1 NOTAS CRÍTICAS SOBRE A LITERATURA “BUROCRACIA E POLÍTICA NO BRASIL” Autores: Fernando Luiz Abrucio e Maria Rita Loureiro R E S U MO Realiza-se neste texto um balanço bibliográfico sobre o tema no Brasil, indicando as principais linhas de abordagens, a partir do enfoque que privilegia a superação da dicotomia burocracia versus política. Introdução O tema da burocracia pública ocupa um lugar destacado nas Ciências Sociais brasileiras, incluindo trabalhos de caráter histórico e jurídico, análises de sua estrutura interna, das características de seu modelo administrativo, além de numerosos estudos de agências e segmentos burocráticos e de suas relações como o sistema político, em diferentes momentos do país. O presente balanço bibliográfico não pretende dar conta do conjunto de títulos sobre o tema, mas indicar as principais linhas de abordagens, destacando certos autores, a partir do enfoque aqui privilegiado, qual seja, o da superação ou não da dicotomia burocracia versus política. I. Principais questões e perspectivas analíticas Além de já numerosa, a bibliografia brasileira sobre o tema expandiu-se consideravelmente nos últimos anos. Tal tendência deve continuar uma vez que o discurso da necessidade de se reconstruir o Estado e, consequentemente, sua estrutura burocrática, vem ampliando o debate inicialmente centralizado apenas no chamado ajuste estrutural. Com isso, passa-se da primeira etapa de reformas do Estado, centrada na "destruição " do antigo modelo, conforme indicou Haggard (1996) para a segunda etapa de reformas, cujo objetivo está focalizado na redefinição de seu papel. Esta nova percepção quanto à reforma do Estado pode ser encontrada tanto na academia como no meio político, principalmente nos setores do atual governo encarregados mais diretamente da restruturação do aparelho do Estado (vide Bresser Pereira, 1996, 1997). Todavia, paralelamente ao crescimento da importância do tema, caminha outra tendência que afasta os estudos de um melhor entendimento da questão. Trata-se de uma inclinação à despolitização do estudo da estrutura burocrática estatal em duplo sentido. De um lado, supõe-se a burocracia como algo que deva ser neutro e portanto separado das injunções políticas, pois qualquer interconexão entre estes "dois mundos" é considerada deletéria, afastando a ação estatal do interesse público. De outro lado, procura-se entender a burocracia como um aparato que deve ter autonomia frente ao sistema político para atuar de forma eficiente. Tal postura que rejeita a politização da burocracia, considerando ilegítimos seus vínculos com o sistema político (aí incluindo as pressões partidárias e de grupos de interesses, as disputas federativas etc.) tem sido adotada, em maior ou menor grau, pela maioria dos autores que estudam a burocracia pública no Brasil. II. As diversas abordagens da bibliografia sobre o tema Pode-se classificar o conjunto da bibliografia em quatro linhas de abordagem: a) Trabalhos de cunho macro-histórico que estudam a formação da burocracia pública a partir das relações instituídas entre o Estado e a sociedade. Em tais análises, ressalta-se que, em contraponto com uma sociedade fraca e politicamente desarticulada, constituiu-se historicamente no país, um Estado autoritário com estrutura burocrática forte, mas ineficiente. b) Estudos sobre determinados segmentos e/ou agências da burocracia estatal, que destacam sua autonomia e importância no processo decisório. Embora bastantes interessantes 2 por identificar a dinâmica interna do aparelho do Estado, ou seja, “o Estado em ação”, estes estudos, de modo geral, não estão centrados na temática relativa à interconexão da burocracia com o sistema político; c) Textos voltados para análise de temas relativos à formação, ao recrutamento e à carreira de quadros burocráticos. Em sua maioria, centrados na ótica de recursos humanos para o setor público, tais textos ressaltam como o sistema político atrapalha o processo de racionalização da máquina estatal; d) Análises que buscam fazer a interconexão entre a política e a burocracia, examinando os vínculos entre burocracia e grupos de interesse, as relações entre buscando entender quais são as gramáticas que estruturam o sistema político-estatal . II.1. As abordagens macro-históricas No caso dos trabalhos macro-históricos, o eixo de análise está na busca de padrões de relação instituídos entre o Estado e a sociedade e seus efeitos sobre a estruturação e a dinâmica da burocracia em diferentes momentos da história brasileira. De modo geral, estes trabalhos indicam a existência de um aparelho estatal organizado previamente à sociedade política, o que acabou gerando, de um lado, a debilidade do sistema representativo no país, e de outro, a constituição de uma burocracia ao mesmo tempo forte e ineficiente. Dentro desta linha e adotando uma abordagem mais ensaística, encontra-se o trabalho de Raimundo Faoro (1976). Em Os Donos do Poder, esse autor procura explicar o desenvolvimento histórico do Brasil a partir do estudo de um grupo intitulado de estamento burocrático, o qual teria fundamental importância na definição dos nossos padrões políticos, no caso classificado de patrimonialista. O predomínio deste estamento burocrático coloca em jogo a possibilidade da ordem liberal-representativa se afirmar no país. Baseado em uma perspectiva histórica de longa duração, Faoro tenta mostrar como um tipo de Estado advindo de um modelo ibérico insiste em permanecer apesar das transformações ocorridas ao longo do tempo, tal qual uma “viagem redonda”. O grande problema desta análise é não perceber a série de mudanças operadas no Estado Brasileiro desde a década de 30, sobretudo na estrutura burocrática. A categoria sociológica “ estamento burocrático” apresenta dificuldades para explicar não só a burocracia de maneira geral, mas sobretudo para analisar as diferenças dentro da burocracia, especialmente a convivência de agências clientelistas, fortemente guiadas pela classe política tradicional, com agências insuladas, protegidas por determinados setores do governo, e que atuam nas áreas mais modernas da economia, como foi mostrado por Geddes (1994). Ademais, os “donos do poder”, sobretudo agora após a redemocratização, precisam responder cada vez mais a demandas do sistema representativo e da competição política. A lógica do estamento burocrático não se coaduna mais com as modificações ocorridas no Estado e no sistema político brasileiro. A tese central de Faoro também se sustenta num pressuposto incorreto, qual seja, de que o Estado brasileiro possui um poder extenso sobre a sociedade. Na verdade, à expansão quantitativa do Estado brasileiro não correspondeu, na maioria das vezes, ao aumento de sua capacidade de atuação do sobre a sociedade e o mercado. Utilizando-se das categorias de Michael Mann (1992) - igualmente aproveitadas por recente estudo de Maria do Carmo Campello de Souza (1994) -, podemos dizer que há dois tipos de poder estatais, constituidores de sua autonomia: o despótico e o infra-estrutural. O primeiro se refere ao conjunto de ações que a elite estatal pode efetuar sem negociação, institucionalizada ou rotineira, com os grupos da sociedade civil. O poder infra-estrutural é relativo à capacidade do Estado de penetrar a sociedade civil e de implementar decisões políticas através do território nacional, coordenando as atividades da sociedade através de sua própria infra-estrutura. Constitui-se o poder infra-estrutural, usando agora os termos de Migdal (1988), o controle social efetuado 3 pelo Estado, o qual garante (ou deve garantir) a obediência dos cidadão e a centralização do comando sobre os principais grupos da sociedade. Transportando estas categorias para o caso brasileiro, concluímos, com Campello de Souza (1994), que o Estado aqui desenvolveu bem o poder despótico mas não conseguiu estruturar a contento o poder infra-estrutural. Isto pode ser visto melhor nos momentos de crise do Estado, quando se torna necessário distribuir as perdas entre os atores. Neste momento, o Estado - ou os governantes que lá estão - percebem o quão frágil é a sua capacidade de articulação e comando. Tal conclusão ajuda-nos a combater o argumento a-histórico de que há um estamento burocrático que se constitui em “donos do poder”. Ainda na linha mais macro-histórica, há o importante trabalho de Simon Schwartzman (1988), cujo ponto fundamental é indicar a presença de um Estado neopatrimonialista, fundado em relações de clientela e de cooptação, a ausência de grupos autonomamente organizados na sociedade e a conseqüente fragilidade da estrutura partidária, características estas que constituem os traços fundamentais do autoritarismo brasileiro. Em tal estrutura social, o sistema político não funciona como “representante” ou “agente” de classes sociais. Ao contrário, os padrões de relacionamento entre o Estado e a sociedade, segundo Schwartzman, estão alicerçados em uma burocracia estatal pesada, todopoderosa, mas pouco ágil e ineficiente, e, de uma sociedade submetida. Disso decorre dois traços marcantes do sistema político e administrativo, que caminham por vezes através linhas contraditórias, mas que constituem uma combinação peculiar brasileira: 1) Neopatrimonialismo, caracterizado pela apropriação de funções, órgãos e rendas públicas por setores privados que, por isso mesmo, tornam-se subordinados e dependentes do poder estatal; 2) Despotismo burocrático, manifestando-se na pretensão dos governantes a “tudo saber, tudo poder”, sem dar muita atenção às formalidades das leis e às normas universais. Embora Schwartzman ressalte as diferenças entre os períodos históricos — ao contrário de Faoro —, grosso modo ele mostra que o processo indicado acima está presente desde o Império, passando pelos militares e positivistas republicanos, chegando até os tecnocratas do Brasil recente, consolidando-se inclusive com a profissionalização e modernização da burocracia governamental. Decorre destas relações, ainda segundo o autor, que o jogo político não se processa como negociação entre iguais, muito menos como processo de representação entre os setores organizados autonomamente na sociedade. Ao invés disso, trata-se de uma barganha entre o Estado neopatrimonial e os grupos sociais fundada na cooptação de alguns (os que passam a ser incluídos nos benefícios ou prebendas públicas cedidas como favores privados em troca de apoio político); e na exclusão da grande maioria, tanto dos processos decisórios quanto dos benefícios da eventual distribuição da riqueza social. Estes vínculos acabaram gerando, nos termos de Schwartzman, uma organização estatal que é ao mesmo tempo forte, porque fonte de riqueza social, mas também fraca, pois seu poder depende continuamente da distribuição de prebendas aos grupos cooptados ou a cooptar. Em outras palavras, tem-se um Estado que é, de um lado, forte e ator principal da modernização capitalista, capaz de levar adiante a partir dos anos 30 e 40, o projeto desenvolvimentista; e, de outro, fraco no sentido de que não consegue se impor aos grupos dominantes e alterar (ou mesmo suavizar) a exclusão das classes dominadas. Seguindo a lógica deste último ponto, pode-se dizer que, paradoxalmente, a mesma cooptação que dá a legitimidade e a força ao Estado enfraquece suas capacidades. O argumento de Schwartzman, levado às últimas conseqüências, não capta a possibilidade de um sistema de cooptação se compatibilizar, embora de forma sempre tensa, com o sistema burocrático weberiano. Mesmo tendo percebido a existência de uma dupla burocracia, o autor não consegue captar os efeitos desta divisão, tal como o fizeram Luciano Martins (1985) e Barbara Geddes (1994). Modelos 4 híbridos de burocracia — cooptação e mérito juntos — podem existir em alguns países, como mostra o estudo de Peter Evans sobre o Brasil e a Índia (1993), sem levar até o ponto de ruptura, apesar de trazerem irracionalidades crescentes no âmbito do desenvolvimento econômico e social. Ademais, a lógica da negociação, típica de qualquer sistema político, vira a todo momento cooptação no argumento de Schwartzman. Se é bem verdade que a cooptação continua a existir, pelo menos dois fatores importantes fragilizam o caráter explicativo do trabalho de Schwartzman para os dias atuais. São eles: a complexificação do aparelho do Estado, exigindo cada vez mais critérios técnicos na orientação das ações de todos os atores políticos (inclusive dos políticos strictu sensu); e o aumento da competição política no país, que, por um lado, elevou o número de elites lutando entre si e efetivando um controle mútuo, e, por outro, tornou mais relevante o controle da opinião pública sobre o Governo Federal. II.b. Os estudos específicos Um outro enfoque analítico é aquele que privilegia certos setores específicos da burocracia, mostrando seja sua autonomia frente ao restante do sistema político, seja também sua importância estratégica para o desenvolvimento econômico do país. Estão nessa categoria os trabalhos sobre segmentos burocráticos, como os militares (Coelho, 1977) e os diplomatas (Cheibub, 1990); estudos acerca de certas agências governamentais, como o BNDE (Martins, 1985), o Conselho Monetário Nacional, e o Conselho de Desenvolvimento econômico (Guimarães & Vianna, 1987), o Conselho Interministerial de Preços (Diniz & Boshi, 1987), e ainda sobre a burocracia das empresas estatais (Martins, 1985; Schneider, 1994). Além destes estudos, particularmente vinculados à lógica da Administração Indireta, que são mais numerosos, citam-se uns poucos estudos que analisam a Administração Direta, como o de Gouvea (1994) sobre a burocracia das finanças públicas e o de Loureiro (1997), relativo aos grupos de economistas responsáveis pelos planos de estabilização monetária e a gestão das políticas macroeconômicas nos anos mais recentes. O traço comum nesta gama tão diversificada de estudos é o caráter predominantemente autônomo da burocracia frente aos partidos, ao Congresso Nacional e aos grupos organizados da sociedade civil. Em outras palavras, os estudos sobre diplomatas, militares, gestores de planos de estabilização ou de reformas das finanças públicas, de um lado, e, de outro, os relativos às agências, têm como pressuposto analítico, explícito ou implícito, a ação autônoma da burocracia que, por diferentes razões, pode se insular, “protegendo-se” das pressões clientelistas vindas do sistema político. O leitmotiv desta corrente analítica, portanto, é a diferenciação da burocracia brasileira em dois tipos. Um, constituído por segmentos orientados por relações clientelistas que fornecem o apoio político, sobretudo o congressual ao presidente. Aqui, a Administração Direta é vista como um espaço em que predomina a lógica da barganha política — nomeação para cargos públicos, concessão de subsídios econômicos, autorização de encomendas governamentais etc.. É, deste modo, o locus por excelência da ineficiência administrativa. O outro tipo de burocracia caracteriza-se pelas chamadas “ilhas de excelência” orientadas pelo critério da competência técnica. Além disso, tal setor burocrático constrói-se a partir do insulamento burocrático, ou seja, por formas de proteção contra as pressões externas e demandas das clientelas políticas. Para explicar essa dicotomia no seio do aparelho estatal, há duas linhas argumentativas: as societárias e as estado-centristas, isto é, ora se afirma que o Estado é autônomo por razões encontradas na sociedade, ora por razões internas ao próprio Estado. Assim, de um lado, inspirando-se na teoria da dependência, indica-se que é a incapacidade de hegemonia da burguesia nacional, típica das economias capitalistas tardias, que dá ao Estado e a sua burocracia um papel especial ou estruturante da sociedade (Martins, 5 1985 e Draibe, 1985). De outro, são as características da organização do Estado, isto é, a existência de duas lógicas diferentes de atuação da burocracia— a clientelistica e a racionallegal ou meritocrática — , o fator que explica a autonomia do aparelho estatal no Brasil (Geddes, 1994). Mesmo considerando que os técnicos e os burocratas têm dificuldade de exercer um papel dirigente e estabelecer unidade nas políticas econômicas e sociais no Brasil, Draibe (1985) indica que eles exercem um papel estratégico no processo decisório e sua força “vem da incapacidade dos interesses econômicos se imporem”. Martins (1985), por sua vez, analisa a questão da autonomia da burocracia e do Estado por intermédio do estudo de caso de certas agências burocráticas no Brasil pós-64, distinguindo dois tipos de burocracia: a do setor empresarial ou Administração Indireta e a do setor governo ou Administração Direta, caracterizada como uma “burocracia sem força”, “criadora de problemas, ineficiente e ritualista”. Para ele, a extrema segmentação do aparelho estatal, a inexistência de poder de decisão sobre os recursos financeiros disponíveis e ainda a lógica de ação não orientada pela eficiência são os fatores que diminuem a autonomia dos órgãos da Administração Direta. Em contrapartida, as agências da Administração Indireta podem ser mais autônomas porque mais distantes do controle governamental. Estudando também as elites burocráticas no Brasil no período pós-64, mas aquelas que atuam justamente no setor governo - em particular no Ministério da Fazenda - Gouvêa (1994) aponta outra variável explicativa para a autonomia da burocracia: os recursos de poder que esta elite pode dispor, em particular a capacidade de atuar na definição das regras institucionais em um momento de crise do Estado, no qual “nem a sociedade, nem os empresários, nem a classe política, nem os partidos sabiam o que queriam (ou o que fazer) do (ou com) o Estado" ( op. cit. p.65). Em outras palavras, analisando a formação e a lógica de ação (de insulamento frente às pressões dos grupos políticos) de um específico segmento da burocracia - aquele situado na área de controle das finanças públicas, em um momento histórico particular, de crise do Estado desenvolvimentista e das formas de seu financiamento, esta autora pensa a autonomia como produto da ação "política" da própria burocracia, de sua capacidade de arregimentar para si recursos institucionais de poder e sobretudo de sua consciência privilegiada da situação de crise e da necessidade de projetos de mudança. Daí, sua própria escolha do objeto de estudo, qual seja: a análise da "luta" desta elite burocrática, dotada, em sua visão, de consciência mais acurada do que a dos demais atores políticos, tentando vencer obstáculos para elaborar um projeto de vanguarda para a reforma ou reordenamento das finanças públicas no Brasil. Deve-se mencionar ainda o estudo de Geddes (1990) sobre a autonomia do Estado desenvolvimentista no Brasil entre os anos 30 e 60. Trabalhando, como Martins, com a idéia de dupla burocracia no interior do Estado brasileiro, esta autora coloca porém outro tipo de oposição. Não se trata da maior ou menor proximidade ao setor governo e sim do tipo de orientação que preside as ações de cada segmento da burocracia: eficiência ou não. Centrando sua análise nas agências construídas no Brasil para a realização das políticas desenvolvimentistas, a autora afirma que a autonomia da burocracia foi imposta como condição para que certas agências governamentais (aquelas envolvidas com o projeto desenvolvimentista) pudessem ser eficientes, alcançando as metas propostas para o desenvolvimento econômico. A tarefa de promoção da industrialização e da criação de infraestrutura no país, assumidas por Vargas e Juscelino Kubitschek, fez com que estes governantes, juntamente com grupos de técnicos que os assessoravam, construíssem agências burocráticas autônomas (como o BNDE, a SUMOC, os grupos executivos e demais órgãos da chamada administração paralela de JK), em relação às pressões do sistema político patrimonialista. Em outras palavras, procurando criar agências que funcionassem pela lógica 6 da eficiência na alocação de recursos e recrutar pessoal pelo critério meritocrático da competência técnica, estas agências "paralelas" tiveram que "insular-se" frente ao sistema tradicional dominante que funcionava através da troca clientelista de cargos públicos e outros benefícios pelo apoio político. Caso contrário, não alcançariam as metas propostas pelas políticas desenvolvimentistas. Mesmo reconhecendo que a autonomia burocrática e a competência técnica em si não garantem necessariamente que as melhores políticas sejam escolhidas, o insulamento, continua Geddes, é fator importante para a efetiva implementação das políticas escolhidas, contribuindo para a maior concentração da competência técnica nas agências governamentais e maior eficiência na alocação dos recursos destinados para as áreas definidas como prioritárias, na medida em que empregos, contratos, subsídios etc., não são favores a serem trocados por apoio político. Todavia, esta autora não dá atenção ao fato de que o insulamento de certas agências frente às pressões da política clientelista não significa que a burocracia seja necessariamente autônoma. Isto é, que adote preferências próprias, independentes das demandas de grupos econômicos. Ora, como se sabe, agências "insuladas" da patronagem da política empreguista funcionaram integradas aos interesses de certos grupos econômicos industriais, como mostrou o próprio trabalho de Luciano Martins, citado acima. Também os grupos executivos do governo JK foram compostos de membros da burocracia governamental que trabalhavam conjuntamente com representantes das respectivas áreas econômicas sobre as quais atuavam, tais como o setor automobilístico, a indústria pesada etc. (Lafer, 1975 e Benevides, 1976). Portanto, também o segmento insulado da burocracia é altamente politizado. O problema, em suma, desta linha de análise é que ela despolitiza o estudo da relação entre política e burocracia, criando uma dicotomia entre estes termos. O interessante é descobrir como equilibrar os ditames da burocracia com os da política. No mais das vezes, ao contrário, este grupo de autores procura estabelecer uma resposta tecnocrática como solução ao problema intrinsecamente político do preenchimento dos cargos da alto escalão da burocracia, separando radicalmente a meritocracia representada pela atuação técnica dos funcionários de carreira do padrão imposto pelos políticos, classificado quase sempre como clientelista. Esta tendência possui um forte peso na América Latina, sendo maior ainda no caso brasileiro e encontrando guarida até mesmo em análises pertinentes acerca do impacto do sistema político sobre os cargos públicos (por exemplo, o trabalho já citado de GEDDES, 1994). II.3. Estudos centrados na organização interna de burocracia Uma terceira linha de análise é aquela que se concentra no estudo da estrutura interna da burocracia, sobretudo na organização de seus Recursos Humanos (carreiras, plano de cargos etc.), a fim de verificar a eficácia e eficiência das políticas públicas decorrentes de determinado tipo de organização burocrática, mas ressaltando como o sistema político é, via de regra, um obstáculo à constituição de uma boa burocracia. Os trabalhos de Luiz Alberto dos Santos (1997) e Gilberto Guerzoni (1996), incluem-se neste tipo de análise, bem como os recentes textos de Luiz Carlos Bresser Pereira (1996, 1997) que buscam definir os mecanismos administrativos capazes de garantir uma melhor governança. Todos estes estudos procuram descobrir qual a melhor forma de adequar a estrutura administrativa estatal à racionalidade na implementação de políticas. No entanto, há uma importante diferença entre os trabalhos de Santos e Guerzoni comparados aos Bresser Pereira: enquanto os primeiros têm como referencial normativo o modelo burocrático weberiano clássico, o segundo tem nos recém-constituídos modelos gerenciais - ou pós-burocráticos, nos termos de Michael Barzelay - seu suporte analítico. 7 Não obstante tal aspecto ser de extrema relevância, o fato é que estes textos despolitizam igualmente o estudo da Administração Pública, pois, na maioria dos casos, fazem uma radical separação entre a meritocracia dos burocratas e a suposta ineficiência advinda da politização dos cargos públicos. No final das contas, tal visão reforça o diagnóstico tecnocrático de como deve ser estruturado o Estado, esquecendo-se da direção política que guia a organização burocrática. II.4. Estudos que politizam a burocracia. A “politização” da análise da burocracia se faz por diferentes caminhos na bibliografia brasileira: Um primeiro grupo de estudos politiza a burocracia ao caracterizá-la como classe com interesses próprios e portanto como participante da luta pelo poder político. Citam-se aqui textos mais antigos de Bresser Pereira (1980) e Fernando Motta. Outra vertente da polinização da burocracia encontra-se nos estudos referentes ao processo decisão de políticas públicas durante o regime militar, nos quais se aponta como a arena de conflito de interesses foi transferida para o interior as agências governamentais. Destacam-se nesse enfoque o trabalho seminal de Cardoso (1975), já citado, sobre os anéis burocráticos; os trabalhos de Martins ( 1975 e 1985) sobre o BNDE; de Guimarães & Vianna (1987) e Diniz & Boschi (1987) sobre agências regulatórias e de planejamento como o Conselho Monetário Nacional, Conselho de Desenvolvimento Econômico e Conselho Interministerial de Preços; e ainda os de Castro & Paixão (1988) sobre outras órgãos governamentais encarregados de políticas públicas para certos setores como o Pró-Alcool, as industrias de bens de capital etc. E finalmente, um terceiro grupo de estudos que politiza a burocracia é constituído pelas análises efetuadas por Edson Nunes (1997) e por Ben Ross Schneider (1994) que evitam tomar como base de análise a dicotomia burocracia profissional meritocrática versus administração politizada, clientelista e ineficiente. Não que ambos os autores ignorem a possibilidade de existir situações conflituosas entre estas lógicas; para eles, porém, a construção do Estado brasileiro tem passado pela necessidade de se criar algum grau de convivência entre os ditames técnicos e os políticos. A análise de Schneider, por exemplo, localiza no amplo poder de nomeação do presidente da República uma das principais chaves para entender o funcionamento do aparato estatal brasileiro. Reforça as palavras de Último de Carvalho, importante político do PSD mineiro, que afirma "a essência do poder no Brasil está em quatro verbos: nomear, demitir, prender e soltar". Todavia, esse argumento, baseado em estudo sobre as políticas industriais no regime militar, não leva ao autor a dizer coisas como "a politização corrompe o Estado e a tecnocracia o salva". Ao contrário, ele demonstra que o relativo sucesso da industrialização brasileira na década de 70 pode ocorrer também em uma estrutura "politizada". Por outro lado, estudando o período que vai de 1930 ao fim do regime militar, Edson Nunes faz também uma instigaste análise acerca das relações entre política e burocracia, Ele demonstra que a distribuição dos cargos públicos federais é um ponto modal do sistema político. E para entender esta questão, acima de tudo é preciso estudar a convivência de quatro "gramáticas do poder" presentes na construção do Estado brasileiro e, neste sentido, no preenchimento do cargos públicos federais: o clientelismo, o corporativismo, o insulamento burocrático e a universalidade dos procedimentos. Esta última está vinculada à disputa competitiva e aberta entre os grupo sociais, particularmente através dos partidos ou de outras entidades mais "universalistas" da sociedade civil. Ao invés de afirmar a supremacia do insulamento burocrático sobre o clientelismo, Nunes acredita que as duas estratégias pecam por não conseguir, de fato, compatibilizar a lógica política com os critérios técnicos. Na verdade, quando as duas lógicas existem isoladamente, elas são particularistas e não universalistas, não se constituindo em mecanismos de alcance da eficiência por intermédio da 8 democratização do Estado, ou seja, de fazer dos policymakers agentes responsáveis e responsivos. Em resumo, as análises de Schneider e Nunes demonstram duas coisas fundamentais. A primeira é que deve-se evitar uma visão maniqueísta na análise da relação entre os burocracia e a política. A segunda é que a distribuição dos cargos políticos é uma variável chave do sistema político brasileiro. Falta a estes autores, entretanto, avançar ainda mais o enfoque politizador com relação aos critérios de preenchimento dos postos do alto escalão federal, captando os atores políticos na situação de luta pelos cargos públicos. No caso do estudo de Edson Nunes, o problema está no caráter excludente da classificação: ou se faz parte daqueles que seguem a lógica do insulamento burocrático, ou do corporativismo, ou ainda do clientelismo. No entanto, como bem mostra o estudo clássico de Cardoso sobre os anéis burocráticos (1975), aqueles burocratas insulados mantém relações de clientela com determinados grupos e isso, na verdade, pode ajudá-los a permanecer em tais funções. Já no estudo de Schneider, o problema não se encontra exatamente na classificação (militares, políticos, técnicos-políticos e técnicos) mas na falta de uma definição de como o conflito entre eles se estabelece na luta pelos cargos, bem como agem para constituir alianças que os mantém trabalhando para o governo. III. Determinantes da visão despolitizadora da burocracia Cabe agora analisar o contexto histórico geral e as categorias de análise que fornecem o "caldo de cultura" necessário para a predominância desta visão despolitizadora da burocracia. Pode-se dizer que este "caldo de cultura" é alimentado por três fatores, vinculados à forma como ocorreu e foi interpretada a evolução do Estado brasileiro: o tipo de vínculo entre a elite central, ai incluída a alta burocracia, e os poderes regionais, de onde provinha a legitimidade da classe política; as peculiaridades do Estado nacional-desenvolvimentista, criado a partir dos anos 30 e os obstáculos à sua construção; e o papel dos partidos dentro do sistema político brasileiro. Com relação ao primeiro fator, observa-se que o embate entre o Poder Central e as elites regionais tem sido historicamente uma razão que favorece a separação analítica rígida entre a política e a burocracia. Desde o início da colonização brasileira, segundo aponta José Murilo de Carvalho (1993), um dos problemas fundamentais para a constituição do Estado nacional foi o da criação de um poder central forte capaz de aglutinar e ordenar a ação dos vários grupos privados regionalmente constituídos, e que escassamente se comunicavam. Constituía-se, assim, a dinâmica política fundamental do desenvolvimento histórico brasileiro, fundada na dicotomia entre a elite burocrática centralizada e a classe política federalizada.: de um lado, o centro político comum, baseado em uma elite sediada na "Corte", que no mais das vezes se ancorou em uma burocracia centralizada; de outro, os grupos políticos, cuja legitimidade provinha das regiões as quais pertenciam. Ambos os grupos, em verdade, evoluíram de forma a tornar menos radical a dicotomia acima apresentada, mesmo porque o Estado e a sociedade sofreram inúmeras transformações neste século. Embora parte considerável da lógica dicotômica tenha permanecido, a ação dos burocratas é a ser cada vez mais "politizada" e a dos políticos tende a levar mais em conta os critérios técnicos. De modo que os integrantes da alta burocracia precisam também elaborar seus projetos levando em conta as bases políticas locais, enquanto os políticos devem se articular tendo como importante horizonte as possibilidades e potencialidades políticas do plano nacional, sobretudo para maximizar o avanço de suas carreiras políticas. Obviamente o problema da compatibilização entre as duas lógicas persiste. Mas, a rígida separação analítica (burocracia com viés centralizador versus classe política com 9 tendências mais centrífugas) não ajuda a entender a realidade. Isso porque ela não se esgota na questão de “proteger uma burocracia neutra contra uma classe política predadora”, como vários estudos fazem crer. Além de não corresponde ao que acontece na realidade brasileira, tal concepção vai contra as principais correntes teóricas que hoje estudam a relação entre política e burocracia, como é o caso do paradigma agente-principal (Melo, 1996; Moe, 1994), que mostra o caráter intrinsecamente político da ação tanto de burocratas como de políticos. A visão dicotômica da relação entre políticos e burocracia é ainda reforçada pela forma como ocorreu e foi analisado o processo de construção do Estado NacionalDesenvolvimentista a partir da década de 30. Isto porque, em primeiro lugar, foi por meio da autonomização de parcela da burocracia que o Estado aumentou sua atuação na esfera econômica a fim de realizar a modernização do capitalismo brasileiro - uma modernização conservadora, no sentido de Barrington Moore (1987). Estudos como os de Sônia Draibe (1985) e de Luciano Martins (1985) já citados, ressaltam tal fenômeno em suas análises. Ademais, este tipo de visão, via de regra, explica a modernização feita por intermédio do insulamento burocrático como uma maneira - ou melhor, a única maneira - de fugir das pressões clientelistas advindas do restante do sistema político. Tem-se desse modo a visão de que a burocracia estaria do lado do moderno e da eficiência, e a classe política, do lado do atraso e da ineficiência. Se é verdade que a modernização do Estado brasileiro exigiu uma certa proteção de seu aparato burocrático frente às pressões do sistema político clientelista, esta proteção não significou, entretanto, a despolitização da burocracia. Ao contrário, os inúmeros estudos ai citados, relativos à expansão e funcionamento das agências governamentais encarregadas do planejamento e regulação do desenvolvimento econômico apontaram sua extremada politização, envolvendo acirradas disputam internas (inter e intraburocráticas) e, inclusive, alianças com grupos de interesse organizados na sociedade civil, para garantir recursos necessários à efetivação de seus programas. Cabe destacar, entretanto, que a maior parte desses estudos referem-se aos governos militares e vêm a politização das agências governamentais como o deslocamento da arena política do parlamento para o governo, resultante da situação autoritária, na qual a competição partidária estava bloqueada. Portanto, tal politização é vista não como processo “normal” no qual burocracia e política são práticas indissociáveis , mas ao contrário, como exceção produzida pelo período ditatorial. A visão da necessidade do insulamento como condição da eficiência da burocracia está implícita, de modo geral, nesses estudos. Reforçando ainda a argumentação de que o insulamento não gera necessariamente a despolitização da burocracia, pode-se lembrar que várias membros da alta burocracia governamental puderam, em diferentes momentos da história brasileira transformar sua "excelência técnica" em instrumento para alçar vôos políticos no sistema representativo. Delfim Neto (PPB-SP), Antônio Brito (PMDB, RS), e Francisco Dormentes (PPB-RJ), são exemplos significativos, do lado da burocracia federal, e José Aristodemo Pinotti (PMDBSP) e Benito Gama, do lado da burocracia estadual. É talvez mais importante, porém, destacar que, se o insulamento protegia as agências encarregadas das políticas desenvolvimentistas contra as nomeações clientelistas, tais agências se constituíam como resultados de ações de lideranças políticas. As nomeações políticas aí faziam-se em função do comprometimento pessoal dos presidentes da república com a meta desenvolvimentista, escolhendo técnicos competentes para assumirem seus postos de direção. Portanto, as nomeações políticas não implicaram necessariamente a ineficiência; ao contrário, para manter-se no poder, a classe política precisou responder, mesmo nos períodos autoritários, à necessidade de realizar políticas públicas eficazes. O estudo de Ben Ross Schneider (1994) sobre a evolução das empresas estatais ao longo do regime militar e seu desempenho econômico mostrou que a "politização" da burocracia não resultou 10 necessariamente em má administração. "Ao longo do tempo, os que nomeiam podem usar seus poderes para garantir um comportamento e política eficazes", concluiu Schneider (p.30). A ênfase na modernização realizada através do insulamento burocrático tende a cair num perigo maior quando, mesmo que implicitamente, louva o estilo tecnocrático. E isto ocorre freqüentemente na literatura sobre a burocracia pública brasileira. Neste ponto, a despolitização da análise vai contra a perspectiva democrática, cujo fundamento está na adoção da competição aberta, transparente e plural entre os diversos grupos como a melhor forma de governar uma sociedade. Em última análise, a preocupação com o controle público norteia a perspectiva democrática, e a busca da eficiência deve se dar nesse contexto tal como, segundo bibliografia especializada, ocorreu na evolução da burocracia pública americana (Dahl, 1971). Ao adotarmos este pressuposto analítico, não levamos em conta apenas o aspecto normativo da questão; buscamos igualmente satisfazer aos critérios realistas de análise quanto ao comportamento tecnoburocrático. O exemplo do Decreto Lei- 200 e da burocracia fortalecida por ele durante o regime militar é um bom exemplo para ilustrar nosso argumento { Desenvolver melhor esse exemplo porque não está claro}. É claro que o sistema político pode ser um empecilho às reformas administrativas, como demonstrou Barbara Geddes (1994) em sua análise sobre o período pré-64; no entanto, partindo-se do pressuposto que o Brasil só conseguiu fazer reformas administrativas amplas em períodos autoritários, e uma delas ocorreu no regime militar - o Decreto Lei- 200, de 1967 -, a decorrência lógica deste argumento é que, nestes períodos, a burocracia estaria livre para acelerar a racionalização do Estado, de modo neutro e impessoal. A reforma administrativa dos militares, contudo, não gerou uma tecnoburocracia a serviço apenas da eficiência. Segundo Fernando Henrique Cardoso (1975), nesse período, foram constituídos os chamados "anéis burocráticos", dentro dos quais havia a intermediação de interesses fora da arena política strictu sensu, e onde a burocracia exercia o seu poder, aparentemente sem nenhum controle da classe política. A forte autonomização da burocracia não a fez atuar de forma neutra e impessoal, mas sim, transformou-a em um agente que lutava pelos seus próprios interesses. Segundo a literatura do public choice (ver, por exemplo, Downs, 1967)., a lógica da burocracia brasileira no período autoritário poderia ser interpretada a partir de um comportamento rent-seeking, isto é, cada burocrata ou grupo burocrático buscaria maximizar seus rendimentos através do seu extenso poder de influência na intermediação de interesses, na definição de normas legais e na destinação de recursos públicos. Por fim, o "caldo de cultura" que informa a grande maioria dos estudos sobre a burocracia pública brasileira alimenta-se do diagnóstico - correto, por sinal - da fraqueza dos partidos políticos brasileiros. O trabalho clássico de Maria do Carmo Campello de Souza (1976) mostra como a existência de uma estrutura burocrática anterior o sistema partidário fez com que o período 1945-64 fosse marcado pela proeminência da primeira sobre o segundo. Numa linha analítica diferente, outros estudos argumentam que a fraqueza dos partidos os impedem de estabelecer uma diretriz coerente para a burocracia, sendo que a participação na estrutura burocrática se estabelece por uma via individualizada e não partidarizada. Essencialmente corretos, o grande problema ocorre quando tais argumentos "escorregam" para a visão dicotômica da relação entre política e burocracia, sobrando duas alternativas: do lado partidário, o comportamento individualista e clientelista; do lado burocrático, a instalação de corpos insulados do sistema político. Este cenário não é completamente verdadeiro, visto que pontes entre estes comportamentos são estabelecidas. Obviamente, o conflito entre estas lógicas têm ocorrido regularmente, porém, a construção do Estado brasileiro tem passado pela necessidade de se criar algum grau de convivência entre os ditames técnicos e os políticos. Atualmente, a compatibilização das lógicas é ainda mais importante pois a consolidação da democracia no País acontece ao mesmo tempo em que torna-se urgente a reconstrução do Estado brasileiro. 11 Para fugir da visão dicotômica, é preciso recuperar o autor que em termos clássicos deu início ao debate acerca da relação entre política e burocracia. Foi em seu "A Política como vocação" que Max Weber definiu, a ascensão da burocracia - e de sua lógica -dentro do aparelho do Estado e a profissionalização da classe política como dois fenômenos que inexoravelmente se instalariam no mundo dali para diante (Weber, 1990: 69-74). A relação entre estes dois grupos que se fortaleciam deveria ocorrer de tal forma que ambos teriam que respeitar o campo de atuação específico de cada um. Em outro texto menos analisado ("A transferência da administração e a seleção dos dirigentes públicos"; 1993: 71-90), Weber delimita ao burocrata as tarefas técnicas e especializadas que lhe diziam respeito, e cuja importância crescia concomitantemente ao processo de complexificação social e ao aumento das demandas por serviços públicos; ao político, cabia exercer o papel da liderança numa sociedade democrática de massas. A partir desta divisão de tarefas entre os dois grupos estabelecida por Weber, a literatura sobre o assunto tem regularmente adotado uma visão preocupada em evitar a chamada "politização" da burocracia. De maneira que há tanto um forte maniqueísmo nesta visão - os técnicos são "bons" e os políticos são "maus"- como uma despolitização dos objetivos da Administração Pública. Ora, tal concepção contradiz o preceito fundamental presente na própria reflexão de Max Weber, ele desenvolve especialmente em Parlamentarismo e Governo em uma Alemanha Reconstituída (1974): a relação entre os dois grupos será sempre política, uma vez que a direção do Estado é sempre definida politicamente. Mais do que isso, o controle político da burocracia, assim como há o controle político dos governantes realizado pelo eleitorado, é fundamental na democracia de massas moderna. As mudanças operadas no mundo moderno, ademais, tornam mais difícil a manutenção de uma perspectiva dicotômica no que tange à relação entre burocracia e política. Isto porque, com o aumento da cobrança democrática por parte da população e com a necessidade de uma atuação administrativa do Estado cada vez mais eficiente, o limite entre o que é a tarefa do burocrata e o que cabe ao político vêm se tornando cada vez mais tênue e, em alguns casos, há um total embaralhamento quanto a estas funções. Ao ocupar cargos públicos, os políticos precisam responder tecnicamente aos problemas, e caso não o façam, suas carreiras podem correr risco. Os burocratas, por sua vez, sobretudo quando ocupam funções do alto escalão, precisam levar em conta critérios políticos para obter sucesso, sejam eles referentes à lógica interna do sistema político, sejam vinculados à aceitação da opinião pública. Exemplos como o do ex-ministro Alberto Goldman (Transportes) ou dos políticos que ocupam pastas ministeriais no Gabinete inglês ou francês (nestes dois últimos casos, ver estudo de COSTA, 1993) mostram a necessidade crescente dos integrantes da classe política de aprenderem e se utilizarem de conhecimento técnico para obter legitimação política. Já no caso dos burocratas-políticos, bons exemplos são os tecnocratas do PRI que chegaram nos últimos anos ao poder e o do ex-ministro da Economia da Argentina, Domingos Cavallo. Esse último fenômeno é igualmente perceptível no Brasil, pois basta ver que todo ministro da Fazenda ou mesmo do Planejamento, mesmo aquele que nunca teve experiência eleitoral, terá que adequar seu conhecimento técnico aos ditames da política. O que não significa em si algo ruim. Uma das análises mais instigantes sobre a relação entre os políticos e os burocratas realizada nos últimos anos reforça a posição teórica adotada aqui. Trata-se do estudo comparativo feito por Aberbach, Putnan e Rockman (1981), analisando sete países -- Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Holanda e Suécia. Os autores mostram que é errôneo adotar a visão de que o político governa e o burocrata apenas administra. Na verdade, o que vem ocorrendo é uma burocratização da política e uma politização da burocracia (p.19), 12 fazendo os dois grupos adotarem uma estratégia híbrida de atuação. Desta forma, ambos tornam-se policymakers (p.20), com responsabilidade política e necessidade também de se legitimar através da lógica política presente naquele país, mas sem ignorar a tecnicalidade dos assuntos de Estado. O ângulo do policymaker modifica de várias maneiras o padrão usual de análise a respeito da relação entre política e burocracia. Primeiro, o pano de fundo da ação dos dois grupos é sempre político, de tal forma que eles serão avaliados de acordo com critérios como responsabilidade - vinculada à transparência e as conseqüências gerais de cada ato -- e responsividade - ligada à efetividade da política pública adotada. Segundo, o importante é saber quais são os critérios de distribuição dos cargos públicos, procurando descobrir como especificamente estes critérios conseguem - ou procuram conseguir - compatibilizar às diversas exigências presentes àqueles que ocupam cargos no topo da Administração Pública. Terceiro, a compreensão da influência das regras institucionais que circunscrevem o preenchimento dos cargos é fundamental, partindo portanto do pressuposto de que determinados universos institucionais, tais como presidencialismo ou parlamentarismo, federalismo ou Estado unitário, diferenças nos sistemas eleitorais e/ou partidários, existência de carreiras mais estáveis, entre outros, ajudam a explicar em grande parte a adoção de um ou outro critério de distribuição dos postos no governo. Finalmente, ao invés de ficar somente na classificação normativa da burocracia como meritocrática ou patrimonial - embora esses conceitos não devam ser completamente descartados - o centro da análise é entender como se dá a luta entre os diversos grupos para obter determinados cargos, que armas eles utilizam e quais delas são mais eficazes. Trata-se, desta forma, de politizar a análise da estrutura burocrática governamental, seguindo mais uma vez os passos de Weber, já que ele definia toda a atividade que envolva o Estado como essencialmente marcada pela luta para conquistar o poder. A adoção dessa perspectiva realista, ressalta-se, não implica em abandonar qualquer normatividade, sobretudo a democrática-republicana. É que preciso conhecer a política de fato, para depois procurar saber como melhorar a qualidade de sua prática, como bem argumenta um dos principais teóricos da democracia, Giovanni Sartori (1994). IV. Considerações Finais Pode-se concluir que os estudos sobre burocracia e política no Brasil têm alguns problemas centrais. Primeiro, a falta de uma perspectiva mais politizadora a respeito da atuação da burocracia, saindo do ângulo tecnocrático de análise. Segundo, falta-lhes mostrar como os critérios técnicos e políticos se compatibilizam, embora de forma tensa, o que alguns trabalhos empíricos começam a mostrar (Loureiro e Abrucio, 1997). Terceiro e último ponto, estes estudos não estudam a fundo a política de nomeações, que constitui mecanismo fundamental da relação entre política e burocracia nos países presidencialistas, como vários estudos sobre o sistema americano têm indicado (Ingraham,1987; Ingraham, Thompson & Eisenberg,1995; Michaels,1995). BIBLIOGRAFIA CITADA ABERBACH, J.D., PUTNAM, R.D. & ROCKMAN, B.A. (1981), Bureaucrats and politicians in western democracies, Harvard University Press, Massachusets. _______________, & ROCKMAN, B.A. (1988). "Mandates or mandarins? control and discretion in the modern administrative state", in Public Administration Review, march/april. 13 ABRUCIO, F.L. (1997), “O impacto do modelo gerencial na Administração Pública: um breve estudo sobre a experiência internacional recente". 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