Apresentação
Os artigos que compõem a presente coletânea foram originalmente publicados entre 1999 e 2008. O primeiro data de um período em que eu, como um
pesquisador pós-doutor relativamente jovem, estava trabalhando, na Universidade de Sheffield, Reino Unido, em um projeto para investigar os contextos
do trabalho do Círculo de Bakhtin. Essa era uma boa continuação para o que
eu havia realizado em minha tese de doutorado, uma das primeiras tentativas
sistemáticas de examinar as fontes das ideias do Círculo. Desde o início dessa
pesquisa, o campo avançou consideravelmente, com muitos pesquisadores dando
importantes contribuições para o entendimento das ideias de Bakhtin, Voloshinov,
Medvedev e outros membros do Círculo. A imagem que temos atualmente desse
grupo de estudiosos é bastante diferente das idealizações suavizadas da década
de 1980, quando muitos de nós fomos atraídos pelas personalidades que encontrávamos nas primeiras traduções (frequentemente repletas de graves falhas) e
esboços biográficos hagiográficos. Como muitos ocidentais que conheceram os
trabalhos do Círculo na década de 1980, fui atraído por suas ideias porque elas
lidavam com as mesmas questões que, na época, eram tendências de pensamento
em voga, mas de uma forma que me pareceu muito mais responsável. Em lugar
da celebração do relativismo, indeterminação e ambiguidade que dominava
a teoria cultural no final da década de 1980, com as ideias pós-estruturalistas e
pós-modernas em ascensão, ali apareciam trabalhos provenientes de uma versão
não stalinizada do marxismo e bastante compatíveis com ele. Inevitavelmente,
minha avaliação da relação entre essas tendências mudou ao longo dos anos. Por
estar muito interessado na história do início da época soviética, aprendi russo e
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Repensando o Círculo de Bakhtin
busquei meu objetivo com algum entusiasmo e persistência, passando dois anos
na Rússia, no início da década de 1990 e, desde então, fazendo visitas regulares
a esse país. Sempre suspeitei que as reivindicações da autoria de Bakhtin para
trabalhos explicitamente marxistas, publicados sob os nomes de Voloshinov e
Medvedev, fossem motivadas ideologicamente e, quanto mais eu trabalhava nos
textos originais, maior se tornava minha suspeita. Encontrei práticas autorais
diferentes e argumentos divergentes, apesar dos pontos de convergência óbvios
e significativos, e me pareceu que tínhamos ali um grupo de estudiosos dialogando entre si. Penso que isso foi comprovado por pesquisas subsequentes. Entretanto, não tinha uma real consciência dos vários grupos intelectuais aos quais
pertenciam os diferentes membros do Círculo de Bakhtin nem de como toda a
noção de haver um Círculo de “Bakhtin” era, na verdade, problemática. O que
hoje, na ausência de uma expressão melhor, chamamos de Círculo de Bakhtin
é, na verdade, apenas um ponto no qual diferentes pensadores se intersectavam
e não é de modo algum certo que, para qualquer dos participantes, esse fosse o
mais importante dos agrupamentos a que eles pertenciam. Somente após muitos
meses de trabalho nos arquivos das instituições nas quais essas personalidades
trabalharam tive essa percepção.
Na época em que realizei a maior parte de minha pesquisa arquival, meu foco
não era mais o Círculo e eu não estava tão convencido da pan-originalidade do
trabalho de seus membros, especialmente das alegações feitas a respeito do próprio
Bakhtin. Com o foco em outro lugar, a independência de Voloshinov e Medvedev
tornou-se muito mais clara e houve uma percepção maior de que eles levaram algo
para as discussões do Círculo que Bakhtin não apenas não podia fornecer, mas com
o qual ele aprenderia. Entre minhas primeiras explorações históricas das ideias e o
trabalho arquival, diversos pesquisadores, eu inclusive, escavaram as fontes de ideias
de Bakhtin que antes se pensava serem de sua própria autoria. Ficamos sabendo,
também, que Bakhtin não era o personagem idealizado em que havíamos sido
levados a crer: seus empréstimos frequentemente ultrapassaram os limites que aceitaríamos de estudantes de graduação e, às vezes, poderiam com justiça ser chamados
de plágio. É claro que existiam circunstâncias atenuantes, mas isso é algo que não
encontramos em Voloshinov e Medvedev. Descobriu-se que Bakhtin mentiu sobre
seu passado em várias ocasiões, e somente alguns desses casos podem ser explicados
pelo que sabemos das circunstâncias. Contudo, ao contrário das recentes asserções
de determinados pesquisadores suíços, isso não faz dele um charlatão mais do que
as concepções hagiográficas anteriores fizeram dele um santo. O que vemos é que
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Apresentação
um grupo de pensadores muito mais interessante estava surgindo, encravado nas
condições de seu tempo e época, e não figuras heroicas e excepcionais. Desmistificar
não é o mesmo que desmascarar.
Como acontece com qualquer coletânea de artigos escritos ao longo de um
período, ela contém trabalhos que não seriam escritos hoje e, se fosse escrever
um artigo sobre qualquer desses tópicos específicos, ele seria, com certeza, muito
diferente. O distanciamento é um aspecto, assim como a perspectiva alterada
dada por trabalhos meus e de outros autores realizados nesse ínterim. Os artigos mostram como, em vários pontos, me envolvi com as ideias do Círculo de
Bakhtin, busquei entendê-las quanto às suas fontes e avaliá-las em relação ao que
eu podia ver a partir de um ponto de observação muito diferente. O leitor, sem
dúvida, fará o mesmo ao ler estes artigos e terá razão. Significativas mudanças
de perspectiva ocorreram ao longo do período em que os artigos foram escritos,
sendo importante a compreensão de que, enquanto eu havia abordado os trabalhos de Bakhtin inicialmente pensando que eram intervenções materialistas, eles,
na verdade, revelaram-se a obra de um filósofo idealista. Desse modo, embora
contenham numerosos insights e formulações valiosas, os trabalhos foram também
marcados por formações transigentes, nas quais certos aspectos não foram levados
em consideração. Talvez as mais óbvias sejam Bakhtin ter excluído o surgimento
de uma classe média educada e da indústria da publicação ao moldar o romance
como um gênero e a forma pela qual mesmo as formas do enredo, digamos, dos
romances de Dostoiévski, foram afetadas pela maneira como foram publicadas
em episódios, em periódicos, os assim chamados “tabloides”. Não vou explorar o
assunto aqui, porque já escrevi sobre isso em outro lugar. É suficiente dizer que,
no contexto da urss da década de 1930, refugiar-se no idealismo quando se está
cercado por um positivismo reducionista mascarado de marxismo é, no mínimo,
compreensível. Como observou Marx em Teses sobre Feuerbach (1845), quando o
materialismo torna-se mecânico, o lado ativo é desenvolvido pelo idealismo e, é
claro, isso significa que há algo valioso embutido no próprio idealismo.
O primeiro trabalho da coletânea trata precisamente dessa questão. A perspectiva de Bakhtin sobre o Renascimento é, ao mesmo tempo, reveladora e limitada.
Ela recorre a uma série de fontes geralmente não reconhecidas e apresenta uma
narrativa que de modo algum era original, mas Bakhtin vai além de suas fontes,
construindo, a partir de seus aspectos produtivos, uma nova maneira de pensar a
história da cultura literária dessa época. Entretanto, importantes características das
formações sociais discutidas não são levadas em consideração, o que significa que
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Repensando o Círculo de Bakhtin
precisamos tratar o trabalho de Bakhtin com cautela e ir além de suas limitações,
exatamente como ele parcialmente transcendeu suas próprias fontes.
Uma área na qual desenvolvi perspectivas sobre o trabalho do Círculo que
ainda não tinham sido utilizadas anteriormente foi trabalhando a questão da natureza da atividade discursiva. Dois dos artigos da coletânea contêm uma cuidadosa
consideração das fontes da concepção de Voloshinov sobre o enunciado e como
isso foi posteriormente desenvolvido por Bakhtin. Em “O dilema de Voloshinov”
rastreei as fontes da teoria de Voloshinov, inclusive dois dos mais importantes e
subestimados escritores que trataram da atividade discursiva, Anton Marty e Karl
Bühler. Voloshinov refere-se a ambos e estava até mesmo traduzindo um artigo
deste último. Um exame mais apurado leva-nos a ver que o núcleo da ideia do
enunciado pode ser encontrado em seus trabalhos. A contribuição de Voloshinov
foi sociologizar a ideia e, ao fazê-lo, fornecer uma estrutura de acordo com a qual
a inicial fenomenologia dos atos subjetivos e suas ideias sobre a relação entre autor
e herói puderam ser remodeladas como interação dialógica. Surgem diferenças
específicas entre a abordagem ambivalente de Voloshinov à relação entre os reinos
discursivo e extradiscursivo e a desconsideração que Bakhtin dá a esse último. Aqui,
temos a distinção central entre a fenomenologia “realista” subjacente à concepção
de enunciado e o neokantismo de Bakhtin, de acordo com o qual o objeto do
conhecimento é produzido por e no pensamento.
Em certo sentido, Bakhtin continuamente tentou subordinar o primeiro ao
último, mas nunca foi capaz de consegui-lo completamente. Com frequência, acho
esse o aspecto mais interessante do trabalho de Bakhtin e ele é um exemplo da forma
pela qual não é necessariamente o lado mais harmonioso e completo do trabalho de
um pensador que é o mais valioso, e sim como podemos aprender com a maneira pela
qual um pensador trabalha determinados problemas. Em “O direito e os gêneros do
discurso” exploro como a adesão de Bakhtin à ideia da Escola de Marburg, de que as
ciências humanas são baseadas na ética e a jurisprudência é sua “matemática”, interage
com sua teoria do enunciado, com algumas implicações fascinantes.
A partir de 2003, o Círculo de Bakhtin deixou de ser o centro da minha pesquisa, embora eu tenha tentado me manter atualizado com os trabalhos no campo
e inevitavelmente realizasse minhas novas investigações sempre com o Círculo no
fundo da minha mente. Certa vez, preparei material para algumas conferências e
publicações que enfocavam o Círculo e penso que esse material nos ajuda a ter uma
visão mais precisa do lugar do Círculo em seu contexto histórico. Um resultado
desse novo foco foi meu estudo em 2007 exatamente sobre por que as ideias do
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Apresentação
Círculo e do psicólogo Lev Vygotsky pareceram semelhantes a muitos estudiosos.
A razão disso, eu descobri, foi não apenas o fato de que Bakhtin, Voloshinov e
Vygotsky frequentemente leram os mesmos livros, mas que Voloshinov e Vygotsky
também realizavam projetos de pesquisa coletivos em instituições com objetivos
compartilhados. Entretanto, o neokantismo de Bakhtin e a adesão de Vygotsky às
principais ideias de Spinoza tornaram suas orientações filosóficas incompatíveis.
Tais diferenças exigem que os estudiosos que desejam empregar as ideias dos dois
abordem a implicação dessa divergência, em vez de ficar satisfeitos em combinar
características que só superficialmente são semelhantes.
A originalidade de Bakhtin indubitavelmente foi exagerada quando se trata
de seu trabalho sobre a estratificação social da linguagem [A teoria do romance].
Atualmente, fica claro que o estudo da linguagem no início da urss fez avanços
significativos exatamente nessa área. Não apenas Bakhtin teve conhecimento e foi
influenciado por essas concepções, mas a maior parte dos trabalhos importantes
nesse campo era desconhecida além de um pequeno círculo de especialistas. Havia
razões históricas para isso, sendo uma delas a intervenção de Stalin na linguística,
em 1950, dentro da urss, e outra, a lógica dos estereótipos da Guerra Fria sobre
os estudos soviéticos, fora da urss. Embora Bakhtin frequentemente seja apresentado como uma heroica exceção às tendências predominantes no início dos
estudos soviéticos, nessa área, parece que ele estava bem inserido na tendência
dominante. Em “As origens da sociolinguística soviética” (2003), delineei as principais tendências na área e argumentei que a sociolinguística que se desenvolveu
nos eua, na década de 1960, não foi menos condicionada pelas circunstâncias
sociopolíticas e ideológicas que aquela desenvolvida na urss, na década de 1920.
Em certos aspectos, as teorias soviéticas podem ser consideradas mais produtivas.
Um entendimento desses trabalhos é importante ao avaliar o que, exatamente,
Bakhtin acrescentou, se é que acrescentou, a essa área e o que tais ideias trazem
para seu trabalho sobre o romance.
Os dois artigos restantes colocam o trabalho do Círculo de Bakhtin no contexto das instituições nas quais a maioria deles trabalhou nas décadas de 1920 e
1930. Em minha contribuição de 2005 à conferência sobre Bakhtin, na Finlândia,
mostrei como Voloshinov e Medvedev estavam engajados em projetos dentro de
instituições em Leningrado que tinham uma relação direta com suas próprias
publicações e, subsequentemente, com os trabalhos de Bakhtin. O projeto de
desenvolver uma poética sociológica foi central tanto para o Método formal de
Medvedev como para o Marxismo e a filosofia da linguagem de Voloshinov, e fica
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Repensando o Círculo de Bakhtin
bem claro a partir de material arquival que ambos eram especialistas reconhecidos em seus campos. Eles trouxeram ideias que desenvolveram em seus projetos
institucionais para as discussões do Círculo e levaram ideias das discussões do
Círculo de volta para seus institutos. Isso também permitiu que Bakhtin traduzisse
suas ideias iniciais sobre autor e herói para os termos dos projetos de pesquisa
da época e, então, publicasse o estudo resultante sobre Dostoiévski na mesma
série institucional de monografias que seus colegas. O próprio trabalho dentro
do instituto foi precursor em algumas áreas e Bakhtin continuou recorrendo
às ideias desenvolvidas por outros estudiosos do instituto, principalmente Lev
Iakubinski, Viktor Zhirmunski, Olga Freidenberg e Izrail Frank-Kamenetski, em
sua obra sobre o romance da década de 1930. O artigo de 2008, “Linguística
sociológica em Leningrado”, apresenta uma visão geral dos estudos linguísticos
no instituto, fornecendo referências incidentais sobre o lugar de Voloshinov e
Medvedev e é suplementado por um resumo do trabalho que Voloshinov estava
realizando no instituto na década de 1920.
Juntos, os artigos mostram como meu trabalho foi desenvolvido, mas espero que
eles também apresentem o trabalho do Círculo de Bakhtin sob uma nova luz. Obviamente, é importante entender como um pensador olhava para o mundo e definia o
objeto de sua pesquisa, mas também é importante sair da esfera da pessoa estudada e
ver o que estava disponível a ela, levando em consideração as áreas de que tal pensador
desviou os olhos. Bakhtin certamente tinha seus pontos cegos e aqueles que estudam
seu trabalho também têm os seus, eu inclusive. Há, geralmente, algo valioso e único
em cada ponto de vista e esse deve, talvez, ser nosso ponto de partida. Entretanto,
não é aí que a pesquisa termina.
Craig Brandist
Helsinki, março de 2012
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