A QUEBRA DA TRADIÇÃO Gastão Reis 1 Existem tradições e tradições. Há aquelas que a vassoura do tempo faz bem em varrê-las, e outras que nos deveriam ser caras porque abandoná-las é caminhar para o pior dos mundos. A famigerada PEC 37 (Proposta de Emenda Constitucional nº 37), que submeteria decisões do STF – Supremo Tribunal Federal ao Congresso, aprovada por unanimidade – (!?) – na Comissão de Constituição e Justiça – CCJ, dá bem a medida do absurdo perpetrado. Trata-se de uma inciativa que jamais deveria ter ocorrido por afrontar a independência entre os poderes. Desatinos semelhantes já foram cometidos pela Venezuela, Bolívia e Argentina, países em relação aos quais devemos manter saudável distância para não fazer parte desse terrível bloco da marcha da insensatez. Parece-me que o melhor modo de entender a questão de fundo envolvida nesse processo é a tese desenvolvida por Hannah Arendt em seu brilhante livro A Promessa da Política. Ali, ela nos fala da ilustre tradição de liberdade política, nascida com Platão e Aristóteles, de respeito ao outro como homo politicus. Ela nos chama a atenção para a praça pública grega, berço da democracia ocidental, em que as diferentes opiniões eram livremente debatidas, e onde as decisões eram tomadas pelo voto igualitário dos cidadãos livres. Também nos relembra da postura do Império Romano, a despeito da força das armas, em relação aos povos conquistados. A Pax Romana conseguia abrir espaço para uma convivência pacífica em que a eliminação física dos povos sob o domínio de Roma nunca se constituiu num objetivo sistemático do Império, salvo em alguns casos excepcionais como o de Cartago. Pois bem, essa ilustre tradição da vida política ocidental perdurou por dois mil anos até que pensadores como Hegel e Marx abriram as portas, no plano filosófico, para as trágicas experiências totalitárias que se materializaram com o nazismo e o comunismo. Em última instância, o que aconteceu é que suprimiram, na prática, o espaço de manifestação do outro, aquele que discorda de nós. A verdade passa a ser a verdade da classe social dominante, ideia queridinha de Gramsci, teórico marxista italiano, que, antes dele, já vinha provocando estragos monumentais não apenas na vida política, mas também na economia dos povos que se viram submetidos à visão de mundo e às práticas abjetas do totalitarismo. Curiosamente, as vozes que se opunham aos desatinos daí resultantes eram simplesmente sufocadas (e descartadas) com o argumento de que não passavam de espasmos do pensamento reacionário de direita. Raymond Aron, 1 Gastão Reis Rodrigues Pereira - Empresário e economista E-mail: [email protected] Cel. (24) 9272-8586 Site pessoal: www.smart30.com.br autor, em 1957, de Marxismo – O ópio dos intelectuais, foi vilipendiado na França como vendilhão do templo proletário, se é que se podemos usar esses dois termos juntos para tempos de ateísmo rompante. No final da década de 1960, na faculdade de economia da UFRJ, muito influenciada pela ideologia de esquerda, ao tomar contato com as ideias de von Mises e com a obra de Friedrich Hayek, em especial, O Caminho da Servidão, eu mesmo tive a reação típica de ver em ambos desprezo pela realidade concreta daqueles tempos. Ou seja, como concordar com eles sobre a impossibilidade de o planejamento central funcionar se a URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas estava lá impávida muito bem obrigada? Na época, nem eu, nem a torcida do Flamengo, tínhamos consciência da solidez intelectual de ambos que sabiam que o gigante tinha pés de barro. E que ícones como Hegel, Marx e Lênin, que se supunham donos da verdade, simplesmente tinham aberto os portões do inferno, mas prometendo a seus “fiéis” a entrada no “paraíso” comunista. A despeito de vivermos em tempos turbulentos, felizmente eles são outros. As pessoas não acreditam mais nessas soluções mirabolantes. Mas o que mais preocupa em nosso Brasil são as várias tentativas de chocar o ovo da serpente. Cá para nós, são de nos deixar de cabelo em pé projetos como os de censura à imprensa, com o rótulo de propaganda enganosa de controle social dos meios de comunicação; o de cerceamento do Ministério Público, para impedi-lo de tomar a inciativa de abrir processos contra os desmandos dos poderosos do dia; e este último, já mencionado, de submissão do STF aos desmandos de um Congresso que o deputado Miro Teixeira avaliou afirmando que pior que ele só um Congresso fechado. As lágrimas de esguicho do saudoso Nélson Rodrigues já não dão conta do recado. É coisa para lágrimas com o jorro virulento das mangueiras do corpo de bombeiros. Nem Ulysses Guimarães, que profetizou corretamente que o congresso seguinte seria pior do que anterior, poderia imaginar que chegaríamos a esse ponto. Parece (ou será?) coisa de gente que é analfabeta em matéria constitucional. É simplesmente inaceitável que nossos deputados e senadores desconheçam princípios constitucionais básicos que juraram defender quando tomaram posse. No fundo, é a famosa tentação autoritária, a antessala da ditadura e do totalitarismo, no caso extremo. Não precisamos nos irmanar a essa triste vocação da América Latina para repetir experiências fracassadas: as famosas “soluções” de pernas curtas, mentirosas, sem consistência de longo prazo. Nesses últimos 10 anos, o PT esqueceu que para elevar consistentemente o padrão de consumo de quem estava excluído era preciso investir, coisa que o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento (1 e 2) nunca conseguiu levar a bom termo, realizando pouco mais que 1/3 do programado. E, na ânsia de manter o poder a qualquer preço, está se dando ao triste papel de chocar o ovo da serpente, que todos sabemos no que vai dar. É mais que hora de estarmos atentos ao alerta de Hannah Arendt quanto à quebra da tradição democrática que precisa ser mantida sob pena de repetir a dose brutal de infortúnios já conhecida de milhões de pessoas no mundo ao longo do século XX e no atual.