Título: O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA REDE DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL NO MUNICÍPIO DE SANTA MARIA/RS Monografia de graduação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Psicólogo Autor: Gustavo Zambenedetti Professora Orientadora: Drª Claudia Maria Perrone Banca: Prof. Drª Dorian Mônica Arpini (email: [email protected]) Psicóloga Luciane Chiapinotto 1 RESUMO O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA REDE DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL NO MUNICÍPIO DE SANTA MARIA-RS O processo de reforma psiquiátrica brasileira, desencadeado no final da década de 70 e consolidado a partir da implementação do SUS, prevê mudanças complexas no modelo de atenção à saúde mental. Essas mudanças passam pela extinção do manicômio e criação de uma rede substitutiva de atenção em saúde mental. O objetivo desse trabalho foi investigar como vem sendo o processo de implantação dessa rede no município de Santa Maria, tendo como foco sua articulação com os ideais da Reforma Psiquiátrica e do SUS. O referencial metodológico utilizado foi o da Pesquisa-Ação Integral e Sistêmica. Os sujeitos da pesquisa constituíram-se por gestores e trabalhadores vinculados à Secretaria de Saúde do Município, sendo que a coleta de dados ocorreu a partir da participação nas reuniões da Comissão de Saúde Mental, entrevistas com informantes e observações. Apresento uma linha histórica em relação à constituição das políticas de assistência em saúde mental no Brasil e no desdobramento dessas políticas assistenciais no município de Santa Maria, passando pela estratégia de implantação de serviços substitutivos (ambulatório e CAPS) e de descentralização da atenção em saúde mental para a atenção básica. Os dados apontam dificuldades em efetivar a rede de acordo com o SUS e a Reforma Psiquiátrica: o sistema de referência e contra-referência é pouco efetivo, os processos de trabalho são fragmentados gerando descontinuidade dos tratamentos, desresponsabilização profissional, etc. Ao mesmo tempo, constatamos a existência de uma rede informal, que envolve a presença de outras instituições para além da saúde, agenciadas no cotidiano dos trabalhadores, muitas vezes coincidindo com vínculos afetivos dos mesmos. Problematizamos as noções de rede presentes entre trabalhadores e gestores e as tensões geradas entre a prática cotidiana e os ideais de rede do SUS e da reforma psiquiátrica. A partir da análise dos dados aponta-se a necessidade de articulação entre os serviços a partir de um sistema mais flexível e não fragmentado, tomando como base a adoção de tecnologias leves como o acolhimento e as práticas intercessoras de trabalho. Palavras-chave: Rede, SUS, Reforma Psiquiátrica. 2 SUMÁRIO INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA .................................................................... PROBLEMA E OBJETIVOS.................................................................................. 1. DO MANICÔMIO COMO FORMA DE ASSISTÊNCIA À REDE DE ATENÇÃO COMO POSSIBILIDADE................................................................... 1.1. Um pouco sobre a origem do manicômio (e do sistema hospitalocêntrico, do modelo médico-centrado e das práticas manicomiais)...................................... 1.2. O início da assistência psiquiátrica no Brasil.................................................. 1.3. A assistência psiquiátrica no Brasil até o período pré-reforma psiquiátrica brasileira (década de 70)..................................................................... 1.4. As reformas psiquiátricas em outros países - em especial na Itália.............. 1.4.1 Desinstitucionalização........................................................................................ 1.4.2. Os novos serviços e a rede articulada no Território........................................... 1.5. Reflexos no Brasil.............................................................................................. 1.5.1. O ressurgimento dos movimentos sociais e as denúncias contra o sistema manicomial................................................................................................................... 1.5.2. O manicômio reformado e o ambulatório como estratégia para a ampliação dos serviços extra-hospitalares.................................................................................... 1.5.3 “Por uma sociedade sem manicômios”: novas estratégias e a montagem das primeiras experiências de rede de atenção em saúde mental....................................... 1.5.4. A “consolidação” da reforma psiquiátrica........................................................ 1.5.5. Os novos dispositivos ordenadores da rede....................................................... 2. METODOLOGIA.................................................................................................. 2.1 Referencial metodológico.................................................................................... 2.2. Plano de Pesquisa................................................................................................ 2.3. Sujeitos da pesquisa............................................................................................ 2.4. Coleta de dados................................................................................................... 2.5. Análise dos Dados............................................................................................... 3. A ASSISTÊNCIA À SAÚDE MENTAL EM SANTA MARIA......................... 3.1. Um breve histórico ............................................................................................. 3.2. Estratégias recentes no campo da assistência em saúde mental: a implantação de serviços especializados.................................................................... 3.3. A estratégia da descentralização da assistência em saúde mental.................. 3.4. O dia 18 de maio................................................................................................. 3.5. O surgimento da Comissão de Saúde Mental................................................... 3.6. A construção do processo de capacitação......................................................... 4. A CONSTRUÇÃO DA CAPACITAÇÃO COMO DISPOSITIVO PARA PENSAR A REDE DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL................................. 4.1. A inexistência da “rede”..................................................................................... 4.2. A rede “oficial”: os serviços de saúde mental................................................... 4.3. A atenção básica.................................................................................................. 4.4. A saúde mental na atenção básica..................................................................... 4.5 E as condições de trabalho.................................................................................. 4.6. Plano de gestão.................................................................................................... 4.6.1. O início.............................................................................................................. 4.6.2. A “quebra”......................................................................................................... 4.6.3. A retomada......................................................................................................... 05 08 09 09 12 14 16 18 19 21 22 23 24 26 28 30 30 30 31 31 32 33 33 35 36 38 39 40 42 42 45 49 52 54 56 56 58 59 3 4.6.4. Uma breve discussão: a questão do apoio matricial e como outros municípios vêm articulando saúde mental e atenção básica........................................................... 4.7. A rede para além dos serviços “oficiais”.......................................................... 4.7.1. A questão do território....................................................................................... 4.7.2 O território em nível macropolítico.................................................................... 4.8. O desenho da rede assistencial: uma aproximação sobre os fluxos............... 4.9. As tecnologias leves na formação da rede: o Acolhimento e o Acompanhamento Terapêutico................................................................................ DISCUSSÃO FINAL E CONCLUSÕES ............................................................... PÓS ESCRITO – PROBLEMATIZANDO A RELAÇÃO DOS PSICÓLOGOS COM A REDE DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................... ANEXO....................................................................................................................... 61 62 65 67 69 71 75 79 81 86 4 INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA Alguns de meus estágios e pesquisas, durante a graduação em psicologia, foram marcados pela inserção em serviços da chamada “rede de saúde”, seja do município de Santa Maria, de Porto Alegre ou de Campinas-SP. Dentro do curso de psicologia é comum alguns professores se referirem aos estágios realizados em serviços vinculados a Secretaria de Saúde como os “estágios na rede”. No estágio proporcionado pelo VER-SUS tive a experiência de conhecer “a rede de saúde” do município de Santa Maria. Em Campinas, conheci parte da “rede de saúde mental do município”, experiência que começava a dar outro contorno para a noção da “rede”. Além disso, vinha acompanhando algumas discussões no âmbito municipal onde a questão da “rede de saúde mental” (seja sua ausência, presença, necessidade) vinha sendo um atravessamento constante. Com o tempo, comecei a me questionar “que rede é essa? O que está sendo entendido por rede? Como essa noção vem sendo construída?”. E, mais especificamente, passei a me questionar “como vem sendo o processo de construção da rede de atenção em saúde mental em Santa Maria?” Dessa forma, esta passou a constituir-se na pergunta da pesquisa, determinando meu objeto de investigação e análise. Historicamente diferentes respostas sociais foram constituídas em relação à loucura. Essas respostas sociais envolveram a criação de diferentes dispositivos assistenciais ao doente mental, sendo que o hospital psiquiátrico foi o dispositivo constituído por excelência durante o século XX. Os movimentos de reforma psiquiátrica demonstram uma tentativa, segundo Tenório (2001), de dar uma nova resposta social à loucura, provocando rupturas teóricas, epistemológicas e assistenciais. Entender esse processo histórico nos ajuda a entender a atual configuração das políticas de saúde mental, ao mesmo tempo que coloca a necessidade de problematizarmos uma série de práticas no momento em que elas estão sendo constituídas. Nesse sentido cabe interrogarmos até que ponto as propostas de mudança assistencial, expressas na idéia de implantação de uma rede substitutiva ao hospital psiquiátrico, realmente conseguem dar conta desse processo de reforma psiquiátrica. Que outros fatores (sociais, políticos, econômicos) interferem na constituição desse processo, que outras noções de rede se acoplam ao entendimento de rede da reforma psiquiátrica, e que desvios e tensões são gerados? A partir das primeiras leituras comecei a perceber que a discussão sobre “rede” estava vinculada ao surgimento dos serviços substitutivos. Dessa maneira, na lei estadual nº 9.716 5 (Rio Grande do Sul, 2000, p.63) consta introdutoriamente “Dispõe sobre a reforma psiquiátrica no Rio Grande do Sul, determina a substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral em saúde mental...” Tendo em vista que a constituição da rede se fazia por oposição à um outro sistema, o manicomial-hospitalicêntrico, vi a necessidade de investigar como essa passagem/ruptura vêm sendo operada. Desta forma, no primeiro capítulo apresento como historicamente se constituíram formas de assistência ao chamado “doente mental”. Neste percurso estabeleço o manicômio do século XIX como ponto de partida, até chegar às atuais propostas de assistência que veiculam a idéia da “rede de atenção em saúde mental”. Nesse sentido, aponto a perspectiva do SUS e principalmente da Reforma Psiquiátrica, movimento que vem propondo uma ruptura em relação às tradicionais formas de assistência no campo da doença mental. Essa ruptura é caracterizada pela busca de uma nova resposta social para a loucura que não seja o isolamento, a internação, a exclusão e a violência. Após apresentar esse contexto, descrevo no segundo capítulo a metodologia utilizada para a realização da pesquisa de campo. Muitos trabalhos na área de reforma psiquiátrica e serviços substitutivos tem tido como objeto um determinado serviço substitutivo, ou mesmo asilar, assim como as práticas realizadas nesses serviços. Porém, para além do “dentro” de cada serviço, eu pretendia investigar o que estava “entre” cada serviço, ou ainda “para fora” de cada serviço, que linhas irradiavam dos mesmos. Neste sentido passei a buscar um referencial metodológico que permitisse seguir os movimentos do campo e realizar uma ampla coleta e análise de dados. Tendo em vista um campo que se mostrava complexo, encontrei na pesquisa-ação integral e sistêmica um referencial efetivo para a concretização dessa pesquisa. No terceiro capítulo apresento um breve histórico da assistência à doença mental em Santa Maria, tendo como ponto de partida seu início oficial em 1956. Até o final do século a assistência no campo da saúde mental foi marcada pela centralidade do hospital psiquiátrico, sendo que apenas a partir de 2000 dispositivos alternativos começaram a surgir propiciando um primeiro movimento de descentralização. Dessa forma, descrevo o surgimento desses novos dispositivos e apresento o problema que começa a ser delineado mais recentemente: como articular uma rede de atenção em saúde mental? Dessa maneira, ainda no final do terceiro capítulo apresento alguns dados coletados na pesquisa que vem apontando as estratégias adotadas no município, em nível oficial, para dar conta deste problema. Uma das estratégias apresentadas é baseada na idéia de descentralização da saúde mental para a atenção básica, que tem na Comissão de Saúde Mental seu lugar de construção. 6 No quarto capítulo apresento e analiso como essas novas estratégias de articulação da rede em saúde mental vêm sendo operadas. A partir de categorias apresento os dados levantados na pesquisa e que vem apontando como a rede é pensada pelos trabalhadores e gestores da Secretaria Municipal de Saúde de Santa Maria, quais as dificuldades e imobilidades apresentadas, assim como os movimentos e potencialidades. Neste capítulo também busco problematizar algumas noções de rede presente nos dados coletados. No quinto capítulo proponho uma leitura integradora dos dados apresentados no decorrer do texto a partir da perspectiva das redes sócio-técnicas e aponto algumas conclusões e considerações a partir do exposto no trabalho. Considerando que a rede é potencialmente infinita, adianto que este trabalho constituise numa aproximação ou recorte de algumas configurações dessa rede, havendo muitas bifurcações ainda a serem seguidas. 7 PROBLEMA E OBJETIVOS A seguinte pergunta guia este trabalho: como vem sendo o processo de construção da rede de atenção em saúde mental em Santa Maria-RS? O objetivo geral do trabalho é entender como a proposta de implantação de uma rede de atenção em saúde mental veiculada a partir do processo de reforma psiquiátrica brasileira foi incorporada ao contexto da assistência em saúde mental no município de Santa Maria. Os objetivos específicos deste trabalho são: - reconstituir, a partir de pesquisa bibliográfica, os diferentes modelos de assistência em saúde mental; os movimentos internacionais de reforma psiquiátrica; a constituição do movimento brasileiro de reforma psiquiátrica e da atual política de saúde mental; o histórico da assistência em saúde mental em Santa Maria. - mapear os recursos que hoje vem compondo a chamada rede de assistência em saúde mental em Santa Maria, buscando entender o momento em que cada um deles foi sendo inserido na rede. - investigar a política de gestão em relação à rede de atenção em saúde mental; - levantar as noções que trabalhadores e gestores tem sobre o que é a rede de saúde mental. - mapear algumas práticas que buscam articular essa rede. 8 1. DO MANICÔMIO COMO FORMA DE ASSISTÊNCIA À REDE DE ATENÇÃO COMO POSSIBILIDADE 1.1 Um pouco sobre a origem do manicômio (e do sistema hospitalocêntrico, do modelo médico-centrado e das práticas manicomiais). A forma tradicionalmente instituída de assistência à doença mental teve o hospital psiquiátrico/manicômio como centro. A origem deste remonta ao final do século XVIII, momento em que países europeus como Inglaterra, Itália e França tentam dar um novo sentido e uma nova resposta a questão da loucura. Este período é chamado por Michel Foucault (2002) de “a grande reforma”, sendo marcado por uma certa ruptura/quebra, caracterizada pela criação de casas reservadas exclusivamente aos insensanos ou reforma das já existentes e pela inserção do saber médico psiquiátrico. Ocorre uma reconfiguração do sócios e da forma como esse sócios lida com a loucura. Nesse sentido, em “História da loucura” Foucault fala sobre como uma determinada época, a era clássica, passou a lidar com a loucura. Sobre o encontro entre a psiquiatria e o louco, Foucault (2002, p.423) coloca que “Ao final do século XVIII, essas duas figuras se aproximam, com o objetivo de uma primeira convergência”, que vem a ser o encontro do espaço da reclusão com o da assistência. Segundo Isaias Pessotti (1996) já havia asilos para alienados na França muito antes da Revolução de 1789. Porém, não se praticava um tratamento médico da alienação mental. Segundo este autor o manicômio é fundado a partir do momento em que passa a atravessá-lo o saber médico psiquiátrico, representado neste momento pelo médico Philippe Pinel, na França, considerado o criador da clínica psiquiátrica. A ele é atribuído o gesto de “libertar” os loucos das correntes, gesto que vem originando duas possibilidades de leitura. Uma delas diz respeito à filantropia, a um gesto humanitário. A outra, apontada por Foucault (2002), liga este gesto a conformação da verdade e da ideologia psiquiátrica. Pois se a psiquiatria libertou o louco da corrente, continuou deixando-o entre os muros do manicômio. “É entre os muros do internamento que Pinel e a psiquiatria do século XIX encontrarão os loucos; e é lá – não nos esqueçamos – que eles os deixarão, não sem antes se vangloriarem por terem-nos ‘libertado’” (FOUCAULT, 2002, p.48). Pinel foi responsável pela redefinição das funções do manicômio. “Com Pinel, o manicômio se torna parte essencial do tratamento, não será mais apenas o asilo onde se 9 enclausura ou se abriga o louco, será um ‘instrumento de cura’, conforme o definiu Esquirol” (PESSOTTI,1996, p.69). A inserção do saber psiquiátrico redefine o manicômio enquanto estrutura física (que passa a ter um valor terapêutico) e dá origem a novas práticas ‘terapêuticas’, baseadas em uma nova concepção de doença mental - que passa a ser vista como um desequilíbrio a ser corrigido (PESSOTTI, 1996). “Visto que a doença agora é desordem, um estado de desequilíbrio, a intervenção terapêutica deverá restituir o equilíbrio, rompido pela doença (...) Para isso a instituição asilar se impõe como ambiente ideal de reordenação ou reeducação” (PESSOTTI, 1996, p.73). Visto que a doença mental é um desequilíbrio, como os primeiros teóricos da psiquiatria, pensaram formas de restituir o equilíbrio? Nas primeiras teorias médicopsiquiátricas, como a proposta por Pinel, o conceito de causa, não é muito claro, mas costuma ter duas bases: causas morais e causas físicas (PESSOTTI, 1996). Daí derivam o tratamento moral e o tratamento físico. O primeiro parte do pressuposto das causas morais, entendendo moral enquanto não físico, mas social, psíquico, situacional e ético.“É moral porque visa a corrigir excessos passionais, desvios da norma ética do grupo social” (PESSOTTI, 1996, p.128). Um dos objetivos desse tratamento era educar, reprimir os excessos, visando uma correção do delírio e dos comportamentos. Enquanto técnica envolvia intimidações ao paciente, ameaça, emprego do medo, aliado a uma sutileza e a uma intenção filantrópica, de forma a se constituir de forma ambígua. (PESSOTTI, 1996). Segundo Alves (2004) o tratamento moral era sustentado a partir de três premissas:o isolamento do mundo externo, a organização do espaço asilar/disciplinar e a submissão à autoridade. Já o tratamento físico deriva de uma concepção médico-psiquiátrica de doença mental enquanto lesão funcional ou anatômica do encéfalo. PESSOTTI (1996) aponta para o fato de que mesmo antes do século XVIII as formas de tratamento da loucura foram prevalentemente voltados para a função orgânica. Esses tratamentos eram empregados com o uso de purgantes, vomitórios, sangrias, banhos e duchas frias, choques sensoriais, evacuações “por cima e por baixo” induzidas a partir de máquinas rotatórias, aparelhos de contenção, etc. Ugolotti (1949, apud PESSOTTI, 1996, p.216) chama esses meios de tratamentos violentos, ressaltando que os mesmo eram “prescritos pelos mestres da medicina de então como meios curativos, mas que certamente eram empregados de modo punitivo e com fins de castigo”. Foucault (2004) analisa esse conjunto de práticas caracterizando-as como “disciplinares”. A disciplina é entendida como “esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 2004, p.118). A disciplina se 10 organiza de várias maneiras. A distribuição dos corpos é uma delas, sendo que o manicômio emerge como espaço adequado para esta distribuição. Ela é feita, por exemplo, através da cerca (os muros do manicômio) e do princípio do quadriculamento (cada corpo em um lugar). A disciplina organiza um espaço analítico, a partir do qual é possível observar e vigiar o paciente. Conforme Pessotti (1996), a técnica da observação (e da descrição dos comportamentos) é estabelecida a partir de Pinel como um meio de ordenar a multiplicidade caótica dos sintomas, dispondo o manicômio de uma série de mecanismos de vigilância que possibilitam essa observação. Segundo Alves (2004, p.221), o manicômio foi fundado seguindo o mesmo princípio científico positivista utilizado para o estudo das bactérias no século XVIII, segundo o qual era necessário “isolar para conhecer, conhecer para intervir”, tendendo a uma pretensa assepsia. Como operadores desse sistema colocam-se os médicos, atendentes, guardas. Segundo Pessotti (1996, p.128-129), o médico é pensado enquanto o sujeito reordenador e corretor de desvios: “Ele é um pedagogo e uma autoridade moral (...) na prática hospitalar, a coluna mestra do tratamento moral é o poder do médico, defensor da razão, garantidor da ordem, depositário da norma social”. No tratamento moral sua presença se faz necessária pelo maior tempo possível, em função da necessidade da observação longa e demorada. Quanto mais físico pressupõe-se a causa da loucura, menos necessária se faz sua presença, pois nesse caso seu papel é o de prescrição das terapias e dos instrumentos, sendo que o emprego das terapêuticas fica a cargo dos não-médicos: atendentes e guardas (PESSOTTI, 1996) A inserção desse profissional neste sistema foi pensada a partir de uma perspectiva que o colocou no centro da ação, portanto, um modelo médico-centrado. “...no manicômio pensado por Pinel e Esquirol, são essenciais a presença e a participação pessoal do médico em todos os passos do processo terapêutico” (PESSOTTI, 1996, pág.172). Esquirol (1838, apud PESSOTTI, 1996, p.173) define da seguinte maneira o lugar do médico: “O médico deve ser, de certo modo, o princípio de vida de um hospital de alienados. É por ele que tudo deve ser posto em movimento; ele dirige todas as ações, já que é convocado para ser o moderador de todos os pensamentos”. O que passa a ser determinado, a partir do final do século XVIII e durante o século XIX é uma relação de saber-poder (da psiquiatria em relação ao louco e a sociedade) que estabelece uma verdade sobre o louco (a da psiquiatria) e um lugar estabelecido (o manicômio), dispositivo onde ela (a loucura) deve ser revelada. O século XIX bem poderia chamar-se o século dos manicômios. Não só pela importância histórica da instituição do tratamento médico manicomial (...), mas também pela proliferação de manicômios ocorrida ao longo de todo o século. Eles 11 se distribuíram por diversos países da Europa, principalmente na Itália e na França (PESSOTTI, 1996, p.155). Tem-se aí, então, uma breve dimensão do que se constituiu durante o século XIX com relação à doença mental: um modelo de assistência manicomial-hospitalocêntrico, médicocentrado, com práticas embasadas dentro de uma concepção de problema-solução e articuladas a relações de poder assimétricas e produtoras de violência e exclusão. 1.2 O Início da assistência psiquiátrica no Brasil A aparição da figura do “louco” no Brasil ocorre a partir do contexto da sociedade rural pré-capitalista (início do século XIX). Segundo Paulo Roberto Staudt Moreira1 nesse período a tendência era que os loucos permanecessem trancados nas casas dos familiares, vagando pelas ruas, entregues às Santas Casas de Misericórdia ou aprisionadas nas Casas de Correção. Segundo Resende (2001) as Santas Casas de Misericórdia incluem-nos entre seus hóspedes, mas em porões insalubres, sem o caráter da assistência médica (semelhante à condição encontrada na Europa nos séculos XVII e XVIII). A assistência que se fazia nas Santas Casas de Misericórdia nesse período, era mais uma assistência à miséria do que à doença (WADI, 2002). A emergência de uma instituição específica para a loucura começa a ocorrer a partir da segunda metade do século XIX. O marco da assistência psiquiátrica brasileira é o ano de 1852, quando o Imperador Dom Pedro II inaugura no Rio de Janeiro um hospício que levou seu nome. Começa a emergir nessa forma de assistência a presença do profissional médico e/ou do discurso médico incutido nos administradores dos estabelecimentos. Wadi (2002), ao descrever as circunstâncias que propiciaram a construção do Hospício São Pedro no ano de 1884, em Porto Alegre, aponta o discurso médico psiquiátrico presente nas argumentações que embasaram sua implantação e a forma como essa implantação foi solicitada. Mas a legitimação e presença do profissional médico se fez aos poucos. Em função desse aspecto, Resende (2001) afirma que os quarenta primeiros anos da assistência psiquiátrica brasileira tiveram base empírica, leiga, sendo que somente após esse período a psiquiatria científica se fez presente. Wadi (2002) considera que a psiquiatria científica se fez presente a partir da legitimação do poder do profissional médico, caracterizado pelo momento em que ele passa, 1 Na apresentação do livro “Palácio para guardar doidos”, de Yonissa Marmitt Wadi, 2002. 12 além de ser um técnico dentro da instituição, a ocupar cargos de administração e gestão, o que o coloca num lugar de poder. A influência do discurso médico psiquiátrico tem várias repercussões sobre o modo como essas instituições são pensadas. Levando-se em consideração que esse discurso é importado da Europa, principalmente das idéias de Pinel e Esquirol, as primeiras “políticas” ou “tendências”2 em saúde mental caracterizaram um modelo centrado no manicômio, no profissional médico e nas práticas de tratamento físico, higiênico e moral. Até 1920 proliferaram pelo Brasil pelo menos trinta e quatro instituições psiquiátricas3. Segundo Resende além do hospício, outro dispositivo de assistência são as colônias agrícolas ou hospitais colônia, que tinham a proposta de recuperar o doente mental através do trabalho e devolvê-lo a comunidade como cidadão útil. Tão logo essa proposta mostrou-se ineficiente, restou aos seus internos o isolamento e a exclusão. Essa exclusão, além de simbólica era também física, espacial, já que os hospitais colônia ficavam geograficamente situados a centenas de quilômetros de distância de onde provinha sua clientela. “Aliás, sob a alegação da necessidade de se proporcionar aos doentes calma, tranqüilidade e espaço, tornou-se lugar comum, nesses cem anos, isolar os hospícios em sítios afastados, alguns sendo recuados para mais longe, tão logo o crescimento das cidades os deixava perigosamente próximos” (RESENDE, 2001, p. 38). Wadi (2002), ao descrever a dificuldade para se encontrar um terreno adequado para a implantação do Hospício São Pedro em Porto Alegre também aponta a exigência que se fazia, na época, por um terreno que não ficasse muito próximo à cidade. Essa prática era embasada, entre outros fatores, pela concepção moral da loucura. Acreditava-se que o meio social era um fator que poderia propiciar a doença, justificando a necessidade do isolamento. Outro fato que demonstra a função exclusivamente segregadora do hospício, nas primeiras quatro décadas de existência, é o elevado número de óbitos dentro dessas instituições, sendo que dados levantados demonstram que em alguns hospitais psiquiátricos a mortalidade chegava a ultrapassar os 50% da população internada. “Exclusão, eis aí, numa só palavra, a tendência central da assistência psiquiátrica brasileira, desde seus primórdios até os dias de hoje” (RESENDE, 2001, p.39) 2 3 Como sugere Resende, 2001. Resende, 2001. 13 1.3 A Assistência psiquiátrica no Brasil até o período pré-reforma psiquiátrica brasileira (até a década de 70) Segundo Resende (2001), algumas propostas alternativas ou complementares ao manicômio começam a surgir na década de 30, quando Ulisses Pernambuco propõe uma organização abrangente, com ambulatórios, hospitais abertos, atenção ao egresso. Porém a proposta não é efetivada da maneira desejada. Alguns poucos ambulatórios foram oficialmente criados a partir de 40, sendo que em 1961 não constavam mais que 17 no país. Na década de 50, um aspecto em especial do manicômio começa a chamar a atenção: a superlotação. Não que este seja um problema novo, pois a questão da superlotação logo se fazia presente algum tempo depois da inauguração de um manicômio (WADI, 2002). Mas na medida em que a resposta a esse problema é a ampliação dos mesmos e a construção de novos, esse problema se torna cada vez mais visível. Dados levantados por Resende (2001) apontam que no final da década de 50 o Juqueri (São Paulo) já concentrava entre quatorze e quinze mil pessoas. O Hospital Psiquiátrico São Pedro, três mil e duzentas pessoas. A centralidade da assistência também propiciava essa aglomeração humana. Heidemann (2004), ao relatar que tipo de assistência recebiam os chamados “doentes mentais” de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, escreve que os mesmos costumavam ser castigados, punidos e/ou enviados ao Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre (cerca de 450 km de distância). Segundo esse autor “Seu translado era de trem, em que havia um vagão específico para este fim, denominado de ‘vagão dos loucos’. A estada no Hospital, na maioria das vezes, não tinha retorno, o que foi determinando uma superlotação, que chegou a mais de cinco mil pacientes na década de 60” (HEIDEMANN, 2004, p.3). Em meio a esse contexto de assistência marcado pela superlotação, deficiência de pessoal, maus tratos e péssimas condições físicas, surgem novas modalidades terapêuticas, entre elas a terapia por choque, o uso de drogas e as cirurgias (lobotomias). Segundo Amarante (2004), essas técnicas surgem com a perspectiva de “cura” das doenças mentais. As drogas antipsicóticas fizeram sua aparição no país a partir de 1955, propiciando uma mudança no ambiente asilar em função da redução do número de surtos e pelo fato de poder manter os doentes mentais “controlados” mesmo fora do manicômio (RESENDE, 2001). Ao mesmo tempo Amarante (2004) aponta que os medicamentos estabeleceram-se de forma ambígua, pois ao mesmo tempo que seu uso racional proporciona melhora aos pacientes, em outras 14 situações constituem-se em mecanismos de repressão e violência, principalmente nos manicômios. O ano de 1964 estabelece um novo marco na assistência. Nesse período é criado o Instituto Nacional de Previdência Social – INPS. Segundo Amarante (1994) o Estado passa a comprar serviços psiquiátricos do setor privado (contratação de leitos hospitalares), conciliando as pressões sociais com o interesse de lucro dos empresários. Os hospitais privados passaram a multiplicar-se no sentido de atender a demanda crescente, enquanto os hospitais públicos, em péssimas condições, continuaram prestando assistências às pessoas sem vínculos com a previdência (RESENDE, 2001). Nesse período a psiquiatria adquiriu o status de prática assistencial de massa, estabelecendo “o marco divisório entre uma assistência eminentemente destinada ao doente mental indigente e uma nova fase a partir da qual se estendeu a cobertura à massa de trabalhadores e seus dependentes” (RESENDE, 2001, p.60). Têm-se início a chamada “indústria da loucura”, marcada por um afluxo intenso de pacientes para a rede privada, com um tempo de permanência/ocupação do leito elevada e favorecimento na contratação de leitos a determinados hospitais. Segundo Pedro Gabriel Godinho Delgado temos assistido passivamente (em particular do final dos anos 60 até o término da década seguinte) à construção de um aparato assistencial fortemente determinado pela expansão da rede de leitos financiados pelo governo, caracterizando uma comercialização da doença mental cuja intensidade não encontra paralelo em outros países (DELGADO, 2001, p.173). No período seguinte, marcado pelos cinco primeiros anos da década de 70, Resende (2001) aponta um intenso investimento na psiquiatria. Esta fase coincide com o período denominado “milagre econômico”. A hipótese levantada por esse autor é de que o investimento na psiquiatria estava atrelado ao contexto de crescimento econômico, que exigia um grande contingente de força produtiva, o qual poderia ser potencializado pela ação da psiquiatria. Ao mesmo tempo surgiu a proposta de “manter o doente mental na comunidade”, o que também é apontado como uma estratégia atrelada ao contexto econômico e produtivo da época. Nesse sentido, estados como Santa Catarina e Rio Grande do Sul procedem à interiorização da assistência psiquiátrica (RESENDE, 2001). O período posterior ao fim do milagre econômico coincide com um decréscimo do investimento do Estado na área da psiquiatria, levando a assistência psiquiátrica a desempenhar “o papel que sempre lhe coube na história, o de recolher e excluir os dejetos humanos da sociedade” (RESENDE, 2001, p.69). Alguns dados desse período são citados a seguir a fim de dimensionar as conseqüências da “indústria da loucura”: 15 ...entre 1973 e 1976, o percentual de internações em psiquiatria cresceu cerca de 350%. Dados do Ministério da Saúde do ano de 1977 atestavam que, do total de gastos com a assistência psiquiátrica, 96% dos recursos haviam sido destinados à rede hospitalar e apenas 4% aos então denominados serviços extra-hospitalares (alguns poucos serviços ambulatoriais). Além disso, técnicos do Estado admitiram que ocorreram, de acordo com seus próprios critérios, cerca de 195 mil internações desnecessárias naquele ano (NICÁCIO, AMARANTE e BARROS, 2005, p.198). 1.4. As reformas psiquiátricas em outros países - em especial na Itália. Enquanto na metade do século XX o manicômio se consolidava como forma privilegiada de assistência à doença mental no Brasil, na Europa iniciava-se um processo de contestação do mesmo. Segundo Amarante (1996), no período pós II Grande Guerra Mundial, começam a surgir experiências de rearranjo da assistência psiquiátrica em diferentes países, constituindo projetos que passam a ser denominados de “reformas psiquiátricas”. Florianita Coelho Braga Campos (2000) aponta algumas influências da II Guerra mundial para o campo “psi”. Umas delas consiste na grande demanda por assistência gerada em países atingidos pela guerra, principalmente os países europeus, que determinaram a busca por novas soluções que garantissem a expansão da assistência às pessoas com sofrimento mental. Outro aspecto apontado pela autora diz respeito à emergência de uma nova sensibilidade com relação aos doentes mentais a partir da vivência dos campos de concentração nazista, aos quais o manicômio passa a ser comparado. As principais experiências que emergem então são: a Psicoterapia Institucional (anos 40) e a Psiquiatria de Setor (anos 60) na França; a Comunidade Terapêutica (anos 50) e a Antipsiquiatria (anos 60) na Inglaterra; a Psiquiatria Comunitária (anos 60) nos EUA; e a Psiquiatria Democrática Italiana (anos 70). A seguir desenvolverei alguns aspectos da crítica que a Psiquiatria Democrática Italiana faz aos demais movimentos e do que ela formula enquanto proposta de reforma psiquiátrica. O movimento da Psiquiatria Democrática Italiana será a referência desta exposição, tendo em vista a relevância e penetração desse movimento no contexto de reformulação da assistência psiquiátrica brasileira do final da década de 70. Esse movimento possui uma peculiaridade: enquanto a maioria dos movimentos de reforma psiquiátrica buscaram operar mudanças “na” instituição hospitalar4, o movimento 4 Seja a partir de uma abertura do hospital para a comunidade (no caso das comunidades terapêuticas), ou de uma “psicoterapia institucional” (que visava uma reorganização das relações de poder dentro do hospital), ou de uma “ramificação” do hospital para diversos setores (no caso da psiquiatria de setor). 16 italiano colocou em xeque a existência deste, assim como a própria psiquiatria, acreditando que só a partir daí uma reforma psiquiátrica (e não uma psiquiatria reformada) poderia ser efetivada. A experiência da reforma psiquiátrica italiana foi desencadeada em 1961, quando ao assumir a direção do hospital provincial psiquiátrico de Gorizia, Franco Basaglia se espanta com as condições dos pacientes e passa a buscar estratégias para mudar a situação (AMARANTE, 1996). Segundo Amarante (1996), os primeiros referenciais buscados por Basaglia são o da comunidade terapêutica e da psicoterapia institucional. Mas logo Basaglia começa a se deparar com as limitações dessas experiências. Sobre a experiência da Comunidade Terapêutica Franco Rotelli (1994, p.150) diz que ela foi “uma experiência importante de modificação dentro do hospital, mas ela não conseguiu colocar na raiz o problema da exclusão, problema este que fundamenta o próprio hospital psiquiátrico e que, portanto, não poderia ir além do hospital psiquiátrico”. Já sobre a experiência francesa do setor, Rotelli (1994, p. 150) coloca que ela “não apenas deixou de ir além do hospital psiquiátrico, porque ela, de alguma forma, conciliava o hospital psiquiátrico com os serviços externos, e não fazia nenhum tipo de transformação cultural em relação à psiquiatria.” Apesar das críticas, o movimento italiano preservou alguns princípios da comunidade terapêutica e da psiquiatria de setor: da primeira, o princípio de democratização das relações entre os atores sociais; da segunda, a idéia de territorialidade (ROTELLI, 1994), que mais tarde irá se articular com a idéia da rede. Segundo Rotelli (1994), o fato de a reforma italiana ter ocorrido tardiamente, possibilitou que ela pudesse levar em consideração as experiências de reformas nos outros países (tanto nos aspectos positivos quanto negativos), a fim de que não cometessem os mesmos erros. A principal crítica do autor é que em todos os países vinha-se tentando modificar as instituições psiquiátricas, sem se modificar a psiquiatria. A radicalidade deste movimento está em pensar outras formas de assistência, outras respostas sociais possíveis para a loucura que não fosse o manicômio e as formas manicomiais de relação. Nesse contexto, torna-se importante desenvolver algumas proposições do movimento italiano, principalmente a noções de desinstitucionalização, considerado por Amarante (1996) o conceito mais geral e que desde cedo imprime as bases teórico metodológicas do projeto de transformação da Psiquiatria Democrática Italiana. 17 1.4.1 Desinstitucionalização O conceito de desinstitucionalização não é uniforme. Três noções vêm se destacando no cenário da reforma psiquiátrica: desinstitucionalização entendida como desospitalização; como desassistência; e como desconstrução. Segundo Amarante, o conceito de desinstitucionalização surge nos EUA, com o Plano de Saúde Mental do Governo Kennedy. Dentro deste contexto, atravessado pelos projetos de psiquiatria preventiva e comunitária, este conceito é entendido “como um conjunto de medidas de desospitalização” (AMARANTE, 1996, p. 15). A crítica que a psiquiatria preventiva opera é sobre a centralização da assistência no hospital, mas não sobre o manicômio em si ou sobre o saber que o autoriza. Portanto, nessa tradição a desinstitucionalização está voltada para fins administrativos - como a redução dos custos da assistência – através da desospitalização (AMARANTE, 1996). A interpretação da desinstitucionalização como desassistência, surge a partir do momento em que se passa a entendê-la como mera desospitalização, como se essa política não predissesse a substituição do sistema hospitalar por outras formas de assistência e cuidado. A terceira interpretação do conceito de desinstitucionalização (e que mais tarde virá a inspirar a Reforma Psiquiátrica brasileira), pode ser caracterizada pela predominância da crítica epistemológica ao saber médico constituinte da psiquiatria, onde inclusive a cidadania ultrapassa o sentido do valor universal para colocar em questão o próprio conceito de doença mental que determina limites aos direitos dos cidadãos (Amarante, 1996, p.20). Segundo Amarante (1996, p.105) “o primeiro passo da desinstitucionalização consiste em desconstruir o paradigma problema-solução, ou seja, a idéia da doença que precisa de cura, em torno da qual se legitima o isolamento, a medicalização, a tutela e a desqualificação do sujeito”. Um dos princípios da desinstitucionalização diz respeito a operação de “colocar a doença mental entre parênteses”, o que permitiria ver o que está para além da doença, ou seja, o sujeito. A finalidade não é negar a existência da doença, mas sim explicitar o “duplo” da doença, aquilo que não é do estar doente, mas sim, estar institucionalizado (AMARANTE, 1996). Rotelli (1994) vai um pouco mais além ao colocar que o processo de desinstitucionalização não coincide com o fechamento do manicômio. O processo de desinstitucionalização é aquilo que eu disse antes, ele continua no território, ele continua na comunidade, ou ainda, se torna muito mais importante na comunidade: o processo de desinstitucionalização, do meu ponto de vista, continua a ser a estratégia terapêutica na comunidade, em relação por exemplo, às situações das 18 famílias na qual não se trata de culpabilizar as famílias ou de destruir a instituição família, mas se trata de modificar gradualmente as relações de poder destrutivas que se criam dentro da família, assim como se criavam dentro do manicômio (ROTELLI, 1994, p.154). Amarante e Giovanella (1994) reforçam essa noção ao colocarem que ...o aparato manicomial, é preciso insistir, não é o hospital psiquiátrico, embora seja a mais expressiva instituição na qual se exercita o isolamento: é o conjunto de gestos, olhares, atitudes que funda limites, intolerâncias e diferenças, em grande parte informadas pelo saber psiquiátrico, existentes de forma radicalizada no hospício, mas presentes também em outras modalidades assistenciais e no cotidiano das relações sociais (AMARANTE e GIOVANELLA, 1994, p.140). O que se questiona, então, vai além do que ocorre dentro do hospital psiquiátrico. A critica reside sobre a resposta social à questão da loucura, sobre as técnicas criadas pela sociedade (e legitimadas pela psiquiatria) para dar conta do doente mental. Jonas Melman aponta que sobretudo o movimento italiano concentrou seus esforços no campo social, ...procurando aliados nos sindicatos, nos partidos políticos e nas organizações nãogovernamentais, no sentido de aprovar uma legislação que garantisse o fechamento dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por novos serviços de saúde mental que não reproduzissem a antiga ideologia psiquiátrica de controle e segregação (MELMAN, 2001, p.58) Dessa forma, esse movimento propõe uma nova reconfiguração técnica e social em relação à loucura, reconfiguração essa que será proposta no Brasil apenas a partir do final da década de 70 (como será abordado no ponto 1.5). 1.4.2. Os novos serviços e a rede articulada no Território Contrapondo o modelo manicomial (caracterizado pelo isolamento, ruptura de laços sociais, exclusão e violência.), Basaglia (2005) propõe o território como estratégia e a cidade como lugar fundamental da reabilitação. Sobre a reformulação da assistência na Itália, Amarante (1996) diz que à medida que o manicômio foi sendo desativado, novas estruturas assistenciais foram sendo construídas, como os centros de saúde mental territoriais. Rotelli (1994) descreve que ao fechamento do manicômio na cidade de Trieste seguiu-se a implantação de sete centros de saúde mental, um para cada bairro. Sobre as características desse serviço, pode-se citar: - se ocupam de todas “patologias” psiquiátricas, mas dentro do bairro, do território, da comunidade; - funcionam em casas (se assemelham a moradias); 19 - atendem a uma população de cerca de 40mil pessoas; - funcionamento 24hs; - suporte a todos os níveis de atenção; - reuniões diárias entre os profissionais; - equipes multiprofissionais (médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos); Mas uma das características mais interessantes é que, segundo Rotelli (1996, p. 162163), cerca de “60% das atividades dos profissionais em realidade não é dentro do serviço, mas nas casas das pessoas”, através de visitas e acompanhamentos domiciliares, por exemplo. Além disso, “busca-se trabalhar numa lógica de equipe: cada dia, todos os dias das duas às três, tem uma reunião de todo o pessoal, na qual se decidem estratégias concretas”. O Centro de Saúde assume o papel de uma espécie de “agenciador social”, o qual deve ampliar e favorecer a multiplicidade de trocas entre as pessoas ...nós sabemos que todo o trabalho do Centro é um trabalho psicoterapêutico que utiliza a rede de relações entre as pessoas, que utiliza a multiplicidade das figuras que estão dentro do Centro e muitas vezes se busca construir pequenos grupos, se organizam muitas coisas em comum, como por exemplo: ir ao cinema, ir ao teatro, fazer um passeio, sempre juntos ou em pequenos grupos (ROTELLI, 1994, p.163). É nesse sentido que a concepção de território ganha relevância, constituindo-se, segundo Amarante e Giovanella (1994, p.143), em “elemento fundamental na construção do novo cenário estratégico em saúde mental”. No território “existem forças vivas e não forças mortas, existem jovens, existem pessoas que buscam trabalhar sobre as inovações sociais e é com essas pessoas que nós trabalhamos e devemos cada vez mais trabalhar, se não queremos retornar ao gueto da psiquiatria” (ROTELLI, 1994, p.154-155). Dentro desse contexto, o tipo de relação que se pretende com o sujeito portador de sofrimento psíquico é baseada na construção da chamada ‘relação contratual’. “A relação de contrato implica a possibilidade de ‘inventar novas estratégias de mediação’, que vão de estratégias médicas ou psicológicas a estratégias culturais, sociais e políticas.” (AMARANTE, 1996, p.94). Essa relação contrapõe-se a relação de tutela e controle (a relação manicomial) que até então vinha sendo perpetrada pelos modelos psiquiátricos. Se Pinel buscava “tirar a doença”, “eliminar o sintoma”, busca-se agora propiciar processos de subjetivação. Se Pinel propunha o isolamento, a psiquiatria democrática propõe o contato, a relação. Em contraposição ao manicômio, uma série de dispositivos (Centros de Saúde Mental, moradias, pensões) que por sua vez não tem fim em si mesmos, mas ramificam-se em várias direções visando acessar uma multiplicidade de possibilidades (de acesso a cultura, trabalho, etc). Nesse sentido delineia-se a perspectiva da rede apontada por 20 Virgínia Kastrup (1997, apud SCHAEDLER, 2004), onde os serviços podem ser vistos como pontos de uma rede, a partir dos quais se agenciam diversas conexões, convergências e bifurcações. 1.5. Reflexos no Brasil. A partir do final da década de 70 começa a ser delineado no país um movimento que passa a lutar pela reforma da assistência ao portador de sofrimento psíquico. Mudanças significativas passam a ocorrer nesse campo, passando pela descentralização dos dispositivos de atenção e criação de serviços alternativos ao manicômio; pela ampliação do campo da “doença mental” para a “saúde mental”; pela mudança no paradigma de atenção; pela criação de novas técnicas de intervenção clínico-sociais; novas propostas de organização do sistema e gestão dos serviços. Este é o momento em que no Brasil emerge o que mais tarde figurará como o movimento pela reforma psiquiátrica, propondo uma ruptura com o modelo instituído, visando criar novas respostas sociais (não asilares) para a loucura (TENÓRIO, 2001). Desde já a leitura do livro “O homem e a serpente”, de Paulo Amarante(1996), coloca uma questão importante: esta “nova resposta” não está dada, precisa ser criada cotidianamente. Diante do “vazio” que se coloca ante a extinção do manicômio, Amarante (1996) aponta duas tendências. Uma delas é à volta ao passado (que tende a levar à transposição do manicômio para dentro dos novos serviços, ditos substitutivos). A outra, é a abertura para a experimentação e invenção de novas práticas, que façam da desinstitucinalização5 seu substrato. Nesse sentido Vasconcelos aponta a passagem do modelo problema-solução/doençacura para o modelo centrado no paradigma da complexidade, que enfatiza a “existênciasofrimento dos pacientes”. Segundo Alves (2004) a ruptura de paradigmas desloca o objeto do cuidado da doença para o cuidado ao sujeito em sofrimento. Dessa forma, Alves (2001) 5 Sobre o “paradigma da desinstitucionalização” (introduzido no ponto 1.4.2.) Vasconcelos coloca que ele foi “proposto principalmente por Basaglia e seus colegas italianos, mas hoje difundido internacionalmente, reconhecido como o inspirador principal do movimento de reforma da saúde mental a nível mundial e, portanto, também no próprio Brasil” (1998, s.p.). 21 sugere a substituição da palavra “tratar”(que supõe um diagnóstico e uma atenção voltada para doença) para a palavra “cuidado”6 (que visa a integralidade do sujeito). Para descrever esses processos de ruptura e transformação relacionados à reforma psiquiátrica brasileira tomarei por base uma periodização sugerida por Vasconcelos (1998), caracterizada por quatro períodos distintos entre 1978 até os dias de hoje. 1.5.1. O ressurgimento dos movimentos sociais e as denúncias contra o sistema manicomial O primeiro período, que compreende os anos entre 1978 e 1980/1982, é caracterizado pela mobilização da sociedade civil contra o asilamento genocida e a mercantilização da loucura (VASCONCELOS, 1998). Segundo Amarante (2005) esse período é marcado pela emergência do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental – MTSM, considerado um dos principais atores dos projetos de mudança da instituição psiquiátrica. Esse movimento foi um dos responsáveis pela série de denúncias e mobilizações que caracterizam esse período, sendo que Vasconcelos aponta algumas delas. Este autor chama a atenção para duas importantes mudanças desse período. Uma delas é representada pela tentativa de implantação do plano PREV-SAÚDE, dentro do movimento que mais tarde ficou conhecido como reforma sanitária, e apontou para “o modelo sanitarista de um sistema regionalizado, integrado e hierarquizado de saúde que, no início dos anos 80, iria configurar o que foi chamado de “Ações Integradas de Saúde””(VASCONCELOS, 1998, s.p.). A outra mudança ocorreu a partir da implementação pelo governo federal, entre 1978/1979, do PISAM (Plano Integrado de Saúde Mental), o qual buscava estimular a formação de equipes multiprofissionais de saúde mental. Amarante (2005, p.196) ressalta as influências do movimento italiano neste período principalmente a partir da vinda de Franco Basaglia para o Brasil, nos anos de 1978 e 1979, para a participação de debates e congressos. “Franco Basaglia abriu um novo horizonte ético, teórico, prático, cultural, e podemos dizer que , as “Conferências de 1979” marcaram decisivamente caminhantes e itinerários do projeto de transformação da instituição psiquiátrica em terras brasileiras” 6 Boff (2000, p.73, apud ALVES, 2004) propõe a seguinte noção de cuidado: “o que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais do que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.” 22 1.5.2. O manicômio reformado e o ambulatório como estratégia para a ampliação dos serviços extra-hospitalares O segundo período destacado por Vasconcelos compreende os anos 1980/1982 a 1987. A partir da emergência do Plano CONASP em 1982/3 houve “a implementação gradativa, em todo país, do modelo sanitarista das chamadas “Acões Integradas de Saúde”, que desaguaram, mais tarde, no Sistema Único de Saúde, tal como foi consagrado na Conferência Nacional de Saúde (1986) e na Constituição Federal (1988)”, sendo que no campo da saúde mental esse plano permitiu a expansão da rede ambulatorial (VASCONCELOS, 1998, s.p.). Além do incremento da rede ambulatorial, em Estados como São Paulo houve a inserção, a partir de 1983, das equipes mínimas de saúde mental na atenção básica (compostas por psiquiatra, psicólogo e assistente social) (CAMPOS, 2000). Dados apontados por Campos (2000) mostram que durante o governo Montoro (1983) o município de São Paulo dobrou o número de ambulatórios e ampliou o número de equipes de saúde mental de 19 para 48 Centros de Saúde. Campinas, entre 1982 e 1988 ampliou em 150% o número de Centros de Saúde com equipe de saúde mental. Segundo Campos (2000), a inserção da saúde mental nos diferentes níveis de atenção visava à diminuição no número de internações a partir da prevenção precoce. Como aponta Jairo Goldberg (1994, p.102), o objetivo dessas diretrizes era “deslocar a posição central do hospital psiquiátrico no atendimento dos pacientes, em direção a uma rede extra-hospitalar composta por ambulatórios de saúde e centros de saúde, operando segundo uma distribuição hierárquica e complementar de ações” As mudanças ocorridas no cenário da assistência pública nesse curto período logo começaram a suscitar críticas e demonstrar certas fragilidades. Uma das fragilidades apontadas diz respeito às distorções da seleção da clientela nos dispositivos recentemente criados (como os ambulatórios), assim como o tipo de prática inadequada para os propósitos dos serviços. ...apesar de a prioridade proposta para este tipo de programa de saúde mental ser a clientela identificada como psicótica, “consumidora” de cuidados dos hospitais psiquiátricos, pude constatar em minhas pesquisas que as prática psicoterápicas convencionais tendiam a filtrar os clientes do serviço com renda mais alta, oriundos dos grupos sociais identificados com a cultura psicologizada das elites sociais e com maior nível de educação formal, papel mais ativo no mercado de trabalho, perfil clínico e de tratamento menos comprometido e menos internações em hospitais psiquiátricos (VASCONCELOS, 1998, s.p.) 23 Vasconcelos (1998) aponta algumas causas dessa distorção, como a transposição da prática clínica-privada para dentro do ambulatório, sem a abertura para a prática comunitária e grupal e para o contato com outros profissionais, associado a fatores como baixos salários (que passavam a ser vistos como um complemento da renda) e precárias condições de trabalho. Goldberg (1994, p.106) avalia que em 1986, poucos anos após a ampliação do número de equipes de saúde mental nos Centros de Saúde e do número de ambulatórios, o sistema se mostrava pressionado por uma ‘demanda reprimida’ que fez com que o paciente psicótico parecesse não ter lugar na rede, muitas vezes sob a alegação de que “esses pacientes são agressivos e não podem se misturar à clientela tradicional do centro de saúde”. Segundo o autor, ainda, apesar das multiprofissões, o processamento das relações no interior da rede continuava a convergir para o profissional médico. Silva Filho (2000) aponta que o processo de “ambulatorização psiquiátrica” que marcou a assistência pública na década de 80 aparecerá como problema na década de 90 e nos anos 2000, impondo a necessidade da rede reformar os dispositivos que criara como solução. Outra crítica que começa a aparecer a partir de meados de 80, conforme Amarante (2005, p.206), diz respeito ao referencial preventivista-comunitário: “nos debates sobre o preventivismo realizados naquele período, assinalava-se o equívoco da análise que formulou que a superação do paradigma asilar pudesse ocorrer por uma simples expansão de serviços extra-hospitalares”. Este autor aponta ainda para o fato de que na prática o hospital psiquiátrico continuava como o centro do circuito assistencial. 1.5.3 “Por uma sociedade sem manicômios”: a montagem das primeiras experiências de rede de atenção em saúde mental. Desta crítica começa a se delinear um dos pontos que dão origem ao 3º período da historiografia recente proposta por Vasconcelos (1998), que compreende o período entre os anos de 1987 e 1992. No ano de 1987 ocorre o II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, onde, a partir das discussões, surge a insígnia “Por uma sociedade sem manicômios”. Conforme Vasconcelos (1998) isso representou um avanço dos objetivos estratégicos do movimento, que ocorreu a partir da percepção das limitações das transformações do sistema de saúde mental centrados no modelo sanitarista (onde acreditavase na existência do hospital psiquiátrico de forma humanizada e controlada). Ao mesmo 24 tempo, houve uma mudança no MTSM, que passou a organizar-se sob a forma de movimento social, o “Movimento da Luta Antimanicomial”, potencializando a presença de usuários e familiares no movimento (AMARANTE, 2005). Esses dois aspectos (luta pela extinção dos manicômios e transformação da luta em movimento social com a presença de usuários e familiares) ressaltam o atravessamento e inspiração do modelo de desinstitucionalização italiano. De maneira geral, no plano “oficial” Vasconcelos (1998) coloca que nesse período houve uma estagnação em relação às políticas de saúde mental nos estados que vinham protagonizando as ações (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro) em função de mudanças de governo. Como exceção nesse cenário a partir de 1986 desponta o Rio Grande do Sul, com um governo estadual que contribuiu para avanços significativos na área de saúde mental. Apesar disso é nesse período que ocorrem as primeiras experiências municipais das chamadas “redes de cuidados em saúde mental”, com base no novo modelo proposto. Vasconcelos (1998, s.p.) cita como exemplo o município de Santos, que em 1989 começou a experiência dos NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial), “um serviço comunitário de portas abertas durante 24 horas por dia, 7 dias da semana, capaz de atender a praticamente todo o tipo de demanda de cuidado em saúde mental, incluindo uma estrutura de alguns poucos leitos”. Segundo Lancetti (1997, p.14), em 1994 o sistema asilar de Santos “já estava totalmente substituído por um sistema territorial, que fez de Santos a primeira cidade brasileira sem manicômios.” Dessa maneira, a idéia de “rede de atenção em saúde mental” encontra-se articulada à formação de um aparato capaz de responder à loucura não precisando recorrer ao manicômio e às práticas segregadoras que o caracterizavam. Goldberg (1994) descreve a emergência, no município de São Paulo, do primeiro CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), no ano de 1987. Segundo o autor, o projeto surgiu a partir do momento em que os profissionais começaram a pensar um projeto alternativo aos modelos que até então subsidiavam os programas na rede pública (e que demonstravam pouco/nenhum impacto sob a clientela de pacientes graves – psicóticos e neuróticos graves). Levando-se em consideração esta clientela, que exige cuidados contínuos, foi pensado o CAPS7: um lugar que mais se parecesse com uma casa do que com um serviço tecnocrático, que propiciasse a escuta, atividades verbais e não-verbais (subsidiadas por diferentes profissionais), a participação da família, etc. 7 Esse projeto lembra os Centros de Saúde Mental implantados em Trieste, na Itália (descritos no item 1.4.2). 25 Outros dois aspectos relevantes desse período são a consolidação da Constituição de 1988 e aprovação da Lei Orgânica de Saúde em 1990 - que aponta para a implementação do Sistema Único de Saúde - além do lançamento do Projeto de Lei Paulo Delgado8, propondo a extinção e a substituição gradativa dos serviços manicomiais. A partir das primeiras experiências de fechamento de leitos psiquiátricos e da implementação de uma nova lógica de trabalho, que visa ir ao encontro das necessidades dos usuários, novas demandas começam a aparecer, envolvendo questões de moradia e trabalho. Como resposta à primeira dessas questões surgem experiências pioneiras nas cidades de Campinas-SP, Ribeirão Preto-SP, Santos-SP, Rio de Janeiro-RJ e Porto Alegre-RS9 de moradias protegidas, lares abrigados ou residências terapêuticas10. Quanto à segunda questão também começam a surgir experiências de trabalho “protegido”, como ramificações dos serviços que se constituíam. Um exemplo é o projeto “Trabalho”11 que surgiu numa parceria entre o CAPS Luiz Cerqueira e a Associação Franco Basaglia a partir de 1989 (GOLDBERG, 1994). 1.5.4. A “consolidação” da reforma psiquiátrica. O 4º período (1992 - ?) tem como marco a II Conferência Nacional de Saúde Mental, em dezembro de 1992, que segundo Vasconcelos (1998, s.p.) abriu “um novo período de consolidação da Reforma Psiquiátrica no país”. Esse período é marcado pela “desospitalização saneadora” e consolidação das redes de serviços de saúde mental. Por “desospitalização saneadora” entende-se a redução significativa no número de leitos em hospitais privados e públicos. Em números, isso significou uma redução de 27000 leitos em todo país entre o período de 1987 a 1995 (VASCONCELOS, 1998, s.p.). Em contrapartida ao processo de desospitalização houve a abertura de leitos psiquiátricos em hospitais gerais, serviços como hospitais-dia, CAPS, NAPS. 8 Porém essa lei só veio a ser promulgada no ano de 2001, após várias reformulações A partir dessas experiências houve a elaboração da Portaria nº 106/2000, do Ministério da Saúde, que introduziu os Serviços Residenciais Terapêuticos no SUS. 10 “casas localizadas no espaço urbano, constituídas para responder às necessidades de moradia de pessoas portadoras de transtornos mentais graves, institucionalizadas ou não.” (BRASIL, 2004, p.6) 11 A partir dessa parceria surgiram projetos de marcenaria, prestação de serviços de fotocópias e produção de alimentos, implantados em sistema cooperativo com a partilha da receita gerada. (GOLDBERG, 1994). 9 26 Em 2001, houve a III Conferência Nacional de Saúde Mental. Entre os princípios e diretrizes elaborados nesta conferência, com relação à política de saúde mental e organização de serviços, deliberou-se pela extinção de ...todos os leitos em hospitais psiquiátricos no Brasil, consolidando o projeto de uma “Sociedade sem Manicômios”, com a estruturação de uma rede substitutiva de atenção integral à saúde do usuário de saúde mental e com o desenvolvimento de uma estratégia de ampla discussão sobre a inclusão da loucura na sociedade (BRASIL, 2002, p.25). Para a efetivação do processo da reforma psiquiátrica, esta conferência coloca a necessidade de que a implementação desta rede de serviços de saúde mental seja capaz de oferecer atenção integral ao usuário de saúde mental e a seus familiares, em todas as suas necessidades, nas 24hs, durante os 7 dias da semana. A proposta da conferência é que os níveis de assistência, promoção, prevenção e reabilitação psicossocial estejam integradas ao Programa de Saúde da Família de forma a implementar uma rede de serviços territoriais de saúde mental substitutivos ao manicômio, estabelecendo-se de forma descentralizada, integrada e intersetorial. Nesse sentido, compreende os serviços de urgência psiquiátrica, leito psiquiátrico em hospital geral, Centro/Núcleo de Atenção Psicossocial, núcleo de atenção aos usuários de álcool e outras drogas, hospital-dia, centro de convivência, oficinas terapêuticas, programas de geração de trabalho e renda, cooperativa e serviço residencial terapêutico. Essa rede (no que tange as relações entre as pessoas que a compõe) deve ser pautada em noções como acolhimento, vínculo, responsabilização, território, práticas e ações integradas. A organização dos cuidados em saúde mental no interior da rede de serviços de saúde do SUS deve ocorrer de forma “descentralizada, regionalizada, horizontalizada, integrando todos os serviços e os níveis de ação deste sistema de saúde, de forma a garantir o acesso universal a serviços humanizados e de qualidade.” (BRASIL, 2002, p.40-41). Esta Conferência também deliberou propostas que visam envolver organizações de usuários, familiares e sociedade civil na rede em saúde mental. Nesse sentido coloca-se como proposta “constituir uma rede solidária e popular em Saúde Mental, que possibilite a troca de experiências e se torne uma rede de solidariedade entre todos aqueles que se interessem pela Saúde Mental.” (BRASIL, 2002, p.135). As propostas dessa conferência apontam para a necessidade de um trabalho que estimule o envolvimento desses atores nessa rede, que passa pela divulgação de informações, sensibilização de parlamentares para a aprovação de leis, campanhas de conscientização sobre reforma psiquiátrica (com o uso de meios de comunicação), estímulo à formação de associações de usuários do SUS, entre outros. 27 1.5.5. Os novos dispositivos ordenadores da rede Os CAPS12 são considerados dispositivos estratégicos do movimento de progressivo deslocamento do centro do cuidado para fora do hospital (movimento este que define a reforma psiquiátrica), em direção à comunidade (BRASIL, 2004). Dessa forma constituem-se na principal estratégia adotada oficialmente pelo Ministério da Saúde (ALVES, 2004). Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) deverão assumir seu papel estratégico na articulação e no tecimento dessas redes, tanto cumprindo suas funções na assistência direta e na regulação da rede de serviços de saúde, trabalhando em conjunto com as equipes de Saúde da Família e Agentes Comunitárias de Saúde, quanto na promoção da vida comunitária e da autonomia dos usuários, articulando os recursos existentes em outras redes: sócio-sanitárias, jurídicas, cooperativas de trabalho, escolas, empresas etc (BRASIL, 2004, p.12) Freire, Ugá e Amarante (2005) compartilham dessa visão ampliada da rede que vincula os serviços substitutivos à rede de serviços e à rede social, ressaltando a necessidade da intersetorialidade. Quando nos remetemos ao conceito de rede não nos restringimos tão-somente à rede, regionalizada e hierarquizada, do sistema de saúde. Referimo-nos a redes intersetoriais, que oferecem possibilidades de atuação com diversos setores e atores, tanto das políticas públicas como da sociedade em geral, ou a redes sociais, que viabilizam enlaces com variadas modalidades e experiências de organização existentes no território (igrejas, grupos de jovens, clubes de esporte, clubes de lazer, associações de bairro etc) (FREIRE, UGÁ e AMARANTE, 2005, p.118-119) Em relação ao trabalho “em conjunto” entre os serviços, que pressupõe uma integração, coloca-se em relação aos CAPS algumas funções: a) conhecer e interagir com as equipes de atenção básica de seu território; b) estabelecer iniciativas conjuntas de levantamento de dados relevantes sobre os principais problemas e necessidades de saúde mental no território; c) realizar apoio matricial às equipes da atenção básica, isto é, fornecer-lhes orientação e supervisão, atender conjuntamente situações mais complexas, realizar visitas domiciliares acompanhadas das equipes da atenção básica, atendera casos complexos por solicitação da atenção básica; d) realizar atividades de educação permanente (capacitação, supervisão) sobre saúde mental, em cooperação com as equipes da atenção básica (BRASIL, 2004, pág. 25) 12 A partir de uma portaria (nº 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002), o CAPS passou a ser estabelecido em três modalidades: CAPS I, CAPS II e CAPS III, definidos por ordem crescente de porte/ e abrangência populacional/complexidade, além dos CAPSi e CAPS a/d. Os CAPS I, II e III visam atender prioritariamente a chamada clientela de psicóticos e neuróticos graves, enquanto o CAPSi visa atender crianças e adolescentes gravemente comprometidos psiquicamente (prioritariamente portadores de autismo, psicoses, neuroses graves). Já o CAPSad visa atender a população com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Eles tem várias diferenças quanto ao tamanho do equipamento, da estrutura física, número de profissionais, atividades desenvolvidas, áreas de abrangência populacional, etc. (BRASIL, 2004) 28 Acerca do “apoio matricial”, a Cartilha do Ministério da Saúde sobre os CAPS (2004) destaca que a lógica deste é diferente da simples lógica da referência e contra-referência, pois pressupões o compartilhamento da responsabilidade dos casos. 29 2. METODOLOGIA 2.1 Referencial metodológico Tendo como objetivo investigar a constituição da rede de atenção à saúde mental no município de Santa Maria, o referencial metodológico utilizado na pesquisa foi o da Pesquisaação Integral e Sistêmica (PAIS). Este referencial constitui-se numa “metodologia de pesquisa que utiliza o pensamento sistêmico (LE MOIGNE, 1984, 1990) para modelar um fenômeno complexo ativo e um ambiente igualmente em evolução, no intuito de permitir a um ator coletivo de intervir nele para induzir uma mudança.” (MORIN, 2004, p.91). Esse referencial surge a partir da união da pesquisa-ação integral com o enfoque sistêmico. A pesquisa-ação integral pressupõe uma perspectiva de “implicação”, tanto por parte do autor/pesquisador (que atuará no sistema de forma a gerar ações), quanto da parte dos sujeitos da pesquisa/atores (MORIN, 2004). Dessa forma, Morin (2004) ressalta que não se trata de uma pesquisa sobre a ação, mas de uma pesquisa que visa transformar a ação e o discurso a partir de uma espiral de revisão que se traduz na ação e no pensamento. A perspectiva sistêmica integra-se a pesquisa ação integral buscando explicitar uma abertura à complexidade do real, visando uma compreensão do fenômeno complexo que evolui no tempo. Portanto essa metodologia preocupa-se tanto com o processo quanto pelo produto, pela ação gerada. 2.2. Plano de Pesquisa A idéia inicial da pesquisa era realizar a coleta de dados a partir de entrevistas semiestruturadas com representantes da gestão e dos serviços de atenção à saúde mental. A partir de um contato inicial com a gestão municipal, com o intuito de explorar o campo de pesquisa, delineou-se a possibilidade de participação nas reuniões da recém constituída Comissão Municipal de Saúde Mental, que tinha entre seus objetivos discutir a “rede de saúde mental em Santa Maria”. A partir daí houve uma reconfiguração do plano de pesquisa que passou a ter a Comissão de Saúde Mental – CSM como foco da intervenção/coleta de dados. Paralelamente foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com informantes (totalizando 5 entrevistas: 3 com participantes da CSM e 2 com profissionais que não participaram da 30 CSM), a fim de preencher lacunas de informações, assim como aprofundar alguns pontos relevantes para a pesquisa. Essa revisão está de acordo com o referencial da PAIS, que supõe certa flexibilidade. Segundo Morin, ...diferentemente das abordagens operacionais racionais, a pesquisa-ação integral e sistêmica não pode ser determinista, nem totalmente pré-determinada, já que se centra e se concentra nas pessoas que cumprem tarefas e participam conjuntamente na gestão de um projeto comum (MORIN, 2004, p.120) Dessa forma tem-se uma dinâmica que pode requerer uma multiplicidade de correções e sucessivas formulações de questões a fim de se adaptar aos movimentos do campo. A participação nas reuniões da Comissão de Saúde Mental ocorreu no período de 8 de junho (2º encontro) a 28 de setembro (11º encontro), totalizando 9 reuniões acompanhadas. 2.3. Sujeitos da pesquisa Os sujeitos da pesquisa constituíram-se por gestores da Secretaria Municipal de Saúde de Santa Maria e técnicos dos serviços de saúde locais, com ênfase naqueles que participam da Comissão Municipal de Saúde Mental. 2.4. Coleta de dados A coleta de dados ocorreu a partir dos seguintes meios: - registro de observações no diário de bordo; - registro dos relatos das reuniões da Comissão de Saúde Mental; - documentos; - entrevistas individuais semi-estruturadas. Segundo Morin (2004, p.134), “o caderno, ou diário de bordo, é uma ferramenta convivial que permite ao ator, ao pesquisador, registrar suas observações diárias, suas reflexões e todos os acontecimentos importantes relacionadas com ações empreendidas.” As entrevistas eram agendadas pessoalmente ou por telefone e realizadas no local mais propício ao entrevistado. Inicialmente o pesquisador fazia uma introdução sobre o tema e objetivos da pesquisa, justificando dentro do contexto a escolha pelo entrevistado. Solicitavase autorização para o registro da mesma através de gravador, prosseguindo-se ao processo de 31 entrevista. Ao final o pesquisador discutia o “termo de consentimento de pesquisa”13, a fim de averiguar se o conteúdo da mesma poderia ser integralmente utilizado ou se alguma parte deveria ser suprimida, dando-se a opção, caso desejado, que a assinatura do mesmo ocorresse após a apresentação da transcrição da fita ao entrevistado. Segundo Morin (2004), a gravação é um meio importante para que as falas não se percam e para que não se corra o risco de perder informações importantes para pesquisa. Sobre a transcrição, o autor sugere que a gravação seja ouvida em seu conjunto, tomando-se notas ou transcrevendo quando necessário. Assim sendo, a transcrição das entrevistas foi realizada de forma total e/ou parcial, conforme a finalidade do uso. 2.5. Análise dos Dados A apresentação e análise dos dados em pesquisa-ação integral e sistêmica visa abranger uma noção do processo, ao mesmo tempo em que este processo deve ser demarcado pela apresentação dos “problemas” encontrados e das estratégias de intervenção colocadas em ação para responder a estes problemas. Em conformidade com a proposta da pesquisa-ação integral e sistêmica (MORIN, 2004), a primeira etapa da análise consistiu na leitura de todo o material coletado a fim de proceder a uma redução dos fatos observados. Esta fase é apontada por Morin (2004) como fase das observações. O momento posterior – fase da classificação - visou delimitar categorias14 tendo em vista o tema da pesquisa (constituição da rede de atenção em saúde mental em Santa Maria). Já a terceira fase visou estabelecer conclusões a partir do material apresentado. Na apresentação dos dados alguns recortes de falas, trechos de documentos, etc, foram utilizados, sendo que as falas são identificadas apenas pela profissão do informante (seguido da letra A, B, C, etc, a fim de identificar diferentes sujeitos com a mesma profissão). Tendo em vista esta proposta de análise, o texto constitui-se pela apresentação do processo, ao mesmo tempo que tenta demarcar os problemas levantados no campo e as estratégias de intervenção colocadas em ação para responder a estes problemas. 13 Modelo em anexo A. A categorização, dentro da perspectiva metodológica adotada, parte do material coletado no campo, para então buscar explicações, teorizações e relações com o tema (e não o contrário). 14 32 3. A ASSISTÊNCIA À SAÚDE MENTAL EM SANTA MARIA 3.1. Um breve histórico Segundo Crasoves (1995, p. 48), o início da atenção à saúde mental em Santa Maria ocorreu da mesma forma que em outros lugares do mundo: “aos loucos cabia a exclusão, o isolamento, a internação”. No percurso histórico que esta autora estabelece, podemos destacar alguns pontos. Em 1956, teve início em Santa Maria de forma oficial a atenção à saúde mental. Esta passou a ocorrer a partir da contratação de uma assistente social, cuja função era identificar os chamados “doentes mentais” e enviá-los à Porto Alegre para internação no Hospital Psiquiátrico São Pedro. O transporte era feito através do trem denominado “mão pelada”, num vagão isolado só para doentes mentais, sem as mínimas condições, sendo que enquanto aguardavam a chegada do trem os loucos permaneciam no presídio local. Em 1961 foi incluído no projeto da Cidade Universitária a Unidade Psiquiátrica da Faculdade de Medicina, sendo que a década de 60 foi caracterizada pelo empenho pela concretização do Projeto do Hospital Psiquiátrico da Universidade. A partir da universidade, ainda, em 1960 é implantado junto ao Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo o Ambulatório de Saúde Mental da Faculdade de Medicina. Em 1968, com a implantação de um ambulatório de Saúde Mental do Estado junto ao dispensário anti-venéreo, verificou-se uma diminuição dos encaminhamentos para o Hospital São Pedro. Nesse ambulatório era desenvolvido atendimento individual e praxiterapia. Em 1969, a partir de um convênio entre UFSM e Secretaria de Saúde e Meio Ambiente do Estado, começa a funcionar o Centro Comunitário de Saúde Mental, caracterizado no início da década de 70 por realizar um trabalho ampliado com interação entre hospital-escolas-comunidade, identificando-se com a proposta da Comunidade Terapêutica. Seu objetivo era diminuir o número de internações, mas relatórios da época apontam para o fato de esse centro ter se constituído no trampolim para a inauguração do Hospital Psiquiátrico. (CRASOVES, 1995, p.49). Em 1972, no centro comunitário, começa a funcionar o Hospital-dia. Em 1974 é inaugurada a unidade de internação integral, com 20 leitos. Na década de 80 o Centro Comunitário já havia sido substituído completamente pelo Hospital Psiquiátrico, que agora contava com mais de 100 leitos para internação, realizando ainda serviços 33 ambulatoriais, de emergência e triagem. “A medida em que começou a se expandir o serviço de internação, diminuíram os outros existentes, chegando à extinção.” (CRASOVES, 1994, p.48) Neste período (década de 80), todo o atendimento em saúde mental era canalizado a esta unidade. Após a concretização do sonho do Hospital psiquiátrico ele foi se tornando a principal figura e, mais tarde a única no cenário da atenção à saúde mental de Santa Maria, desenvolvendo um trabalho isolado, sem interação com outras instituições públicas ou a comunidade (CRASOVES, 1995, p.49). Em 1982 o Hospital Universitário da UFSM foi transferido do centro para o Campus, havendo uma reforma administrativa a partir da qual o Hospital Psiquiátrico passou a ser uma unidade do Hospital Geral. Isso acarretou a perda de autonomia desta unidade, que segundo Crasoves (1995, p.48) gerou “uma crise na equipe por não aceitar a idéia de “perder o status de hospital””. Neste período surgiu também a emergência psiquiátrica 24hs. Em 1987, começou a figurar um movimento dentro da instituição favorável a mudanças no âmbito terapêutico e ideológico, levando-se em consideração a proposta de implantação da Política Estadual fundamentada na I Conferência de Saúde Mental e da VIII Conferência Nacional de Saúde. Ao mesmo tempo forças contrárias inviabilizavam a concretização dessas propostas. Como alternativa surgiu a Comissão Interinstitucional de Saúde Mental de Santa Maria – CISM, que se propôs a elaborar o plano de saúde mental para o município, o que ocorreu no ano seguinte. Em 1988 e 1990 foram realizados o I e o II Simpósio Internacional de Saúde Mental Comunitária, organizados pelo Instituto de Psicologia da UFSM. Estes figuraram como marcos políticos desse período. Em 1989 foi criado, numa parceria entre o Instituto de Psicologia da UFSM e a Divisão Estadual de Saúde Mental, o curso de Administração em Saúde Mental Coletiva. Nesse mesmo período foi criado o COMEN (Conselho Municipal de Entorpecentes) e a COPRAD (Comissão de Prevenção ao Uso Indevido de Drogas). O conselho, além de suas funções, auxiliava na prestação de atendimento à dependentes químicos e familiares, além de subsidiar estrutura física para o funcionamento de grupos de auto ajuda. Em 1991 outro curso de especialização foi criado: Curso de Especialização em Saúde Coletiva. Em 1993 foi criado o SAISM (Serviço de Atenção Integral a Saúde Mental), por iniciativa de um grupo do instituto de Psicologia que se propôs a viabilizar a lei estadual da reforma psiquiátrica aprovada no ano anterior. 34 Em 1997 a prefeitura começou a chamar os profissionais concursados para a formação de uma equipe de saúde mental (composta por 3 psiquiatras, 1 enfermeira, 1 assistente social, 2 psicólogos), que passaram a desenvolver suas atividades na sede do COMEN, a partir de 1998. 3.2. Estratégias recentes no campo da assistência em saúde mental: a implantação de serviços especializados. Em 2001 ocorreu a implantação do Serviço de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Município, que passou a agregar os profissionais específicos da área e servir de referência para a atenção básica do município. Inicialmente este serviço funcionou junto à estrutura física do Centro Social Urbano, espaço onde já funcionava uma creche e uma unidade básica de saúde. Segundo dados fornecidos por informante, a estrutura física deste local era bastante precária e em dias de chuva o local ficava alagado. Em 2002 este serviço foi deslocado para o prédio da antiga LBA, onde funcionava o serviço de pediatria da Universidade Federal de Santa Maria. Hoje este serviço constitui-se como o Ambulatório de Saúde Mental. De dentro do Ambulatório de Saúde Mental surgiram o CAPS II Prado Veppo e o CAPSad. De dentro do ambulatório saiu o CAPS álcool e drogas e o CAPS Prado Veppo. Ele (o CAPSad) foi para o COMEN e começou a atender nos moldes dele, porque não sabiam como funcionava um CAPS. O CAPS Prado Veppo foi organizado, tudo, mas o ad demorou mais (Enfermeira A) Quanto à constituição da equipe do CAPS Prado Veppo, consta que foi oferecido à possibilidade de que quem trabalhasse no Ambulatório passasse a constituir essa nova equipe. ...quando foi aberto o CAPS, foi dado como alternativa aos profissionais do Ambulatório que fossem para o CAPS (...) está no Ambulatório quem não quer cumprir carga horária, porque quem fosse para o CAPS Prado Veppo teria que cumprir carga horária (Diário do pesquisador, 22/06/2005). O CAPS II foi constituído no final de 2002, sendo que nos primeiros meses sua equipe atuou na estrutura física do Ambulatório de Saúde Mental. Em 2003 o CAPS II passou a funcionar em sede própria, no centro da cidade, onde até hoje vem funcionando. O cadastramento do CAPSad levou mais tempo para ocorrer. Apesar disso a equipe do CAPSad já estava constituída e o serviço já vinha funcionando junto ao COMEN. E já tínhamos uns 200 pacientes sendo atendidos, sem receber nada. Não tinha dinheiro, não tinha recurso. Mas algumas pessoas já tinham sido contratadas com o dinheiro que vinha do Prado Veppo. Meio que dividia a verba (Enfermeira A). 35 A justificativa para a demora no cadastramento é política. O processo começou quando houve a troca de governo, e nunca cadastravam na Coordenadoria. Contatamos o Ministério e vimos que os problemas eram políticos. Porque era o estado que autorizava a implantação do CAPSad, mas o estado queria manter o Cuca Legal (Enfermeira A). O cadastramento ocorreu apenas em 2003, sendo que o CAPSad passou a funcionar em sede própria em 2004. Em 2003, período no qual os CAPS estavam sendo implantados, houve a formulação de uma política de saúde mental para o município. Entre as justificativas para a criação dessa política encontra-se a constatação de que apesar da existência de variados recursos formais e informais de assistência na área da saúde mental no município, as ações vinham ocorrendo de forma isolada e desarticulada, ocasionando um enfraquecimento do movimento que buscava a “integralidade”. ...integralidade que tem como meta a referência, contra-referência e a intersetorialidade, proporcionando uma melhor resolutividade (Política de Saúde Mental do Município de Santa Maria, 2003). 3.3. A estratégia da descentralização da assistência em saúde mental. Segundo informações fornecidas pela gestão municipal, o período entre 2001 e 2003 foi marcado por um grande empenho para a implantação dos CAPS, dispositivo que se constituiu na aposta da gestão naquele momento e que visava alterar a “lógica” da atenção no campo da saúde mental. E aí se investiu muito na questão dos CAPS e tal para se mudar toda uma lógica de atendimento, porque o ambulatório não era e não é resolutivo até hoje (Gestor 1). Num período posterior, entre 2004/2005, observou-se os efeitos da entrada destes dispositivos na oferta de serviços do município. Um dos efeitos esperados - a redução da demanda para o ambulatório de saúde mental - não ocorreu. Pelo contrário, a demanda do ambulatório cresceu, assim como a demanda para os novos serviços, que logo começaram a funcionar acima da capacidade prevista. A partir daí outra estratégia começou a ser delineada: a saúde mental na atenção básica. Na fala seguinte alguns motivos são apontados: E até porque está se trabalhando muito, investindo muito, e está se centrando todos esforços da gestão, desta gestão, na atenção básica. E a atenção básica a gente só consegue vê-la junto da comunidade, nas unidades básicas, o mais próximo das pessoas possível. E a identificação que a gente está fazendo, e também já partiu dos 36 próprios profissionais, os próprios trabalhadores de saúde mental já levantaram também essa necessidade. Que começa a se perguntar hoje: no momento em que um usuário nosso aqui do CAPS der alta, eu vou referendar ele para quem? Porque a referência fica o serviço. E aí eles mesmos começaram a perceber, os trabalhadores, que precisava ser investido muito na rede de atenção básica do município para estar dando essas respostas (Gestor 1). Esse investimento na atenção básica é caracterizado principalmente pela implantação das equipes do programa saúde da família - PSF a partir de março de 2004. O PSF é visto dentro de uma lógica de reorganização do sistema de atenção básica, da mesma maneira que o CAPS é um dos dispositivos da reorganização do campo da assistência em saúde mental. Nas falas do gestor 1, a nova lógica é baseada nos princípios e práticas de acolhimento, formação de vínculo, responsabilidade, resolutividade, atendimento humanizado. Essa discussão sobre a descentralização da atenção em saúde mental passou a ocorrer no final de 2004: E aí a gente começou essa discussão final do ano passado, não é, com os trabalhadores de saúde mental assumindo este compromisso de trabalhar na comunidade, nas unidades básicas, no reconhecimento de território, que eu acho uma coisa fundamental (Gestor 1). Segundo dados levantados em discussões da comissão de saúde mental, em novembro de 2004 tentou-se formar uma comissão de trabalhadores em saúde mental (com trabalhadores dos CAPS, do Ambulatório), que teriam o objetivo de reconhecer território junto aos PSF. Porém, esse trabalho não ocorreu da forma esperada, “porque sempre tinha alguém que não podia ir em função dos horários” (Diário do pesquisador, 22/06/2005). A partir de então o CAPS II, isoladamente, teria começado esse trabalho, priorizando alguns PSF. A falência desta proposta de trabalho impôs a necessidade de constituição de novas estratégias de formação de “rede”, capazes de articular os serviços de saúde mental e atenção básica, levando-se em consideração a perspectiva da descentralização da assistência em saúde mental. Nesse primeiro momento a noção de rede tem como pressupostos a efetivação do sistema de referência e contra-referência, o trabalho com o portador de sofrimento psíquico a partir dos dispositivos da atenção básica e o acesso aos recursos comunitários presentes no território. Essa nova estratégia surge a partir de uma iniciativa da gestão, que chama para uma reunião representantes dos serviços de atenção básica, dos serviços de saúde mental e das universidades (UFSM, ULBRA e UNIFRA). Ontem nós fizemos uma reunião, e dessa reunião, com esse conjunto todo de trabalhadores de serviços de saúde mental, de trabalhadores da rede de atenção básica, de trabalhadores das equipes de saúde da família, (...), se levantou toda essa problemática, se tirou desse grande grupo uma comissão pra gente estar pensando como é que nós vamos montar, como é que nós vamos construir essa rede, foi daí que surgiu (Gestor 1) 37 Portanto, a comissão surge como uma estratégia de operacionalizar respostas à problemática que já vinha sendo levantada em vários outros momentos, outros encontros, reuniões, etc. 3.4. O Dia 18 de maio Então a partir do dia 18 de maio desse ano, (...), nós constituímos essa comissão para estar discutindo essa questão da rede (Gestor 1) Outro antecedente da formação da comissão e que muitas vezes é citada como ponto de referência para o seu início, foi a organização de um evento comemorativo ao dia 18 de maio, dia da luta anti-manicomial. A idéia de realizar esse encontro surgiu a partir do movimento que já vinha ocorrendo entre os trabalhadores da área de saúde mental juntamente com as universidades. Nas reuniões de organização desse evento (da qual participaram trabalhadores dos serviços de saúde mental, representantes da gestão estadual e municipal, professores e alunos das universidades – UFSM e UNIFRA) várias questões sobre a rede foram surgindo. De alguns serviços surgiu como queixa a dificuldade de estarem “mandando” os pacientes para a atenção básica. Além disso, colocava-se o quanto os serviços não conheciam uns aos outros, ou o quanto “não existia rede”. Aliando a comemoração do dia a estas queixas que vinham aparecendo, o evento foi pensado de forma a possibilitar a presença do maior número de serviços possível, seja da área da saúde mental, seja da atenção básica - de Santa Maria e região. Após discussões delineou-se o cronograma das atividades, que teve num primeiro momento a fala de Sandra Fagundes com o tema “Luta antimanicomial: rede, políticas e perspectivas.”. Após essa fala os participantes foram divididos em três grupos (região da quarta colônia, região de Julho de Castilhos e município de Santa Maria). Estes grupos tiveram como objetivo propiciar uma “visibilidade da rede”, tornar visível quem compunham quais serviços e para que serviam. Ao mesmo tempo visavam levantar uma discussão sobre como estava à saúde mental em cada região/município e que encaminhamentos poderiam ocorrer a partir da discussão levantada. Segundo relatório15 elaborado pelos relatores dos grupos de discussão, no grupo de Santa Maria, os seguintes assuntos foram debatidos: a) Acolhimento e responsabilização na atenção básica – equipes de saúde; 15 Dados compartilhados na lista de discussão [email protected] (30/05/2005) 38 b) Integração entre equipes de saúde - saúde mental; c) Necessidade de ampliação da rede – CAPS 3, hospital dia; d) Registro de demandas onde poderá se visualizar rede, propor alternativas; e) Necessidade de construção coletiva – articule a rede pública; f) Fórum permanente de saúde mental; g) Rever fluxos, parcerias; h) Abrir diálogos desinstitucionalizantes com a família; i) Viabilizar o acesso à rede; Outra discussão levantada nesse encontro foi a do “manicômio mental”. No quarto encontro da Comissão de Saúde Mental uma das representantes de serviço de saúde mental colocou que, a partir desse evento, começou-se a questionar o fato de o manicômio poder estar em outros lugares que não só no hospital psiquiátrico. Os próprios CAPS poderiam reproduzir essa lógica a partir do momento em que não conseguem “devolver” os pacientes para a comunidade. Apesar deste encontro surgir a partir – e ao mesmo tempo junto - de um movimento que já vinha ocorrendo no campo da saúde mental, em função das discussões e encaminhamentos gerados tornou-se comum tomá-lo como ponto de referência para o início da Comissão de Saúde Mental. 3.5. O surgimento da Comissão de Saúde Mental – CSM Diante dos problemas levantados, é articulada a criação da Comissão de Saúde Mental de Santa Maria. Num primeiro momento ela foi formada por representantes da gestão, dos serviços de saúde mental, representantes dos serviços de atenção básica e representantes das Universidades. Inicialmente a gestão foi representada pela coordenadora da atenção básica (responsável pela saúde mental no organograma da Secretaria de Saúde). Entre os serviços de saúde mental, previa-se a participação de representantes do CAPS II, CAPSa/d, Ambulatório de Saúde Mental, Unidade Psiquiátrica-HUSM, Programa de Redução de Danos. Entre os serviços de atenção básica, a partir da primeira reunião delineou-se a participação de representantes dos serviços da região norte: PSF Santo Antão, PSF Bela União, US Kennedy e US Joy Betts. Entre as universidades, representantes da UFSM e UNIFRA. Em ANEXO B, um quadro com participantes das reuniões da comissão e assiduidade da participação. 39 Essa comissão já nasce com uma tarefa que havia sido proposta na reunião que deu origem a sua formação, qual seja, construir um projeto de capacitação em saúde mental para a atenção básica. Além disso, outros objetivos são colocados: conhecer a rede, propiciar uma visibilidade entre os serviços e as pessoas que os compõe; discutir a rede de saúde mental em Santa Maria; procurar estratégias para lidar com a realidade apresentada em relação à saúde no município. 3.6. A construção da capacitação O eixo das discussões desses encontros foi à construção da capacitação em saúde mental para a atenção básica. A primeira proposta de capacitação foi montada entre o primeiro e o quarto encontro. Pensou-se numa capacitação que fosse realizada na região norte do município, englobando os profissionais dos serviços de atenção básica daquela região. Inicialmente pensou-se em estabelecer rodas de discussão, mas que ao mesmo tempo tivessem um caráter pedagógico, como aparece na ata da 3ª reunião: Surgiu então à proposta de uma roda de chimarrão para sensibilizar os profissionais a participar do processo. Resolvemos então montar a roda de forma pedagógica, mais bem estruturada para poder sistematizar melhor a ação (Ata da 3ª reunião da CSM, 15/06/2005). No quarto encontro o programa da capacitação foi estabelecido, assim como uma agenda para a capacitação (ANEXO C). Porém, antes que o cronograma fosse efetivado, houve uma “quebra” no processo. Essa “quebra” gerou a suspensão dos trabalhos e do cronograma que havia sido estabelecido16. A retomada do processo foi marcada por mudanças. Algumas pessoas que vinham participando deixaram de participar. Ao mesmo tempo outras pessoas foram agregadas (como pode ser observado no ANEXO B). Houve uma renegociação dos encontros, horários, participantes, processo de retomada da construção do plano de capacitação. Esse momento foi marcado por uma certa instabilidade. A hipótese levantada é que alguns integrantes consideraram que tudo que havia sido feito até então “teria ido por água abaixo” (Diário do Pesquisador, 25/09/2005). Surgiu ainda receio de que o processo fracassasse, assim como outras estratégias já haviam fracassado. Além disso foi demonstrado uma preocupação 16 Essa “quebra” é abordada com mais detalhes no item 4.6.2 40 em relação ao modo como a capacitação articularia ações junto à atenção básica. À medida que as reuniões continuaram ocorrendo parte dessa ansiedade se dissipou. As discussões sobre a capacitação levaram em consideração os seguintes aspectos e conflitos: - construção de um processo rígido (com número de encontros pré-estabelecidos, temas estruturados) ou flexível (um período previsto para a duração (como um semestre ou um trimestre, por exemplo), com temáticas definidas junto com o grupo, etc). - como articular teoria e prática? - profissionais englobados. - datas estratégicas e horários estratégicos (quais os dias mais adequados para os profissionais, que dias o movimento é menor nas unidades, possibilidade de realizar a capacitação em dois turnos, intervalo entre os encontros). - escolha de facilitadores e relatores do processo. - definição de calendário de datas. - convite ou convocação? Montagem do convite. - discussão e experiência das dinâmicas. A construção do modelo de capacitação foi sendo efetivada a cada encontro, a cada nova discussão, de maneira que até o último encontro acompanhado uma estrutura flexível havia sido delineada (ANEXO D). A coleta de dados foi finalizada antes da ocorrência da primeira capacitação, não sendo possível investigar a sua concretização. 41 4. A CONSTRUÇÃO DA CAPACITAÇÃO COMO DISPOSITIVO PARA PENSAR A REDE DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL As discussões ocorridas na comissão de saúde mental, principalmente em torno do eixo “capacitação” e tendo como pano de fundo a rede assistencial, serviram como dispositivo para pensar uma série de questões que dizem respeito ao campo da saúde no município de Santa Maria, assim como as potencialidades e as dificuldades para a consolidação da rede de atenção em saúde mental. Dessa forma, os resultados foram organizados em categorias, que serão a seguir apresentadas. Como apontado na metodologia, estas categorias não serão apresentadas de forma “estanque”, mas sim tentando explicitar os processos em andamento, os problemas e as respostas ou imobilidades apresentadas. Dentro da perspectiva das redes estas categorias podem representar bifurcações da mesma. 4.1. A inexistência da rede ...e aí sim a gente pode estar pensando que a gente está construindo uma rede de atenção em saúde mental, que hoje nós não temos (Gestor 1). O início da Comissão de Saúde Mental foi marcado por uma constatação: “não há rede de saúde mental em Santa Maria”. Este foi um dos motivos que gerou a necessidade de discussão e capacitação na área. E foi também uma das questões que gerou o tema da presente pesquisa. Dessa forma, cabe pensar o que significa essa constatação. Nas discussões da comissão muitas vezes foi pontuado a falta de comunicação entre os serviços, à falta de informação sobre como funcionam e o que fazem determinados serviços, o fato de as ações se desenvolverem isoladamente, a ineficiência do sistema de referência e contra-referência, a falta de referências para encaminhamentos. Algumas falas coletadas nas entrevistas ilustram esses aspectos. Quanto à desarticulação das ações: E a rede, na realidade, existem ações isoladas que é só questão da gente juntar as pessoas e as ações que eu acredito que aí se efetiva a rede. Juntando as práticas e as ações (Enfermeira B). Quanto ao desconhecimento em relação aos serviços que compõe o sistema: 42 ...até agora as relações da (...) são iguais às outras unidades. Ou seja, não tem conhecimento dos serviços (Enfermeira B). ... a realidade é que a Secretaria de Saúde não conhece a Secretaria de Saúde. Que, nem a nível central, (...) não sabe de nada. Nem a nível central, nem aqui na Secretaria eles não conhecem e não sabem. Nem a nível de unidade básica de saúde. Eles não sabem que tem um CAPS, eles não sabem como é que funciona (Enfermeira B) Quanto à não efetivação do sistema de referência e contra-referência: ...não funciona, aí está um grande entrave no sistema de saúde, porque isto não funciona, e a gente estabelecendo esta rede como a gente tem pensado , é no sentido de também estabelecer esta questão da referência e contra-referência. É porque tem que acontecer isso com os CAPS; e as unidades, como elas vão estar sendo preparadas para estar acolhendo esse usuário, esse portador de algum transtorno, a gente está pensando em justamente estabelecer a referência e contra-referência que ela não existe. É, hoje, quem está lá na Kennedy, lá na unidade de saúde da Kennedy não sabe quais são os moradores daquela comunidade que freqüentam o CAPS (Gestor 1) ... que a rede, quando funcionar essa rede, onde cada um faça uma parte, que na minha idéia a formação de rede é por exemplo, o paciente em crise, ele interna, fora de crise ou em algumas outra situação intermediária vá para o CAPS, numa outra situação o PSF. Então pensar rede é pensar em várias instâncias de atenção à pessoa, aquela pessoa. E daí quando eu penso isso eu penso que os profissionais devem trabalhar muito assim, de forma que tenha uma comunicação e troca no trabalho. E isso a gente não tem, é difícil (Enfermeira C) Alves (2004, p.223) aponta que a lógica dos encaminhamentos, caricaturados no sistema de referência e contra-referência gerou o que ele sugere chamar de “uma assistência partida”. Segundo o autor esta lógica tende para a destituição de vínculo e à desresponsabilização, o que fica expresso na fala seguinte: Mas assim instituído não se tem, se tem grandes dificuldades ainda nesse sentido. E daí pensando essa rede eu também penso quanto o usuário vai ser beneficiado, não é, porque daí, aqui mesmo a gente vê o quanto a gente não tem esse pensamento, esse trabalho de rede, porque daí o paciente fica na internação, no ambulatório, na consulta individual e parece que não é... é meu, é teu, é de fulano, não é, entende, vai deixando de um pro outro, parece que não é responsabilidade (Enferemeira C) Quanto à dificuldade nos encaminhamentos: Mas seria, por exemplo nesse caso, passou a fase mais grave, ela se tivesse algum local para fazer um acompanhamento de psicoterapia, ela poderia ter dado alta, essa pessoa. E a gente largar ela aqui agora sem ninguém para cuidar dela, daí é complicado. Nós não temos assim para quem encaminhar, tu entendeu (Enfermeira C). É não ter assim a quem recorrer. As pessoas procuram a gente, e enquanto profissional... eu me sinto muitas vezes assim impotente. Porque tu fica “encaminhar para onde”. Por exemplo uma criança esses tempinhos, eles me procuraram, criança encaminhar para quem? Dentro da nossa rede de assistência. “Ah, vai sair um CAPS infantil no final do ano”, mas ela está doente agora, não é o final do ano (Enfermeira C). 43 Nestas falas, principalmente nas cinco últimas, constata-se uma perspectiva de rede vinculada às noções do Sistema Único de Saúde (SUS): rede hierarquizada e regionalizada, baseada no modelo da pirâmide. Sobre a origem desta noção, Gastão Wagner de Souza Campos17 fala que a partir de estudos epidemiológicos constatou-se que a maior parte (cerca de 80%) das necessidades de saúde da população exigem uma baixa complexidade tecnológica para ter resolutividade. Segundo o autor, exige ações conjuntas e interdisciplinares, mas que não demandam muita tecnologia. Cerca de 15% demandam intervenções com incorporação de tecnologia média e cerca de 3% com incorporação de alta tecnologia. Dessa forma, percebeu-se que as demandas organizavam-se conforme uma pirâmide. A partir dessa constatação, os gestores teriam passado a pensar em um sistema que se aproximasse da pirâmide. Segundo Campos, essa forma de pensar o sistema começa também a originar a idéia do trabalho em rede: Nosso sistema deve ter uma forma de pirâmide: muita atenção primária, para resolver esses 80%, muita prevenção e promoção para resolver o máximo possível. E uma comunicação, um sistema de comunicação, de referência, rápida, desburocratizada, entre esses vários serviços. Criar uma rede. Começar a trabalhar com a idéia de rede. O sistema é uma rede. É uma rede que vai ter essas várias alternativas de tratamento. Essa lógica, é a lógica de todos sistemas públicos de saúde até hoje: o brasileiro, cubano, inglês (Gastão Wagner de Sousa Campos, II Seminário de Políticas Públicas, 15/04/2005) Segundo Cecílio (2004), esse sistema visava representar a possibilidade de racionalização do atendimento, através de um fluxo ordenado de pacientes de baixo para cima e de cima para baixo, utilizando-se de mecanismos de referência e contra-referência, com o intuito de possibilitar que as necessidades de saúde das pessoas fossem trabalhadas nos espaços tecnológicos adequados (aspecto contemplado pela idéia de hierarquização). Esse modelo implica também na “expansão da cobertura e democratização do acesso aos serviços de saúde para todos os brasileiros”, além da “formulação de uma “porta de entrada” para garantir acesso universal ao sistema”, sendo que o acesso aos serviços de atenção básica deveria ser facilitado pela proximidade em relação à residência do usuário (CECÍLIO, 2004, p.93). Sobre o princípio de hierarquização presente no SUS, alguns autores apontam contradições com relação à Reforma Psiquiátrica. Segundo Campos (2000) a hierarquização Forçou os novos serviços (de saúde mental) a se incorporarem na rede básica classificando-os ou primários, ou secundários (só respondendo a encaminhamentos da rede) e ainda intermediários, o que faz classificar “crises e tipos de crises”. Dessa 17 Em palestra proferida durante o II Seminário de Políticas Públicas e Saúde: Gestão em Saúde e Desenvolvimento Sustentável, evento realizado em Ijui-RS durante os dias 14 e 15 de abril de 2005. 44 maneira a hierarquização para a saúde mental é uma dificultadora ao acesso do usuário e deixa a desejar quanto à eficácia dos resultados (CAMPOS, 2000, p.60) Dessa maneira, constata-se inicialmente que a noção de ausência/presença de rede presente nas falas está bastante vinculada a um princípio contraditório. A partir das demais categorias algumas dessas noções serão problematizadas, assim como outras noções de rede serão incorporadas. 4.2. A rede “oficial”: os serviços de saúde mental Os serviços “oficiais” apontados como responsáveis pela saúde mental no município de Santa Maria são: o Ambulatório de Saúde Mental, o CAPS II, o CAPSad e a emergência psiquiátrica, unidades de internação e ambulatório do HUSM. Esses serviços foram apontados em diversos momentos ora como potencializadores da rede, ora como “nós”18 da rede. Apesar de historicamente a unidade psiquiátrica ter se constituído como referência na atenção à saúde mental, as discussões da CSM e as informações coletadas com os informantes vêm apontando o ambulatório de saúde mental como atual “centro” ou ordenador da rede. Ao mesmo tempo, ele é apontado como “nó” da rede. O que vem definindo-o como “nó” da rede são algumas características: o atendimento nas especialidades, a fragmentação da atenção, a superlotação, as listas de espera, entre outros. Segundo o gestor 1: ...o Ambulatório reproduz aquele atendimento na especialidade. (...). Não passa de atendimentos individuais e/ou coletivos, com uma equipe que tem enfermeira, assistente social, psicólogos e psiquiatras (Gestor 1). O trabalho nas especialidades tende a certa fragmentação do processo de trabalho, que passa a ser visto conforme as “categorias profissionais”, trazendo implicações para a forma como a atenção é estabelecida no serviço: Então assim, tem uma equipe que a gente é formada, principalmente a enfermagem no momento, a gente está num processo lento agora, mas assim, antigamente, até dois anos atrás ele era acolhido somente pela enfermagem. Então a enfermagem marcava uma triagem, a gente conversa, já recebe uma pré-orientação e já encaminha. (...) geralmente a enfermagem faz (a triagem) só para a psiquiatria, quando é para a psicologia, o pessoal da psicologia que faz esse acolhimento e triagem, a psiquiatria é a enfermagem (que faz o acolhimento) (Enfermeira D). Campos (1998) aponta essa forma de organização do trabalho como taylorizada, caracterizada pela segmentação do processo de trabalho, representado na disposição dos 18 O termo “nó” apontado tem a conotação de imobilidade, estagnação. 45 trabalhadores em categorias profissionais: o corpo clínico médico, o serviço de enfermagem, etc. Como alternativa Campos (1998) propõe a constituição de um modelo baseado na idéia das “unidades de produção”. Dentro dessa perspectiva o autor sugere que a organização ocorra não através de categorias profissionais, mas de equipes multiprofissionais. Essas equipes multiprofissionais devem ser formadas levando-se em consideração o perfil de usuários do serviço e o tipo de atenção que se faz necessário. Dessa maneira, o serviço pode ter mais de uma equipe (as “mini-equipes”), com diferentes características. Essa forma de organização dos serviços se articula a uma macropolítica, ou seja, um modelo de atenção19. Dessa forma, para que se propiciem tecnologias efetivas de comunicação entre os serviços, todos devem estar articulados a uma perspectiva de trabalho em rede. Segundo Kastrup (1997, apud SCHAEDLER, 2004, p.85) a rede “não é definida por sua forma, por seus limites externos, mas por suas conexões, por seus pontos de convergência e de bifurcação”. Dessa maneira podemos entender que os “nós” são formados a partir do momento em que não há fluxo, sendo que a segmentação do processo de trabalho propicia que isso ocorra. Não se responde por um “todo”, um conjunto, mas pelas “partes”: ... isso aí, assim, eu até já, a parte profissional assim eu não sei te dizer, entende, eu me envolvo mais com a enfermagem, que eu sou responsável técnica pelos técnicos, porque eu sou enfermeira, e tem os técnicos, mas assim ó, nessa parte de toda psiquiatria com a psicologia eu não posso te dizer, isso aí já não sei te dizer (Enfermeira D). A superlotação do Ambulatório de Saúde Mental também é apontada como um “nó” nessa rede, a partir do momento em que passam a existir filas de espera para o atendimento. E o resto tudo para o Ambulatório. E daí para o Ambulatório tu não tem a resposta. Então daí volta pra tua cabeça que não existe possibilidade de atenção nessa área. Porque seis meses não é possibilidade (pra nós). Muito menos para ele (o usuário) (Enfermeira B). Por exemplo, uma consulta médica, hoje, tu só consegue para metade de janeiro de 2006. E a consulta de psicologia, uma ficha, uma triagem, tem ali uma ficha de espera que acho que vai para metade do ano que vem. Então está tudo lotado (Enfermeira D). Agora também a gente vê que tem paciente que não se adapta ao CAPS, e que fica, por exemplo a saúde mental (Ambulatório) a queixa que eles vão marcar uma consulta muito longe (Enfermeira C). Esses “nós” vem sendo um dos focos da gestão, que vem respondendo a esses problemas a partir de negociações com o ambulatório de saúde mental visando à implantação do acolhimento e do trabalho de encaminhamento dos usuários para as US/PSF. 19 Neste caso, trata-se do modelo de atenção “em defesa da vida”. Esse modelo vem sendo adotado e aprimorado em vários municípios (Campinas, Piracicaba, Belo Horizonte, Ipatinga, Betim, Sumaré, Hortolândia, Volta Redonda, Paulínia) 46 Então agora a gente está tentando, com essa nossa coordenadora das políticas de saúde, tentar mudar, ela vem para nos ajudar na maneira da gente ver o que que a gente pode mudar, uma outra estrutura. Porque não adianta colocar 20 médicos que nós não vamos ter o mesmo sistema. A gente tem que trabalhar com as unidades sanitárias. A rede como um todo, não tem como funcionar o Ambulatório isolado. Então essa é a nossa filosofia (Enfermeira D). A superlotação do ambulatório foi foco de várias discussões da Comissão de Saúde Mental, principalmente quando nenhum representante desse serviço estava presente na discussão. Porém, este problema pode ser explicado por diversos fatores. Para além das questões do modo de organização interna do serviço está o modo como outros serviços organizam-se e como ocorre a relação entre os serviços dentro do sistema. Em primeiro lugar, diferentemente do CAPS, que funciona com um limite de atendimentos, o ambulatório atende o que chega até o serviço. Quanto ao número de atendimentos uma profissional do Ambulatório de Saúde Mental relata: ... por mês dá em torno de 1300/1400. Isso nós tinhamos mês passado, acredito que esse mês baixou até em função da saída dessa médica, a gente conseguiu diminuir mais ainda. Mas é em torno disso, enquanto o CAPS é em torno de 240 eu acho, 220. É, e nós, a gente atende 1300 (Enfermeira D). A delimitação de atendimentos no CAPS e o sistema adotado pelo Ambulatório de Psiquiatria do HUSM também determina que a partir de um certo limite os usuários passem a ser encaminhados para o Ambulatório de Saúde mental. ...ele vêm para cá. Tudo aqui, tudo absorve aqui. Quando não tem lugar em lugar nenhum vem para cá. Tudo é para cá. Não se tratando de CAPSad, não se tratando de álcool e drogas, estou falando de psicóticos; ou deprimidos (Enfermeira D). ...do serviço do HUSM que encaminha praticamente tudo para a rede do município, não é, que é uma referência regional mas que também a gente está questionando o seu papel, porque tem toda uma lógica de trabalhar a questão ambulatorial, mas na verdade ela não está sendo trabalhada, ela está sendo encaminhada para o Ambulatório do município de Santa Maria, e aí acaba num ciclo vicioso (Gestor 1). Além disso, o Ambulatório ainda desempenha a função de “serviço intermediário”: entre a atenção básica e o CAPS e a internação. Nesse sentido, atende ao modelo piramidal anteriormente referido (ponto 4.1). Ao mesmo tempo atende uma clientela sem um perfil definido (neurose, psicose grave, psicose crônica, etc). ... é uma clientela assim, ela não é uma clientela tão assim um patamar bem mais pesado da evolução. Claro, tem pacientes, tem pesados, por exemplo, quando os pacientes não conseguem mais atendimento no CAPS que não tem mais vaga eles vem para cá. Pacientes que recebem alta do CAPS para entrar outros novos eles vem para cá. Então na realidade isso aqui é multi-atendimento, tem diversos. Como tem de ansiedade, depressivo, tem psicótico grave, esquizofrênico.(...). Tem múltiplos diagnósticos aqui dentro (Enfermeira D). Segundo relato presente na ata da reunião da CSM, 47 Sobre a questão da referência foi esclarecido que de seis meses para cá o CAPS é a referência, e não o Ambulatório (Ata da 5ª reunião da CSM). Essa informação estaria de acordo com a proposta do Ministério da Saúde (descrita no ponto 1.5.5, p.30-31). Apesar de “formalmente” este ser o discurso, as demais discussões da CSM e os dados coletados nas entrevistas demonstram outra realidade, apontando o Ambulatório de Saúde Mental como ordenador da rede: ele é a referência da atenção básica, direciona para o HUSM e/ou CAPS, recebe do HUSM e/ou CAPS (seja porque é seu papel, seja porque os outros serviços atingiram seu limite). Outra fala confirma isso: ...está sendo o ambulatório, o que assegura ainda é o Ambulatório, que é a porta de entrada. Todos os pacientes da rede vem para cá. É aqui que a gente define, vai para o CAPS ou vai para o HUSM. Ou fica aqui. Essa é a realidade hoje (Enfermeira D). Outro ponto da rede de serviços de saúde mental bastante enfatizado é a Unidade Psiquiátrica do HUSM. A gente tem alguma relação mais assim de alguns serviços com o HUSM, em função de necessidade que é inevitável também de internações (Gestor 1) Semelhante ao Ambulatório de Saúde Mental, as unidades de internação também vêm funcionando acima da capacidade: E depois tem a unidade (...), a Paulo Guedes, que tem 26 leitos, é mista, e daí recebe de todos os municípios, está sempre lotada essa unidade. (...) sempre ela está com 26, 27 leitos. O limite dela é 25, está sempre além da capacidade. E trata os pacientes em surto, psicóticos (Enfermeira C). A partir das entrevistas e discussões observa-se que este serviço preserva uma “herança” de sua constituição histórica: a centralidade e o poder médico, a medicalização, o isolamento, a divisão do trabalho por categorias profissionais, entre outros. Alguns profissionais desse serviço expressaram a necessidade de uma reestruturação do mesmo, visando modificar as formas de relação profissional. ...principalmente para os médicos, porque na verdade, assim, tudo está muito na mão deles. No decisório interno, na alta. E mesmo tendo discussão com os outros profissionais, a coisa na hora da decisão é o fulano que manda, é o médico que manda (Enfermeira C). Essa “herança” também é expressa na confusão que há na forma como as pessoas se referem a este serviço: ora como Unidade Psiquiátrica, ora como Hospital Psiquiátrico. Durante uma discussão na 6ª reunião da CSM apontou-se ainda que a Unidade Psiquiátrica do HUSM é vista com preconceito pela população, pois muitas vezes freqüentar este serviço é 48 uma espécie de “atestado de loucura”. Ou, como aparece na ata desta reunião, têm-se que o psiquiátrico do HUSM é “coisa de louco de carteirinha”20. Apesar disso, os relatos demonstram haver dentro dessa instituição dois segmentos: um que tende para a preservação dos hábitos instituídos (que tende para o isolamento, para a tutela) e outro que tende para a abertura e instituição de uma nova lógica, no sentido da formação de rede com outros serviços e estabelecimento de parcerias (assunto que será mais desenvolvido no ponto 4.7 e 4.9). Já os CAPS vêm mostrando um funcionamento que segundo os relatos tendem para a “nova lógica” de trabalho: formação de equipe multiprofissionais, trabalho interdisciplinar, atenção psicossocial. A gente tem conseguido estabelecer alguma coisa com os CAPS, não é, que fazem também um atendimento mais direcionado assim, um acompanhamento mais de perto (Gestor 1) Tentamos trazer pra cá os residentes também, eles vieram aqui, mas vieram atender nos moldes deles, fechadinhos assim nessa sala, tchau, vou embora, me traz o cafezinho. Mas aqui não é assim, aqui quando a gente quer o cafezinho a gente vai fazer, ninguém serve ninguém, ninguém é secretário de ninguém.(...)... porque na história o médico tava acima, mas aqui ninguém é melhor que ninguém, aqui dentro a gente se respeita, e acho que esse é o trabalho que se quer, principalmente quando se fala em trabalho em equipe, e é isso que a gente quer quando se fala em rede também (Enfermeira A) Ao mesmo tempo estes serviços vêm apresentando um problema semelhante ao HUSM e ao Ambulatório: a superlotação. Com uma diferença: como apontaram algumas falas anteriores, em função da delimitação do número de usuários, os CAPS atendem até uma determinada demanda (atualmente, acima do limite estipulado pelo Ministério da Saúde), a partir da qual os usuários são encaminhados para o Ambulatório21. 4.3. A atenção básica A intenção aqui não é aprofundar, mas apenas delinear o contexto da atenção básica no município, visto que esta se constitui na atual estratégia de descentralização da saúde 20 Ata da 6ª reunião da CSM, 10/08/2005. Apesar disso, segundo consta no diário do pesquisador, foi difícil conseguir entrevistas com profissionais de um dos CAPS. Alguns empecilhos foram sendo colocados. Primeiro foi demonstrado uma preocupação em relação ao modo como a informação seria utilizada. Depois colocou-se a justificativa de que toda a equipe teria que ser consultada e que seria necessário ainda a realização de uma reunião com a orientadora da pesquisa. Diante disso o pesquisador desistiu da entrevista. 21 49 mental e que foi um atravessamento constante nas discussões das reuniões da Comissão de Saúde Mental, como aponta o trecho seguinte: Depois de longas discussões fomos percebendo que para além dessa organização víamos alguns “nós” que precisavam ser pensados para que o processo fosse real e avaliássemos assim as possíveis dificuldades de implantação. Dentre as dificuldades elencadas discutimos as reais condições das UBS em realizar a descentralização visto a lógica do serviço no que tange o comprometimento profissional, forma de atendimento, a questão territorial entre outras questões (Ata da 2ª reunião da CSM, 08/06/2005) Atualmente a atenção básica do município é composta por 19 Unidades Sanitárias – US, 14 Unidades de Saúde da Família – USF e uma unidade móvel22. As equipes de PSF começaram a ser implantadas a partir de março de 2004, e a previsão da Secretaria da Saúde é que até 2007 haverá 44 ESF implantadas23. O Programa de Saúde da Família é considerado uma estratégia de “reversão” do modelo caracteristicamente fragmentado e pouco resolutivo das Unidades Sanitárias. Na fala seguinte o gestor 1 delineia algumas características da atenção básica no município: ...porque os profissionais hoje, que nós temos em torno de 40 unidades incluindo as de saúde da família, foram formados todos numa lógica em que o serviço público não é resolutivo, não é, que na verdade o serviço público é apenas um bico, que a figura do médico é muito valorizada e que a unidade básica está aberta para uma demanda espontânea e não tem aquela relação muito direta com as unidades, com a comunidade onde ela está instalada. Até conhece, tem alguma relação com o usuário que está diariamente ou pelo menos uma vez por semana na unidade, mas não é aquela relação de trabalho realmente efetivo de atenção básica, que dê conta de conhecer a sua população, os seus problemas, de ter o profissional de referência daquele usuário (Gestor 1). Estes aspectos acima descritos resultam num sistema caracterizado pela baixa resolutividade e pelo elevado número de encaminhamentos aos serviços especializados: Porque hoje existe um descompromisso muito grande. É muito fácil lá na unidade básica de saúde tu atender aquilo muito elementar e só encaminhar. Não digo 90%, mas 85% que deveria ser resolutivo na unidade é bem o inverso o modelo que a gente tem hoje. Esses 85% na verdade estão sendo encaminhados aos serviços especializados. E isso a gente pensa também na lógica da atenção em saúde mental (Gestor 1). A partir da implantação dos PSF passa-se a constituir duas lógicas diferenciadas: a das Unidades Sanitárias e a dos PSFs, com a existência de um “abismo” entre os dois, como apontado em diversas situações24. Em função dessa diferenciação dos modelos, abordou-se 22 Informações coletadas a partir do Organograma fornecido pela gestão municipal. Dados extraídos do organograma da Secretaria de Saúde e do Projeto VER-SUS Brasil/Santa Maria 2005. 24 Desde já surge como constatação que Santa Maria possui uma heterogeneidade em relação aos serviços de saúde, sendo difícil falar de “uma” atenção básica, pois na realidade existem “formas” de atenção básica, passando pela dicotomia Unidades Sanitárias X PSF e pelas segmentações existentes dentro de cada um deles. De forma geral têm-se que os PSF são mais eficazes que as US. Porém, há exceções tanto em um quanto em 23 50 nas primeiras reuniões da CSM se a capacitação ocorreria apenas nos PSF ou também nas Unidades Sanitárias. Como consta na ata do II encontro da CSM: Concluímos que as unidades de PSF teriam menor dificuldade em realizar o processo por conta do modelo de atenção, mas decidimos que mesmo em condições diferentes iríamos incluir nos dois modelos (Ata da 2ª reunião da CSM, 08/06/2005) Foram discutidas as diferentes lógicas de funcionamento entre as Unidades Básicas e o Programa de Saúde da Família, onde há reunião de equipe, onde o médico está presente todo o dia, a responsabilização ocorre de maneira mais efetiva. (...) a lógica de trabalho das Unidades Básicas foi caracterizada como “lógica de PA” (Ata da 7ª reunião da CSM, 24/08/2005) A entrada dos PSF e seu funcionamento também estariam sendo responsáveis por um aumento na demanda para os serviços de saúde mental, como caracterizados na fala seguinte: ...porque agora tem bastante PSF, e acho que é o sistema de trabalho deles, eles estão fazendo muitas visitas domiciliares, eles estão vendo que as pessoas tem uma, uma... é o que eu digo , eles tão fazendo um rastreamento, acho que as pessoas muitas vezes até nem sabiam que tinham aquele problema; durante a visita eles devem estar captando mais. Acho que é até mérito deles a visita domiciliar que eles fazem. Então é isso que eu enxergo, é o sistema de atendimento deles é muito bom. Porque o que eles mandam aqui não é que não precisava, é porque precisava mesmo (Enfermeira D) Essa fala aponta para a existência de uma demanda reprimida, que tende a “aparecer” cada vez mais, na medida em que a atenção básica está sendo ampliada. Ao mesmo tempo surge como dúvida nas equipes de PSF (a partir do momento em que a proposta deste programa inclui o trabalho com saúde mental) o que eles devem dar conta “sozinhos” e o que eles devem “encaminhar” para os serviços especializados. A fala seguinte aponta algumas críticas em relação ao “endeusamento” do PSF, apresenta algumas disparidades nas condições de trabalho entre os PSF e as US, assim como aponta para a necessidade e justificava da capacitação estar abrangendo tanto US quanto PSF. ...no início se pensou “ah, vamos fazer um trabalho pelo PSF”. “Não!”. Porque se a unidade básica de saúde atendem 90% da população, o PSF atende só 20, 10, e olhe lá. Então se nós quisermos a ação, nós não podemos desprezar a unidade básica. Porque em Santa Maria é uma realidade diferente de Campinas. Aqui o PSF é minoria. E outra coisa, que o PSF teria uma facilidade de ter uma população adscrita, com profissionais fazendo para três ou quatro mil pessoas, o médico 8 horas, o enfermeiro 8 horas, o próprio agente comunitário, o técnico de enfermagem. Mas se a gente vai botar esse cálculo na unidade básica de saúde, vai perceber que a unidade tem infinitamente menos profissionais. Vamos falar na área da enfermagem. Na (...) tem 3 enfermeiros, que tem três turnos. Mas a princípio tem duas enfermeiras, a última é o último turno. Duas enfermeiras, para 50000 habitantes. Enquanto no PSF tem uma enfermeira pra 4000 habitantes. Então existe a possibilidade de se fazer um trabalho, como é que eu vou dizer, um trabalho melhor no PSF, claro que existe. (...) Então quando se falou que seria priorizado o PSF eu disse “não! Então vamos fazer por região”. Não interessa o que está ali dentro, se é PSF ou se é unidade básica, não outro sistema, o que pode ser constatado pela aderência de profissionais das US ao processo de construção da capacitação junto à CSM, por exemplo. 51 interessa. Na realidade aquelas pessoas, naquela região vão ter que ser atendidas. Por isso que a gente vai fazer por região (Enfermeira B). Outro impacto da realidade descrita pode ser observado nas discussões sobre “quem” participaria da capacitação. Dois fatores se fazem presentes: conforme mais alto o posto no grau hierárquico das profissões (Agente Comunitário de Saúde, técnico de enfermagem, enfermeiro e médico), menor era a probabilidade de participação. Da mesma maneira, contava-se que a aderência dos profissionais do PSF seria maior que das US: Foi levantado certo receio pela possibilidade de não adesão de alguns profissionais, principalmente os médicos e enfermeiros. Já as agentes comunitárias de saúde terão maior adesão (Ata da 5ª reunião da CSM, 03/08/2005). Ao mesmo tempo foi levantado o quanto será difícil a participação de alguns profissionais, pelo fato de que eles não cumprem carga horária (Ata da 7ª reunião da CSM, 24/08/2005). Discutiu-se ainda se os profissionais seriam convidados ou convocados, ao que se argumentou que ninguém poderia ser obrigado a estar presente. Desta maneira, evidencia-se o poder dessa categoria profissional em relação aos demais profissionais, assim como uma “imobilidade” da gestão, tendo em vista a cristalização dessa realidade. 4.4. A Saúde mental na atenção básica. Eu trabalho no (...), a gente tem uma dificuldade de, né, as pessoas chegam para nós e a gente estar trabalhando com elas para re-inserção mesmo na rede, a gente faz vários postos, os psfs e a gente encontra uma dificuldade, não sei se falta informação, o que que acontece, que tem (...) com essa dificuldade mesmo, todo mundo chegando a nós e a gente está com essa dificuldade de reinserção mesmo (médico A) Historicamente, como foi apresentado no primeiro capítulo, o campo da saúde mental constituiu algumas especificidades, principalmente no que diz respeito ao doente mental ou portador de sofrimento psíquico. A atenção ao doente mental foi e ainda é marcada pelo medo, pelo preconceito e estigma, pela noção de periculosidade, etc. Essas noções muitas vezes justificaram a internação e as práticas disciplinares. Recentemente, também como foi apontado no primeiro capítulo, a atenção passou a ser descentralizada, a partir do surgimento dos ambulatórios e mais tarde dos CAPS, NAPS, residências terapêuticas, etc. A tendência atual, no entanto, vêm sendo a da atenção à saúde mental na atenção básica (OLIVEIRA, 2004). Oliveira (2004, p.03), aponta a necessidade “de um verdadeiro diálogo entre os profissionais de saúde “geral”, os clínicos e especialistas “do corpo” e os profissionais “psi”, os da “saúde mental”. Ao mesmo tempo esse autor fala sobre o reconhecimento da 52 necessidade de “lidar com as pessoas em sofrimento psíquico fora dos ambientes especializados, junto a suas comunidades, no território onde a mediação é feita pela atenção primária” (OLIVEIRA, 2004, p.03). Além disso, segundo Oliveira (2004), para que uma atenção integral seja efetivada é necessário acabar com a dicotomia que estabelece as Unidades Básicas de Saúde como “centros de atenção do corpo” e os CAPS como “Ambulatórios de Saúde Mental”. Esta dicotomia muitas vezes é apresentada como uma realidade nos serviços: ...mas a nível de unidade básica, das pessoas que tem o seu cotidiano somente lá, as pessoas não tem essa visão de saúde mental, por isso eu tenho insistido nessa coisa de capacitar (...) eu acho que a gente pode mudar esse nome de capacitação, mas de sensibilização e de que as pessoas consigam fazer esse processo de estar olhando a saúde mental com uma outra visão (Enfermeira B). Dessa forma, constata-se que a atual política de descentralização da atenção à saúde mental para a atenção básica vem ao encontro dessa proposta. Porém, torna-se necessário pensar as implicações desse processo, de forma que as dificuldades possam ser pensadas. As falas seguintes demonstram a dimensão do preconceito, do estigma e das dificuldades dos profissionais em relação à doença mental: Ai assumi na prefeitura e fui lá para o Itararé. Eu tentava aproximar os pacientes do Itararé, os psicóticos, e fazer alguns agendamentos. Foi quando eu ouvi isso que “lá não era um hospital psiquiátrico, era uma unidade básica (Enfermeira A). Se percebe, e até pela lógica das equipes de saúde da família, pela relação mais direta com a comunidade, os próprios profissionais não se sentem capazes de dar conta das questões ligadas à saúde mental. Sempre existe aquele estigma, saúde mental é uma coisa meio complicada, o clínico tem muita dificuldade na prescrição, no acompanhamento daquele paciente (Gestor 1). Que até hoje a prática é: chegou alguém com transtorno, com alguma dificuldade, já é encaminhada direto ao serviço, que é o Ambulatório (Gestor 1). Dessa maneira, durante os encontros da CSM muitas vezes foi discutido a necessidade de “sensibilizar” e “motivar” os profissionais a estarem se comprometendo com a saúde mental: Não se faz rede sem pessoas. As pessoas são a essência da coisa.(...)Então eu tenho insistido assim, eu tenho a preocupação muito grande que nesse primeiro encontro a gente consiga fazer esse primeiro, essa sensibilização que é, essa motivação (Enfermeira B) Além da sensibilização e motivação aponta-se ainda a necessidade da negociação: É válido o trabalho que está sendo feito, de reunir as pessoas, discutir... tem que ser negociado com as unidades, se tem interesse, para ter comprometimento dentro da unidade (...) Esse é um tipo de atenção que não se coloca goela a baixo (Enfermeira A). 53 Ao mesmo tempo vêm sendo percebidas algumas tentativas de encaminhamento dos usuários dos serviços de saúde mental para as unidades básicas, o que vêm exigindo uma “sensibilização” também em relação ao usuário. ...é, mandar de volta. Nós esperávamos que ia ser bem mais fácil. Eles não estão aceitando. Então acho que a longo prazo, indo sensibilizando mais, assim. Hoje eu falei bastante em sala de espera, que eu tenho um vínculo muito grande com eles, então é meu papel também enquanto educadora. Então a gente tenta sensibilizar. Uns assim “ah, eu vou pensar, eu vou pensar”, mas a gente não pode obrigar também (Enfermeira D). ...a gente começou há dois meses, e como nossos pacientes saíram com todas as receitas, os que deram alta, a gente não conseguiu ver uma repercussão lá fora ainda, que eles devem começar agora no mês de outubro, ir procurar os PSFs, unidades sanitárias. Que eles vão ficar sem receita, que eles vão ter que consultar, eles vão ter que ir lá. É isso que vai começar, daí a gente vai ter uma avaliação maior (Enfermeira D). Esta última fala demonstra um certo atravessamento de um tipo específico de atenção que se estabelece: a medicamentosa. Através da fala percebe-se que os efeitos dos encaminhamentos dos usuários do serviço de saúde mental para a atenção básica serão sentidos quando a receita faltar. Sobre esse assunto ainda um informante traz a perspectiva da centralidade da medicação em alguns tipos de tratamento: ...dá o diazepanzinho e deu. Tu é nervozinho, e toma e deu. E mesmo quando vai no serviço de saúde mental é isso aí também. Daí vai o esposo, o filho lá no serviço e pede para que copie a receita. Então essa cópia de receita é uma coisa assim, de matar. Todos os médicos da rede básica copiam receita. Porque as normas são estabelecidas assim. O hipertenso a cada três meses. Vai ali, ali na (...) que tu vê. Vem a tia, a vizinha, a sogra e o médico passa a manhã inteira copiando a receita. Então para que? Não existe necessidade disso.(...). Porque para mim tem que fazer uma revisão então. Pra copiar a receita? Daí o pessoal usa um termo: renovação da receita. Não botam cópia de receita, é renovação de receita (Enfermeira B) Em região atendida por 12 agentes de saúde procedeu-se a uma pesquisa, constatandose que cerca de 700 pessoas usam medicamentos psiquiátricos*. Com relação a essa população a fala seguinte aponta a forma de atenção prestada: ... e a grande maioria vai lá naquele serviço lá, daí o médico prescreve, daí eles vem para casa, ou o familiar vai lá para buscar a receita, ou chega o clínico e pede para o clínico trocar a receita (Enfermeira B). 4.5 E as condições de trabalho... Em algumas discussões da CSM e durante as entrevistas foram relatadas situações que dizem respeito à sobrecarga profissional e a falta de condições de trabalho. Ao se falar em * Dados fornecidos por informante. 54 rede torna-se necessário abordar esse assunto na medida em que se torna relevante pensar nas condições que podem propiciá-la ou não. Foi relatado falta de estrutura física, em especial no caso dos PSF, falta de material de trabalho, falta de medicamentos e material para a realização de procedimentos (camisinhas, anticoncepcional, ataduras, etc). Em uma das reuniões, por exemplo, foi relatada a falta de receituários azuis em um dos serviços de saúde mental, o que obrigou os profissionais a discutirem a forma de utilização dos mesmos: se elegeriam prioridades ou se seguiriam à lista de usuários. ...é bastante precário, as condições de trabalho é bastante (...) A gente entende que com a crise está difícil, mas também é difícil da gente trabalhar nesse lugar aqui. A gente vai levando (Enfermeira D). Como resultado desse processo há relatos que evidenciam a frustração profissional e a baixa auto-estima. Uma grande frustração no sentido de que as pessoas precisam e não tem. (...) De repente a pessoa precisa do medicamento e não tem. Então são frustrações somadas que acabam fazendo com que a gente olhe e pense assim “isso aqui está tudo uma droga”. E esse uma droga, a gente tem a sensação que essa droga está generalizada na cabeça das pessoas de toda nossa rede básica de saúde. Então a auto-estima da Secretaria Municipal de Saúde é muito baixa. Então as pessoas que trabalham na Secretaria de Saúde de Santa Maria elas se sentem pouca coisa, elas se sentem desvalorizadas, elas sentem que elas não têm o reconhecimento pelo trabalho. E essa parte do reconhecimento do trabalho é uma coisa muito importante para os profissionais da saúde. Porque tu te realiza como profissional o momento que tu se sente também valorizado, acolhido (Enfermeira B) Somado a falta de condições, a verticalização das ações e a segmentação do processo de pensar e agir (características do trabalho taylorizado) tendem a potencializar a frustração, visto que impessoalizam os serviços, como apontam as falas seguintes: Eu acho que é, pelo que eu tenho sentido dos profissionais assim que eu converso é isso, é uma frustração muito grande, porque tu não se sente parte daquilo. Tu vende, somente vende teu horário de trabalho (Enfermeira B). Como é que tu vai acolher uma pessoa na tua casa, no teu local de trabalho, se na realidade tu não te sente acolhido ali, tu não te sente parte daquilo (Enfermeira B). Também emergiram discussões referentes a “quem cuida do cuidador”, evidenciando a necessidade de ações na área de saúde do trabalhador. Como contraponto a essa realidade apresentam-se estruturas físicas como as dos CAPS, descritos como locais apropriados, bonitos, demonstrando que é possível um serviço público ter outro aspecto. 55 Essa discussão se torna importante na medida em que Campos (1998) aponta a realização profissional como um dos pontos da tríade que deve sustentar o SUS25. Porém, a discussão sobre “saúde do trabalhador” é ainda bastante incipiente. Diante da falta de ações instituídas nesse sentido a universidade vem sendo apontada como solução possível, através de estágios, por exemplo. 4.6. Plano de Gestão Durante o período acompanhado, foi possível delinear algumas estratégias que o município vem adotando no campo da saúde mental. Não são muito claros os critérios utilizados na gestão para planejar a política de saúde mental. Além do SUS e da Reforma Psiquiátrica, observam-se critérios políticos, até mesmo de visibilidade eleitoreira. A política de saúde mental fornecida pela Secretaria de Saúde do Município encontra-se parcialmente desatualizada (2003), sendo que seu plano de ação ou critérios de avaliação de resultados não é muito definido. Entretanto, algumas perspectivas foram delineadas durante esse período acompanhado durante a pesquisa, sendo que elas serão temporalmente apresentadas. 4.6.1. O início Em um primeiro momento, dentro do organograma da Secretaria de Saúde, a política de saúde mental era responsabilidade da Diretoria de Atenção Básica em Saúde. Dessa forma, essa diretoria era responsável tanto pelos serviços de atenção básica (US e PSF) quanto pelos serviços de saúde mental. Dentro dessa diretoria os serviços são dispostos em seis regiões sanitárias, sendo que cada uma tem um gerente responsável pela região sanitária. Com relação a “rede”, uma das funções do gerente da região sanitária é fazer a articulação entre os serviços, assim como entre os serviços e a gestão. Porém, percebe-se uma certa “dissociação” quanto aos serviços de saúde mental, já que apenas um deles encontra-se dentro dessa divisão 25 Este autor propõe um modelo de gestão, o “método de gestão colegiada”, que visa alcançar três objetivos: a produção qualificada de saúde, a sobrevivência do sistema e a realização dos trabalhadores. Ver Campos, G. W. S. O anti-Taylor: sobre a invenção de um método para co-governar instituições de saúde produzindo liberdade e compromisso. Cad. Saúde Pública: Rio de Janeiro 14(4): 863-870, out-dez 1998. 56 de regiões sanitárias (o Ambulatório de Saúde Mental). Os demais serviços (CAPS, PRD), sob a justificativa de serem “projetos” estão à parte das regiões sanitárias. No primeiro momento acompanhado pela pesquisa vinha sendo delineado um planejamento conjunto entre as ações de atenção básica e saúde mental. Ambos enfrentavam um desafio: a necessidade de mudanças na lógica de funcionamento. Segundo o gestor 1: E a gente está querendo instituir isso na atenção básica como um todo, que é na lógica do PSF, a proposta de estratégia de saúde da família que é justamente para reorientar, não é, o modelo de atenção. E a gente pensa dessa mesma forma, e principalmente a questão da saúde mental. E a gente tem avaliado que começar pela saúde mental é bem por aí mesmo, porque faz parte do todo (Gestor 1). A situação enfrentada é a descrita nos itens 4.2 e 4.3: serviços de saúde mental superlotados, atenção básica pouco resolutiva quanto aos aspectos de saúde mental, “abismos” entre os serviços, etc. A proposta passa a ser, então, instituir um novo modelo de atenção que levasse em consideração o vínculo, a responsabilização, o trabalho no território, etc. Esse modelo pressupunha também a necessidade de articulação entre os serviços de atenção básica e saúde mental. Diferentes estratégias passam a ser articuladas: a reorganização de serviços, a idéia da formação de equipes matriciais com profissionais de saúde mental para apoiar a atenção básica, a constituição da Comissão de Saúde Mental, a construção da capacitação em saúde mental para a atenção básica, a implantação de dois novos CAPS. Quanto a necessidade de reorganização de serviços e necessidade de mudança de lógica de trabalho o gestor 1 coloca: E a gente quer quebrar totalmente com essa lógica. Aí entra a própria solicitação dos trabalhadores “não, precisa mais profissionais!”. Mas parai! Com mais e mais profissionais a gente vai criar mais e mais agendas e vai estar sempre nesse ciclo vicioso e não vai resolver nunca nada. Então está na hora de parar mesmo e estar pensando na rede de atenção a saúde mental voltada à rede básica (Gestor 1) Surgiu como uma primeira necessidade a capacitação dos profissionais da rede básica. Sem agente estar capacitando eles para a saúde mental eles sempre vão enxergar a saúde mental como algo que eu não vou conseguir nunca, né, realizar o atendimento. Que até hoje a prática é: chegou alguém com transtorno, com alguma dificuldade, já é encaminhada direto ao serviço, que é o ambulatório. E agente quer mudar toda essa lógica (Gestor 1) A formação das equipes matriciais surge como outra necessidade apontada pelo gestor, sendo que sua formação está atrelada ao aproveitamento dos recursos humanos do Ambulatório, que neste momento tem a perspectiva de ser “diluído”. ... exatamente, porque a rede de atenção básica, quando a gente pensa nas regiões sanitárias, a gente pensa que cada região sanitária vai ter uma equipe matricial. O que que é uma equipe matricial? É uma equipe de apoio onde estarão alguns especialistas, algumas especialidades. Ah, quando a gente fala nessa diluição do Ambulatório de Saúde Mental é bem isso mesmo, é diluir ele, não é, e que a gente tenha nas matriciais, não é, dependendo da necessidade e do perfil daquela região sanitária, que a gente tenha sim um psiquiatra, um psicólogo, como a gente pensa em ter um 57 fisioterapeuta, um nutricionista, não é, outros profissionais que a gente não vai conseguir manter, não é nesse universo de unidades que são em torno de quarenta. Então são as equipes matriciais, que a gente está pensando nessa lógica, e a diluição do Ambulatório de Saúde Mental entraria também nessa mesma proposta (gestor 1). Essa perspectiva é também apresentada nas primeiras reuniões da comissão de saúde mental, como consta em uma das atas: Outra questão importante trazida foi a perspectiva de criar CÉLULAS, como referências para as UNIDADES, que funcionaria com a disponibilidade de 1 profissional especialista (psiquiatra e psicólogo) por 4 horas semanais para dar supervisão dos casos que chegaram na unidade básica e que os profissionais estão com dificuldade “em resolver” (ata da 1ª reunião da CSM). Ao mesmo tempo que há o delineamento dessas perspectivas, em alguns momentos apresenta-se uma certa imobilidade da gestão em relação a como colocá-las em prática. Com relação às equipes matriciais, não foi apresentado um plano concreto de implantação, com metas e prazos fixados, previsão de recursos, entre outros. A contratação de novos recursos humanos esbarra em problemas financeiros, assim como o reaproveitamento dos recursos humanos também trás alguns empecilhos. Como foi apontado em uma das reuniões da CSM, não há como obrigar alguém a mudar seu jeito de trabalhar. Um certo embate entre gestão e trabalhadores coloca-se em cena, impondo a necessidade de negociação. Essas dificuldades aparecem nas reuniões da CSM, onde em alguns momentos discutem-se as dificuldades enfrentadas e apresentam-se algumas “imobilidades” frente a elas, representadas em alguns questionamentos como: o que fazer com o Ambulatório de Saúde Mental? Como formar as equipes matriciais? Como articular a lógica de equipes de transição nas unidades básicas de saúde? Na 4ª reunião da CSM, algumas discussões levam o grupo à constatação da inexistência de fluxograma e protocolos, além da indefinição do papel do ambulatório, chegando-se à conclusão da inexistência e ao mesmo tempo da necessidade de elaboração de uma Política de Saúde Mental para o município. Em relação ao Ambulatório de Saúde Mental, encaminha-se a necessidade de uma discussão entre a gestão e os trabalhadores do mesmo, sem a participação da CSM. Apesar de figurar o tempo todo nas discussões da CSM como “nó” da rede, no momento do “enfrentamento” a responsabilidade é dirigida à gestão. Durante a montagem do cronograma de atividades, em função da proposta da reunião entre gestão e Ambulatório ocorre o cancelamento da reunião da CSM da semana seguinte. 4.6.2. A quebra 58 O segundo momento acompanhado é caracterizado por uma “quebra”, representada pelo cancelamento das reuniões da CSM e do cronograma de capacitação montando, segundo a justificativa de que estaria sendo contratado outro profissional para dar conta da política de saúde mental do município, assim como responder pela capacitação. Dessa forma, é inserido no organograma da Secretaria de Saúde a Coordenação da Política de Saúde Mental. Durante cerca de um mês os trabalhos ficam paralisados, até a contratação da nova coordenadora de saúde mental. Qual a leitura possível desse processo? Segundo um dos gestores municipais, a partir de determinado ponto o processo começou a tornar-se mais complexo, de modo que se tornou necessário à entrada de mais uma pessoa para responder especificamente pela saúde mental. Outro gestor municipal argumenta que a criação de uma coordenação de saúde mental demonstra o quanto esta área passou a ser priorizada junto a Secretaria de Saúde do Município. Ao mesmo tempo, o cancelamento das reuniões da CSM apontou uma certa verticalidade na relação entre a gestão e os membros da mesma, visto que em função da primeira todo o processo foi paralisado. 4.6.3. A retomada A retomada da CSM coincidiu, portanto, com a entrada da nova coordenadora de saúde mental. Durante um certo período houve a necessidade de se fazer um “reconhecimento”, tanto dos processos que vinham sendo instaurados quanto das estruturas de saúde presentes na cidade, visto que a nova coordenadora de saúde mental não conhecia Santa Maria. Passaram a constar como diretrizes da saúde mental: a continuação da construção do processo de capacitação (a partir da retomada das reuniões da CSM); a implantação dos dois novos CAPS. As reuniões da CSM foram retomadas a partir da primeira semana de agosto. Essa retomada foi encarada por alguns integrantes não como uma continuação, mas como um reinício (o que também justifica o subtítulo do item anterior). 59 A articulação com a atenção básica, principalmente no nível macropolítico (estabelecimento de referência e contra-referência, apoio matricial, células matriciais) passa a se fazer menos presente nas falas do gestor. Diante dos questionamentos surgidos nas reuniões da CSM sobre como a rede será articulada na prática, ou de quem vai apoiar a atenção básica, a atitude da gestão passa a ser a de postergação da discussão (enquanto antes se apresentava como alternativa a criação das equipes matriciais). Ao mesmo tempo, com relação ao Ambulatório passa-se a pensar não mais em uma diluição do mesmo, mas sim reorganização do processo de trabalho, com a introdução de práticas como o acolhimento. A noção de rede passa a ser priorizada em nível micropolítico, ou seja, das relações cotidianas entre profissionais e usuários nos seus territórios, por exemplo. Porém não existe uma articulação do nível micropolítico com o nível macropolítico, de qual será o modelo de atenção adotado, como será instituído um modo efetivo de comunicação e ação entre os serviços, de estabelecimento de referências, entre outros aspectos. Quanto à implantação dos novos serviços, à nova coordenadora de saúde mental cabe “executar” a implantação dos mesmos, já que já haviam sido solicitados e a verba já tinha chegado. A partir dos relatos presentes no diário do pesquisador, é possível constatar uma verticalidade tanto entre gestão e trabalhadores, quanto dentro da própria gestão, onde o poder apresenta-se centralizado em poucas pessoas (centralização das decisões). Ao mesmo tempo determina que a gestão seja “impessoalizada”. Ao fazerem críticas, tanto trabalhadores quanto gestores referem críticas “à gestão”, quando implicitamente se referem a pessoas muito específicas dentro da mesma. Alguns trabalhadores (segundo consta no diário do pesquisador), caracterizaram ainda a gestão como “autoritária e personalizada”. Com relação aos CAPS, ainda, a previsão é que sejam instalados mais um CAPS II e um CAPSi, antes do final de outubro (prazo final de implantação). Inicialmente o CAPS II será instalado junto ao CAPSi, no centro da cidade. A justificativa é econômica, tendo em vista que o repasse de verbas das APAC26 só ocorre após três meses de sua emissão (o que significa que se os CAPS abrirem em outubro, a remuneração correspondente a esse mês só chegará em janeiro, e assim por diante). Apesar disso, há um repasse de verba do Ministério da Saúde que ocorre para a implantação dos CAPS. A perspectiva é de que futuramente esses serviços sejam separados e a idéia inicial é de que o CAPS II seja transferido para outra casa no centro da cidade27. A implantação desses serviços não é justificada a partir de 26 27 Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade (é o que garante o financiamento dos CAPS). Informações fornecidas por gestor municipal 60 planejamento prévio ou de uma macropolítica de gestão, mas em função de cobranças e pressões dos trabalhadores dos serviços de Santa Maria e região. a gente está implantando os serviços porque, tem hora que tu te vê sufocada assim sabe, encurralada por uma cobrança muito grande, tu entra no embalo dos trabalhadores de estarem cobrando a necessidade de ter essas referências. E aí tu termina realmente, até porque existe também uma iniciativa do governo federal e tal, indo atrás e então vamos envolver, vamos pensar num projeto, vamos estar pensando em implantar mais dois serviços, porque a gente é muito cobrado até a nível regional “ah, Santa Maria tem capacidade para ter cinco CAPS” (gestor 1). 4.6.4. Uma breve discussão: a questão do apoio matricial e como outros municípios vêm articulando saúde mental e atenção básica Na medida que o projeto da capacitação foi sendo desenvolvido e a data para o início da capacitação se aproximava, cresceu também a preocupação em relação a maneira que as ações seriam efetivadas entre a atenção básica e os serviços de saúde mental. Como possibilidade sugeriu-se que profissionais que compõe a CSM pudessem estar presentes nas unidades em algum horário da semana, durante o período da capacitação, por exemplo. Esta cobrança, que muitas vezes ficou sem resposta (visto que ficou como uma questão em aberto na CSM e visto que não há um planejamento da articulação da rede em nível macropolítico) abre espaço para pensar como outros municípios resolveram essa questão, passando por processos semelhantes ao de Santa Maria. Vânia Case (1997), relata a experiência de Camaragibe – PE. Semelhante ao que vem ocorrendo em Santa Maria, propôs-se um processo de capacitação (o qual eles chamam de “oficinas”) para a atenção básica (no caso, as equipes de PSF). O processo piloto foi desencadeado em uma das regiões da cidade e posteriormente atingiu todo o município. No início desse trabalho a rede de saúde mental ainda não estava bem estruturada, apenas do decorrer do trabalho se constituiu um NAPS no município. Após a realização das oficinas constatou-se a necessidade de um “apoio” para a atenção básica. Dessa forma desencadeou-se um processo de “trabalho de monitoramento” junto aos PSF. O monitoramento teve início com uma equipe formada por psicólogas, TOs, sanitarista, arte-terapeuta, ass. Social, psiquiatras – os quais trabalhavam em duas policlínicas da cidade e que já vinham realizando as oficinas. A monitoração, como um dos desdobramentos das oficinas de saúde mental, realizase a cada trinta ou quarenta e cinco dias, com reuniões previamente agendadas e pauta predefinida nas 32 Unidades de Saúde da Família. Atualmente estão envolvidos com a monitoração quatro psicólogos, quatro psiquiatras e uma terapeuta ocupacional. 61 Cada qual se responsabiliza por quatro ou cinco unidades. Os profissionais deslocamse para as unidades de saúde e trabalham os seguintes assuntos prioritários: estudo de casos; interconsultas (entre os médicos da equipe e o psicólogo ou psiquiatra); orientação na formação e condução de grupos com a comunidade; discussões disparadas por filmes e vídeos; visitas domiciliares; capacitação dos clínicos do PSF para administração de psicofármacos; palestras abertas à comunidade tendo como subtítulo “Conversando sobre...” (CASE, 1997, p.130) Cabral et al (1997) relata outra experiência de saúde mental na atenção básica, no município de Cabo de Santo Agostinho – PE. Visando estruturar o sistema de referência e contra-referência assim como redimensionar a grande demanda do ambulatório de psiquiatria, deu-se início a um processo de capacitação continuada e discussão de casos junto à atenção básica. Inicialmente ocorreu uma capacitação envolvendo as 23 unidades de saúde da família (chamadas de Programa Saúde em Casa) presentes no município. Essa primeira etapa visou sensibilizar, formar vínculo inicial, fazer reconhecimento de território (um dos princípios do projeto) bem como trabalhar questões do SUS e reforma psiquiátrica. A ação seguinte do PEC foi “criar um campo”, programando encontros sistemáticos com cada uma das equipes, tendo como meta promover uma integração entre os Programas, e possibilitar a construção de um planejamento local de saúde mental em cada área. O funcionamento previa que as visitas ocorressem mensalmente, para supervisão continuada das equipes, visando operacionalizar os objetivos desse trabalho (CABRAL ET AL, 1997, p.145) Dessa maneira, experiências anteriores vem apontando para a importância do apoio técnico às equipes da atenção básica. Para tanto, cada município vem encontrando soluções de acordo com sua realidade. As experiências relatadas, assim como outra experiências (LANCETTI, 1997) apontam para a possibilidade das “capacitações em ação”. Ou seja, a medida que o processo de capacitação é instaurado, articulam-se perspectivas de trabalho conjunto, que possibilitam que a capacitação, a aprendizagem, ocorra na ação, indo ao encontro das dúvidas de cada profissional e ao encontro das necessidades de cada usuário. Ao mesmo tempo aponta-se que os municípios têm articulado diferentes estratégias nesse sentido, como as equipes de apoio matricial (Campinas), apoio matricial a partir dos serviços especializados, como Ambulatórios de psiquiatria, CAPS, NAPS (Campinas, Camaragibe e Cabo de Santo Agostinho) ou adoção de equipes volantes (Recife). 4.7. A rede para além dos serviços “oficiais” Nas reuniões da CSM várias discussões buscaram demarcar os serviços da rede de assistência em saúde mental. As primeiras discussões foram marcadas pelo delineamento dos 62 serviços “oficiais”, ligados a Secretaria de Saúde do Município (já mencionados no item 4.2). Porém, em especial na 6ª reunião da CSM disparou-se uma discussão onde outros recursos foram apontados como componentes e/ou possibilidades da rede de atenção em saúde mental. Ana Pitta (2001, p.24) aponta que as intervenções de promoção, prevenção e tratamento dos transtornos mentais “implicam numa pluralidade de necessidades que requerem uma riqueza de iniciativas intersetoriais...”. Sobre o acesso aos recursos, a autora pontua ainda a importância do estabelecimento de redes intersetoriais a medida em que surgem necessidades e demandas de cuidado e apoio. “Justiça, educação, trabalho, moradia, previdência, sem hierarquias ou prioridades, deveriam também, em redes semelhantes, estabelecer conexões com as pessoas, cuidadores e cuidando, tecendo os recursos que a necessidade de cada sujeito possa determinar.” (PITTA, 2001, p.24) Nesse sentido, foi possível constatar ao longo das discussões da CSM e nas entrevistas com os informantes algumas ramificações da rede. Além dos serviços já mencionados no item 4.2, foram inseridos na rede28: Acolher, CAVV, serviços de atendimento psicológico (Clínicas-Escola) da UFSM, UNIFRA e ULBRA, projetos das universidades, PAMedianeira, brigada militar, bombeiros, conselho tutelar. Durante as entrevistas apareceram ainda outros recursos: os grupos de auto-ajuda (AA), as fazendas, a justiça, a pastoral da criança, os serviços privados e os recursos comunitários (clubes, grupos, associações, etc). Mas a maioria das nossas parcerias não são de serviços oficiais de saúde mental, de assistência.(...) A gente tem parceria com outros órgãos, tipo, conselho tutelar, presídio, sistema judiciário, brigada militar, (...) casa das meninas, casa dos meninos, a case, a fase (Enfermeira A). Atualmente vem sendo percebida a necessidade do estabelecimento de diálogo com a “Justiça”, principalmente em função das ordens judiciais de internação, como apontam as falas seguintes: ...bastante ordem judicial. Bastante. Vem internando, e daí as vezes pede avaliação para internação, às vezes decreta que é para internar e há uma combinação aqui interna que é que interne! Para não se incomodar, porque há uma queixa de que os médicos já tiveram que responder processo por causa de não ter internado. A médica que estava na supervisão do residente acabou sendo processada por causa disso (Enfermeira C). A própria justiça também não tem um entendimento do que é. Ainda parece que vê o louco, o portador de transtorno mental como louco, e tem que ter um serviço para estar dando conta deste louco. E aí isso tudo a gente vai ter que estar construindo junto. Ontem até quando a gente fez essa discussão de como se trabalha, como se pensa a rede de atenção em saúde mental uma das coisas que eu levantei foi isso. Uma das missões dessa comissão, desse grupo de trabalhadores que está 28 Esses dados constam na ata da 6ª reunião da CSM e em um cartaz elaborado pelo grupo sobre a rede de saúde mental em Santa Maria. 63 comprometido em formar a rede é também estar fazendo encontros até com a Justiça. Que chegam solicitações aqui totalmente absurdas assim. Muito contra tudo aquilo que a gente vem trabalhando. Ainda eles têm aquela visão da institucionalização sim (Gestor 1). Na 10ª reunião da CSM, a partir do relato de alguns casos que envolviam violência doméstica, abuso sexual e maus-tratos, se discutiu as formas de intervenção do conselho tutelar (o representante da “justiça”), chegando-se a conclusão de que em alguns momentos ele é necessário, mas que em outros suas intervenções podem tornar-se fontes secundárias de violência. Apesar desses temas terem sido debatidos, até o final do período acompanhado pela pesquisa nenhum encaminhamento concreto havia sido feito em relação aos problemas apontados. Em alguns casos a Universidade surge como recurso importante na formação da rede. Nesse sentido, pode-se ler a experiência que o HUSM vem fazendo, onde a partir da instituição de um projeto busca acessar os recursos da Universidade, formando parcerias. Esse projeto vem sendo desenvolvido há cerca de um ano, e visa instituir uma outra abordagem no cuidado ao portador de sofrimento psíquico, tendo em vista uma mudança no próprio significado da “internação”. É o projeto, a idéia toda é que eles fiquem o menor tempo possível aqui dentro. Pode até estar internado, mas não dentro, enchaveado. Fica internado. Mas há um ano atrás, há muito pouco tempo atrás a vida das pessoas internadas aqui era muito diferente do que é (Enfermeira C) Dessa forma, este projeto vem propiciando novos fluxos. Então por isso que quando eu tive essa idéia do projeto eu pensei: bom, a gente está lutando sempre para trazer gente aqui para dentro, vamos fazer um movimento contrário. Em vez de convergir, vamos sair pra fora (Enfermeira C). Esse projeto envolve vários subprojetos, entre eles: o projeto da horta com o Centro de Ciências Rurais (CCR); o projeto da piscina, musculação, e práticas de esporte com a educação física. As aulas e oficinas no Centro de AL. Aulas de informática no lince, laboratório do CE, entre outros. A partir dessas parcerias, tenta-se propiciar atividades que se aproximem do cotidiano dos usuários. E eu penso que tudo que se faz, todas as atividades que se faz com eles tem que ser de um jeito que fique parecido com a vida das pessoas. Porque tu fazer atividade aqui dentro como a gente fazia “e pintava, e fazia cestinha...”. Para que que ia usar aquilo? (...) Ninguém vive uma vida assim! Fazendo de conta que tu faz alguma coisa (Enfermeira C) Apesar desse projeto ser institucional, aponta-se a importância dos recursos informais para a sua concretização 64 ...quem leva muito mais é o profissional de fora, não é o pessoal aqui de dentro. Eu tenho um funcionário (...) que leva tudo, a parte operacional. Mas é muito mais gente de fora do que gente da enfermagem no caso. Muito mais (Enfermeira C). De maneira geral, a informalidade também está presente nas formas de comunicação entre os profissionais dentro dos serviços, que ocorre na medida em que eles tem uma proximidade afetiva, como informou uma das entrevistadas. ... por exemplo, lá (...) tem uma enfermeira que fez conosco até saúde mental, a formação dela. Então ela liga, “vou levar paciente lá na emergência para fazer”, “vou acompanhar”. Nós temos uma enfermeira que trabalha no CAPS daqui também. Então essa coisa “a fulana está em crise, vamos tentar internar” (Enfermeira C). Tem algumas pessoas que têm mais ligação até porque entende essa necessidade, porque tem proximidade afetiva, profissionais né, então a gente acaba fazendo esse tipo de coisa (Enfermeira C). ... se a gente não tem uma relação direta com a profissional que está lá esse paciente se perde (Gestor 1). 4.7.1. A questão do território A erupção psicótica, diversas experiências de sofrimento, de violência, abuso sexual e dependência abjeta acontecem em territórios determinados: na família, na comunidade, nos universos existenciais das pessoas e no diálogo com seus interlocutores invisíveis. Daí que os processos de produção de saúde devem ser gerados nesses territórios (LANCETTI, 1997, p.117) A noção de “território” apresenta uma variedade de interpretações possíveis, desde a noção de território presente no modelo de atenção chamado vigilância em saúde, até as noções de território vinculadas a proposta da reforma psiquiátrica italiana, que baseiam a política do Ministério da Saúde para a implantação dos CAPS. A necessidade do trabalho no território (entendendo este enquanto área adscrita, delimitada) foi apontada em reuniões da CSM, com consta na ata da 2ª reunião da CSM : “Territorializar as regiões, ou seja, promover o reconhecimento da clientela pelo profissional e vice versa”. O trabalho no território também tem o significado de acesso aos recursos comunitários. Inclusão dos usuários do serviço de Saúde Mental no mercado de trabalho, reconhecer possíveis parceiros no local de moradia, reconhecendo assim esse tipo de território também (Ata da 2ª reunião da CSM, 08/06/2005) ...quando a gente fala em conhecer o território, fazer o reconhecimento de território, a gente sabe que tem muitas comunidades que tem associação de bairro, que tem mulheres que se encontram, que tem alguma atividade da pastoral, que tem um CTG, e um bolicho que de repente todo mundo se encontra pra , sei lá, jogar bocha, depende 65 de cada local, e que isso pode também estar sendo usado como uma terapia. E então a gente pensa muito em investir nessa, de explorar, não é, a comunidade onde está cada usuário. Tem que ser trabalhado lá. E a comunidade estar trabalhando isso junto com ele. Com os agentes comunitários, com a própria equipe (Gestor 1). Segundo Paulo Longulo Gonçalvez (1997, p.109), que descreve a experiência da saúde mental na atenção básica a partir do projeto QUALIS, implantado na cidade de São Paulo, as equipes de saúde da família e de saúde mental são recursos da rede de atenção, encarregados de “intervenções que viabilizem a construção de uma rede de apoio ampla e permeável”, que possibilite o acesso aos recursos afetivos e materiais presentes na comunidade. Em consonância com essa noção estão as falas seguintes, que apontam a importância do acesso aos diversos serviços e demais recursos. Então a rede para se efetivar na prática, ela precisa das pessoas, tanto as pessoas dos serviços, e das associações comunitárias, das pessoas da própria comunidade, para que ela se torne uma prática (Enfermeira B). ...eu acredito que o eixo, da coordenação disso tem que estar por conta da equipe de saúde. Porque nós não podemos também largar, delegar para a comunidade que resolva todos os seus problemas. Até porque a comunidade não consegue sozinha (Enfermeira B). Alguns profissionais apontam à necessidade de reconhecimento de território visando um entendimento maior da clientela atendida, para que não ocorram erros de julgamento por parte dos profissionais como muitas vezes ocorre, em função de fatores como a discrepância sócio-cultural: Existe um distanciamento muito grande dos profissionais de saúde da realidade das pessoas. Mesmo trabalhando no campo da saúde coletiva, as pessoas não conseguem entender e aceitar a cultura e a condição social dos usuários. Então a gente vê muitas coisas assim que, um enfermeiro, porque vive num apartamento que tem água e tem luz, ele não consegue visualizar as condições de vida das pessoas. E não conseguindo visualizar ele não consegue criar uma empatia com aquela pessoa (Enfermeira B) E daí a gente perguntou “mas porque, tu disse para o médico que tu não tem condições de comprar?”; “não, eu não disse!”. Então assim, eles partem do pressuposto de que a pessoa tem água, de que a pessoa tem luz, que a mulher vítima de maus tratos ela, ela tem que se rebelar contra isso, e se ela não se rebela é porque ela é sem-vergonha (Enfermeira B) A lógica do trabalho no território é diferente da lógica do trabalho “entre os muros da instituição”, “dentro” dos serviços. Não são lógicas excludentes, na verdade as duas são necessárias. Conforme Cabral et al (1997, p.152) o trabalho no território, que pressupõe a apropriação da teia de relações que ele compreende, é algo bastante recente. Dessa forma o autor aponta a necessidade de sistematização das experiências que vem sendo realizadas, a fim de que a própria noção de território não caia em uma espontaneidade vazia. Quanto a esse 66 aspecto, alguns informantes apontaram dificuldades de apropriação dessa nova lógica de trabalho: As pessoas têm dificuldade, parece que quanto mais fechadinhas, mais seguras as pessoas se sentem para trabalhar. Conversar com esse paciente ali no portão, na recepção, fazer o acolhimento; sim, porque às vezes ele quer falar lá (Enfermeira A). A enfermagem é muito resistente. Parece que não vai saber fazer outra coisa que não seja... não sai da coisa da medicação (Enfermeira C). Souza, Vasconcellos e Amarante colocam que ...fazer saúde mental na rua, na comunidade ou no bairro implica em deixar de lado a regularidade mais ou menos segura dos serviços e ficar diante da imprevisibilidade radical da vida cotidiana. Não é tarefa fácil colocar-se diante do novo, da vida das pessoas, no meio dos acontecimentos; entretanto, é lá que é preciso estar, pois é lá que as coisas acontecem (SOUZA, VASCONCELLOS e AMARANTE, 2004, p.27) Levando-se em consideração as dificuldades que implicam esse novo modo de trabalhar, os autores acima citados sugerem a construção de “práticas intercessoras” entre os CAPS e a Estratégia de Saúde da Família (tendo em vista que os CAPS são a principal estratégia de reorganização da saúde mental e o PSF a principal estratégia adotada no campo da atenção básica). As práticas intercessoras implicam em um trabalho conjunto, de ações conjuntas entre os CAPS e os PSFs. Uma das possibilidades é que os CAPS funcionem como unidades de apoio para as equipes de Saúde da Família e Unidades Sanitárias, o que possibilitaria que estas prestassem uma melhor atenção aos usuários, no sentido da integralidade da atenção. A prática conjunta é apontada como um “trabalho em rede”, constituindo-se de modo diferente à lógica dos encaminhamentos. A idéia não é “mandar de volta para a atenção básica”, como apontam muitas falas presentes nesse trabalho. A idéia é poder “fazer junto” em alguns momentos. “Trabalhando em rede é possível potencializar a capacidade de produzir mudanças.” (SOUZA, VASCONCELLOS e AMARANTE, 2004, p.27) Um tipo de prática compartilhada em Santa Maria ocorre a partir de atividades conjuntas entre o CAPS II e o HUSM. O objetivo delas é também propiciar uma “ambientação” e adaptação em relação às diferentes instâncias de tratamento. Depois tem a gente na sexta de manhã, na sexta de tarde, os pacientes daqui vão fazer atividades no CAPS (...) E sai, e aí vai passear, e tem ônibus a disposição, a gente sempre chama eles para compartilhar isso conosco. Então dentro do possível nós estamos mantendo essa vinculação através de atividades conjuntas (Enfermeira C). 4.7.2 O território em nível macropolítico 67 Em nível macropolítico é possível entender a constituição de territórios a partir da delimitação de regiões sanitárias. Com relação à saúde mental, esse processo aproxima-se da proposta descrita no capitulo1, que descreve a forma como o modelo de Trieste foi pensado (implantação de um Centro de Saúde Mental para cada 40.000 habitantes, de maneira descentralizada, com cerca de 60% das atividades “extra-muros”). Em Santa Maria não é claro o modelo implantado, tendo em vista que apesar da proposta apresentada pela gestão de trabalhar sobre as regiões sanitárias, os CAPS existentes são centrais, assim como os novos CAPS também serão centrais (segundo dados fornecidos por gestores). Na formação da rede, a disposição dos serviços é importante em função de aspectos como o “acesso”, formação de vínculo, etc. Com relação a isso há algumas críticas, como apontam as falas seguintes. ...eu acho assim, quando eles começaram a pensar tinha um CAPS, vamos botar em área central para justamente facilitar para as pessoas de todas as regiões virem. A minha idéia é que no segundo se comece a fazer diferente. (...)Ela disse: não, não, já está definido o local e vai ser central. Então assim, eu acho que essa localização é importante também. Porque as pessoas, a realidade social das pessoas é que as pessoas não podem pagar transporte coletivo (Enfermeira B). ... é a lógica do PSF. Como é que o PSF tem essa lógica? Como é que a Secretaria está pensando nas equipes fazerem mais ou menos um mapeamento para cada equipe atender aquilo ali. E como é que no CAPS não? Para que a gente possa estar mais perto das pessoas (Enfermeira B). Aquele dia não estavam falando de São Sepé? Que população tem São Sepé? 40000 habitantes, 30000. Tem CAPS! Central! Daí nós temos uma região que tem 50000 habitantes, não dá para por um CAPS ali? Para que as pessoas caminhem meia hora e estejam lá? A gente tem que pensar na caminhada das pessoas (Enfermeira B). Alguns municípios vêm investindo nessa lógica de distritalização, entre eles PelotasRS, Campinas-SP29 e em Recife-PE. A gestão justifica que a partir de alguns levantamentos realizados constatou-se que seria difícil “privilegiar” uma determinada região com a implantação do CAPS, ou ainda que não haveria demanda suficiente para uma região sanitária. Desta forma a demanda acaba sendo naturalizada. Com relação a isso cabe um recorte de um relatório elaborado a partir de estágio junto à Secretaria de Saúde de Santa Maria: No que se refere à política de saúde mental, as discussões estão iniciais, existem os serviços que trabalham isoladamente. A discussão da constituição da rede de saúde mental está fragilizada, na medida que os serviços se apresentam como sobrecarregados de atividades. Ainda não está claro que não é somente o atendimento 29 Estes dois municípios receberam o Prêmio David Capistrano Filho pelo êxito nas experiências em Saúde Mental, com os projetos: “Políticas de Saúde Mental da Secretaria de Saúde e Bem Estar de Pelotas-RS” e o projeto “As reformas sanitária e psiquiátrica mudando a atenção em Saúde Mental – Secretaria Municipal de Saúde de Campinas.” (BRASIL, Relatório da III CNSM, 2002, p.183) 68 compulsório da demanda que modificará a saúde mental do município. Como mudar? (Relatório de estágio, 06/2005). 4.8. O desenho da rede assitencial: uma aproximação sobre os fluxos A partir das discussões da CSM e dos dados coletados junto aos informantes contatase que não há uma clareza quanto aos fluxos que se estabelecem dentro da rede assistencial do município. O que existe são orientações de como deveriam funcionar os fluxos, como aponta a fala seguinte: A visão que a gente tem na unidade básica... que para mim disseram assim: o CAPS é uma especialidade, os bem loucos vão para o Prado Veppo. Os bem loucos, aqueles que já tiveram internação... Os drogadinho, e álcool e drogas, vão para o CAPS álcool e drogas. O resto tudo tem que ir para o SISBES para ver o que que tem (...) Porque na minha cabeça ficou “Prado Veppo é um cara que já tem um diagnóstico, que é um psicótico, que é um cara assim, mais perigoso para ele e para a sociedade”. Daí manda para lá (...) E o resto tudo para o Ambulatório (Enfermeira B). Desde já constata-se que a complexidade torna-se maior quanto mais recursos são inseridos na rede, de maneira que esta leitura pode-se tornar cansativa pela quantidade de informações. Durante discussões30 apontou-se o PAMedianeira e o Ambulatório de Saúde Mental como as portas de entrada. Ao encontro dessa constatação está a fala seguinte: As discussões apontaram para o estigma e preconceito em relação ao HUSM, pois culturalmente está estabelecido que quem vai para lá é taxado de “louco de carteirinha”. Nesse sentido as pessoas preferem procurar o PAMedianeira. Em outras situações a crise não é identificada como “problema de saúde mental”, mas como crises decorrentes de problemas cardíacos, por exemplo, ou pelos chamados poliqueixosos. O não reconhecimento destes como “problemas de saúde mental” tendem a soluções paliativas e a provável reincidência do usuário no serviço31. Também chegam “casos graves”(crise) no Ambulatório, os quais são encaminhados para o HUSM, voltando para o ambulatório após a internação. Durante essa discussão o CAPS sequer foi citado. 30 Referentes a 6ª reunião da CSM (10/08/2005). “O resultado disso é que os pronto-socorros vivem lotados, com um número crescente de atendimento que podem dar a impressão de que a população está sendo atendida em suas necessidades, mas, de fato, não está. O tratamento feito, na maioria das vezes, é apenas paliativo, do tipo queixa-conduta ou, para cada sintoma, um medicamento, de modo que o problema de fundo de quem está buscando o atendimento não é enfrentado” (CECÍLIO, 2004, p. 101) 31 69 Diante de situações de crise foi relatado que muitas vezes os profissionais (desde a atenção básica até os serviços especializados como o CAPS), recorrem à brigada militar e/ou bombeiros (o que justifica a inclusão destes na rede), ou porque não sabem o que fazer ou porque não têm respaldo das instâncias que deveriam ser responsáveis. Durante as entrevistas com os informantes outros elementos surgiram. Outro dispositivo acessado informalmente por usuários após internação para desintoxicação no HUSM são as chamadas “fazendas para tratamento de dependência química” (porém não é claro em que situações os usuários decidem acessar este recurso). O Serviço de Psicologia da USKennedy (constituído por estagiários da UFSM) estabelece-se como referência para esta unidade na área da Psicologia, sendo que em circunstâncias específicas alguns casos são encaminhados para os serviços especializados do município. Da mesma maneira ocorre com o Serviço de Psicologia da USF Roberto Binato, campo de estágio para os acadêmicos de Psicologia da UNIFRA, estabelecendo-se como referência para a unidade e encaminhando os casos mais graves para os serviços especializados vinculados à Secretaria de Saúde do Município. Existem ainda as chamadas “Clínicas-Escola de Psicologia” das Universidades (SACI-UFSM, NUP-UNIFRA), que atendem demanda espontânea e encaminhamentos. Estes serviços também encaminham os casos considerados mais graves para os serviços especializados do município (principalmente CAPS e Ambulatório de Saúde Mental). Estes encaminhamentos também são feitos à medida que o limite da fila de espera estipulado pelos serviços é atingido, situação em que os serviços “fecham à lista” e passam a informar aos usuários que os procuram outros locais de atendimento. Diante da impossibilidade de encaminhamentos (principalmente os de urgência, que não suportam espera), alguns serviços apresentam uma certa flexibilidade para “passar o caso na frente”, mediante critérios de urgência. Outra alternativa nesses casos é a procura por serviços privados ...tu encaminha para onde? Então tem sido difícil, até as pessoas gastam dinheiro, tem que pagar consulta, usam medicação, daí depende muito de ter ou não condições para fazer o tratamento. (...)E daí tu fica, “procura alguém, conversa com o fulano, vamos pensar, vamos atrás, liga para o fulano, que atende particular, quem sabe negocia, com o dinheiro”, e assim vai. Vai intermediando esse tipo de... (Enfermeira C) A partir da constatação de que “teoricamente” o sistema deveria funcionar de um modo, mas na realidade funciona de outro, constatou-se a necessidade de tornar oficial a idéia de que qualquer serviço pode ser porta de entrada do sistema. A partir disso apontou-se para a importância da implantação da tecnologia do “acolhimento” nos serviços. 70 Estas conclusões estão de acordo com as idéias que vêm sendo desenvolvidads por Cecílio (2004). Cecílio (2004, p.95) problematiza a proposta do modelo piramidal, dizendo que a efetivação desse modelo “tem sido muito mais um desejo dos técnicos e gerentes do sistema do que uma realidade com a qual a população usuária possa contar”. O ponto fundamental levantado pelo autor é o de que a população não acessa os serviços tendo em vista a forma tecnocrática como o sistema foi pensado por ser “burra” ou “ignorante”, mas sim, “que as pessoas acessam o sistema por onde é mais fácil ou possível”. Partindo desse pressuposto o autor propõe um modelo assistencial pensado como um círculo, relativizando a concepção de hierarquização dos serviços (com seus fluxos verticais) induzida pelo modelo piramidal. Segundo Cecílio (2004, p.101), “o círculo se associa com a idéia de movimento, de múltiplas alternativas de entrada e saída. Ele não hierarquiza, cria possibilidades”. A partir dessa noção o autor aponta a necessidade de estabelecer uma primeira estratégia, qual seja, “qualificar todas essas portas de entrada, no sentido de serem espaços privilegiados de acolhimento e reconhecimento dos grupos mais vulneráveis da população...” (CECÍLIO, 2004, p.101). O autor aponta ainda que a responsabilidade pela integralidade do atendimento é do sistema (e não de uma batalha dos usuários), sendo necessário criar tecnologias capazes de dar conta dessa complexidade. Um fluxo não necessariamente denota a existência de uma rede de atenção. Se um usuário procura um serviço de atendimento psicológico e recebe a informação de que a lista do serviço está fechada, recebendo como opção um cardápio de outros serviços que também prestam atendimento psicológico, corre-se o risco de fazê-lo esbarrar com o mesmo problema em outro serviço. Nesse sentido, não basta dar a informação, é necessário tornar-se responsável por saber que outro serviço encontra-se mais disponível, levando em consideração os problemas que aquela pessoa está apresentando (o que pode ocorrer com a existência do acolhimento nos serviços). Dessa forma evita-se a lógica da “empurroterapia”32, como aponta a fala abaixo. É também saber quais são os encaminhamentos que tu vai fazer, porque tem situações que tu tem que resolver. Não adianta tu fazer com que o paciente passe rodando a cidade toda para que alguém resolva o problema dele. E às vezes o problema dele não é um problema tão difícil de ser resolvido, basta ter boa vontade (Enfermeira A) 32 Termo usado por Paulo Amarante durante Conferência no II Encontro Catarinense de Saúde Mental (Florianópolis-SC, maio de 2005). 71 4.9. As tecnologias leves na formação da rede: o Acolhimento e o Acompanhamento Terapêutico Sandra Fagundes, na sua fala sobre redes de atenção em saúde mental durante o evento comemorativo ao 18 de maio em Santa Maria, abordou a questão das tecnologias leves no cuidado em relação ao portador de sofrimento psíquico, entre elas, o acolhimento e o acompanhamento terapêutico. Segundo Fagundes a idéia do acolhimento surgiu no campo da saúde mental, visando reverter à lógica manicomial da exclusão e isolamento O que a gente procura dizer com acolhimento? Se o hospital psiquiátrico gera exclusão, ele isola a pessoa, e em geral a sociedade diz “isso não é comigo”, “eu não sei lidar com isso”. A família sofre e não sabe lidar. Os vizinhos não sabem, se assustam, tem medo, não conseguem. (...)Chega na rede de saúde, unidade básica, nos demais serviços de saúde, “isso também não é comigo, isto é com o hospital psiquiátrico”. O que o serviço substitutivo se propõe a dizer é exatamente o contrário: “Não, deixa comigo que esse assunto é comigo. Esse assunto é nosso. É da nossa responsabilidade”. A pessoa que está sofrendo, a pessoa que está em maus-tratos, pessoas que estão gerando temor... “esse assunto é conosco mesmo, deixa conosco que é conosco mesmo” (FAGUNDES, Evento comemorativo ao 18 de maio em Santa Maria-RS, 18/05/2005). Nesse sentido, o acolhimento pressupõe a responsabilização, ou o que os italianos chamam de “tomada de responsabilidade” (ROTELLI, 1994). Para além de dispor um serviço a acolher o sofrimento psíquico, Fagundes fala em criar uma rede de atenção (que envolve serviços, familiares, vizinhos) que se faça disposta a assumir os sujeitos, não sozinhos, mas compartilhando o cuidado, tomando decisões em conjunto. Mas para isso nós precisamos fazer determinados contratos, determinadas alianças: nós fizemos juntos, não é fazemos sozinhos (...) é: “nós nos dispomos a encarar essa história junto contigo de outro jeito”. É assim que a gente fala com os familiares, é assim que a gente fala com os vizinhos, é assim que a gente fala com os outros serviços. E a construção para isso foi a do acolhimento. Não é chegar no serviço de saúde mental e dizer “não, ela é muito grave, não é para nós”. Ou seja, ela está em crise e não é conosco. Exatamente o contrário. É criar uma rede de serviços que diga: “ela está no seu momento mais crítico e nós vamos fazer isso. Essa é uma grande diferença em relação ao acolhimento (FAGUNDES, Evento comemorativo ao 18 de maio em Santa Maria-RS, 18/05/2005). Durante as discussões na CSM e entrevistas com informantes as noções de acolhimento foram bastante contraditórias e inclusive distante da noção apontada por Sandra Fagundes. ...eu quando entrei aqui há dois anos atrás já tinha essa ficha de triagem. Então a gente seguiu esse esquema, foi evoluído, mudamos algumas coisas que a gente achava que 72 já não era de acordo com a população que a gente estava procurando. Então assim, a gente tem uma ficha, um esquema que todos seguem mais ou menos aquilo, aquele esquema (...) Isso tudo na ficha de triagem, que hoje nós estamos chamando de acolhimento (Enfermeira D). As distorções do termo “acolhimento” foi tema de discussão de uma das reuniões da CSM, como aponta este trecho da ata: ...foi abordado o mau uso da palavra “acolhimento”, que hoje em dia fazem uma triagem ou qualquer outra coisa e já chamam de “acolhimento” (Ata da 10ª reunião da CSM, 21/09/2005) A atual política da gestão quanto à implantação do acolhimento também gerou críticas, principalmente sob o argumento de que o acolhimento isoladamente não garante efetividade, mostrando-se necessário a articulação de várias tecnologias para que haja resolutividade: Por parte de alguns integrantes houve uma crítica a atual política da Secretaria Municipal de Saúde, principalmente pela ênfase que vem sendo colocada sobre a questão do acolhimento. (...) A ênfase sobre essa tecnologia vem causando revolta e repulsa em muitos trabalhadores (...), pois na verdade um acolhimento é muito pouco, não garante nada. (...) Falou-se sobre a falta de outras coisas (medicamentos, curativos, etc) que também são importantes (Ata da 10ª reunião da CSM, 21/09/2005) Ao mesmo tempo são expostas dificuldades quanto à articulação entre teoria e prática, sobre o “como fazer”: Questão teórica é linda em saúde mental. De acolhimento, que a gente tem que fazer isso, tem que fazer aquilo, que tem que... mas a prática, ela tem que existir. Essas pessoas que falam também têm que fazer para mostrar como é que o discurso teórico delas tem que acontecer na prática (Enfermeira A) Dessa forma esta tecnologia assume um caráter ambíguo: apesar de ser vista como necessária, não é claro o modo como operá-la. Outra prática apontada por Fagundes é a do Acompanhamento Terapêutico (AT). Na sua fala, acompanhamento terapêutico significa acompanhar a pessoa aonde ela quer ir, fazer com ela um trajeto, pela rua, pela cidade, conquistar espaço: ...é ir conquistando essa rua, acompanhando do jeito dela, e não do jeito que nós costumamos necessariamente andar pelas ruas. (...) No limite a gente diz que é “emprestar o corpo”, para estar do lado, e essa pessoa ir conquistando a sua liberdade (FAGUNDES, Evento comemorativo ao 18 de maio em Santa Maria-RS, 18/05/2005). Essa prática também se constitui na contra-lógica do manicômio. Ou seja, se este exclui, isola, o acompanhamento visa dar acesso, passagem. Algumas atividades propostas pelo HUSM em alguns momentos se aproximam da idéia do AT. E sempre que vêm as pessoas eu sugiro que coloquem atividade lá, fazemos qualquer relaxamento, vamos lá! Jogar bola, vamos lá na educação física jogar bola. Sabe. O 73 trajeto...sabe aquela coisa de ter contato (...) É diferente do isolamento, da falta de contato que se colocava há tempos atrás (Enfermeira C) ... para ti ter uma idéia, eu estava no plantão hoje de tarde, daí atende um monte de coisa, esta na psiquiatria internado é xarope mesmo, daí fica ansioso. (...), dali a pouco ele diz “vamos sair enfermeira!”. “Vamos”. Daí conseguiu com um lá um dinheiro e foi lá para a lancheria, comprou um garrafão de coca-cola, comeu bolacha (...), e conversava, bem sentado.(...). Quando que se ia fazer essas coisas? Nunca, nunca! Então assim são coisas pequenas, claro, do cotidiano teu, meu, mas não das pessoas que estavam em surto, internadas dentro de uma instituição. Não tinha isso (Enfermeira C) Aliados ao acompanhamento terapêutico estão as chamadas “atividades da vida diária”, que envolve o trabalho com o entorno: o morar, o cozinhar, lavar, passar, cuidar, comprar, freqüentar lugares, etc. A partir dessas ações o paradigma da desinstitucionalização é colocado em prática, em ações cotidianas: Mas tem uma coisa bem interessante. Um dia eles foram na biblioteca. “como é que é a biblioteca, como é que se usa a biblioteca?”. Daí chamamos, combinamos, daí mostra, assim e assado. Daí foi alguém que chegou para mim e disse assim “vem cá, esses aí estão internados?”; “estão”; “mas deve ter gente mais grave, coisa assim?”; “Não. Eles estão aqui, são os mais graves que internam”. A idéia das pessoas de eles não poderem circular. E daí quando eu falo da cultura “que eu não consigo chegar perto, que eu não consigo conviver”. Isso tem que mudar! E isso muda através de ações (Enfermeira C) A rede de atenção em saúde mental se constitui na medida em que vai para além dos muros dos serviços, pois só a partir de ações concretas no meio social a rede irá ao encontro do paradigma da desinstitucionalização. 74 DISCUSSÃO FINAL E CONCLUSÕES As visões apresentadas nesse trabalho sobre “rede de atenção em saúde mental” apontam várias perspectivas. Ora enfatiza-se a perspectiva de uma rede hierarquizada de serviços onde os fluxos ocorreriam dentro da perspectiva burocrática do sistema de referência e contra-referência. Com menor freqüência, mas também presente, aponta-se para a perspectiva de rede como proposta pela Reforma Psiquiátrica, na qual os serviços constituemse como “mediadores” da rede, tanto com relação aos outros serviços quanto ao acesso ao território e a rede social. Essas noções foram sendo problematizadas a medida que foram sendo apresentadas no trabalho. Para agenciar a discussão final e dar um contorno para esse trabalho, proponho uma leitura do que foi exposto a partir da perspectiva das “redes sócio-técnicas” proposta por Márcia Oliveira Moraes (1997). Segundo esta autora, podemos considerar que as redes são constituídas por vários elementos e forças. Um desses elementos é denominado “dispositivo técnico”. Nesta pesquisa eles são representados pelos serviços como o HUSM, os CAPS, o Ambulatório de Saúde Mental. No passado, ele era representado pelo manicômio. É a parte mais visível da rede, muitas vezes concreta. Porém, segundo a autora, “um dispositivo técnico só existe na medida em que é sustentado por uma rede de atores”(MORAES, 1997, p.62). Ou seja, se existem esses recursos anteriormente citados, existe uma série de elementos que os sustentam: o movimento da Reforma Psiquiátrica; a legislação em nível federal e estadual que dispõe sobre a atenção em saúde mental - que por sua vez são pautadas nas Conferências de Saúde Mental; a legislação e os princípios ordenadores do SUS; os órgãos responsáveis (Ministério da Saúde, Secretaria da Saúde, Coordenadoria de Saúde); as prática de intervenção (práticas clínicas, práticas de reabilitação, ressocialização); e assim por diante. Nesse sentido aos dispositivos técnicos cabe responder (e ao mesmo tempo recriar) às funções que lhe são delegadas pela rede. No passado (como foi abordado no capítulo 1), essa rede delegava ao manicômio (dispositivo técnico centralizador) a função de curar, usando-se para isso de práticas que constituiam-se de maneira excludente, segregadora e violenta. Dessa forma o manicômio distribuía uma série de práticas articuladas, passando pelos discursos de periculosidade social, de incapacidade, de desrazão, produzindo e reproduzindo uma série de elementos sociais. É possível dizer que estes dispositivos surgiram como uma resposta social à loucura, o que os tornava legítimos. 75 No século XX passa a ocorrer uma reconfiguração dessa rede, que atinge seu ápice a partir dos movimentos de Reforma Psiquiátrica. Novas bifurcações surgem nesta rede, dando origem a novos dispositivos técnicos, que por sua vez reforçam a rede. É difícil delimitar o que surge primeiro, o que nos interessa é que o processo se retro-alimenta: à medida que surgem a Reforma Psiquiátrica, as Conferências de Saúde/Saúde Mental, a legislação que diz respeito ao tema, etc, surgem os serviços (primeiro o Ambulatório, depois os CAPS, residências terapêuticas), as novas práticas (o acolhimento, a reabilitação, o AT), que ao mesmo tempo reforçam e/ou originam novas políticas públicas, num processo constante de ramificação (que ora produz, ora reproduz), num movimento potencialmente infinito. Para entender como se articulam esses elementos da rede de atores, Latour (1994, p.34 apud MORAES, 1997, p.63) propõe o conceito de mediação, sendo que a noção deste conceito implica no fato de que “a responsabilidade de uma ação deve ser compartilhada entre vários actantes”. Desta maneira, uma ação depende da mediação de todos os autores mobilizados. Não há “culpados”, mas sim “co-responsáveis”. A partir dessa leitura constata-se a presença permanente da “rede”, que conforme o recorte transparece uma ou outra configuração. A seguir serão apresentadas em tópicos as principais conclusões desse trabalho, apontando para as bifurcações necessárias a fim de que a “rede de atenção em saúde mental” tome os traços desejados, tendo em vista a Reforma Psiquiátrica e o Sistema Único de Saúde. - O município de Santa Maria vêm adequando-se às políticas ministeriais no que diz respeito à implantação de serviços alternativos ao hospital psiquiátrico. Porém, torna-se necessário maior articulação entre a macropolítica (as portarias ministeriais sobre os serviços substitutivos, a legislação do SUS e da reforma psiquiátrica, etc) e a micropolítica (que passa pela forma como as políticas são apropriadas pela gestão e trabalhadores, refletindo na disposição (não)estratégica dos serviços, nos modos de trabalhar que se efetivam, na relação cotidiana que se estabelece entre os serviços e também com as comunidades no território, etc). - As ações da gestão são fragmentadas: ora estão centradas em um serviço, ora em outro. Disso decorre, por exemplo, a visão do ambulatório enquanto “nó” (no sentido de problema) de rede, quando na verdade ele é depositário dos problemas de um sistema “esquizofrênico”, onde quem deveria ordenar a rede (os CAPS, dentro da proposta do Ministério da Saúde) acaba sendo deslocado para o lugar de “serviço ‘extremamente’ especializado”. Lembrando o conceito de mediação anteriormente exposto, na rede a responsabilidade pela ação é compartilhada por vários atores. Dessa maneira torna-se 76 necessário um planejamento amplo, que tenha em vista um sistema e que considere a complexidade do mesmo. - Torna-se contraditório a proposta da gestão municipal de implantar novos serviços que funcionem em uma “nova lógica”, sendo que a escolha e planejamento dos mesmos é guiado pela “demanda”. A “nova lógica” deve começar pela desnaturalização da “demanda” (Quem demanda é a população? Os trabalhadores? Qual a “demanda” atendida por um serviço que se localiza no centro da cidade e outro que se localiza em bairros e regiões periféricas?). - Em relação à grande repetição das falas que enfatizam a necessidade de “devolver” os pacientes para a atenção básica, de “mandar de volta”; coloca-se a necessidade de pensar alternativas não segmentadas. Portanto, que levem em consideração a lógica de responsabilização, formação de vínculo e estabelecimento de referências (profissionais, equipes, serviços). Nesse sentido, apontam-se algumas estratégias possíveis e interligadas. Uma é a “capacitação em ação” (ao invés da mera “capacitação para a ação”), ou seja, que além das informações e discussões, os profissionais da saúde mental possam “estar junto” com os profissionais da atenção básica em alguns momentos, potencializando suas ações e atendendo-os à medida que as dúvidas e dificuldades aparecem. Não há fórmulas prontas, o que existem são ações que necessitam ser pensadas em conjunto, levando em consideração a complexidade e as especificidades de “cada” caso. Para a efetivação dessas “práticas intercessoras” faz-se necessário adotar estratégias, havendo muitas possíveis, passando pela implantação de equipes volantes, implantação de equipes matriciais ou reorganização do processo de trabalho dos serviços de saúde mental com o intuito de que eles assumam a responsabilidade por esse “apoio”. - Na medida em que um número maior de serviços passam a fazer parte da rede (como tem sido o caso de Santa Maria) torna-se necessário instituir modos formais de comunicação entre os serviços, que flexibilizem a lógica fragmentada e tecnicista da referência e contrareferência. Como alternativa à fragmentação aponta-se o delineamento de “referências” (profissionais, equipes e serviços) que respondam pelo cuidado ao usuário. A não fragmentação do cuidado é apontada como ainda mais necessária quando se está em jogo a chamada “clientela de cuidados contínuos”, alvo das atuais políticas ministeriais no campo da saúde mental. - Diante do “vazio” muitas vezes colocado pela Reforma Psiquiátrica, que se reflete nos questionamentos dos trabalhadores de “como fazer”, “como efetivar as ações”, “como colocar a teoria na prática” diante do novo modelo, coloca-se também a necessidade de formação continuada desses trabalhadores (sendo as supervisões clínica e institucional 77 dispositivos apropriados), para que frente às dificuldades eles tenham outra alternativa à forma tradicional e manicomial de resposta. - A partir da constatação de que os serviços vêm mantendo suas ações concentradas predominantemente “em seu interior”, torna-se necessário a implementação de projetos como vem sendo realizados no HUSM, visando acessar e tornar co-responsáveis a rede social. Possibilitar novas capilaridades para a saúde mental. Para finalizar, cabe ressaltar que para atingir seus objetivos esse trabalho efetuou um certo “recorte” da rede, tornando explícita uma determinada configuração. Porém, a medida que o trabalho foi sendo desenrolado, cada vez mais eu fui percebendo a afirmação de que a rede é potencialmente infinita. Desta forma, aponto para a possibilidade de continuação da exploração da rede de atenção em saúde mental em outros trabalhos, a fim de atingir outras bifurcações e virtualidades. 78 PÓS ESCRITO PROBLEMATIZANDO A RELAÇÃO DOS PSICÓLOGOS COM A REDE DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL. Chego ao final deste trabalho com algumas conclusões, mas principalmente com uma infinidade de novas questões, que apontam a necessidade de desenvolvimento de novas pesquisas. A partir disso e do diálogo realizado com a banca aponto algumas dessas questões. - O foco da pesquisa não foi entender a rede a partir da perspectiva dos profissionais psicólogos, mas de qualquer profissional que atuasse na chamada rede de atenção em saúde mental (inclusive o psicólogo). Porém, como resultado da pesquisa, observou-se a pouca participação desta categoria profissional em cargos de decisão, como coordenação de serviços ou dentro da própria gestão municipal, estando estes cargos predominantemente sob responsabilidade de enfermeiros. Na busca pelos informantes que tivessem participado do processo de implantação dos serviços de saúde mental também não foram encontradas referências psi. Isso nos leva a problematizar a atuação dos psicólogos e a formação destes para atuarem na gestão, coordenação de serviços e elaboração de projetos de implantação de serviços de saúde, apontando para um importante campo de pesquisa. - Problematiza-se, ainda, o lugar do psicólogo dentro dessa rede de atenção em saúde mental. Apesar de haver um imaginário que identifica o psicólogo como profissional relacionado à saúde mental, a participação obrigatória deste não esta prevista em nenhum serviço do SUS. Apesar de haver um reconhecimento da profissão - e de ser aparentemente desconhecido um CAPS que funcione sem um psicólogo - na portaria do MS que dispõe sobre os CAPS o psicólogo não consta como membro obrigatório da equipe, mas sim como um dos possíveis componentes. Já na política de atenção básica, hoje representada pelo PSF, não há previsão orçamentária para a contratação de profissionais além da equipe mínima (composta por médico, enfermeiro, dentista, auxiliar de dentista e Agentes de Saúde). Em Santa Maria, por exemplo, não há profissionais psi na atenção básica – com exceção de estagiários de psicologia, que acabam tendo que ser supervisionados por professores universitários em função da inexistências de possíveis supervisores locais. Isso nos leva a problematizar: as potencialidades e os limites da atuação psi nos diferentes níveis de assistência do SUS; e até que ponto não há um risco de desvalorizar-se a especificidade da saúde mental quando utilizase uma estratégia de descentralização da atenção em saúde mental para a atenção básica, por exemplo, sem a presença de profissionais psi. Não se trata de pensar que a categoria psi detém 79 um saber único e privilegiado sobre a saúde mental ou de entrar meramente em uma luta coorporativista; mas de não tornar a saúde mental uma questão ‘banal’, passível de ser resolvida por qualquer um, ao menor custo possível. - Por último, cabe nos questionarmos, enquanto psicólogos, qual a nossa contribuição para pensar dispositivos de articulação da atenção em saúde mental. Como foi constatado, a presença de serviços é importante, mas a mera presença dos serviços não garante um trabalho em rede, articulado, podendo resultar na fragmentação da atenção ao usuário. 80 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, D. S.; GULJOR, A. P. O cuidado em saúde mental. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de. (org). Cuidado: as fronteiras da Integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/ABRASCO, 2004 ALVES, D. S. Integralidade nas Políticas de Saúde Mental. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. de. (org). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado a saúde. 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Claudia Maria Perrone, quanto aos seguintes aspectos: a) justificativa, objetivos e procedimentos que serão utilizados na pesquisa; b) garantia de esclarecimentos antes e durante o curso da pesquisa, sobre a metodologia; c) liberdade de se recusar a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma; d) garantia de sigilo quanto aos dados confidenciais envolvidos na pesquisa, assegurando-lhe absoluta privacidade; DECLARO, outrossim, que após convenientemente esclarecido pelo pesquisador e ter entendido o que nos foi explicado, consinto voluntariamente em participar desta pesquisa. Sei que posso retirar esse consentimento em qualquer momento da referida pesquisa ao entrar em contato com pesquisador pelo telefone (55)91216429 ou 32239215 Assinatura:_______________________________________ Santa Maria, _____ de _______________ de 2005 87 ANEXO B – PARTICIPANTES E FREQUÊNCIA DA PARTICIPAÇÃO NAS REUNIÕES DA COMISSÃO DE SAÚDE MENTAL – CSM (DE 02/06 ATÉ 28/09) Datas das reuniões Serviços/ Instituições Secretaria Municipal de Saúde IV Coordenadoria Regional de Saúde CAPS II Prado Veppo CAPSad Ambulatório de Saúde Mental PRD – Programa de Redução de Danos Unidade Psiquiátrica HUSM PACS Kennedy UBS Kennedy PSF Santo Antão PSF Bela União UBS Joy Betts Gerência de região sanitária Psicologia UFSM Psicologia UNIFRA Pesquisador (psicologia – UFSM) ACOLHER/CAVV Sec. Mun. ASC Residente Escola Saúde Pública 02/6 08/6 15/6 22/6 03/8 10/8 24/8 31/8 13/9 21/9 28/9 X XY XY X Z Z Z Z Z Z Z X X X Y X X Y X Y X Y X X X X XY XY X XY X X X X X X X X X X X Y Y Z X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X Y Y X X X X X X X X X X X X X X X X X X – representante 1 Y – representante 2 Z – representante 3 88 ANEXO C - CALENDÁRIO DA CSM PARA A CAPACITAÇÃO DA ATENÇÃO BÁSICA (22/06/2005). Datas previstas / horários Atividade 27 de junho à 1º julho Secretaria de Saúde irá discutir com Ambulatório de Saúde Mental possíveis mudanças no serviço. 06 julho – 14:00 Visita à Unidade Básica da Kennedy – reunião da Comissão de SM 13 de julho – manhã Visita à Joy Betts 13 de julho – tarde – a partir das 14:00 Visita às Unidades de S. Antão e Bela União 20 de julho Folga da Comissão 27 de julho – 14:00 Reunião da Comissão de SM no Programa de Redução de Danos 89 ANEXO D - CALENDÁRIO DA CSM PARA A CAPACITAÇÃO DA ATENÇÃO BÁSICA (28/09/2005) 07/10/2005 – manhã (10hs) 1º encontro de capacitação para os profissionais da US Kennedy, US Joy Betts, PSF Santo Antão e PSF Bela União. Local: US Kennedy 07/10/2005 – tarde (15hs) 1º encontro de capacitação para os profissionais da US Kennedy, US Joy Betts, PSF Santo Antão e PSF Bela União. Local: US Kennedy OBS.: o grupo do turno da manhã não é o mesmo do turno da tarde. Estão previstos 5 encontros com cada grupo, provavelmente de 15 em 15 dias. PROGRAMA: - Apresentação - Dinâmica sobre “concepções de saúde mental”. - Discussão, levantamento de questões. 90