento
do nosso trabalho. Também
estamos aprendendo a lidar com
o preconceito que ainda existe,
mas a aceitação é crescente”
Major Priscilla de Oliveira Azevedo,
Coordenadora de Programas
Estratégicos da Secretaria de
Segurança da cidade do Rio de Janeiro.
Presença feminina
Atualmente 2.119 mulheres
fazem parte da Polícia Militar do
Rio de Janeiro, das quais 245
integram as Unidades de Polícia
de Pacificação (UPP).
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 45
Priscila Marotti/ASCOM/SESEG/RJ
46 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Entrevista:
José Mariano Beltrame
Secretário de Segurança do Rio
Uma nova Polícia para combater
a criminalidade violenta
AMB – O senhor conhecia a Juíza Patrícia Acioli? O que achava do trabalho dela no combate à
corrupção e excessos na polícia?
minha opinião, é muito difícil tecer um juízo de
valor sobre isso, considerando que a Justiça é
uma instituição autônoma.
José Mariano Beltrame – Eu não a conhecia bem. Despachei com ela uma única
vez, ainda pela Polícia Federal. Mas é importante destacar que os resultados do trabalho
dela para o Estado do Rio de Janeiro foram
muito bons. Ela fez um trabalho exemplar.
AMB – Como o senhor avalia a implantação das UPPs no Rio de Janeiro, que, neste ano, completa 2 anos?
AMB – Muitos Juízes, no Brasil, são ameaçados de morte. Não deveria haver uma segurança organizada para eles?
José Mariano Beltrame – É importante destacar que esta é uma questão complexa. Cada Juiz
deve saber da potencialidade de ser ou não vítima
de alguma ação. Esses Magistrados têm as áreas
de seguranças de suas instituições. Essas questões
podem ser dirimidas, ou minimizadas, na medida
em que houver o entendimento, o diálogo entre a
corporação e o integrante da sua corporação. Em
José Mariano Beltrame – Não dá para dizer que é um sucesso. Temos ainda muita coisa
a fazer. Eu acho que é uma proposta. É algo
que está se fazendo, no sentido de se chegar
mais à frente na obtenção de índices de criminalidade menores do que nós tínhamos há
quatro anos. Eu não quero fazer uma panacéia
em cima da UPP. A UPP é uma ação, é um pilar
da segurança pública, mas existem outros. Os
resultados dela, que estão aí, transparentes e
com muita lisura, tanto qualitativos como quantitativos, são muito bons. Eu prefiro dizer se é
um sucesso ou não depois que a obra estiver
feita. Não adianta olhar uma fotografia isolada.
Prefiro olhar o álbum de fotografias.
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 47
Entrevista: José Mariano Beltrame
Uma nova Polícia para combater a criminalidade violenta
AMB – As UPPs foram implantadas como
um contraponto ao policiamento que combate o tráfico com mais violência. É a saída
pacifista o caminho mais inteligente para
uma política de segurança?
José Mariano Beltrame – Acredito que
o compromisso de um Secretário de Segurança
deve ser com a vida e com a integridade das pessoas. Entendo que, no Rio de Janeiro, ao longo
dos últimos 40, 50 anos, as polícias foram jogadas dentro dessas ilhas de criminalidade. Tivemos aqui Secretários de segurança que pagaram
gratificação para matar. Agora, precisamos de
políticas públicas para se reverter isso. Precisamos sair de uma polícia que fazia guerra para
uma polícia que presta serviço. A UPP está nos
mostrando que isso é possível.
AMB – Em sua opinião, o que falta para
a política de segurança pública ser 100%
eficiente no Brasil?
José Mariano Beltrame – Eu acho que
nós não vamos sair dessa situação sem um investimento muito grande. Acredito que esse
investimento, por ser grande, precisa da participação do Governo Federal. Outro ponto
importante são os salários. É imprescindível
que se passe por uma melhoria salarial nas
Polícias. Os Estados hoje estão muito longe,
pelo menos, a grande maioria deles, do pon-
48 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
to ideal. Nós temos que, cada vez mais, nos
especializar. Precisamos melhorar muito em
gestão de segurança pública. Nós estamos
acostumados a pedir mais efetivo, carros e
armas. Mas precisamos estudar método, processos, rearranjar as instituições. É preciso
criar outros horizontes, mudar foco, quebrar
paradigmas. Agora, sem dúvida nenhuma, há
também a necessidade de alguns investimentos
como, por exemplo, tecnologia e uma revisão
da questão salarial.
AMB – A violência urbana ainda é a grande chaga de grandes cidades como o Rio
de Janeiro? Em sua opinião, qual é grande
solução para o problema?
José Mariano Beltrame – Eu acho que a
violência urbana tem muito a ver com a exclusão
social. Eu acho que a causa de tudo isso passa
pela pobreza, pela miséria, pela ignorância, pelo
atraso político e por uma série de problemas que
tem de ser atacados. Problemas que não vão ser
resolvidos especificamente pela Polícia. As Polícias têm, cada vez mais, que se preparar para
o policiamento de proximidade, para a prestação de serviço. Nós precisamos fazer com
que o policial seja um operador de segurança
pública. Isso vai significar investir em educação, saneamento básico, etc. Precisamos dar
mais dignidade às pessoas que estão excluídas
do processo social e econômico.
Alnader Lopes/ASCOM/SESEG/RJ
José Mariano Beltrame – Contribuiu sem dúvida. Na medida em que
as pessoas que estão no morro, em especial a mulher, vendo a Polícia com
outra postura, começa a acreditar na
corporação. Nós temos estatísticas que
nos dizem que aumentou muito a atividade policial. O que é isso? Aumentou
muito o número de pessoas que passaram a descer o morro para ir a delegacia. As pessoas passaram a acreditar, porque hoje existe um policial que
as conduz à delegacia. Nessa atividade
policial, temos muitas questões onde a
mulher passa a dar queixa disso.
Priscila Marotti/ASCOM/SESEG/RJ
AMB – E sobre a violência contra a mulher. Na avaliação do senhor, como as UPPs têm contribuído para combater a violência
de gênero nos morros onde elas
foram implantadas?
AMB – Houve alguma diminuição
de violência contra as mulheres com
a implantação das UPPs?
José Mariano Beltrame – Sem
dúvida, porque os agressores passam
a ser denunciados e, obviamente, a
Polícia tem um território ali para atuar
com tranquilidade.
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 49
OMISSÃO E NEGLIGÊNCIA
Você é vítima da
violência institucional?
F
ique atento, porque, quando você menos
espera, a violência institucional irá agredir seus direitos básicos de ser humano.
De tão discreta e camuflada que é, na maioria
das vezes, nem nos damos conta de que fomos
vítimas dela. Mas basta olhar ao redor e perceber que ela está bem visível e de fácil atuação.
Sim, porque toda vez que um cidadão ou cidadã se sente negligenciado por parte dos serviços públicos, como segurança ou acesso à saúde, constrangido, maltratado, discriminado ou
até mesmo torturado, ele é vítima de violência
institucional. E os grupos mais vulneráveis a
esse tipo de agressão velada são as crianças,
adolescentes, mulheres, idosos e deficientes
físicos e mentais.
“O quadro de desinformação sobre a violência institucional é tão pertinente que ela passa
despercebida pela população que não a denuncia, o que faz com que esse tipo de agressão
não seja computado oficialmente. Desconheço
50 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
de alguma ampla pesquisa com esta especificidade”, apontou a ambientalista e ativista feminista Laura Mury.
Formada em música, Mury se dedica a projetos sociais voltados às questões ambientais e de
Direitos Humanos, sobretudo dos Direitos Humanos da Mulher, desde o final dos anos 80. Tanto
que foi a mentora do atendimento virtual ‘Tecle
mulher’, serviço social que tem o apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres, voltado ao
apoio e orientação às mulheres vítimas de qualquer tipo de violência. “Os casos mais conhecidos
de violência institucional estão inseridos nas atitudes de policiais contra a população e nos atendimentos médicos. Assim mesmo, as denúncias
apenas ocorrem quando as violências produzem
graves danos físicos ou psicológicos nas vítimas
ou quando as levam ao óbito”, reconheceu.
Embora não exista nenhuma pesquisa significativa abrangendo o tema, Laura Mury destaca que as mulheres são as principais vítimas da
Jornal O Nacional/www.onacional.com.br
Filas imensas ainda marcam o atendimento do serviço público na assistência à saúde em todo o País
violência institucional. Segundo ela, mesmo
com avanços importantes como criações de Leis
– entre elas a Maria da Penha, que, em 2011,
completou cinco anos -, e serviços de atendimentos sociais, ainda existe um deserto de políticas públicas que possam sanar o problema.
“Há bem pouco tempo que se percebeu o
fato de que as mulheres são, cotidianamente,
alvo da violência institucional, no momento que
não recebem atendimento humanizado e especializado nos serviços que procuram ajuda”,
observou. “São tristes os números de crianças
que sofrem sérios danos mentais por conta de
maus-tratos sofridos pelas mães na hora do parto, ou ainda berçários contaminados, sem falar
das imensas filas nos hospitais”, acusou.
Um caso de repercussão nacional que exemplifica a preocupação da ativista, por exemplo,
foi o ocorrido em 2007, na cidade de Cabo Frio,
interior do Rio de Janeiro. Na ocasião, o Ministério Público denunciou o envolvimento de mé-
“São tristes os números de crianças
que sofrem sérios danos mentais
por conta de maus-tratos sofridos
pelas mães na hora do parto, ou
ainda berçários contaminados,
sem falar das imensas filas nos
hospitais”
Laura Mury,
Ambientalista e Ativista feminista
dicos de uma clínica de saúde na morte de 52
bebês por infecção hospitalar.
Quando o assunto é violência policial, outra preocupação salientada por Laura Mury e que caracteriza também um tipo de agressão institucional,
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 51
52 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Sala de espera em centro de saúde
coletivokrisis.blogspot.com
os números são chocantes. Segundo dados do
Ministério da Saúde, com base no Sistema de
Informações sobre Mortalidade (SIM), pelo menos uma pessoa morre a cada cinco horas no
Brasil pela ação da Polícia, o que corresponde a
141 assassinatos por mês ou 1.693 ao ano. As
informações são referentes a 2009.
Para a ativista, a violência institucional,
exemplificada nos casos acima, configura não
apenas um desrespeito aos Direitos Humanos, mas também aos Direitos Econômicos,
Sociais, Culturais e Ambientais, os chamados
DESCAS, os quais estão inseridos no Artigo
6º da nossa Constituição Federal. “Quando
o Estado não promove o Direito constituído
às suas populações, o País por inteiro se vê
fadado aos retrocessos econômico, social,
cultural e ambiental, e essas são formas de
violência institucional realizada de forma nacionalizada”, refletiu.
Atualmente Coordenadora do atendimento virtual ‘Tecle Mulher’, que, a partir
de 2010, criou identidade jurídica, sendo
reconhecida como uma Organização Social
Civil de Interesse Público (Oscip), Laura Mury
defendeu a ampliação e incentivo de estudos, assim como a realização de estatísticas
e criação de políticas públicas que combatem
as ações invisíveis da violência institucional. E
não só isso. “Também é preciso formar e capacitar os profissionais de todas as áreas que
envolvam esses atendimentos para um entendimento real do que seja direito à dignidade, ética profissional e respeito à cidadania
da população como um todo, em especial, às
mulheres, crianças, adolescentes e idosos”,
sustentou. “É dever do Estado oferecer todas
essas condições aos diferentes setores da sociedade, de forma a cumprir o seu papel de
primeiro provedor de direitos”, pontuou.
williamcorrea.com
OMISSÃO E NEGLIGÊNCIA
Paciente espera atendimento em maca de hospital
Violência Institucional sob a
ótica de um serviço virtual
Laura Mury*
Violência Institucional contra as Mulheres é perpetrada pelos organismos estatais, no momento em que estes não realizam seu papel de promotor de direitos,
deixando de lhes garantir tanto os serviços essenciais à proteção das suas vidas,
como no fato de ser o próprio autor de abusos cometidos por seus agentes, que
deveriam atender e protegê-las de forma humanizada.
Este artigo pretende abordar a violência institucional inserida nos relatos de
mulheres que são usuárias de um atendimento virtual, denominado
“Tecle Mulher”, voltado a apoiar psicologicamente, subsidiar juridicamente e encaminhá-las para os serviços
públicos especializados no âmbito dos Direitos
e Violência contra a Mulher.
O “Tecle Mulher” surgiu da percepção de
uma equipe multidisciplinar de profissionais advinda de um atendimento telefônico
“Disque Mulher”1, da inexistência de dados
estatísticos referendados à violência contra
a mulher de uma camada social de renda média e alta
com escolaridade de nível superior. No entanto, ainda que
muito velada, essa população feminina não está imune a
todos os tipos de violência de gênero e faz parte dos 34
milhões de internautas brasileiras2. Tendo como meta atingir essa parcela da sociedade feminina, o “Tecle Mulher” criou
uma metodologia própria para apoiar psicologicamente, informar juridicamente e encaminhar as suas
usuárias a serviços públicos e/ou particulares que
sejam gratuitos ou que contemplem um valor simbólico. Dessa forma, o serviço virtual se enquadra
em uma estratégia para a desconstrução da ideia
de que as classes mais baixas e menos escolarizadas da sociedade são as que estão mais suscetíveis à
violência contra a mulher.
1 “Disque Mulher”- Serviço gratuito telefônico, realizado por organismos
governamentais e não governamentais voltados ao apoio e orientação nas
áreas dos direitos e violência contra a mulher.
2 Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) divulgados pelo IBGE,
relativos ao ano de 2009, informa que as mulheres compõem a maioria dos acessos
atualmente: são 34,6 milhões as usuárias da web no Brasil, contra 33,3 milhões de homens.
O “Tecle Mulher” constitui um novo parâmetro dos sites de relacionamentos interpessoais,
onde não existe o contexto limítrofe da distância e onde o teclar das mulheres que solicitam
ajuda tem a resposta especializada através de psicólogas e advogadas, num prazo máximo de
24 horas, por meio do site www.teclemulher.com.br.
Com o apoio, em 2010, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Governo Federal, o “Tecle Mulher” expandiu seu atendimento para outro público feminino
que é amplamente discriminado e não dispõe de políticas públicas específicas ou
suficientes que lhes possibilitem um apoio seguro no momento de construir uma vida
com dignidade, dando assim surgimento a um novo serviço denominado “Tecle Mulher Lésbica” executado pelo endereço eletrônico www.teclemulherlesbica.com.br.
Para a divulgação desses serviços e para levar informações dinâmicas e atualizadas,
foi também criado pelo grupo a “Rádio Tecle Mulher” (www.radioteclemulher.com).
No ano de 2010, o “Tecle Mulher” criou uma identidade jurídica e conta com a certificação do Ministério da Justiça como Organização Social Civil de Interesse Público
– OSCIP com a denominação “Tecle Mulher” – Assessoria e Pesquisa no âmbito dos
Direitos da Mulher.
Dada a amplitude dos atendimentos virtuais e pela diversidade de informações obtidas de
forma sigilosa, podemos aqui informar algumas estatísticas interessantes realizadas através dos trabalhos e estudos das equipes: O número de atendimentos dos serviços “Tecle
Mulher” e “Tecle Mulher Lésbica”, juntos, já chegam a 2.000 atendimentos e advêm de
todos os Estados, sendo os maiores utilizadores São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro,
respectivamente, e também computam a solicitação de ajuda às brasileiras que sofrem
de violência de gênero ou discriminação em outros Países; a classe social que mais busca
apoio são as mulheres mais escolarizadas e com nível superior incompleto, completo,
doutorado e mestrado; são mulheres que não dependem financeiramente dos parceiros;
que já possuem prévio conhecimento dos seus direitos e das leis que as amparam; e que,
em sua maioria, sofrem de violência doméstica.
A Violência Institucional contra as mulheres está inserida no contexto dos atendimentos
do “Tecle Mulher” e “Tecle Mulher Lésbica” quando, nas falas das mulheres atendidas
por suas técnicas, percebe-se que: não receberam informação adequada no momento em
que solicitaram ajuda aos serviços públicos; não conseguem encontrar em seus municípios os serviços das redes de atendimento especializados; são discriminadas de forma
sexista e lesbofóbica no momento em que realizam as denúncias nas delegacias; quando
os agressores – maridos, namorados (as) e companheiros (as) – são funcionários (as) públicos (as), principalmente da classe militar, e assim sofrem o corporativismo destes nos
serviços de atendimento; são discriminadas nos serviços da saúde; são discriminadas no
sistema judicial e cartórios por conta da sua orientação sexual.
54 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Arquivo pessoal
Vale ressaltar que, da mesma forma, percebe-se um grande
desconhecimento das novas Leis de garantia dos Direitos
das Mulheres pelos serviços públicos, quando estes não
são especializados. Desconhecem, por exemplo, a Lei
11.340/2006-Maria da Penha e também nas que se insere o reconhecimento da união homoafetiva. No entanto, apenas cerca de 3% dos atendimentos dos serviços
eletrônicos contêm o reconhecimento da violência institucional pelas usuárias. Em alguns casos, e com a ajuda
do serviço “Tecle Mulher”, as atendidas se sentiram fortalecidas com o conhecimento da Violência Institucional
e foram orientadas a encaminharem suas queixas aos
organismos específicos de recebimento dessas denúncias
tais como: As Ouvidorias – que recebem as denúncias de
forma anônima e através de telefone, emails e cartas; as
Defensorias Públicas e o Ministério Público.
Vale aqui informar que, tendo em vista o grande deserto de
políticas públicas voltadas às mulheres do interior do país,
diante dos mais de 5.000 municípios brasileiros, esta se
configura como a maior violência institucional computada
pelos serviços do “Tecle Mulher”, apesar das suas estatísticas informarem que a maioria das mulheres que procura a
sua ajuda contou com os serviços especializados (90% dos
atendimentos), principalmente, dos Centros de Referência
da Mulher. Explica-se este dado por conta das usuárias dos
serviços virtuais do “Tecle Mulher” advirem das maiores capitais, conforme já demonstrado3.
Diante dos fatos aqui apresentados podemos afirmar que o
“Tecle Mulher”4 contribui de forma significativa para a promoção da cidadania das mulheres através da informação
segura sobre todas as formas de violência a que estão susceptíveis, e dessa forma pretende transformar a sociedade
em uma cultura de igualdade, solidariedade e paz.
3 Os estudos e dados estatísticos do serviço “Tecle Mulher” estarão
disponibilizados publicamente ainda no ano de 2012, com o apoio da
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Governo Federal.
4 O “Tecle Mulher” pode ser contatado através do email institucional
[email protected].
(*) Laura Mury é Ambientalista e
Ativista feminista, formada em música
e Coordenadora do atendimento virtual
‘Tecle Mulher’
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 55
FEMINIZAÇÃO
Auri Moura Costa, Thereza Tang, Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Maria Weber
56 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Mulheres no Judiciário:
elas exibem força
Fotos: Arquivo pessoal / Jornal Zero Hora / Nelson Jr/SCO/STF / Felipe Sampaio/SCO/STF / Divulgação TST
N
ão se engane. Toda vez que você estiver em Fortaleza e passar em frente
ao Instituto Penal Feminino Auri Moura
Costa, lembre-se que, por trás desse nome, esconde a figura de uma pioneira. Espaço inaugurado em outubro de 2000, a penitenciária leva
o nome da primeira mulher a se tornar Magistrada no Brasil, na condição de Juíza Municipal
dos Termos de Várzea Alegre, Cedro e Canidé.
O feito aconteceria em 1939 e, 29 anos depois,
Auri Moura Costa chegaria ao posto de primeira Desembargadora do País, na condição de Juíza de Direito do Ceará.
O jeitinho meigo de vovó carinhosa e coruja que Thereza Grisólia Tang exibia nos últimos
anos de vida podia até encantar, mas, por trás
de toda aquela delicadeza materna ao quadrado, escondia uma figura persistente, pioneira,
que, movida por um sonho de adolescência, iria
se tornar a segunda mulher Magistrada do Brasil. O ano era o de 1954 e, assim como toda a
nação, o Estado de Santa Catarina, onde a gaúcha de São Luiz Gonzaga tentaria uma vaga,
por meio de concurso, também ainda não tinha
“No fundo, a mulher é mais
severa, mais justa e mais
minuciosa”,
Thereza Tang
se refeito do choque da morte do Getúlio Vargas. “Foi difícil para os homens aceitarem uma
mulher competindo com eles”, lembraria anos
mais tarde, em entrevista.
Por quase 20 anos, Thereza Tang se manteve firme como uma das raras mulheres no Judiciário brasileiro e, durante esses anos todos,
nunca perdeu a feminilidade ou deixou de cumprir com suas obrigações em casa. “Eu conseguia conciliar a família – marido e filho – com a
profissão. Quando eu entrava em casa retirava
a toga e era apenas uma esposa e mãe”, confessou, certa vez, a Desembargadora, que tam-
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 57
FEMINIZAÇÃO
bém chegou a presidir o Tribunal de Justiça de
Santa Catarina (TJSC).
Quando morreu, em 2009, aos 87 anos, a
Magistrada gaúcha, assim como a colega cearense, deixaria um legado imensurável. Não
apenas por ter sido pioneiras ao desbravar caminhos fechados às mulheres, mas também
por servirem de exemplo àquelas que, assim
como elas, abraçaram as causas do Judiciário,
contribuindo para que a sociedade desse mais
um passo firme rumo à maturidade e à democracia. Uma certeza que fez a ex-Ministra do
Supremo Tribunal Federal (STF), Ellen Gracie,
numa recente entrevista constatar, pouco antes de se aposentar. “Acredito que a sociedade
brasileira entrou em outra fase, o País é presidido por uma mulher e, no Supremo, somos
duas representantes da classe. O peso simbólico de uma escolha feminina já não é tão
grande”, disse a Ministra, assim como a colega
Thereza Tang, uma pioneira.
Indicada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2000, ao STF, Ellen Gracie
seria a primeira mulher a chegar ao topo da
hierarquia judiciária no País. Decisão que chegaria num momento oportuno, porque, até em
maio daquele ano, uma mulher sequer podia
perambular pelas dependências da Suprema
Corte trajando calça comprida.
Mas, hoje, o cenário mudou radicalmente.
Em mais de 20 anos, o número de cadeiras
ocupadas por mulheres nos Tribunais Superiores do Brasil chega a 16%. Recém-aposentada do STF, Ellen Gracie deixa como legado
a presença marcante da mulher elegante e
atuante no Judiciário. Herança e responsabilidade assumidas pelas 10 sucessoras que ocupam a cúpula do poder no momento, entre
elas a colega Cármen Lúcia (STF), Eliana Cal-
58 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
mon Alves (STJ) e, recentemente, Rosa Maria
Weber (STF).
As mulheres também ocupam 36% das vagas nos Tribunais Estaduais dos 27 Estados brasileiros. Em Estados como Bahia, Rio Grande do
Norte, Pará e Tocantins, elas chegaram às Presidências de Tribunais de Justiça, o que representa 15% das chefias das cortes estaduais. Os
dados são de uma pesquisa realizada pelo site
de notícias R7, tendo como fontes os Tribunais
de Justiças de cada Estado, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho da Justiça
Federal (CJF)
Das 93 vagas para Magistrados, nos cinco
Tribunais Superiores – STF, STJ (Superior Tribunal de Justiça), STM (Supremo Tribunal Militar), TST (Tribunal Superior do Trabalho) e TSE
(Tribunal Superior Eleitoral) –, 15 são ocupadas, atualmente, por mulheres (veja quadro).
Um salto considerável, tendo em vista que, em
1990, apenas uma mulher ocupava um cargo
na cúpula do poder, a Juíza Cnéa Cimini Moreira de Oliveira, empossada como primeira
Ministra do TST.
A delicadeza feminina também ganhou espaço nos Tribunais Estaduais. Segundo dados
da pesquisa feita entre profissionais da 1ª e da
2ª instâncias, o número de mulheres corresponde a 36%. (Veja a tabela completa). Em regiões
como o Sul e o Sudeste, o percentual entre homens e mulheres são bem expressivos, na casa
dos 38% e 35%, respectivamente, (748 Magistradas, contra 1.209 homens) e (1.641 mulheres, para 3.116 Magistrados).
A população de Advogadas em atividades
no País também é bastante significativa. De
acordo com dados da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), atualmente, o “sexo frágil” representa 45% dos profissionais em atividade.
As mulheres no Poder
STF
11 cadeiras
nove homens e duas mulheres
Rosa Maria Weber
Cármen Lúcia
STJ
33 cadeiras
28 homens e cinco mulheres
Maria Thereza Rocha
de Assis Mourav
Eliana Calmon Alves
Laurita Hilário Vaz
Fátima Nancy Andrighi
Maria Isabel Gallotti
Rodrigues
STM
16 cadeiras
15 homens e uma mulher
Maria Elizabeth
Guimarães Teixeira Rocha
TST
27 cadeiras
22 homens e cinco mulheres
Dora Maria da Costa
Kátia Magalhães Arruda
Maria Cristina Peduzzi
Maria de Assis Calsing
Delaíde Alves Miranda
Arantes
Judiciário se feminiza
cada dia mais
Sérgia Miranda*
Dar caráter ou feição feminina é o ato de feminizar.
No Brasil, historicamente, a Magistratura é uma profissão masculina,
coisa de homem, mas essa realidade avança de modo diferente, basta ver a grande quantidade de mulheres aprovadas nos concursos para
ingresso na carreira. Observe-se ainda o cenário propício que vivemos
atualmente com a eleição da primeira mulher para a Presidência da República e a convocação de considerável numero de mulheres para os
mais elevados postos do Executivo.
O Brasil é um País novo, cuja gênese remonta a uma verdadeira miscigenação racial e cultural. Enquanto que, na França, se vivia a efervescente
Revolução Francesa, aqui, a terra ainda era cultivada pelos negros em
regime de escravidão.
Somente em 1827, tivemos a primeira lei que permitiu a educação básica para as mulheres, a educação superior só era permitida aos homens.
Somente em 1879, é que as mulheres puderam frequentar uma universidade, lugar para aquelas mais arrojadas em virtude da “fama” adquirida
perante a sociedade de então.
Podemos catalogar nomes de referência das seguintes mulheres: Rita
Lobato Velho, a primeira médica do Brasil que clinicou de 1910 a 1935,
em Porto Alegre, e a Professora Deolinda Daltro, que promoveu a primeira passeata pelo direito ao voto feminino em 1917, no Rio Grande do
Norte (primeiro Estado a autorizar o voto da mulher).
Não seria demais aproveitar o ensejo para uma correção histórica. A primeira mulher no Brasil a ingressar na Magistratura não foi a catarinense
Thereza Grisólia Tang, mas a cearense Auri Moura Costa, que tomou
posse perante o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará em 30 de maio
de 1939, enquanto a Magistrada sulista ingressou somente em 1954.
O nome Auri, escrito dentre uma plêiade de nomes masculinos, não deixava antever que se tratava de uma mulher, motivo pelo qual, conta a
oralidade, conseguiu êxito na aprovação do certame. De Auri a Ellen Gracie,
muitas conquistas aconteceram e muitas outras estão para acontecer.
60 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Arquivo pessoal
O Judiciário se feminiza a cada dia, e a grande indagação
hoje é: quais as consequências dessa mudança? O que ela
poderá trazer de bom para a Justiça brasileira?
A Desembargadora Maria Berenice em artigo intitulado
‘A Feminização da Magistratura’ diz, com relação a essa
indagação, que toda novidade desperta atenção, acabando por ser analisada por estereótipos. Principalmente com relação às Magistradas, por menos numerosas,
são vistas como totens e rotuladas como ou mais severas ou mais condescendentes que seus pares, ou ainda
mais ou menos adequadas para jurisdicionar determinadas varas. Essa estratificação dicotômica, estereotipada
pela identificação do gênero, decorre de percepções frequentemente inconscientes que registram um conteúdo
discriminatório, atitudes, por vezes, não relevantes que
refogem à média, ficam mais visíveis e são potencializadas de forma generalizante.
Segundo dados catalogados pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), atualmente, 31,40% dos
associados são mulheres e 68,60% são homens, sinalizando para o fato de que as agruras vividas pelas
desbravadoras Auri Moura Costa, Thereza Grizólia Tang
e outras são parte integrante de uma história cada dia
mais vitoriosa e valorosa.
Isso não significa que chegamos ao patamar da satisfação plena, até porque dos 27 Tribunais de Justiça brasileiros somente quatro estão sob o comando feminino:
Bahia, Pará, Rio Grande do Norte e Tocantins e, em dois,
há uniformidade entre Desembargadores e Desembargadoras: Pará e Bahia. Penso, entretanto, que esse quadro é
alentador, pois revela que o caminho está sendo percorrido, hoje, mais celeremente, vislumbrando-se para o futuro
uma natural paridade.
(*) Sérgia Miranda é
Desembargadora do TJCE e Diretora
da Secretaria de Assuntos da Mulher
Magistrada da AMB
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 61
CAMINHOS DA DOR
Desigualdade afeta mulheres
em situação de prisão
V
ida de presidiário no Brasil é barra pesada. Hoje, a população carcerária convive
com dramas cotidianos como superlotação, falta de estrutura física, violência interna e
atendimento inadequado em saúde, assistência
jurídica e direitos humanos. Se essa realidade já é
penosa para os 500 mil homens presos em todo o
País, imagina como a situação é vivida pelas mulheres, que compreendem, atualmente, 7,4% dos
presos, aproximadamente, 34 mil detentas. Tema
debatido durante o Encontro Nacional sobre o
Encarceramento Feminino, realizado no último
mês de junho, pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), em Brasília, a vida do sexo frágil nas prisões
tem rendido debates contundentes.
Para o Procurador do Estado do Ceará e Doutor em Direito, César Barros Leal, a questão é grave
e ainda precisa ser revista pelas autoridades brasileiras a partir de vários prismas. “O sistema penitenciário de um modo geral é um tema polêmico
e delicado”, observou César Barros, que também
preside o Instituto Brasileiro de Direitos Humanos.
62 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
“O que entristece é saber que tudo passa basicamente pela vontade política e nada nos faz crer
em mudanças significativas”, reconheceu o Procurador, autor do recente título ‘A execução penal
na América Latina à Luz dos Direitos Humanos:
Viagem Pelos Caminhos da Dor’.
Os principais problemas enfrentados pelas mulheres em situação de prisão é a desigualdade no tratamento, manifestado de várias formas. Uma delas
é na negação dos direitos sexuais e reprodutivos e
às visitas íntimas. A outra diz respeito ao tratamento
psicológico e de saúde diferenciado. Dados recentes
do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) revelam que 2% das mulheres em situação de prisão
no Brasil estão grávidas ou em período de lactação.
Um conjunto de normas editadas pelas Nações Unidas, em 2010, defende, por exemplo,
uma série de recomendações como o acompanhamento das detentas por médico ginecologista (em vez de médico generalista), aproximação
com os filhos e demais membros da família, além
do direto a encontros íntimos.
Ricardo Barbosa/ALMG
Deputados estaduais reúnem-se com detentas, durante inspeção em penitenciária feminina em Minas Gerais
Professor aposentado da Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Ceará (UFC), César
Barros Leal, avaliou que tais direitos e reivindicações da mulher em situação de prisão se devem às lacunas na Lei de Execução Penal e ao
descompasso entre a realidade presidial e a legislação de caráter nacional e internacional. “A
mulher, de modo particular a grávida ou em período de lactação, exige uma assistência médica dessemelhante. O tratamento psicológico se
impõe”, advertiu. “São pouquíssimos os estados
brasileiros em cujas Secretarias de Justiça (ou
órgãos similares, que façam suas vezes) haja o
cargo de psicólogo”, apontou.
Embora, nos últimos anos, o investimento em
projetos de reforma e ampliação de vagas no sistema penitenciário tenha aumentado em 221%,
em dez anos, segundo dados do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), ainda faltam estruturas
físicas adequadas para acolher as mulheres. Na
maior parte do Brasil, elas são lotadas em lugares
adaptados de presídios masculinos. A informação
“São pouquíssimos os estados
brasileiros em cujas Secretarias
de Justiça (ou órgãos similares,
que façam suas vezes) haja o
cargo de psicólogo”
César Barros Leal,
Procurador do Estado do Ceará
e Doutor em Direito
é do Departamento de Fiscalização do Sistema
Carcerário do Conselho Nacional de Justiça.
Para o Procurador César Barros Leal, os indicadores atestam mais uma vez a falta de apoio à mulher
presa no Brasil. Acostumado a visitar inúmeras instituições penais Brasil afora, o acadêmico cearense
revelou que algumas situações chegam a ser opressivas. “Como a criminalidade feminina é reduzida,
as prisões femininas são em pequeno número
e importam pouco num universo marcado pelo
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 63
abandono e pelo desprezo ao ser humano’, lamentou Leal, desde 2008, Doutor em Direito e
pós-doutor em Ciências Políticas e Sociais pela
Universidade Nacional Autônoma do México
(Unam). “Nas visitas que fiz a estabelecimentos
de todos os Estados deste imenso País, constatei
que, efetivamente, alguns nem sequer dispõem
de prisões femininas, vivendo as mulheres em
alojamentos separados das prisões masculinas,
em condições que facilitam enormemente a promiscuidade”, constatou.
Outra questão pertinente está relacionada a um
compromisso social maior, no sentido de cobrar das
autoridades a criação de políticas públicas que combatem as causas que levam as mulheres às prisões.
Segundo dados do Ministério da Justiça e de
organizações de direitos civis envolvidos com este
público, 80% da população carcerária feminina estão envolvidas com o tráfico. Trata-se de um envolvimento passivo já que, muitas delas, são obrigadas
a se passar por mula, ou seja, aquelas pessoas encarregadas de levar ou guardar a droga para seus
companheiros, maridos, namorados, e, quando
querem deixar o crime, são ameaçadas de morte.
Diante dessa realidade, muitos especialistas
defendem que, no caso das mulheres, a legislação tem que ser revista, no sentido de criação
de políticas públicas que combatem as causas
que levam as mulheres à situação de prisão. Um
dos defensores da pauta, César Barros Leal anotou que o perfil da população carcerária feminina das detentas envolvidas com o crime é bem
característico: mulheres jovens, em sua maioria,
mães de família.
“Geralmente, são mulheres que se envolveram
com drogas e permanecem anos e anos entre quatro paredes, numa resposta ao crime que em nada
contribui para sua minimização e só alarga os problemas familiares e sociais”, constatou, para arrematar: “A sociedade reivindica, a altas vozes, uma
execução penal digna, em consonância com as normas nacionais e internacionais que a regulam”.
64 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
Arquivo pessoal
CAMINHOS DA DOR
Entrevista:
César Barros Leal
Presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos
“É preciso erigir penitenciárias
específicas para as mulheres
em situação de prisão”
U
ma das maiores autoridades do país sobre Direitos Humanos, César Barros Leal
é Professor aposentado da Faculdade de
Direito do Ceará e, atualmente, Presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos. É Doutor em
Direito e pós-Doutor em Ciências Políticas e Sociais
pela Universidade Nacional Autônoma do México
(Unam). Também é membro da Academia Cearense de Letras. Nessa entrevista, o especialista critica
a falta de investimentos no setor prisional brasileiro
e defende um olhar mais humano e seriedade.
AMB – Por que esse tema da mulher em
situação de prisão ainda é uma questão delicada no Brasil?
César Barros Leal – O sistema penitenciário, de um modo geral, é um tema polêmico
e delicado, objeto de uma visão distorcida por
parte de quem costuma analisá-lo sob um viés
equivocado, flagrantemente punitivo e, nessa
linha enganosa de ideias, teima em defender, a
despeito de todas as evidências de sua absurdidade, uma política de endurecimento penal, de
combate bélico à criminalidade e de deplorável
menoscabo à figura do recluso, cidadão de segunda ou de nenhuma categoria que só atrai o
interesse da sociedade quando participa de um
motim ou logra ou tenta fugir, tal como nos advertia há anos o saudoso Procurador do Estado
do Rio de Janeiro Augusto Thompson, em sua
obra clássica A Questão Penitenciária. É que,
entre nós, predomina, apesar de tudo (e inclusive da recente reforma do Código de Processo
Penal), o raciocínio de que a prisão é a única e
a verdadeira punição e que as penas alternativas
constituem um arremedo de castigo e pecam por
expandirem a rede de controle (net widening).
Sobre a mulher recai toda essa carga negativa em
dose maior, prevalecendo um estigma secular que
se reproduz e se exacerba intramuros. Como a
criminalidade feminina é reduzida (conquanto esteja se ampliando, quantitativa e qualitativamente), as prisões femininas são em pequeno número
e importam pouco num universo marcado pelo
abandono e pelo desprezo ao ser humano.
AMB – Quais são os principais problemas
enfrentados pelas autoridades para solucionar o caso?
REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB - 65
Entrevista: César Barros Leal
“É preciso erigir penitenciárias específicas para as mulheres em situação de prisão”
César Barros Leal – São muitos e ingentes os
problemas que permanecem sem respostas. Isso
nos remete à imperiosidade de oferecer à presidiária uma assistência otimizada (material, médica,
jurídica, social, religiosa etc), incluindo atividades
laborais compatíveis com suas aptidões e com o
mercado de trabalho e que lhe possibilitem um
retorno útil à sociedade. A atenção que se lhe
deve prestar, de forma apropriada, é uma imposição da moderna política criminal e penitenciária.
AMB – O que falta para ser resolvido?
César Barros Leal – Falta um olhar mais humano. Falta mais seriedade. O sistema prisional
nunca foi encarado neste País como uma questão de segurança pública. É preciso erigir prisões
específicas para mulheres, não obstante as críticas dos que acerbamente se opõem à edificação
de novas unidades e conclamam a relevância de
construir escolas e centros hospitalares. A educação e a saúde são fundamentais, mas essa percepção não pode conduzir à visão estrábica de
que não se deva investir nessa área. Os que assim advogam defendem a manutenção do caos.
Ergue-se uma bandeira em detrimento de outra,
quando o certo seria advogar a ação efetiva do
Governo em todos os âmbitos.
O que entristece é saber que tudo passa basicamente pela vontade política e nada nos faz
crer em mudanças significativas. Lembro-me que
o Ministério da Justiça, há alguns anos, promoveu um concurso de monografias sobre a mulher
presa e a mulher do preso; dezenas de trabalhos
apontaram caminhos a serem percorridos sem
que, no curso do tempo, hajam sido tomadas as
providências pertinentes, mediatas e imediatas,
para superar um drama que não tem fim.
66 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB
AMB – Como o senhor vê a negação dos
direitos sexuais e reprodutivos e das visitas
íntimas?
César Barros Leal – Sou favorável às visitas
íntimas nas prisões masculinas e femininas. Em
Fortaleza, durante muitos anos, a visita conjugal
só se admitia nos presídios masculinos, e essa regalia (hoje o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP a qualifica como um
direito) se estendia às mulheres presas que tivessem esposos ou companheiros atrás das grades.
Era um absurdo, pois isso era negado às mulheres
cujo esposo ou companheiro não tivesse comprometimento com a justiça. Só após uma longa luta
se corrigiu esta distorção.
Pude verificar que, em outros Países, a visita íntima não é tão comum. São poucos os estados norte-americanos que a admitem e, de igual modo, é
proibida em boa parte dos Países europeus. Na verdade, dita modalidade de visita, comum na América
Latina, vem a ser uma preciosa conquista de nosso
penitenciarismo, que reforça os direitos sexuais e reprodutivos da mulher aprisionada.
Em Fortaleza, fundamos, há 18 anos, uma creche, sem fins lucrativos, para filhos de detentas. São
cem crianças, na faixa de 0 a 3 anos e meio, que
recebem um tratamento adequado e imprescindível
a seu desenvolvimento biopsicossocial.
AMB – Segundo dados recentes, 2% das
mulheres em situação de prisão no Brasil
estão grávidas ou em período de lactação.
Como avalia essa situação?
César Barros Leal – Sem dúvida. A mulher,
de modo particular, a grávida ou em período de
lactação, exige uma assistência médica desse-
melhante. O tratamento psicológico se impõe. A
bem dizer, essa omissão decorre em grande parte
de uma lacuna da lei que não prevê, diversamente de outros países, a assistência psicológica. São
pouquíssimos os Estados brasileiros em cujas Secretarias de Justiça (ou órgãos similares, que façam suas vezes) haja o cargo de psicólogo.
AMB – Por que as autoridades brasileiras
e o sistema penitenciário têm dificuldade em
atender às demandas cobradas pela ONU?
César Barros Leal – Essas recomendações estão
presentes nas Regras Mínimas da ONU para o Tratamento do Preso, assim como nas Regras Mínimas
para o Tratamento do Preso no Brasil, aprovadas pelo
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). As decisões da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, por sua vez, têm enfatizado que o
Estado garante os direitos daqueles que estão sob sua
custódia. É notório, no entanto, o descompasso entre
a realidade presidial e a pletórica legislação, de caráter
nacional e internacional, que dispõe sobre as condições do cárcere e os direitos de seus habitantes.
AMB – Qual deve ser o papel da sociedade com relação à criação de políticas públicas
que combatem as causas que levam as mulheres às prisões?
César Barros Leal – Quanto às políticas públicas, é evidente que minha resposta teria de ser
afirmativa. Sempre me incomodou a visita às prisões femininas, e as conheço em quase todos os
Estados: sua população é composta de mulheres
jovens, em sua maioria mães de família, que, via de
regra, se envolveram com drogas e permanecem
anos e anos entre quatro paredes, numa resposta
ao crime que, em nada, contribui para sua minimização e só alarga os problemas familiares e sociais.
O Ministério da Justiça publicou em 2007,
por minha recomendação, o livro da jovem advogada cearense Jôsie Jalles Diógenes, sob o título
‘Tráfico ilícito de drogas praticado por mulheres
no momento do ingresso em estabelecimentos
penais: uma análise das reclusas do Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa
– IPFDAMC’, que elenca os motivos que levam
centenas de mulheres a ingressarem em prisões
masculinas, levando consigo, em suas partes íntimas, toda a sorte de drogas. Na apresentação da
obra, afirmei: “O sistema penitenciário brasileiro, na
dimensão de suas características, de suas deficiências e de seu assíduo desrespeito aos direitos fundamentais dos encarcerados, particularmente das mulheres, emergiu em um retrato em preto e branco
que evidencia a penúria e a promiscuidade de uma
população que reivindica, a altas vozes, uma execução penal digna, em consonância com as normas
nacionais e internacionais que a regulam.”
AMB – Na maior parte do Brasil, elas são
lotadas em lugares adaptados de presídios
masculinos. Como o sr. avalia?
César Barros Leal – É mais um indicador da
falta de apoio à mulher presa. Nas visitas que fiz
a estabelecimentos de todos os estados deste
imenso País, constatei que, efetivamente, alguns
nem sequer dispõem de prisões femininas, vivendo as mulheres em alojamentos separados das
prisões masculinas, em condições que facilitam
enormemente a promiscuidade. Aliás, essa não é
uma realidade exclusiva do Brasil, porquanto verifiquei que isso também ocorre em outros Países
da América Latina, como o México.
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Revista de Direitos Humanos - Jan/12