1
NOTAS CRÍTICAS SOBRE A LITERATURA
“BUROCRACIA E POLÍTICA NO BRASIL”
Autores: Fernando Luiz Abrucio e Maria Rita Loureiro
R E S U MO
Realiza-se neste texto um balanço bibliográfico sobre o tema no Brasil, indicando
as principais linhas de abordagens, a partir do enfoque que privilegia a superação da
dicotomia burocracia versus política.
Introdução
O tema da burocracia pública ocupa um lugar destacado nas Ciências Sociais
brasileiras, incluindo trabalhos de caráter histórico e jurídico, análises de sua estrutura
interna, das características de seu modelo administrativo, além de numerosos estudos de
agências e segmentos burocráticos e de suas relações como o sistema político, em diferentes
momentos do país. O presente balanço bibliográfico não pretende dar conta do conjunto de
títulos sobre o tema, mas indicar as principais linhas de abordagens, destacando certos
autores, a partir do enfoque aqui privilegiado, qual seja, o da superação ou não da dicotomia
burocracia versus política.
I. Principais questões e perspectivas analíticas
Além de já numerosa, a bibliografia brasileira sobre o tema expandiu-se
consideravelmente nos últimos anos. Tal tendência deve continuar uma vez que o discurso da
necessidade de se reconstruir o Estado e, consequentemente, sua estrutura burocrática, vem
ampliando o debate inicialmente centralizado apenas no chamado ajuste estrutural. Com isso,
passa-se da primeira etapa de reformas do Estado, centrada na "destruição " do antigo modelo,
conforme indicou Haggard (1996) para a segunda etapa de reformas, cujo objetivo está
focalizado na redefinição de seu papel. Esta nova percepção quanto à reforma do Estado pode
ser encontrada tanto na academia como no meio político, principalmente nos setores do atual
governo encarregados mais diretamente da restruturação do aparelho do Estado (vide Bresser
Pereira, 1996, 1997).
Todavia, paralelamente ao crescimento da importância do tema, caminha outra
tendência que afasta os estudos de um melhor entendimento da questão. Trata-se de uma
inclinação à despolitização do estudo da estrutura burocrática estatal em duplo sentido. De
um lado, supõe-se a burocracia como algo que deva ser neutro e portanto separado das
injunções políticas, pois qualquer interconexão entre estes "dois mundos" é considerada
deletéria, afastando a ação estatal do interesse público. De outro lado, procura-se entender a
burocracia como um aparato que deve ter autonomia frente ao sistema político para atuar de
forma eficiente. Tal postura que rejeita a politização da burocracia, considerando ilegítimos
seus vínculos com o sistema político (aí incluindo as pressões partidárias e de grupos de
interesses, as disputas federativas etc.) tem sido adotada, em maior ou menor grau, pela
maioria dos autores que estudam a burocracia pública no Brasil.
II. As diversas abordagens da bibliografia sobre o tema
Pode-se classificar o conjunto da bibliografia em quatro linhas de abordagem:
a) Trabalhos de cunho macro-histórico que estudam a formação da burocracia
pública a partir das relações instituídas entre o Estado e a sociedade. Em tais análises,
ressalta-se que, em contraponto com uma sociedade fraca e politicamente desarticulada,
constituiu-se historicamente no país, um Estado autoritário com estrutura burocrática forte,
mas ineficiente.
b) Estudos sobre determinados segmentos e/ou agências da burocracia estatal, que
destacam sua autonomia e importância no processo decisório. Embora bastantes interessantes
2
por identificar a dinâmica interna do aparelho do Estado, ou seja, “o Estado em ação”, estes
estudos, de modo geral, não estão centrados na temática relativa à interconexão da burocracia
com o sistema político;
c) Textos voltados para análise de temas relativos à formação, ao recrutamento e à
carreira de quadros burocráticos. Em sua maioria, centrados na ótica de recursos humanos
para o setor público, tais textos ressaltam como o sistema político atrapalha o processo de
racionalização da máquina estatal;
d) Análises que buscam fazer a interconexão entre a política e a burocracia,
examinando os vínculos entre burocracia e grupos de interesse, as relações entre buscando
entender quais são as gramáticas que estruturam o sistema político-estatal .
II.1. As abordagens macro-históricas
No caso dos trabalhos macro-históricos, o eixo de análise está na busca de padrões
de relação instituídos entre o Estado e a sociedade e seus efeitos sobre a estruturação e a
dinâmica da burocracia em diferentes momentos da história brasileira. De modo geral, estes
trabalhos indicam a existência de um aparelho estatal organizado previamente à sociedade
política, o que acabou gerando, de um lado, a debilidade do sistema representativo no país, e
de outro, a constituição de uma burocracia ao mesmo tempo forte e ineficiente.
Dentro desta linha e adotando uma abordagem mais ensaística, encontra-se o
trabalho de Raimundo Faoro (1976). Em Os Donos do Poder, esse autor procura explicar o
desenvolvimento histórico do Brasil a partir do estudo de um grupo intitulado de estamento
burocrático, o qual teria fundamental importância na definição dos nossos padrões políticos,
no caso classificado de patrimonialista. O predomínio deste estamento burocrático coloca em
jogo a possibilidade da ordem liberal-representativa se afirmar no país. Baseado em uma
perspectiva histórica de longa duração, Faoro tenta mostrar como um tipo de Estado advindo
de um modelo ibérico insiste em permanecer apesar das transformações ocorridas ao longo do
tempo, tal qual uma “viagem redonda”.
O grande problema desta análise é não perceber a série de mudanças operadas no
Estado Brasileiro desde a década de 30, sobretudo na estrutura burocrática. A categoria
sociológica “ estamento burocrático” apresenta dificuldades para explicar não só a burocracia
de maneira geral, mas sobretudo para analisar as diferenças dentro da burocracia,
especialmente a convivência de agências clientelistas, fortemente guiadas pela classe política
tradicional, com agências insuladas, protegidas por determinados setores do governo, e que
atuam nas áreas mais modernas da economia, como foi mostrado por Geddes (1994).
Ademais, os “donos do poder”, sobretudo agora após a redemocratização, precisam responder
cada vez mais a demandas do sistema representativo e da competição política. A lógica do
estamento burocrático não se coaduna mais com as modificações ocorridas no Estado e no
sistema político brasileiro.
A tese central de Faoro também se sustenta num pressuposto incorreto, qual seja, de
que o Estado brasileiro possui um poder extenso sobre a sociedade. Na verdade, à expansão
quantitativa do Estado brasileiro não correspondeu, na maioria das vezes, ao aumento de sua
capacidade de atuação do sobre a sociedade e o mercado. Utilizando-se das categorias de
Michael Mann (1992) - igualmente aproveitadas por recente estudo de Maria do Carmo
Campello de Souza (1994) -, podemos dizer que há dois tipos de poder estatais, constituidores
de sua autonomia: o despótico e o infra-estrutural. O primeiro se refere ao conjunto de ações
que a elite estatal pode efetuar sem negociação, institucionalizada ou rotineira, com os grupos
da sociedade civil. O poder infra-estrutural é relativo à capacidade do Estado de penetrar a
sociedade civil e de implementar decisões políticas através do território nacional,
coordenando as atividades da sociedade através de sua própria infra-estrutura. Constitui-se o
poder infra-estrutural, usando agora os termos de Migdal (1988), o controle social efetuado
3
pelo Estado, o qual garante (ou deve garantir) a obediência dos cidadão e a centralização do
comando sobre os principais grupos da sociedade. Transportando estas categorias para o caso
brasileiro, concluímos, com Campello de Souza (1994), que o Estado aqui desenvolveu bem o
poder despótico mas não conseguiu estruturar a contento o poder infra-estrutural. Isto pode
ser visto melhor nos momentos de crise do Estado, quando se torna necessário distribuir as
perdas entre os atores. Neste momento, o Estado - ou os governantes que lá estão - percebem
o quão frágil é a sua capacidade de articulação e comando. Tal conclusão ajuda-nos a
combater o argumento a-histórico de que há um estamento burocrático que se constitui em
“donos do poder”.
Ainda na linha mais macro-histórica, há o importante trabalho de Simon
Schwartzman (1988), cujo ponto fundamental é indicar a presença de um Estado
neopatrimonialista, fundado em relações de clientela e de cooptação, a ausência de grupos
autonomamente organizados na sociedade e a conseqüente fragilidade da estrutura partidária,
características estas que constituem os traços fundamentais do autoritarismo brasileiro.
Em tal estrutura social, o sistema político não funciona como “representante” ou
“agente” de classes sociais. Ao contrário, os padrões de relacionamento entre o Estado e a
sociedade, segundo Schwartzman, estão alicerçados em uma burocracia estatal pesada, todopoderosa, mas pouco ágil e ineficiente, e, de uma sociedade submetida. Disso decorre dois
traços marcantes do sistema político e administrativo, que caminham por vezes através linhas
contraditórias, mas que constituem uma combinação peculiar brasileira:
1) Neopatrimonialismo, caracterizado pela apropriação de funções, órgãos e rendas
públicas por setores privados que, por isso mesmo, tornam-se subordinados e dependentes do
poder estatal;
2) Despotismo burocrático, manifestando-se na pretensão dos governantes a “tudo
saber, tudo poder”, sem dar muita atenção às formalidades das leis e às normas universais.
Embora Schwartzman ressalte as diferenças entre os períodos históricos — ao
contrário de Faoro —, grosso modo ele mostra que o processo indicado acima está presente
desde o Império, passando pelos militares e positivistas republicanos, chegando até os
tecnocratas do Brasil recente, consolidando-se inclusive com a profissionalização e
modernização da burocracia governamental. Decorre destas relações, ainda segundo o autor,
que o jogo político não se processa como negociação entre iguais, muito menos como
processo de representação entre os setores organizados autonomamente na sociedade. Ao
invés disso, trata-se de uma barganha entre o Estado neopatrimonial e os grupos sociais
fundada na cooptação de alguns (os que passam a ser incluídos nos benefícios ou prebendas
públicas cedidas como favores privados em troca de apoio político); e na exclusão da grande
maioria, tanto dos processos decisórios quanto dos benefícios da eventual distribuição da
riqueza social.
Estes vínculos acabaram gerando, nos termos de Schwartzman, uma organização
estatal que é ao mesmo tempo forte, porque fonte de riqueza social, mas também fraca, pois
seu poder depende continuamente da distribuição de prebendas aos grupos cooptados ou a
cooptar. Em outras palavras, tem-se um Estado que é, de um lado, forte e ator principal da
modernização capitalista, capaz de levar adiante a partir dos anos 30 e 40, o projeto
desenvolvimentista; e, de outro, fraco no sentido de que não consegue se impor aos grupos
dominantes e alterar (ou mesmo suavizar) a exclusão das classes dominadas. Seguindo a
lógica deste último ponto, pode-se dizer que, paradoxalmente, a mesma cooptação que dá a
legitimidade e a força ao Estado enfraquece suas capacidades. O argumento de Schwartzman,
levado às últimas conseqüências, não capta a possibilidade de um sistema de cooptação se
compatibilizar, embora de forma sempre tensa, com o sistema burocrático weberiano. Mesmo
tendo percebido a existência de uma dupla burocracia, o autor não consegue captar os efeitos
desta divisão, tal como o fizeram Luciano Martins (1985) e Barbara Geddes (1994). Modelos
4
híbridos de burocracia — cooptação e mérito juntos — podem existir em alguns países, como
mostra o estudo de Peter Evans sobre o Brasil e a Índia (1993), sem levar até o ponto de
ruptura, apesar de trazerem irracionalidades crescentes no âmbito do desenvolvimento
econômico e social.
Ademais, a lógica da negociação, típica de qualquer sistema político, vira a todo
momento cooptação no argumento de Schwartzman. Se é bem verdade que a cooptação
continua a existir, pelo menos dois fatores importantes fragilizam o caráter explicativo do
trabalho de Schwartzman para os dias atuais. São eles: a complexificação do aparelho do
Estado, exigindo cada vez mais critérios técnicos na orientação das ações de todos os atores
políticos (inclusive dos políticos strictu sensu); e o aumento da competição política no país,
que, por um lado, elevou o número de elites lutando entre si e efetivando um controle mútuo,
e, por outro, tornou mais relevante o controle da opinião pública sobre o Governo Federal.
II.b. Os estudos específicos
Um outro enfoque analítico é aquele que privilegia certos setores específicos da
burocracia, mostrando seja sua autonomia frente ao restante do sistema político, seja também
sua importância estratégica para o desenvolvimento econômico do país. Estão nessa categoria
os trabalhos sobre segmentos burocráticos, como os militares (Coelho, 1977) e os diplomatas
(Cheibub, 1990); estudos acerca de certas agências governamentais, como o BNDE (Martins,
1985), o Conselho Monetário Nacional, e o Conselho de Desenvolvimento econômico
(Guimarães & Vianna, 1987), o Conselho Interministerial de Preços (Diniz & Boshi, 1987), e
ainda sobre a burocracia das empresas estatais (Martins, 1985; Schneider, 1994). Além destes
estudos, particularmente vinculados à lógica da Administração Indireta, que são mais
numerosos, citam-se uns poucos estudos que analisam a Administração Direta, como o de
Gouvea (1994) sobre a burocracia das finanças públicas e o de Loureiro (1997), relativo aos
grupos de economistas responsáveis pelos planos de estabilização monetária e a gestão das
políticas macroeconômicas nos anos mais recentes.
O traço comum nesta gama tão diversificada de estudos é o caráter
predominantemente autônomo da burocracia frente aos partidos, ao Congresso Nacional e aos
grupos organizados da sociedade civil. Em outras palavras, os estudos sobre diplomatas,
militares, gestores de planos de estabilização ou de reformas das finanças públicas, de um
lado, e, de outro, os relativos às agências, têm como pressuposto analítico, explícito ou
implícito, a ação autônoma da burocracia que, por diferentes razões, pode se insular,
“protegendo-se” das pressões clientelistas vindas do sistema político.
O leitmotiv desta corrente analítica, portanto, é a diferenciação da burocracia
brasileira em dois tipos. Um, constituído por segmentos orientados por relações clientelistas
que fornecem o apoio político, sobretudo o congressual ao presidente. Aqui, a Administração
Direta é vista como um espaço em que predomina a lógica da barganha política — nomeação
para cargos públicos, concessão de subsídios econômicos, autorização de encomendas
governamentais etc.. É, deste modo, o locus por excelência da ineficiência administrativa. O
outro tipo de burocracia caracteriza-se pelas chamadas “ilhas de excelência” orientadas pelo
critério da competência técnica. Além disso, tal setor burocrático constrói-se a partir do
insulamento burocrático, ou seja, por formas de proteção contra as pressões externas e
demandas das clientelas políticas.
Para explicar essa dicotomia no seio do aparelho estatal, há duas linhas
argumentativas: as societárias e as estado-centristas, isto é, ora se afirma que o Estado é
autônomo por razões encontradas na sociedade, ora por razões internas ao próprio Estado.
Assim, de um lado, inspirando-se na teoria da dependência, indica-se que é a
incapacidade de hegemonia da burguesia nacional, típica das economias capitalistas tardias,
que dá ao Estado e a sua burocracia um papel especial ou estruturante da sociedade (Martins,
5
1985 e Draibe, 1985). De outro, são as características da organização do Estado, isto é, a
existência de duas lógicas diferentes de atuação da burocracia— a clientelistica e a racionallegal ou meritocrática — , o fator que explica a autonomia do aparelho estatal no Brasil
(Geddes, 1994).
Mesmo considerando que os técnicos e os burocratas têm dificuldade de exercer um
papel dirigente e estabelecer unidade nas políticas econômicas e sociais no Brasil, Draibe
(1985) indica que eles exercem um papel estratégico no processo decisório e sua força “vem
da incapacidade dos interesses econômicos se imporem”. Martins (1985), por sua vez, analisa
a questão da autonomia da burocracia e do Estado por intermédio do estudo de caso de certas
agências burocráticas no Brasil pós-64, distinguindo dois tipos de burocracia: a do setor
empresarial ou Administração Indireta e a do setor governo ou Administração Direta,
caracterizada como uma “burocracia sem força”, “criadora de problemas, ineficiente e
ritualista”. Para ele, a extrema segmentação do aparelho estatal, a inexistência de poder de
decisão sobre os recursos financeiros disponíveis e ainda a lógica de ação não orientada pela
eficiência são os fatores que diminuem a autonomia dos órgãos da Administração Direta. Em
contrapartida, as agências da Administração Indireta podem ser mais autônomas porque mais
distantes do controle governamental.
Estudando também as elites burocráticas no Brasil no período pós-64, mas aquelas que
atuam justamente no setor governo - em particular no Ministério da Fazenda - Gouvêa (1994)
aponta outra variável explicativa para a autonomia da burocracia: os recursos de poder que
esta elite pode dispor, em particular a capacidade de atuar na definição das regras
institucionais em um momento de crise do Estado, no qual “nem a sociedade, nem os
empresários, nem a classe política, nem os partidos sabiam o que queriam (ou o que fazer) do
(ou com) o Estado" ( op. cit. p.65).
Em outras palavras, analisando a formação e a lógica de ação (de insulamento frente
às pressões dos grupos políticos) de um específico segmento da burocracia - aquele situado na
área de controle das finanças públicas, em um momento histórico particular, de crise do
Estado desenvolvimentista e das formas de seu financiamento, esta autora pensa a autonomia
como produto da ação "política" da própria burocracia, de sua capacidade de arregimentar
para si recursos institucionais de poder e sobretudo de sua consciência privilegiada da
situação de crise e da necessidade de projetos de mudança. Daí, sua própria escolha do objeto
de estudo, qual seja: a análise da "luta" desta elite burocrática, dotada, em sua visão, de
consciência mais acurada do que a dos demais atores políticos, tentando vencer obstáculos
para elaborar um projeto de vanguarda para a reforma ou reordenamento das finanças
públicas no Brasil.
Deve-se mencionar ainda o estudo de Geddes (1990) sobre a autonomia do Estado
desenvolvimentista no Brasil entre os anos 30 e 60. Trabalhando, como Martins, com a idéia
de dupla burocracia no interior do Estado brasileiro, esta autora coloca porém outro tipo de
oposição. Não se trata da maior ou menor proximidade ao setor governo e sim do tipo de
orientação que preside as ações de cada segmento da burocracia: eficiência ou não. Centrando
sua análise nas agências construídas no Brasil para a realização das políticas
desenvolvimentistas, a autora afirma que a autonomia da burocracia foi imposta como
condição para que certas agências governamentais (aquelas envolvidas com o projeto
desenvolvimentista) pudessem ser eficientes, alcançando as metas propostas para o
desenvolvimento econômico. A tarefa de promoção da industrialização e da criação de infraestrutura no país, assumidas por Vargas e Juscelino Kubitschek, fez com que estes
governantes, juntamente com grupos de técnicos que os assessoravam, construíssem agências
burocráticas autônomas (como o BNDE, a SUMOC, os grupos executivos e demais órgãos da
chamada administração paralela de JK), em relação às pressões do sistema político
patrimonialista. Em outras palavras, procurando criar agências que funcionassem pela lógica
6
da eficiência na alocação de recursos e recrutar pessoal pelo critério meritocrático da
competência técnica, estas agências "paralelas" tiveram que "insular-se" frente ao sistema
tradicional dominante que funcionava através da troca clientelista de cargos públicos e outros
benefícios pelo apoio político. Caso contrário, não alcançariam as metas propostas pelas
políticas desenvolvimentistas.
Mesmo reconhecendo que a autonomia burocrática e a competência técnica em si não
garantem necessariamente que as melhores políticas sejam escolhidas, o insulamento,
continua Geddes, é fator importante para a efetiva implementação das políticas escolhidas,
contribuindo para a maior concentração da competência técnica nas agências governamentais
e maior eficiência na alocação dos recursos destinados para as áreas definidas como
prioritárias, na medida em que empregos, contratos, subsídios etc., não são favores a serem
trocados por apoio político.
Todavia, esta autora não dá atenção ao fato de que o insulamento de certas agências
frente às pressões da política clientelista não significa que a burocracia seja necessariamente
autônoma. Isto é, que adote preferências próprias, independentes das demandas de grupos
econômicos. Ora, como se sabe, agências "insuladas" da patronagem da política empreguista
funcionaram integradas aos interesses de certos grupos econômicos industriais, como mostrou
o próprio trabalho de Luciano Martins, citado acima. Também os grupos executivos do
governo JK foram compostos de membros da burocracia governamental que trabalhavam
conjuntamente com representantes das respectivas áreas econômicas sobre as quais atuavam,
tais como o setor automobilístico, a indústria pesada etc. (Lafer, 1975 e Benevides, 1976).
Portanto, também o segmento insulado da burocracia é altamente politizado.
O problema, em suma, desta linha de análise é que ela despolitiza o estudo da relação
entre política e burocracia, criando uma dicotomia entre estes termos. O interessante é
descobrir como equilibrar os ditames da burocracia com os da política. No mais das vezes, ao
contrário, este grupo de autores procura estabelecer uma resposta tecnocrática como solução
ao problema intrinsecamente político do preenchimento dos cargos da alto escalão da
burocracia, separando radicalmente a meritocracia representada pela atuação técnica dos
funcionários de carreira do padrão imposto pelos políticos, classificado quase sempre como
clientelista. Esta tendência possui um forte peso na América Latina, sendo maior ainda no
caso brasileiro e encontrando guarida até mesmo em análises pertinentes acerca do impacto
do sistema político sobre os cargos públicos (por exemplo, o trabalho já citado de GEDDES,
1994).
II.3. Estudos centrados na organização interna de burocracia
Uma terceira linha de análise é aquela que se concentra no estudo da estrutura
interna da burocracia, sobretudo na organização de seus Recursos Humanos (carreiras, plano
de cargos etc.), a fim de verificar a eficácia e eficiência das políticas públicas decorrentes de
determinado tipo de organização burocrática, mas ressaltando como o sistema político é, via
de regra, um obstáculo à constituição de uma boa burocracia. Os trabalhos de Luiz Alberto
dos Santos (1997) e Gilberto Guerzoni (1996), incluem-se neste tipo de análise, bem como os
recentes textos de Luiz Carlos Bresser Pereira (1996, 1997) que buscam definir os
mecanismos administrativos capazes de garantir uma melhor governança. Todos estes estudos
procuram descobrir qual a melhor forma de adequar a estrutura administrativa estatal à
racionalidade na implementação de políticas. No entanto, há uma importante diferença entre
os trabalhos de Santos e Guerzoni comparados aos Bresser Pereira: enquanto os primeiros têm
como referencial normativo o modelo burocrático weberiano clássico, o segundo tem nos
recém-constituídos modelos gerenciais - ou pós-burocráticos, nos termos de Michael Barzelay
- seu suporte analítico.
7
Não obstante tal aspecto ser de extrema relevância, o fato é que estes textos
despolitizam igualmente o estudo da Administração Pública, pois, na maioria dos casos,
fazem uma radical separação entre a meritocracia dos burocratas e a suposta ineficiência
advinda da politização dos cargos públicos. No final das contas, tal visão reforça o
diagnóstico tecnocrático de como deve ser estruturado o Estado, esquecendo-se da direção
política que guia a organização burocrática.
II.4. Estudos que politizam a burocracia.
A “politização” da análise da burocracia se faz por diferentes caminhos na
bibliografia brasileira: Um primeiro grupo de estudos politiza a burocracia ao caracterizá-la
como classe com interesses próprios e portanto como participante da luta pelo poder político.
Citam-se aqui textos mais antigos de Bresser Pereira (1980) e Fernando Motta.
Outra vertente da polinização da burocracia encontra-se nos estudos referentes ao
processo decisão de políticas públicas durante o regime militar, nos quais se aponta como a
arena de conflito de interesses foi transferida para o interior as agências governamentais.
Destacam-se nesse enfoque o trabalho seminal de Cardoso (1975), já citado, sobre os anéis
burocráticos; os trabalhos de Martins ( 1975 e 1985) sobre o BNDE; de Guimarães & Vianna
(1987) e Diniz & Boschi (1987) sobre agências regulatórias e de planejamento como o
Conselho Monetário Nacional, Conselho de Desenvolvimento Econômico e Conselho
Interministerial de Preços; e ainda os de Castro & Paixão (1988) sobre outras órgãos
governamentais encarregados de políticas públicas para certos setores como o Pró-Alcool, as
industrias de bens de capital etc.
E finalmente, um terceiro grupo de estudos que politiza a burocracia é constituído
pelas análises efetuadas por Edson Nunes (1997) e por Ben Ross Schneider (1994) que evitam
tomar como base de análise a dicotomia burocracia profissional meritocrática versus
administração politizada, clientelista e ineficiente. Não que ambos os autores ignorem a
possibilidade de existir situações conflituosas entre estas lógicas; para eles, porém, a
construção do Estado brasileiro tem passado pela necessidade de se criar algum grau de
convivência entre os ditames técnicos e os políticos.
A análise de Schneider, por exemplo, localiza no amplo poder de nomeação do
presidente da República uma das principais chaves para entender o funcionamento do aparato
estatal brasileiro. Reforça as palavras de Último de Carvalho, importante político do PSD
mineiro, que afirma "a essência do poder no Brasil está em quatro verbos: nomear, demitir,
prender e soltar". Todavia, esse argumento, baseado em estudo sobre as políticas industriais
no regime militar, não leva ao autor a dizer coisas como "a politização corrompe o Estado e a
tecnocracia o salva". Ao contrário, ele demonstra que o relativo sucesso da industrialização
brasileira na década de 70 pode ocorrer também em uma estrutura "politizada".
Por outro lado, estudando o período que vai de 1930 ao fim do regime militar, Edson
Nunes faz também uma instigaste análise acerca das relações entre política e burocracia, Ele
demonstra que a distribuição dos cargos públicos federais é um ponto modal do sistema
político. E para entender esta questão, acima de tudo é preciso estudar a convivência de
quatro "gramáticas do poder" presentes na construção do Estado brasileiro e, neste sentido, no
preenchimento do cargos públicos federais: o clientelismo, o corporativismo, o insulamento
burocrático e a universalidade dos procedimentos. Esta última está vinculada à disputa
competitiva e aberta entre os grupo sociais, particularmente através dos partidos ou de outras
entidades mais "universalistas" da sociedade civil. Ao invés de afirmar a supremacia do
insulamento burocrático sobre o clientelismo, Nunes acredita que as duas estratégias pecam
por não conseguir, de fato, compatibilizar a lógica política com os critérios técnicos. Na
verdade, quando as duas lógicas existem isoladamente, elas são particularistas e não
universalistas, não se constituindo em mecanismos de alcance da eficiência por intermédio da
8
democratização do Estado, ou seja, de fazer dos policymakers agentes responsáveis e
responsivos.
Em resumo, as análises de Schneider e Nunes demonstram duas coisas fundamentais.
A primeira é que deve-se evitar uma visão maniqueísta na análise da relação entre os
burocracia e a política. A segunda é que a distribuição dos cargos políticos é uma variável
chave do sistema político brasileiro.
Falta a estes autores, entretanto, avançar ainda mais o enfoque politizador com
relação aos critérios de preenchimento dos postos do alto escalão federal, captando os atores
políticos na situação de luta pelos cargos públicos. No caso do estudo de Edson Nunes, o
problema está no caráter excludente da classificação: ou se faz parte daqueles que seguem a
lógica do insulamento burocrático, ou do corporativismo, ou ainda do clientelismo. No
entanto, como bem mostra o estudo clássico de Cardoso sobre os anéis burocráticos (1975),
aqueles burocratas insulados mantém relações de clientela com determinados grupos e isso,
na verdade, pode ajudá-los a permanecer em tais funções. Já no estudo de Schneider, o
problema não se encontra exatamente na classificação (militares, políticos, técnicos-políticos
e técnicos) mas na falta de uma definição de como o conflito entre eles se estabelece na luta
pelos cargos, bem como agem para constituir alianças que os mantém trabalhando para o
governo.
III. Determinantes da visão despolitizadora da burocracia
Cabe agora analisar o contexto histórico geral e as categorias de análise que
fornecem o "caldo de cultura" necessário para a predominância desta visão despolitizadora da
burocracia. Pode-se dizer que este "caldo de cultura" é alimentado por três fatores, vinculados
à forma como ocorreu e foi interpretada a evolução do Estado brasileiro: o tipo de vínculo
entre a elite central, ai incluída a alta burocracia, e os poderes regionais, de onde provinha a
legitimidade da classe política; as peculiaridades do Estado nacional-desenvolvimentista,
criado a partir dos anos 30 e os obstáculos à sua construção; e o papel dos partidos dentro do
sistema político brasileiro.
Com relação ao primeiro fator, observa-se que o embate entre o Poder Central e as
elites regionais tem sido historicamente uma razão que favorece a separação analítica rígida
entre a política e a burocracia. Desde o início da colonização brasileira, segundo aponta José
Murilo de Carvalho (1993), um dos problemas fundamentais para a constituição do Estado
nacional foi o da criação de um poder central forte capaz de aglutinar e ordenar a ação dos
vários grupos privados regionalmente constituídos, e que escassamente se comunicavam.
Constituía-se, assim, a dinâmica política fundamental do desenvolvimento histórico
brasileiro, fundada na dicotomia entre a elite burocrática centralizada e a classe política
federalizada.: de um lado, o centro político comum, baseado em uma elite sediada na "Corte",
que no mais das vezes se ancorou em uma burocracia centralizada; de outro, os grupos
políticos, cuja legitimidade provinha das regiões as quais pertenciam.
Ambos os grupos, em verdade, evoluíram de forma a tornar menos radical a
dicotomia acima apresentada, mesmo porque o Estado e a sociedade sofreram inúmeras
transformações neste século. Embora parte considerável da lógica dicotômica tenha
permanecido, a ação dos burocratas é a ser cada vez mais "politizada" e a dos políticos tende
a levar mais em conta os critérios técnicos. De modo que os integrantes da alta burocracia
precisam também elaborar seus projetos levando em conta as bases políticas locais, enquanto
os políticos devem se articular tendo como importante horizonte as possibilidades e
potencialidades políticas do plano nacional, sobretudo para maximizar o avanço de suas
carreiras políticas.
Obviamente o problema da compatibilização entre as duas lógicas persiste. Mas, a
rígida separação analítica (burocracia com viés centralizador versus classe política com
9
tendências mais centrífugas) não ajuda a entender a realidade. Isso porque ela não se esgota
na questão de “proteger uma burocracia neutra contra uma classe política predadora”, como
vários estudos fazem crer. Além de não corresponde ao que acontece na realidade brasileira,
tal concepção vai contra as principais correntes teóricas que hoje estudam a relação entre
política e burocracia, como é o caso do paradigma agente-principal (Melo, 1996; Moe, 1994),
que mostra o caráter intrinsecamente político da ação tanto de burocratas como de políticos.
A visão dicotômica da relação entre políticos e burocracia é ainda reforçada pela
forma como ocorreu e foi analisado o processo de construção do Estado NacionalDesenvolvimentista a partir da década de 30. Isto porque, em primeiro lugar, foi por meio da
autonomização de parcela da burocracia que o Estado aumentou sua atuação na esfera
econômica a fim de realizar a modernização do capitalismo brasileiro - uma modernização
conservadora, no sentido de Barrington Moore (1987). Estudos como os de Sônia Draibe
(1985) e de Luciano Martins (1985) já citados, ressaltam tal fenômeno em suas análises.
Ademais, este tipo de visão, via de regra, explica a modernização feita por intermédio do
insulamento burocrático como uma maneira - ou melhor, a única maneira - de fugir das
pressões clientelistas advindas do restante do sistema político. Tem-se desse modo a visão de
que a burocracia estaria do lado do moderno e da eficiência, e a classe política, do lado do
atraso e da ineficiência.
Se é verdade que a modernização do Estado brasileiro exigiu uma certa proteção de
seu aparato burocrático frente às pressões do sistema político clientelista, esta proteção não
significou, entretanto, a despolitização da burocracia. Ao contrário, os inúmeros estudos ai
citados, relativos à expansão e funcionamento das agências governamentais encarregadas do
planejamento e regulação do desenvolvimento econômico apontaram sua extremada
politização, envolvendo acirradas disputam internas (inter e intraburocráticas) e, inclusive,
alianças com grupos de interesse organizados na sociedade civil, para garantir recursos
necessários à efetivação de seus programas. Cabe destacar, entretanto, que a maior parte
desses estudos referem-se aos governos militares e vêm a politização das agências
governamentais como o deslocamento da arena política do parlamento para o governo,
resultante da situação autoritária, na qual a competição partidária estava bloqueada. Portanto,
tal politização é vista não como processo “normal” no qual burocracia e política são práticas
indissociáveis , mas ao contrário, como exceção produzida pelo período ditatorial. A visão da
necessidade do insulamento como condição da eficiência da burocracia está implícita, de
modo geral, nesses estudos.
Reforçando ainda a argumentação de que o insulamento não gera necessariamente a
despolitização da burocracia, pode-se lembrar que várias membros da alta burocracia
governamental puderam, em diferentes momentos da história brasileira transformar sua
"excelência técnica" em instrumento para alçar vôos políticos no sistema representativo.
Delfim Neto (PPB-SP), Antônio Brito (PMDB, RS), e Francisco Dormentes (PPB-RJ), são
exemplos significativos, do lado da burocracia federal, e José Aristodemo Pinotti (PMDBSP) e Benito Gama, do lado da burocracia estadual.
É talvez mais importante, porém, destacar que, se o insulamento protegia as agências
encarregadas das políticas desenvolvimentistas contra as nomeações clientelistas, tais
agências se constituíam como resultados de ações de lideranças políticas. As nomeações
políticas aí faziam-se em função do comprometimento pessoal dos presidentes da república
com a meta desenvolvimentista, escolhendo técnicos competentes para assumirem seus postos
de direção. Portanto, as nomeações políticas não implicaram necessariamente a ineficiência;
ao contrário, para manter-se no poder, a classe política precisou responder, mesmo nos
períodos autoritários, à necessidade de realizar políticas públicas eficazes. O estudo de Ben
Ross Schneider (1994) sobre a evolução das empresas estatais ao longo do regime militar e
seu desempenho econômico mostrou que a "politização" da burocracia não resultou
10
necessariamente em má administração. "Ao longo do tempo, os que nomeiam podem usar
seus poderes para garantir um comportamento e política eficazes", concluiu Schneider (p.30).
A ênfase na modernização realizada através do insulamento burocrático tende a cair
num perigo maior quando, mesmo que implicitamente, louva o estilo tecnocrático. E isto
ocorre freqüentemente na literatura sobre a burocracia pública brasileira. Neste ponto, a
despolitização da análise vai contra a perspectiva democrática, cujo fundamento está na
adoção da competição aberta, transparente e plural entre os diversos grupos como a melhor
forma de governar uma sociedade. Em última análise, a preocupação com o controle público
norteia a perspectiva democrática, e a busca da eficiência deve se dar nesse contexto tal como,
segundo bibliografia especializada, ocorreu na evolução da burocracia pública americana
(Dahl, 1971). Ao adotarmos este pressuposto analítico, não levamos em conta apenas o
aspecto normativo da questão; buscamos igualmente satisfazer aos critérios realistas de
análise quanto ao comportamento tecnoburocrático. O exemplo do Decreto Lei- 200 e da
burocracia fortalecida por ele durante o regime militar é um bom exemplo para ilustrar nosso
argumento { Desenvolver melhor esse exemplo porque não está claro}.
É claro que o sistema político pode ser um empecilho às reformas administrativas,
como demonstrou Barbara Geddes (1994) em sua análise sobre o período pré-64; no entanto,
partindo-se do pressuposto que o Brasil só conseguiu fazer reformas administrativas amplas
em períodos autoritários, e uma delas ocorreu no regime militar - o Decreto Lei- 200, de 1967
-, a decorrência lógica deste argumento é que, nestes períodos, a burocracia estaria livre para
acelerar a racionalização do Estado, de modo neutro e impessoal. A reforma administrativa
dos militares, contudo, não gerou uma tecnoburocracia a serviço apenas da eficiência.
Segundo Fernando Henrique Cardoso (1975), nesse período, foram constituídos os chamados
"anéis burocráticos", dentro dos quais havia a intermediação de interesses fora da arena
política strictu sensu, e onde a burocracia exercia o seu poder, aparentemente sem nenhum
controle da classe política. A forte autonomização da burocracia não a fez atuar de forma
neutra e impessoal, mas sim, transformou-a em um agente que lutava pelos seus próprios
interesses. Segundo a literatura do public choice (ver, por exemplo, Downs, 1967)., a lógica
da burocracia brasileira no período autoritário poderia ser interpretada a partir de um
comportamento rent-seeking, isto é, cada burocrata ou grupo burocrático buscaria maximizar
seus rendimentos através do seu extenso poder de influência na intermediação de interesses,
na definição de normas legais e na destinação de recursos públicos.
Por fim, o "caldo de cultura" que informa a grande maioria dos estudos sobre a
burocracia pública brasileira alimenta-se do diagnóstico - correto, por sinal - da fraqueza dos
partidos políticos brasileiros. O trabalho clássico de Maria do Carmo Campello de Souza
(1976) mostra como a existência de uma estrutura burocrática anterior o sistema partidário fez
com que o período 1945-64 fosse marcado pela proeminência da primeira sobre o segundo.
Numa linha analítica diferente, outros estudos argumentam que a fraqueza dos partidos os
impedem de estabelecer uma diretriz coerente para a burocracia, sendo que a participação na
estrutura burocrática se estabelece por uma via individualizada e não partidarizada.
Essencialmente corretos, o grande problema ocorre quando tais argumentos
"escorregam" para a visão dicotômica da relação entre política e burocracia, sobrando duas
alternativas: do lado partidário, o comportamento individualista e clientelista; do lado
burocrático, a instalação de corpos insulados do sistema político. Este cenário não é
completamente verdadeiro, visto que pontes entre estes comportamentos são estabelecidas.
Obviamente, o conflito entre estas lógicas têm ocorrido regularmente, porém, a construção do
Estado brasileiro tem passado pela necessidade de se criar algum grau de convivência entre os
ditames técnicos e os políticos. Atualmente, a compatibilização das lógicas é ainda mais
importante pois a consolidação da democracia no País acontece ao mesmo tempo em que
torna-se urgente a reconstrução do Estado brasileiro.
11
Para fugir da visão dicotômica, é preciso recuperar o autor que em termos clássicos
deu início ao debate acerca da relação entre política e burocracia. Foi em seu "A Política
como vocação" que Max Weber definiu, a ascensão da burocracia - e de sua lógica -dentro do
aparelho do Estado e a profissionalização da classe política como dois fenômenos que
inexoravelmente se instalariam no mundo dali para diante (Weber, 1990: 69-74). A relação
entre estes dois grupos que se fortaleciam deveria ocorrer de tal forma que ambos teriam que
respeitar o campo de atuação específico de cada um. Em outro texto menos analisado ("A
transferência da administração e a seleção dos dirigentes públicos"; 1993: 71-90), Weber
delimita ao burocrata as tarefas técnicas e especializadas que lhe diziam respeito, e cuja
importância crescia concomitantemente ao processo de complexificação social e ao aumento
das demandas por serviços públicos; ao político, cabia exercer o papel da liderança numa
sociedade democrática de massas.
A partir desta divisão de tarefas entre os dois grupos estabelecida por Weber, a
literatura sobre o assunto tem regularmente adotado uma visão preocupada em evitar a
chamada "politização" da burocracia. De maneira que há tanto um forte maniqueísmo nesta
visão - os técnicos são "bons" e os políticos são "maus"- como uma despolitização dos
objetivos da Administração Pública. Ora, tal concepção contradiz o preceito fundamental
presente na própria reflexão de Max Weber, ele desenvolve especialmente em
Parlamentarismo e Governo em uma Alemanha Reconstituída (1974): a relação entre os dois
grupos será sempre política, uma vez que a direção do Estado é sempre definida
politicamente. Mais do que isso, o controle político da burocracia, assim como há o controle
político dos governantes realizado pelo eleitorado, é fundamental na democracia de massas
moderna.
As mudanças operadas no mundo moderno, ademais, tornam mais difícil a
manutenção de uma perspectiva dicotômica no que tange à relação entre burocracia e política.
Isto porque, com o aumento da cobrança democrática por parte da população e com a
necessidade de uma atuação administrativa do Estado cada vez mais eficiente, o limite entre o
que é a tarefa do burocrata e o que cabe ao político vêm se tornando cada vez mais tênue e,
em alguns casos, há um total embaralhamento quanto a estas funções. Ao ocupar cargos
públicos, os políticos precisam responder tecnicamente aos problemas, e caso não o façam,
suas carreiras podem correr risco. Os burocratas, por sua vez, sobretudo quando ocupam
funções do alto escalão, precisam levar em conta critérios políticos para obter sucesso, sejam
eles referentes à lógica interna do sistema político, sejam vinculados à aceitação da opinião
pública.
Exemplos como o do ex-ministro Alberto Goldman (Transportes) ou dos políticos
que ocupam pastas ministeriais no Gabinete inglês ou francês (nestes dois últimos casos, ver
estudo de COSTA, 1993) mostram a necessidade crescente dos integrantes da classe política
de aprenderem e se utilizarem de conhecimento técnico para obter legitimação política. Já no
caso dos burocratas-políticos, bons exemplos são os tecnocratas do PRI que chegaram nos
últimos anos ao poder e o do ex-ministro da Economia da Argentina, Domingos Cavallo. Esse
último fenômeno é igualmente perceptível no Brasil, pois basta ver que todo ministro da
Fazenda ou mesmo do Planejamento, mesmo aquele que nunca teve experiência eleitoral,
terá que adequar seu conhecimento técnico aos ditames da política. O que não significa em si
algo ruim.
Uma das análises mais instigantes sobre a relação entre os políticos e os burocratas
realizada nos últimos anos reforça a posição teórica adotada aqui. Trata-se do estudo
comparativo feito por Aberbach, Putnan e Rockman (1981), analisando sete países -- Estados
Unidos, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Holanda e Suécia. Os autores mostram que é
errôneo adotar a visão de que o político governa e o burocrata apenas administra. Na verdade,
o que vem ocorrendo é uma burocratização da política e uma politização da burocracia (p.19),
12
fazendo os dois grupos adotarem uma estratégia híbrida de atuação. Desta forma, ambos
tornam-se policymakers (p.20), com responsabilidade política e necessidade também de se
legitimar através da lógica política presente naquele país, mas sem ignorar a tecnicalidade dos
assuntos de Estado.
O ângulo do policymaker modifica de várias maneiras o padrão usual de análise a
respeito da relação entre política e burocracia. Primeiro, o pano de fundo da ação dos dois
grupos é sempre político, de tal forma que eles serão avaliados de acordo com critérios como
responsabilidade - vinculada à transparência e as conseqüências gerais de cada ato -- e
responsividade - ligada à efetividade da política pública adotada. Segundo, o importante é
saber quais são os critérios de distribuição dos cargos públicos, procurando descobrir como
especificamente estes critérios conseguem - ou procuram conseguir - compatibilizar às
diversas exigências presentes àqueles que ocupam cargos no topo da Administração Pública.
Terceiro, a compreensão da influência das regras institucionais que circunscrevem o
preenchimento dos cargos é fundamental, partindo portanto do pressuposto de que
determinados universos institucionais, tais como presidencialismo ou parlamentarismo,
federalismo ou Estado unitário, diferenças nos sistemas eleitorais e/ou partidários, existência
de carreiras mais estáveis, entre outros, ajudam a explicar em grande parte a adoção de um ou
outro critério de distribuição dos postos no governo.
Finalmente, ao invés de ficar somente na classificação normativa da burocracia como
meritocrática ou patrimonial - embora esses conceitos não devam ser completamente
descartados - o centro da análise é entender como se dá a luta entre os diversos grupos para
obter determinados cargos, que armas eles utilizam e quais delas são mais eficazes. Trata-se,
desta forma, de politizar a análise da estrutura burocrática governamental, seguindo mais
uma vez os passos de Weber, já que ele definia toda a atividade que envolva o Estado como
essencialmente marcada pela luta para conquistar o poder. A adoção dessa perspectiva
realista, ressalta-se, não implica em abandonar qualquer normatividade, sobretudo a
democrática-republicana. É que preciso conhecer a política de fato, para depois procurar saber
como melhorar a qualidade de sua prática, como bem argumenta um dos principais teóricos
da democracia, Giovanni Sartori (1994).
IV. Considerações Finais
Pode-se concluir que os estudos sobre burocracia e política no Brasil têm alguns
problemas centrais. Primeiro, a falta de uma perspectiva mais politizadora a respeito da
atuação da burocracia, saindo do ângulo tecnocrático de análise. Segundo, falta-lhes mostrar
como os critérios técnicos e políticos se compatibilizam, embora de forma tensa, o que alguns
trabalhos empíricos começam a mostrar (Loureiro e Abrucio, 1997). Terceiro e último ponto,
estes estudos não estudam a fundo a política de nomeações, que constitui mecanismo
fundamental da relação entre política e burocracia nos países presidencialistas, como vários
estudos sobre o sistema americano têm indicado (Ingraham,1987; Ingraham, Thompson &
Eisenberg,1995; Michaels,1995).
BIBLIOGRAFIA CITADA
ABERBACH, J.D., PUTNAM, R.D. & ROCKMAN, B.A. (1981), Bureaucrats and
politicians in western democracies, Harvard University Press, Massachusets.
_______________, & ROCKMAN, B.A. (1988). "Mandates or mandarins? control and
discretion in the modern administrative state", in Public Administration Review,
march/april.
13
ABRUCIO, F.L. (1997), “O impacto do modelo gerencial na Administração Pública: um
breve estudo sobre a experiência internacional recente". In Cadernos Enap, no 10,
Brasília.
BARROS, Alexandre S. C. (1978). “The military professional socialization – political
performance and state building.” Tese de Doutorado, Universidade de Chicago.
BENEVIDES, Maria Vitória Benevides. (1976). O Governo Kubitschek, Paz e Terra, Rio de
Janeiro.
BRESSER PEREIRA, L.C. (1980) “A Sociedade Estatal e a Tecnocracia”, São Paulo, Ed.
Brasiliense.
________________________. (1996). "Managerial Public Administration: strategy and
structure for a new state”. Woodrow Wilson Center. Working papers series.
Washington (DC).
______________________. (1997) “A Reforma do Estado nos Anos 90: Lógica e
Mecanismos de Controle”, Cadernos MARE da Reforma do Estado. Brasília.
CAMPOS, Roberto. (1975). “O Poder Legislativo e o Desenvolvimento” in MENDES,
Candido (org.), “O Legislativo e a Tecnocracia”, Imago Editorial, Rio de Janeiro.
CARDOSO, F. H. (1976). “Autoritarismo e Democratizaçào”, Paz e Terra, Rio de Janeiro
CARVALHO, José Murilo (1993). “Federalismo y Centralización en el Imperio Brasileño:
História e Argumento” in CARMAGNANI, Marcello. “Federalismo
Latinoamericano”. Fondo del Cultura, Cidade do México.
CHEIBUB, Zairo Borges. (1990). “Diplomacia e construção institucional: o Itamaraty em
uma perspectiva histórica”, in Dados, vol.28, n. 1, pp. 113-131. Rio de Janeiro.
COELHO, Edmundo. (1976). “Em busca da identidade: o exército e a política na
sociedade brasileira”. Forense, Rio de Janeiro.
COSTA, V. M. F. (1993). “Sistema de Governo e Administração Pública no Brasil”, in
ANDRADRE, Régis de Castro & JACCOUD, Luciana. “Estrutura e Organização do
Poder Executivo”, Vol. 2, ENAP/ CEDEC, Brasília.
DRAIBE, S. (1985). “Rumos e Metamorfoses, Estado e Industrialização no Brasil,
1930/1960”. Paz e Terra, Rio de Janeiro.
DINIZ & BOSHI. (1987). “Burocracia, Clientelismo e Oligopólio: O Conselho
Interministerial de Preços” in LIMA jr., Olavo Brasil & ABRANCHES, Sérgio. ”As
Origens da Crise”. Vértice, Rio de Janeiro.
DOWNS, L. (1967). “Inside Bureaucracy, Litttle Brothers, Boston.
EVANS, Peter .(1993). “O Estado como Problema e Solução”. Lua Nova, n. 28-29.
FAORO (1976 ). “Os Donos do Poder. A Formação do Patronato Político Brasileiro”,
Editora Globo, Porto Alegre.
GEDDES, B. (1990). "Building State Autonomy in Brazil, 1930-1964". In: Comparative
Politics, January, vol.22, n.2.
GEDDES, B. (1994). "Politician’s Dilema”. University of Califórnia Press, Loa Angeles.
GOUVEA, G.P. (1994). “Burocracia e Elites Burocráticas no Brasil”. Paulicéia, São Paulo.
14
GUERZONI, G. (1996). “Tentativas e Perspectiva de Formação de uma Burocracia
Pública no Brasil”. Revista do Serviço Público, Vol. 120, n. 1, Jan/Abr.
GUIMARÃES & VIANA. (1987). “Planejamento e Centralização Decisória: O Conselho
Monetário Nacional e o Conselho de Desenvolvimento Econômico”. in LIMA jr.,
Olavo Brasil & ABRANCHES, Sérgio. ”As Origens da Crise”. Vértice, Rio de
Janeiro.
HAGGARD, S. (1996) “The Reform of the State in Latin America”. Paper prepared for the
Annual Bank Conference on Development in Latin America and Caribbean. Rio de
Janeiro, junho.
INGRAHAM, P. (1987), “Building Bridges or Burning Them? The President, the
Appointees and the Bureacracy”, Public Administration Review 47, set/oct.
______________, THOMPSON, J & EISENBERG, E (1995). “Political Career
Relationships in the Federal Bureaucracy: Where are We Now?”, Public
Administration Review n55, May/June.
LAFER, Celso (1975). “O Sistema Político Brasileiro”. Ed. Perspectiva. São Paulo
LOUREIRO, M. R. & ABRUCIO, F.L. (1997) “Burocracia e Política na Nova Ordem
Democrática Brasileira”. NPP/EAESP/FGV. Relatório de Pesquisa.
MANN, M. (1992). “O Poder Autônomo do Estado: suas Origens, Mecanismos e
Resultados”. In: HALL, J. (org.). “Os Estado na História”. Imago Editora, Rio de
Janeiro.
MARTINS, L. (1985). “Estado Capitalista e Burocracia no Brasil pós-64”. Paz e Terra,
Rio de Janeiro.
MELO, M. (1996). ”Governance e Reforma do Estado: o Paradigma do agente x
Principal”. Revista do Serviço Público, ano 47, vol. 120, n. 1, jan-abr
MICHAELS, J, (1995), “A View From the Top: Reflections of the Presidencial
Appointees”, Public Administration Review, vol. 55, n3, May/June..
MOE, T. (1984) .“The New Economics of Organization” American Journal of Political
Science, 28, (739-777).
MOORE JR, Barrington (1983). “Origens Sociais da Ditadura e da Democracia: Senhores
e Camponeses na Construção do Mundo Moderno”. Martins Fontes, São Paulo.
NUNES, E. (1997). “A Gramática Política Brasileira”. E. Zahar/ ENAP, Rio de Janeiro
/Brasília
OLIVEIRA VIANA. (1987). “ Instituições Políticas Brasileiras”. Editora Itatiaia, Belo
Horizonte.
SANTOS, L. A. (1997). Reforma Administrativa no Contexto da Democracia. Lídice,
Brasília.
SARTORI, G. (1994). “A Teoria da Democracia Revisitada”. Vols. 1 e 2, Ática, São
Paulo.
SCHNEIDER, B.R. (1994). “Burocracia Pública e Política Industrial no Brasil”. Editora
Sumaré, São Paulo.
15
SCHNEIDER, B.R. (1995). "A Conexão de Carreira: uma Análise Comparativa de
Preferências e Insulamento Burocrático”. Revista do Serviço Público, ano 46, vol.
119, n. janeiro.
SCHWARTZMAN, S. (1988). “Bases do Autoritarismo Brasileiro”. Campus, Rio de
Janeiro.
SKOWRONECK, S (1982). “Building a New American State: Expansion of National
Capacities”. Cambridge University Press, New York, USA.
SOUZA, M.C.C. (1976). “Estado e Partidos Políticos no Brasil”. Alfa-Ômega, São Paulo.
______________. (1994). “Aspectos Políticos Institucionais do Federalismo (1930-1964)”.
IESP/FUNDAP, São Paulo.
WEBER, M. (1964). “Ensaios de Sociologia”. Rio de Janeiro, Zahar.
______________. (1990). “Ciência Política das Nações”. Cultrix, São Paulo.
________________. (1994), “Parlamentarismo e Governo em uma Alemanha
Reconstruída”. Vozes, Rio de Janeiro.
Download

NOTAS CRÍTICAS SOBRE A LITERATURA “BUROCRACIA E