2015/ 10/ 28 A s Fo r ça s A r m a d a s n a se g u r a n ça i n t e r n a . O ca so e sp e cíf i co d o d o m ín i o m a r ít i m o 1 Alex andr e Reis Rodrigues I n t r o d u çã o O en volvim en t o das Forças Arm adas em t arefas de segurança intern a t em sido m at éria de um debat e que já dura h á doze anos. É o t em po qu e passou desde a aprovação do Conceit o Est ratégico de Defesa Nacional de 2003, o prim eir o docum ent o oficial que se dem arca da delim it ação rígida ent re o que é segurança interna ( área das forças policiais) e segur ança ex tern a ( área das forças arm adas) . 2 Pelo m eio, t ivem os, ent re m u it as out ras iniciat iv as, o I Congresso Nacional de Segur ança e Defesa, realizado em j unh o de 2 010 . Merece dest aque com o um a t ent at iv a, abert a à sociedade civil, de encon trar um leque alargado de respost as às int errogações que se punham sobre com o encarar, em t er m os de organização do Est ado, o fim da t radicional separação ent re os dois cam pos. 3 No ent ant o, n ão obst ant e alguns progressos na concept ualização do assunt o, ain da se lev an t am int err ogações, nalguns set or es, sobre a sua com patibilidade com a Con stituição. Com a aprovação da nova lei de Defesa Nacion al, de 2014 , que form alizou, com o m issão das Forças Ar m adas «cooperar com as forças e serviços de segurança» e « colabor ar n as m issões de prot eção civ il» , era de esperar qu e o assun t o t iv esse ficado esclarecido. Mas não ficou. Pelo m en os t ant o quant o o necessário para elim inar r eticências, de natur eza alegadam ent e const it ucion al, a um aprov eit am ent o com plet o das capacidades das Forças Arm adas para m issões de int eresse pú blico. Por ex em plo, para além das da Mar inha, a da part icipação da For ça Aérea n o com bate aos fogos florest ais e a do em pr ego de forças do Ex ércit o na v igilân cia das m at as. É preciso 1 Confer ência na Un iv er sidade Lusíada de Lisboa sobr e o “ Papel das Forças Ar m adas na segur ança int erna” , 28 de outubr o de 2015. 2 Essa or ien t ação, que de cer t o m odo reflet ia o clim a polít ico pós- 25 de abril, est av a est abelecida na Lei de Defesa Nacional e das For ças Arm adas, de 1982. 3 A propósito da cr iação da Unidade de Cont rolo Costeir o da GNR, o ent ão MAI fundam ent av a a sua decisão na «div isão clássica ent re o que são as m issões das For ças Arm adas e das For ças de Segur ança” . De fact o essa div isão sem pre ex ist iu e v ai cont inuar , m as deix ou de ser a div isão clássica do passado. Os at uais requisit os de segur ança ex igem um a out r a v isão, m ais int egrada, sem as front eir as ar t ificiais ent re o que é segurança in t erna e segu rança ex t er na que têm im pedido ar ticulação de esfor ços, siner gias e eficácia. ( ext rat o de um a ar tigo que o autor publicou no Jor nal Público, a 5 de m aio de 2007) . Página 1 de 5 JDRI • Jornal de Defesa e Relações Internacionais • www.jornaldefesa.pt not ar , no ent ant o, que nunca o Tribunal Constit ucional se pronun ciou por qu alquer incon st itu cionalidade da lei aprovada. Em qualquer caso, gost aria de ch am ar a at enção para a form a com o se t em pret endido abordar os aspet os const itucion ais dest e assunt o. Ju lgo que ant es de iniciar essa discussão, e sobretudo ant es de in vocar a Const it uição, devia debat er se a quest ão pr évia de saber se a int erpret ação de defesa n acion al que est a adot a cont inua a reflet ir corret ament e as alt erações radicais por que passou o cont ext o de segurança exist ent e. Eu pen so que não reflet e m inim am ent e. 4 Parece evident e que é um a con ceção m u it o dat ada com o cont ext o da Guer ra Fria qu e dom inava o pen sam ent o est rat égico n a alt ura em que a Const it uição foi redigida. Per deu at ualidade porqu e, de u m a form a excessiv am ent e sim plist a, baseia a dicot om ia ent re segurança e defesa apenas n a origem geográfica da am eaça. Se é ex t erna o assunt o é das Forças Ar m adas, se é int er na é das For ças de Segurança. Não t em em cont a que as am eaças hoje são difusas e im precisas, sendo por vezes difícil det erm in ar a sua origem . 5 Faz u m a abor dagem que n ão at ende à m uit o m aior com plex idade at u al do am bient e de segur ança. Não recon hece que o m aior grau de sofist icação e de int ensidade das novas am eaças, m esm o não fazen do part e da tipologia das guerras e conflit os, exige prever o em prego com plem ent ar das capacidades m ilit ar es e/ ou um refor ço com os seu s efet ivos para a prot eção de infraestrutu ras cr íticas, m esm o fora de sit uações de exceção com o é o caso do est ado de sít io ou de em er gência. 6 Est a desat ualização precisa de ser corrigida. En qu ant o n ão or ient ações err adas e a ret ir ar flex ibilidade à procu ra do or gan ização do Est ado para se prot eger das nov as ameaças e form a de part icipação das Forças Arm adas, t em a a que, com o set ores/ inst it uições não se m ost ram recetiv os. for est á a suscit ar m elh or m odelo de à definição clara da é conhecido, alguns Sob qu e orien t ação dev e ser feit a essa correção é assu nt o a discu tir. A coligação “ Port u gal à Fr en t e” , propôs, no seu program a eleit oral, a clarificação dos con ceit os de segurança e defesa, em sede de fut ur a rev isão const it ucion al. Arrisco cont rapor a su gest ão de ponderar sobre se não será excessiv o cont inuar a fazer depender da Con stituição a clarificação dest e t ipo de t em as, principalm ent e quando se t rat a de assun t os cuj o ent endim ent o vai v ariando ao longo do t em po. Já sabem os que o que quer que se venha a fazer nesse cam po v ai dem orar bast an t e t em po. Cert am ent e m uit o m ais t em po do que seria desejável para t er 4 Diz a Constit uição: «a defesa nacional t em por objet iv os gar ant ir, …, a independência nacional, a int egr idade do t err it ório e a liberdade e a segurança das populações cont r a qualquer a g r e s s ão o u a m e a ça e x t er n a » ( realce da r esponsabilidade do aut or) . 5 Em n ov em br o de 2008, Mum bai ( Í ndia) , a quint a cidade m ais populosa do m undo, estev e nas m ãos de um reduzido grupo de dez t err or ist as que num a ação coordenada fizeram 166 m or t os e 30 4 fer idos. Tudo com eçou, no alto m ar, com o apr esam ent o de um arr ast ão indiano de que o grupo se ser v iu par a entr ar no por t o sem lev ant ar suspeit as e de onde part ir am para t err a em botes de borr acha, com o se tr at asse do inofensiv o desem barque da tr ipulação. Est e incident e m ost ra bem com o se inter penetr am as front eir as entr e o que é segur ança int erna e segur ança ex ter na. 6 É o que se faz hoj e por t oda a par te. Por ex em plo, em Paris, por ocasião do assalt o t err or ist a ao sem anár io Charlie Hebdo, o Gov er no fr ancês colocou na rua 10000 efetiv os m ilit ar es par a pr ot eger os bairr os j udeus e out ras in st alações crít icas. I sr ael, per ant e o agr av am ento do conflito em cu rso com os palest inianos, conv ocou seis com panhias do Ex ér cit o para colabor ar dir et am ente com as for ças policiais. É t am bém o que os EUA fazem quando, por ocasião de im por t antes cim eir as m undiais, se pr ev eem grandes m anifest ações de contest ação. Página 2 de 5 JDRI • Jornal de Defesa e Relações Internacionais • www.jornaldefesa.pt um a respost a à alt ura dos desafios com que o País se debat e. Fica a esperança que da part e dos principais int erv enient es h aj a a vont ade para en cont rar um cam inho de bom senso, subst it uin do a com pet ição por áreas de in fluência pela adoção do m odelo qu e m elhor sir va os int eresses do país, n ão os in teresses part iculares dest a ou daquela organização. O ca so d o d o m ín i o m a r ít i m o Malgrado a dicot om ia rígida que a Const ituição e Lei de Defesa Nacional e das Forças Arm adas de 1982 est abeleciam sobr e os cam pos de at uação das for ças ar m adas e das forças de segur ança, nunca isso pôs em causa um a longa t radição de m ais de duzent os anos de en volvim ent o da Marinh a em t arefas que são abran gidas hoj e pela designação de segurança m arít im a m as que, n a prát ica, sem pr e foram um a vert ent e do em prego do poder n av al. A m ais conhecida do grande pú blico é a fiscalização das águ as de j ur isdição nacional, na vert ent e da fiscalização da pesca m as, na prát ica, abrange v ár ias out ras vert ent es, a saber, o com bat e ao t r áfico ilegal de drogas ( frequent em ent e em parceria com a Polícia Judiciária) , o cont rolo da poluição, et c. É u m m odelo claro e prát ico e que t em funcionado a con t ent o. Malgrado as t radicion ais lim it ações da falt a de r ecursos, sem pre est eve à altu ra dos desafios qu e se foram pondo e permitiu dem on st rar, quer int ern a, qu er ex ternam ente, que Port u gal t em um cont rolo sat isfat ório sobre o dom ínio m arít im o sob sua respon sabilidade. Em bora sem n unca quest ion ar a lógica dest a solução organizat iva, nem os result ados prát icos qu e propor cionava, em 20 07, o Gov erno de ent ão decidiu que er a altu ra de acabar com a ex ceção de m ant er as Forças Arm adas com «fun ções de natur eza policial» , o que er a o caso da Marinha e da Força Aérea, em relação ao m ar t errit orial e correspon dent e espaço aéreo. 7 Foi o início do que cham o um a tent ativ a – na m inha opinião, pouco cuidada - de “ desm ilit arização da segurança m ar ít im a” . Criou- se a Unidade de Contr olo Cost eiro da GNR m as só se lh e at ribuiu responsabilidades sobre o dom ínio m arít im o. Não se t ocou no correspondent e dom ínio aér eo o que acabou por retirar credibilidade à fundam ent ação da opção feit a. Afinal, est ava a decidir- se a alt er ação n ão ex at am ent e na base de um a int erpret ação linear da Const it uição – com o se pret endia fazer cr er – m as apen as em fun ção das capacidades que se av aliavam com o acessíveis à GNR. 8 Não se cuidou de saber se havia razões para o qu e o ent ão respon sável pela Adm inist ração I n t erna considerava ser um a exceção a que se devia pôr fim – as Forças Arm adas a int erv irem n o m ar t errit orial e correspondent e espaço aéreo. Ent en deu- se que dev eria pr ev alecer o crit ério da cont inuidade do est at ut o de t errit ório de m odo a inclu ir, sem qu alquer diferen ciação, o m ar territ orial. Esqu eceu- se qu e a questão t inha para além da ev ent ual dim en são legal, um a dim ensão oper acion al a que era preciso prest ar t am bém at enção. Não se t ev e em 7 Ent rev ist a de António Cost a, com o m inist ro da Adm inist r ação In t erna, ao jor nal “ Ex pr esso, a pr opósit o da nov a lei or gânica da GNR e criação da Unidade de Contr olo Cost eiro. 8 “ O em prego das For ças Arm adas a nív el int er no – Um par adox o” , coronel Ger v ásio Br anco, Rev ist a Milit ar , fev er eiro/ m ar ço de 2015. Página 3 de 5 JDRI • Jornal de Defesa e Relações Internacionais • www.jornaldefesa.pt consideração que, falando em cont inuidade, então t em os qu e considerar que o m ar é um cont ínuo indivisível, on de não há form a prát ica de dist in gu ir entr e o que é at é às doze m ilhas e o que é a partir daí. Não se verificou se a utilização do cr it ério geográfico era, n o m ar, o adequado para definir divisão de t arefas ent re a Marin ha e a GNR qu e, em paralelo com a Marinh a, passou a det er com pet ên cias de vigilância, pat rulham ent o e int erceção m arítim a em t oda a cost a e m ar territ orial. Esqueceu- se qu e o crit ér io geográfico é a negação da liberdade de m anobra – o m elhor t ru nfo das forças que operam no m ar – lim it ando de for m a absurda a ex ploração das capacidades dos sist em as de arm as. Esqu eceu- se que a abordagem à t arefa de prot eção de front eiras n o m ar faz- se ex at am ent e ao con trário do que em t err a. I st o é, de for a para dent ro, e à m aior dist ância possív el que o alcance e aut onom ia dos m eios perm it am . Ficou subent endido, em bora sem o assum ir, que a desm ilit arização da segurança m arít im a, em últ im a inst ância, visav a a criação de um a guarda cost eira com o consequ en t e afast am ent o da Marinha das t arefas de policiam en t o do m ar. É um a solução a qu e t em fugido a m aioria dos países porque im plica um a duplicação de recursos e est rutu ras qu e se t or na m uit o dispen diosa. Ficou, por isso, com o que um a solução ex clusiv a dos países ricos. Os qu e n ão t êm esse est at ut o t êm opt ado por u m a est rut ura de forças que se tipifica com o um a com binação de guarda cost eira com m ar inha de guerr a, v ar iando apenas a im port ân cia de cada um a. Est a solução tem v indo a alargar- se e a acent uar- se com as alt er ações por que passou o cont ext o de segurança e a prioridade, daí decorr ent e, que t em sido at ribuída às est rat égias de segur ança m arítim a, o que no seu conj unt o est á a levar a u m m odelo diferent e de m arinhas. Geoffrey Till designa- o por “ Post m odern Nav ies” . É um m odelo que põe o foco nas operações de segu rança m arít im a, obrigando as m arinhas a t er capacidade de respost a na área do policiam ent o para im posição da lei e par a part icipação em conflit os de baix a int ensidade. Port ant o, um m odelo vocacion ado par a r esponder a am eaças assim ét ricas, para part icipação nas cham adas operações “ short of war” e, em t erm os geogr áficos, m ais direcionado para o lit oral do qu e par a os gr an des espaços oceânicos. Dit o por ou tras palav ras, um m odelo que perm it a confront ar m ais eficazm ent e as am eaças com origem em at ores não est at ais que pr ocur am t irar part ido do regim e liberal do dom ínio m arít im o e da incapacidade de algu ns est ados exercer em as suas obrigações de m anut enção da lei e da ordem nos espaços sob su a responsabilidade. No fundo, trat a-se de t razer o papel t radicional das m arinhas n a segurança m arít im a, de novo, par a um prim eiro plan o. Em prim eiro lugar, tirando par tido da natur eza m ult it arefa do em pr ego do poder naval e da dualidade de em pr ego das plat aform as navais. Em segundo lugar, t endo pr esent e que quant o m ais t arefas um a m arinh a for ch am ada a desem penh ar m enos caro se t orna o invest im ent o inicial. Fin alm ent e, lem brando que a crescent e sofist icação t ecn ológica com qu e se apresent am as novas am eaças exige capacidades que, ger alm ent e, só est ão disponíveis n as Forças Arm adas. Est a perspet iv a não t em nada de novo no n osso caso. Port ugal sem pre procurou com bin ar um n úcleo de plat aform as essencialm ente com bat ent es com ou con junt o Página 4 de 5 JDRI • Jornal de Defesa e Relações Internacionais • www.jornaldefesa.pt vocacion ado para a fiscalização das águas de jurisdição. 9 Qu ase dois t erços do t ot al de unidades da m arinh a ( 24 em 38) for am adquir idos ou adapt ados para t arefas de policiam ent o do m ar. 10 É um a post ura pensada em função do obj et iv o de adot ar soluções que r esolv am o desen cont ro ent re as r esponsabilidades in ternas e int ernacion ais sobre um a área m arítim a de grande dim ensão e um a situ ação de insuficiência de recu rsos típica de um a pequ en a pot ên cia. A “ d e sm i li t a r i za çã o d a se g u r a n ç a m a r ít i m a ” Dit o ist o, pergunt ar - se- á se faz algum sent ido falar hoje em “ desm ilit arização da segurança m arít im a” . Diria, par a com eçar , que “ desmilit arização” é um t erm o er rado por duas razões. Pr im eiro, porque, com o t erá ficado óbvio do que disse ant eriorm ente, o papel das forças arm adas ( Marinha e Força Aérea) na segurança do dom ínio m arít im o t em vin do a cr escer em t oda a part e e em t erm os significat ivos. É o qu e se verifica at é em países qu e, com o o Reino Unido, pela sua disponibilidade de recursos, est ão m ais libert os das preocupações próprias das pequen as pot ências em tirar o m aior part ido do conceit o de “ du plo uso” . Segun do, por que in t rodu z um a ideia de exclusão, quando aquilo para qu e int eressa cham ar a at enção é precisam en te o cont rário, ist o é, r econhecer a indispensabilidade de um a aproxim ação m ult idisciplin ar e int erdepart am ent al, com o a grande m udan ça a em preender, na revisão do m odelo que t em sido adot ado. Pr ecisam os de um m odelo in clu siv o qu e, garanta, logo à partida, a colaboração de t odas as en tidades e instit uições civis ou m ilitares, públicas ou privadas, qu e, de algum a form a dependam de, ou possam cont ribuir para, um am bient e de segurança m arít im a. Um m odelo que facilit e um a m aior int er penet ração ent re os set ores civ is, policiais e milit ares, quer a nív el nacional com o a int ernacional, m as qu e n ão ponh a em causa a in dispensável un idade de propósit o e de esforço sem o qu e não haverá ação efetiva. O que deve ser esse m odelo, em t odos os seus porm enores, é m atéria que devia ser precedida pela elabor ação de um a est rat égia de segurança m arít im a, que é o cam inh o que est á a ser seguido pelas pot ências que t êm um a est reit a ligação ao m ar, m as em que Port ugal se est á a deix ar at rasar . 9 É o que tr adicionalm ent e é conhecido por um a configuração “ high/ low m ix ” . Geoffrey Till ao u sar o term o “ Post m oder n nav ies” apenas est á a reinv ent ar o conceito usando um a nov a designação. 10 Ver “ A segurança do m ar por t uguês” ( do aut or ) , na rev ista “ Segur ança e Defesa” , nº 15 d e outubr o/ dezem br o de 2010. Página 5 de 5