Trechos de “Um Homem Sem Pátria”
Quando criança eu era o mais jovem da minha família, e o caçula de qualquer
família é sempre um piadista, porque uma piada é o único jeito que ele tem de
entrar numa conversa adulta. Minha irmã era cinco anos mais velha, meu
irmão nove anos mais velho, e meus pais eram ambos conversadores. Então, à
mesa de jantar, quando muito jovem, eu era muito chato para todas estas
outras pessoas. Elas não queriam saber das histórias bobas e infantis dos meus
dias. Queriam falar sobre coisas realmente importantes que aconteciam na
escola secundária, na universidade ou no trabalho. Por isso, a única maneira
que eu tinha de entrar numa conversa era dizer algo engraçado. Acho que devo
ter feito isso por acaso, no início, acidentalmente fiz um trocadilho que parou
a conversa, ou coisa parecida. E então descobri que as piadas eram um modo
de entrar numa conversa adulta.
Cresci numa época em que a comédia neste país era soberba — durante a
Grande Depressão. Havia grandes números de comediantes absolutamente
ótimos no rádio. E, quase sem intenção, comecei realmente a estudá-los.
Ouvia comédias pelo menos uma hora por noite ao longo de toda a minha
juventude e fiquei muito interessado pela estrutura das piadas e como elas
funcionavam.
Quando faço graça, tento não ofender. Não penso muito se o que faço é de
gosto duvidoso. Não penso se deixo muitas pessoas constrangidas ou irritadas.
Os únicos choques que uso são uma ocasio-nal palavra obscena. Algumas
coisas não são engraçadas. Não posso imaginar um livro ou uma cena de
humor sobre Auschwitz, por exemplo. E não consigo fazer piada sobre a
morte de John F. Kennedy ou Martin Luther King. Fora isso, não penso em
qualquer assunto do qual eu fugiria, do qual não conseguiria extrair alguma
graça. Catástrofes totais são terrivelmente divertidas, como Voltaire
demonstrou. Se querem saber, o terremoto de Lisboa é engraçado.
Vi a destruição de Dresden. Vi a cidade antes,
e então saí de um abrigo antiaéreo e a vi depois, e certamente uma das minhas
reações foi a risada. Sabe Deus, é a alma buscando algum alívio.
Qualquer assunto está sujeito à risada e imagino que houve risadas de algum
tipo muito grotesco entre as vítimas de Auschwitz.
O humor é quase uma reação fisiológica ao medo. Freud disse que o humor é
uma reação à frustração — uma das muitas reações. Um cachorro, ele disse,
quando não consegue sair por um portão, começa a arranhar e a cavar e a fazer
gestos sem sentido, talvez rosnando ou coisa parecida, para lidar com a
frustração, a surpresa ou o medo.
E uma ampla quantidade de risada é de-sen-cadeada pelo medo. Trabalhei
numa série de comédias da televisão anos atrás. Estávamos tentando montar
um espetáculo que, como princípio básico, mencionava a morte em todo
episódio, e este ingrediente tornaria qualquer risada mais profunda sem que a
platéia percebesse como as gargalhadas estavam sendo induzidas.
Existe um tipo superficial de risada. Bob Hope, por exemplo, não era
realmente um humorista. Era um cômico com material muito superficial,
nunca mencionava nada que perturbasse. Eu ria aos borbotões com o Gordo e
o Magro. Existe uma terrível tragédia neles, de certo modo. Estes homens são
suaves demais para sobreviver neste mundo e encontram-se em perigo terrível
o tempo todo. Poderiam ser mortos com muita facilidade.
Até mesmo as piadas mais simples são baseadas em pequeninos toques de
medo, como a pergunta: “O que é aquela coisa branca no cocô do
passarinho?” O ouvinte, como se convocado para uma sabatina na escola, fica
temporariamente temeroso de dizer qualquer asneira. Quando ouve a resposta:
“Aquilo também é cocô de passarinho”, ele, ou ela, afasta o medo automático
com uma risada. Ele ou ela não foi testado, afinal.
“Por que os bombeiros usam suspensórios vermelhos?” E “Por que enterraram
George Washington na encosta de uma colina?” E assim por diante.
É verdade, existem piadas sem graça, o que Freud chamava de humor de
cadafalso. Existem situações tão sem esperança que nenhum alívio é
imaginável.
Enquanto éramos bombardeados em Dresden, sentados num porão com os
braços sobre as cabeças para nos proteger do teto que podia ruir, um soldado
disse, como a condessa de uma mansão numa noite fria e chuvosa: “Fico
pensando no que os pobres estarão fazendo esta noite.” Ninguém riu, mas,
mesmo assim, ficamos contentes que ele tivesse dito aquilo. Pelo menos ainda
estávamos vivos! E ele era prova disso.
2
Sabem o que é um twerp? Quando eu freqüentava a Escola Secundária
Shortridge em Indianápolis, há 65 anos, um twerp era um cara que enfiava
uma dentadura falsa no rabo e arrancava com ela os botões dos assentos
traseiros dos táxis. (E um snarf era um cara que farejava os selins das
bicicletas das garotas.)
Considero um twerp qualquer um que não tenha lido o maior conto americano,
que é “Um acontecimento na ponte de Owl Creek”, de Ambrose Bierce. Não é
nem remotamente político. É um exemplo impecável do gênio americano,
como “Sophisticated Lady” de Duke Ellington ou a estufa de Franklin.
Considero um twerp qualquer um que não tenha lido A democracia na
América, de Alexis de Tocqueville. Não pode haver melhor livro sobre as
forças e vulnerabilidades inerentes à nossa forma de governo.
Querem um gostinho daquele grande livro? Ele diz, e isso foi há 169 anos, que
em nenhum outro país além do nosso o amor ao dinheiro se arraigou mais nas
afeições dos homens. Certo?
O escritor franco-argelino Albert Camus, que ganhou o Prêmio Nobel de
Literatura em 1957, escreveu: “Só existe um problema filosófico
verdadeiramente sério: o suicídio.”
Aí está outro acesso de gargalhadas da literatura. Camus morreu num desastre
de automóvel. Suas datas? 1913-1960 d.C.
Já se deram conta de que toda grande literatura — Moby Dick, As aventuras
de Huckleberry Finn, Adeus às armas, A letra escarlate, A glória de um
covarde, A Ilíada e A Odisséia, Crime e castigo, a Bíblia e “A carga da
brigada ligeira” — fala da merda que é pertencer à espécie humana? (E não é
um grande alívio ouvir alguém dizer isso?)
A evolução pode ir para o inferno, no que me toca. Que erro nós somos.
Ferimos mortalmente este doce planeta, sustentáculo da vida — o único em
toda a Via Láctea —, com um século de orgia dos transportes. Nosso governo
está em guerra contra as drogas, não é? Por que não investe contra o petróleo?
Não existe barato mais destrutivo! Você coloca um pouco desta droga no seu
carro e pode correr a mais de cem por hora, atropelar o cachorro do vizinho e
estraçalhar toda a atmosfera. Deixa para lá, enquanto formos o tal do homo
sapiens, por que nos preocuparmos? Vamos arrebentar todo este barraco.
Alguém aí tem uma bomba atômica? Quem não tem uma bomba atômica hoje
em dia?
Mas tenho algo a dizer em defesa da humanidade: não importa a era da
história, incluindo os tempos- do Jardim do Éden, todo mundo é recémchegado. E, excetuando o Jardim do Éden, já havia todos estes jogos em
andamento que o podiam levar a agir como louco, embora para começo de
conversa você não fosse louco. Alguns dos jogos de loucura de hoje são amor
e ódio, liberalismo e conservadorismo, automóveis e cartões de crédito, golfe
e basquete feminino.
Pertenço ao povo dos Grandes Lagos da América, um povo da água doce, um
povo que não é oceânico, mas continental. Sempre que vou nadar num oceano,
sinto-me como se estivesse nadando em sopa de galinha.
Como eu, muitos socialistas americanos eram gente da água doce. A maioria
dos americanos não sabe o que os socialistas fizeram durante a primeira
metade do século passado com a arte, com a eloqüência, com os dons de
organização, para elevar o amor-próprio, a dignidade e o tino político dos
assalariados americanos, de nossa classe operária.
Que os assalariados, sem posição social, educação superior ou riqueza sejam
de intelecto inferior é seguramente desmentido pelo fato de que dois de nossos
mais esplêndidos escritores e oradores que tocaram os assuntos mais
profundos na história americana eram trabalhadores autodidatas. Estou
falando, naturalmente, de Carl Sandburg, o poeta de Illinois, e de Abraham
Lincoln, do Ken-tucky, depois de Indiana e finalmente de Illinois. Ambos,
permitam-me dizer, eram pessoas continentais, da água doce, como eu. Outra
pessoa da água doce e esplêndido orador foi Eugene Victor Debs, um exfoguista de locomotiva nascido numa família de classe média em Terre Haute,
Indiana.
Hurra para o nosso time!
“Socialismo” não é uma palavra mais maligna do que “cristianismo”. O
socialismo não prescreveu Josef Stalin, sua polícia secreta e o fechamento de
igrejas mais do que o cristianismo prescreveu a Inquisição espanhola.
Cristianismo e socialismo, ambos, prescreveram uma sociedade dedicada à
proposição de que todos os homens, mulheres e -crianças são criados em
condições de igualdade
e não passarão fome.
Adolf Hitler, a propósito, oferecia uma promoção casada. Batizou seu partido
de Nacional-Socialista, os Nazis. A suástica de Hitler não era um símbolo
pagão, como muitas pessoas acreditam. Era uma cruz cristã de trabalhador,
feita de machados, de ferramentas.
Quanto às igrejas fechadas por Stalin e aquelas fechadas na China de hoje: tal
supressão da religião foi supostamente justificada pela afirmação de Karl
Marx de que “a religião é o ópio do povo”. Marx disse isso em 1844, quando o
ópio e derivados do ópio eram os únicos analgésicos eficazes que uma pessoa
podia tomar. O próprio Marx os havia tomado. E ficara agradecido pelo alívio
temporário que lhe deram. Estava simplesmente observando, e certamente não
condenando, o fato de que a religião também podia ser confortadora para
pessoas em dificuldades econômicas ou sociais. Era um truísmo casual, não
um ditame.
Quando Marx escreveu estas palavras, a propósito, ainda não tínhamos sequer
libertado nossos escravos. Qual dos dois vocês imaginam que era mais bem
visto aos olhos de um Deus misericor-dioso na época, Karl Marx ou os
Estados Unidos da América?
Stalin ficou feliz em assumir o truísmo de Marx como um decreto e os tiranos
chineses também, uma vez que aparentemente ele os fortalecia para tirarem de
ação pregadores que poderiam falar mal deles ou de suas metas.
A afirmação também habilitou muitos neste país a dizer que os socialistas são
contra a religião, contra Deus e portanto absolutamente revoltantes.
Nunca me encontrei com Carl Sandburg ou Eugene Victor Debs e desejava têlos conhecido. Ficaria sem fala na presença de tais tesouros nacionais.
Conheci um socialista da geração deles — Powers Hapgood, de Indianápolis.
Era um típico idealista de Indiana. O socialismo é idealístico. Hapgood, como
Debs, era uma pessoa da classe média que achava que poderia haver mais
justiça econômica neste país. Queria um país melhor, apenas isso.
Depois de se formar em Harvard, foi trabalhar como mineiro de carvão,
incitando seus irmãos operários a se organizarem a fim de conseguirem
melhores salários e condições de trabalho. Também liderou um grupo de
pessoas que protestava contra a execução dos anarquistas Nicola Sacco e
Bar-tolomeo Vanzetti em Massachusetts, em 1927.
A família de Hapgood era dona de uma fábrica de enlatados bem-sucedida em
Indianápolis, e quando Powers Hapgood a herdou, ele a entregou aos
empregados, que a arruinaram.
Nos conhecemos em Indianápolis no final da Segunda Guerra Mundial. Ele
tinha se tornado um delegado do Congresso das Organizações Industriais.Houvera alguma confusão no piquete, e ele prestava depoimento a respeito
disso no tribunal, quando o juiz parou tudo e lhe perguntou: “Sr. Hapgood,
aqui está, um diplomado de Harvard. Por que alguém com as suas vantagens
escolheria viver como vive?” Hapgood respondeu ao juiz: “Ora, por causa do
Sermão da Montanha, senhor.”
E de novo: hurra para o nosso time.
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