A LEI DA FICHA LIMPA E A DECISÃO DO STF Kátia Rubinstein Tavares e João Carlos Britez A Lei da Ficha Limpa, que passou a vigorar a partir de junho deste ano (através da Lei Complementar nº 135), vem ocupando espaço nos meios de comunicação, motivado pelo interesse da opinião pública que já está cansada de ouvir tantas denuncias de corrupção, falta de espírito público, ausência de moral e ética por parte dos nossos políticos. Sem dúvida que essa legislação estimula o sentimento de cidadania, resgatando, especialmente nos jovens, o interesse na participação da vida política de nosso país, representando uma importante conquista para o fortalecimento da democracia, além de passo relevante na busca pela moralização do processo eleitoral brasileiro. Estabelece a Lei Complementar nº 135, de acordo com o artigo 14, § 9º, da Constituição Federal, os casos de inelegibilidade de candidaturas políticas, quando houver condenação proferida por órgão colegiado judicial e administrativo, mesmo que ainda não tenha ocorrido o trânsito em julgado da decisão. Ainda, prevê que fica impossibilitado de se candidatar por oito anos o político que renunciar a fim de não ser cassado. No dia 23 de setembro passado, o Supremo Tribunal Federal iniciou julgamento, no qual se analisou o Recurso interposto por Joaquim Roriz, candidato ao governo do Distrito Federal, contestando a decisão que o tornou inelegível pela Justiça eleitoral, com fundamento no fato de ele ter renunciado para escapar de uma possível cassação no Senado. Após muita discussão, o Plenário da Suprema Corte não chegou a um consenso sobre o início de vigência da referida Lei Complementar e, por ter ocorrido o empate na votação, decidiu suspender o resultado do julgamento do Recurso. Finalmente, no último dia 27 de outubro, o Supremo Tribunal Federal examinou o julgamento do Recurso Extraordinário interposto por Jader Barbalho, o segundo candidato mais votado ao Senado no Pará, na recente eleição, decidindo por maioria de votos (7 a 3) pela prevalência da decisão da Justiça eleitoral, que indeferiu o registro de candidatura do referido parlamentar. Portanto, a Lei Ficha Limpa terá aplicação imediata para os casos de renúncia de políticos que buscaram escapar de possível processo de cassação. Registre-se que a mencionada decisão abre precedência, apenas para os políticos que renunciaram a seus mandatos para evitar uma possível cassação pelo Senado Federal. Entretanto, os candidatos que estão enquadrados por outros motivos na Lei Ficha Limpa deverão ser julgados caso a caso. Desde o início da tramitação do Projeto de Lei na Câmara Federal, verificou-se a impossibilidade de sua aplicação às situações jurídicas já consumadas, baseandose em normas constitucionais que resguardam a coisa julgada, a irretroatividade da Lei mais maléfica e, ainda, o princípio da anualidade da legislação eleitoral, por haver a alteração de todo o seu procedimento. Portanto, ressalvados os casos de inelegibilidade por motivo de renúncia, somente após um ano de sua publicação, poderá ser aplicada indistintamente, seja quem for o eventual atingido pelas novas regras. Não bastasse isso, no universo jurídico, mostra-se inconcebível que um novo regramento legal venha modificar o prazo do início da sua validade, ao penalizar hipóteses casuísticas, afrontando os princípios da isonomia e da segurança jurídica. No acórdão referente ao julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.685-8/DF, que teve como relatora a Ministra Ellen Gracie, julgada em 2006, os Ministros do Supremo Tribunal Federal já adotaram o princípio da anualidade da Lei eleitoral, conforme dispõe o 16 da Carta da República, o qual determina: "A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorrer até um ano da data de sua vigência". Por outro lado, para assegurar a soberania popular não se pode abrir mão dos direitos fundamentais. Logo, é necessário que se reflita sobre questão insuperável, que atormenta a consciência da comunidade jurídica: a flagrante inconstitucionalidade da mencionada Lei Complementar, em virtude de se estar promovendo ofensa à dignidade da pessoa humana, principalmente, aos princípios constitucionais da inocência presumida e do devido processo legal. Lembre-se: condenado é aquele que possui decisão transitada em julgado, porque ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal, civil ou administrativa. Além disso, o simples exame da vida pregressa de um cidadão não deve permitir obstáculo à prática de qualquer ato civil ou político, sob pena de se promover uma condenação antecipada, atingindo sua honra e imagem perante o contexto social. Ademais, também se exige o trânsito em julgado da condenação criminal para perda ou suspensão de direitos políticos (art. 15, III, da Constituição Federal). Cabe ao jurista a árdua tarefa de articular discurso em que se preservem os direitos e as garantias constitucionalmente assegurados, como a irretroatividade da Lei punitiva, as cláusulas pétreas e a anualidade eleitoral, sem abrir mão da justa demanda observada perante os princípios da moralidade e da probidade administrativa. Certamente, ao enfrentar outras situações jurídicas enquadradas na Lei Ficha Limpa, o Supremo Tribunal Federal deverá confrontar-se novamente com esse embate que o tema suscita. Membros do Instituto dos Advogados Brasileiros * O texto publicado não reflete necessariamente o posicionamento do IAB