Democracia sub judice.
Paulo Kramer e Moisés B. de Barros Neto. Págs: 03 a 05.
TÍTULO: DEMOCRACIA SUB JUDICE
Paulo Kramer1
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Moisés B. de Barros Neto2
Bem antes de ser sancionado como Lei Complementar nº 135, de 4 de
junho de 2010, o projeto conhecido como Ficha Limpa - resultante de iniciativa
popular de legislação contra a ‘compra de votos’, cuja coleta de assinaturas tivera
inicio em 1997 - suscitou vários debates no Congresso Nacional, nos meios de
comunicação e na arena maior da opinião pública.
A nova lei proíbe a candidatura de quem tenha condenação transitada em
julgado ou por órgãos colegiados da Justiça, assim como do político que haja
renunciado ao seu mandato para fugir de cassação e da temporária inelegilibilidade
que esta acarreta.
Vale lembrar que ela modifica uma Lei Complementar anterior, a de nº 64,
datada de 18 de maio de 1990, que, por sua vez, regulamenta dispositivo da
Constituição da República relativamente a requisitos de moralidade e probidade
administrativa para o exercício de mandatos, levando em consideração a vida
pregressa dos candidatos. Por esse diploma legal, são considerados inelegíveis
aqueles que tiveram rejeitadas as contas de gestões anteriores ou foram
condenados por: abuso de poder econômico, improbidade administrativa, corrupção
eleitoral, ou compra de votos.
Antes de prosseguir, queremos deixar claro que somos sincera e
plenamente favoráveis à redignificação da atividade política e à moralização da vida
pública no Brasil, partilhando da indignação geral em face de tantos e tão graves
episódios de corrupção que ameaçam abalar credibilidade das instituições
republicanas, e cuja manifestação mais eloqüente foram mais de dois milhões de
assinaturas de cidadãos ‘co-autores’ do Projeto Ficha Limpa.
Dito isso, sentimo-nos obrigados a duvidar da constitucionalidade da
aplicação imediata da nova lei aos casos transitados em julgado anteriormente à sua
promulgação, na contramão, bem o sabemos, das opiniões ardentemente
defendidas por líderes de amplos setores da sociedade, a exemplo do presidente do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do presidente do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), da diretoria da Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB) e da esmagadora maioria dos articulistas, âncoras e editorialistas da mídia.
Todos eles insistem que a punição prevista no Ficha Limpa, ou seja, a
inelegibilidade valha para a eleição deste ano.
Nossa posição contrária a essa tese se fundamenta em princípios
garantidores do Estado Democrático de Direito, de vez que integram o art. 5º,
Capítulo I (“Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos Garantias
Fundamentais”), Título II (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”) da Carta de
1988, e estão contidos nos seguintes incisos: - XXXVI: “a lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;” - XXXIX: “não há crime sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;” - XL: “a lei penal não
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Cientista Político.
Advogado e pós-graduado em Direito Constitucional e Direito Legislativo.
REVISTA @REÓPAGO JURÍDICO – ANO4 - EDIÇÃO Nº 13 (JANEIRO A MARÇO DE 2011)
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ISSN 1983-9448
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retroagirá, salvo para beneficiar o réu;” - LV: “aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;” e - LVII: “ninguém será
considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”
Por último, mas não em último, acrescente-se o preceito constitucional da
anualidade, presente no art. 16, segundo o qual a “lei que alterar o processo
eleitoral” não se aplicará “à eleição que ocorra até um ano da data da sua vigência.”
Ora, o próprio texto da Lei Ficha Limpa é claro ao estabelecer que suas
regras entram em vigor “na data da sua promulgação” - e não antes desta. Mesmo
assim, é de se prever que as controvérsias e a incerteza jurídica ensejadas pela sua
imediata aplicação prolongar-se-ão para bem depois do pleito de outubro.
Trocando em miúdos: um número por enquanto imprevisível de resultados
produzidos pela escolha popular estará sub judice.
Desde já, porém, podemos chamar a atenção do leitor para posições
díspares existentes no seio da comunidade jurídica, como aquelas assumidas pelo
Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, de um lado, e pelos TRE’s do
Maranhão, do Pará, do Rio Grande do Sul e do Tocantins, de outro. No primeiro
caso, Joaquim Roriz teve a candidatura barrada ao que ele pretende seja o seu
quinto mandato de governador da capital federal. Nos demais casos, os tribunais
deixaram de aplicar a lei ficha limpa aos candidatos a cargos eletivos neste ano. (Por
falar em Roriz, o TRE/DF o barrou por ele ter renunciado ao seu mandato senatorial
em 2007 a fim de evitar a cassação, uma conduta que até dois meses atrás, antes
da promulgação da Lei Ficha Limpa era perfeitamente legal.)
A esta altura, cabe uma observação de natureza hermenêutica, ou, outros
poderão alegar, simplesmente semântica: os juristas ou magistrados que são a favor
da aplicação imediata da Ficha Limpa tendem a interpretar o significado da
expressão “lei penal” (no já referido inciso XL) em sentido estrito, isto é, com a
irretroatividade sendo limitada ao âmbito do Código Penal, e não da legislação civil e
eleitoral. Em contraste, aqueles que são contra a aplicação imediata tendem a
interpretar “lei penal” em sentido amplo, ou seja: como algo não adstrito ao Código
Penal, mas abrangendo, também, outros tipos de punição, inclusive a proibição a
alguém de concorrer a um mandato eletivo. Trocando, mais uma vez em miúdos:
para o grupo pró Ficha Limpa-Já!, a cassação do direito de concorrer não é punição.
O que seria então? Afinal, a própria Lei Complementar nº 64/1990 refere-se à
inelegibilidade como uma “sanção” (em outras palavras, pena, punição)
Caso a atitude pró-aplicação imediata, publicamente assumida em
diversas oportunidades, pelo atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro
Ricardo Lewandowski; encontre eco nas opiniões de seus colegas neste colegiado,
ninguém precisará de dons especiais de clarividência para predizer que numerosos
recursos de candidatos que se considerarem prejudicados ‘subirão’ até o Supremo
Tribunal Federal (STF). E, nessa instância máxima, é possível antecipar mais
problemas, na medida em que, além do próprio Lewandowski, pelo menos um
ministro (Carmem Lúcia) já externou seu sentimento igualmente favorável à Ficha
Limpa - Já! E isso, no entender de mais de um jurista, em tese, a obrigaria a se
declarar impedida de julgar quaisquer desses casos.
A despeito de reconhecer e antecipar todas essas dificuldades, não
pretendemos, absolutamente, recomendar o conformismo cívico e o desânimo
político. Ao contrário, consideramos possível e necessário lutar contra os abusos e a
corrupção nesta eleição, mediante o engajamento em campanhas de educação e
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mobilização do eleitorado, como “Eleições Limpas - Não vendo meu Voto!”, recémlançada pela AMB.
Ao mesmo tempo, concordamos com a visão de analistas abalizados
como o professor Vitor Marchetti, doutor pela PUC-SP e docente da Universidade
Federal do ABC: é preciso racionalizar e simplificar as leis processuais, de modo a
reduzir substancialmente o intervalo entre a situação motivadora da ação e a
sentença do TSE, ou do STF.
Em artigo para o Valor Econômico, de 6 a 8/8/2010 (“O TSE e a lei da
ficha limpa: algumas considerações”, p. A12), depois de recordar que “a lei de
inelegibilidades já previa a vedação de candidaturas de condenados com sentença
transitada em julgado”, Marchetti deplorou o excessivo formalismo do sistema
processual em vigor, que impede a celeridade nas deliberações do judiciário,
fazendo com que os processos corram inconclusos por anos, ou mesmo décadas,
algumas vezes alcançando os réus “em pleno exercício do mandato” (casos de
Jackson Lago, no Maranhão; Cássio Cunha Lima, na Paraíba; e Marcelo Miranda,
no Tocantins), ou, em outras, até depois de o mandato já haver expirado. (É sempre
bom lembrar Rui Barbosa: “Justiça tardia não é justiça; é arremedo de justiça”.) Em
poucas e certeiras palavras, Marchetti assim resumiu o seu argumento: “Fosse o
Judiciário mais célere, não teria sido preciso fazer esse movimento”.
A propósito: Miranda e Lago acabaram de ser liberados para concorrer
este ano pelos TRE’s do TO e do MA, respectivamente, enquanto Cunha Lima teve
negado o registro de sua candidatura pelo TRE/PB.
E vá-se pedir ao eleitor que entenda!
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