EsTUdO dE CAsO Artrogripose múltipla congênita coexistente com puberdade precoce idiopática isossexual Fernanda silveira Tavares, Fernando José silva de Araújo, Vitorino Modesto dos santos, renata Faria silva, isadora Braga seganfredo e Nayanne lays dos santos Pereira rEsUMO A artrogripose múltipla congênita clássica é caracterizada por contraturas articulares incapacitantes diagnosticadas ao nascimento. Descreve-se um caso de amioplasia, a forma mais frequente dessa doença, coexistente com puberdade isossexual precoce que se iniciou em uma menina com sete anos e dez meses de idade. A associação de amioplasia com puberdade precoce não foi previamente relatada. Embora essa associação possa constituir um fenômeno casual, descreve-se o estudo de caso por sua raridade. Palavras-chave. Amioplasia; artrogripose; puberdade precoce isossexual ABsTrACT Arthrogryposis multiplex congenita coexistent with isosexual idiopathic precocious puberty Classic arthrogryposis multiplex congenital is characterized by disabilitating joint contractures diagnosed at birth. A case of amyoplasia, the most frequent form of this disease, is described co-occurring with isosexual precocious puberty in a seven-year-old female patient. Association between amyoplasia and precocious puberty has not been previously reported in the literature. Although this association may be a casual phenomenon, this case is being reported due to its rarity. Key words. Amyoplasia; arthrogryposis; isosexual precocious puberty Fernanda silveira Tavares – médica, endocrinologista, professora da Universidade Católica de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil Fernando José silva de Araújo – médico, ginecologista e obstetra, professor da Universidade Católica de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil Vitorino Modesto dos santos – médico, doutor, departamento de Medicina Interna do Hospital das Forças Armadas e professor da Universidade Católica de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil renata Faria silva – graduanda em Medicina, Universidade Católica de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil isadora Braga seganfredo – graduanda em Medicina, Universidade Católica de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil Nayanne lays dos santos Pereira – graduanda em Medicina, Universidade Católica de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil Correspondência. Vitorino Modesto dos Santos. Hospital das Forças Armadas, Estrada do Contorno do Bosque s/n, Cruzeiro Novo, CEP 70.658-900. Telefone. 61 39662103. Fax: 61 32331599. internet. [email protected] Recebido em 4-10-2012. Aceito em 20-12-2012. Os autores declaram não haver potencial conflito de interesses. iNTrOdUÇÃO A artrogripose múltipla congênita compreende um conjunto de alterações caracterizadas por rigidez e contratura de articulações, além de fraqueza e fibrose muscular. Ocorre de forma isolada ou constitui diversas síndromes.1-6 Ela é doença Brasília Med 2012;49(4):289-293 • 289 ESTUDO DE CASO heterogênea rara, com prevalência que varia de 1/3.000 a 1/5.100 nascimentos.2,5,7 A amioplasia é a forma clínica mais frequente.3,4,6,7 Ela caracteriza-se por músculos substituídos por fibrose e gordura, rotação interna dos braços, flexão de punhos e mãos, pés equinovarus, ausência de alterações viscerais ou das funções cognitivas.6 As primeiras descrições sobre artrogripose, artrogripose múltipla congênita e amioplasia se devem, respectivamente, a Otto (1841), Stern (1923) e Sheldon (1932).3,5,6 O termo artrogripose múltipla congênita tem sido utilizado para englobar diversas contraturas congênitas múltiplas.6 Não há consenso sobre as possíveis causas, os fatores de risco e os critérios diagnósticos dessa entidade.6 Doenças maternas, fatores miopáticos e neuropáticos, condições restritivas intrauterinas e alterações cromossômicas são consideradas causas da doença.2,4,6 O volume anormal de líquido amniótico durante a gestação é significante fator de risco.6 A artrogripose múltipla congênita provoca dificuldades físicas, psíquicas e sociais, usualmente sem deficiência mental.2,7 rElATO dO CAsO Menina com idade cronológica de onze anos e idade estatural de sete anos e nove meses, com projeção de altura final de 143 cm pelo método de BayleyPinneau. Filha de pais consanguíneos – primos de terceiro grau. Portadora de amioplasia diagnosticada e em acompanhamento desde o primeiro ano de vida. Nasceu de parto normal, a termo, com baixo peso (2.330 g), teve hipocalcemia, hipomagnesemia, icterícia, céfalo-hematoma e enterocolite necrosante estádio IIA. O quadro evoluiu com ptose palpebral bilateral, escoliose, deformidades bilaterais nas mãos, pé direito equino varo e pé esquerdo equino valgo (figura 1). Submeteu-se, sem sucesso, a cirurgias ortopédicas nos joelhos e nos tornozelos. Realizada cirurgia oftálmica para corrigir ptose palpebral bilateral aos dois anos de idade, ocorreu recidiva no olho direito, que foi parcialmente corrigida com nova intervenção aos sete anos de idade. Houve atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, mas permaneceu com a cognição normal. Clinicamente, precocidade isossexual feminina é aparecimento de características sexuais secundárias antes dos oito anos etários. 8-10 Aproximadamente 95% dos casos depende do hormônio liberador de gonadotrofina (GnRH), e o estímulo hipotálamo-hipófise-ovariano é idiopático.8,10 As pacientes apresentam telarca, pubarca e maturação uterina e ovariana prematuras, podendo ocorrer baixa estatura.8-10 O objetivo deste estudo é relatar um caso de menina com artrogripose múltipla congênita e puberdade precoce. Os autores desconhecem relatos prévios na literatura. 290 • Brasília Med 2012;49(4):289-293 Figura 1. Deformidades de mãos e pés, contraturas e rigidez articular, acentuada escoliose, características da artrogripose, na criança aos onze anos de idade Fernanda Silveira Tavares e cols. • Artrogripose e puberdade precoce idiopática Apresentou rigidez articular nas quatro extremidades e nos quadris, além de bexiga neuropática, que tem respondido bem ao uso de oxibutinina na dose de 2,5 mL pela manhã e 4,5 mL à noite. Utiliza andador, colete cervicotorácico e órtese para tornozelo e pé à direita. Desde o nascimento, sua curva de crescimento permanece abaixo do valor esperado para meninas da mesma faixa etária, com desvio-padrão de -2,9 a -3,3. Aos sete anos e dez meses de idade, iniciou desenvolvimento puberal com telarca bilateral concomitante a pubarca com rápida evolução. Progrediu do estádio puberal I para o IV em um ano, ocasião em que também ocorreu a menarca. Procurou atendimento endocrinológico para avaliação, e os exames realizados aos nove anos de idade mostraram estradiol, FSH e LH em concentrações compatíveis com a puberdade: estradiol 40 pg/mL (valores de referência [VR]: fase folicular 27 a 122 pg/mL); FSH 5,12 mUI/mL (VR: fase folicular 3,85 a 8,78 mUI/mL, fase ovulatória 4,54 a 22,51 mUI/mL, fase luteínica 1,79 a 5,12 mUI/mL); e LH 1,71 mUI/ mL (VR: fase luteínica 1,20 a 58,64 m UI/mL). A ressonância magnética do encéfalo não revelou alterações hipofisárias, e a idade óssea foi compatível com a idade cronológica (figura 2). O quadro clínico e os dados complementares não permitiram estabelecer em definitivo a causa da artrogripose. A paciente está em acompanhamento ambulatorial, e a projeção de sua altura final não se alterou. disCUssÃO Trata-se de um caso de artrogripose múltipla congênita clássica concomitante com puberdade isossexual precoce idiopática verdadeira, sem aparente correlação causal entre essas entidades. Essa endocrinopatia, além de poder ser idiopática, ocorre por alterações congênitas ou adquiridas do sistema nervoso central ou por componente de síndrome e associada com outras doenças.9,10 Assim, as diversas possibilidades causais envolvem estenose de aqueduto, displasia septo-óptica, inflamações, traumas ou tumores do sistema nervoso central, hidrocefalia, irradiação do crânio, neurofibromatose, esclerose tuberosa, doença de Tay-Sachs, síndrome da sela vazia, síndrome de Sturge-Weber, síndrome da maquiagem de Kabuki, síndrome de Silver-Russell, doença de Addison, hipotiroidismo, insuficiência renal crônica e hiperplasia adrenal congênita tardia.9 A puberdade precoce verdadeira deve ser diferenciada da puberdade precoce incompleta ou Figura 2. Radiografias de mãos e punhos em PA e perfil, mostram as deformidades articulares. A idade óssea foi avaliada em torno de dez anos no sexo feminino, de acordo com os padrões radiográficos de Greulich e Pyle Brasília Med 2012;49(4):289-293 • 291 ESTUDO DE CASO dissociada, na qual telarca ou pubarca ocorrem prematuramente, e da pseudopuberdade precoce.9 A investigação diagnóstica inclui exames de imagem, tais como radiografia de mão e punho para avaliar a idade óssea, tomografia computadorizada e ressonância magnética da cabeça, ultrassonografia pélvica e dosagens séricas de FSH e LH – basais e após estímulo de GnRH – e de estradiol.9 estavam acometidos em 70,4% dos casos.1 Na maioria dos pacientes, a doença não teve evolução progressiva e houve boa resposta à fisioterapia e ao uso de órteses.1 Fassier e colaboradores analisaram o desenvolvimento de 36 crianças com amioplasia, desde o nascimento até a maturidade do esqueleto. Houve acometimento quadrimélico em 81,8% dos pacientes, e 72,2% foram meninas.3 Os esquemas de tratamento variam, a depender da causa da puberdade precoce. No presente caso, optou-se por não usar análogos do GnRH, já que a estatura-alvo final estava afetada pela artrogripose, e a paciente já havia apresentado menarca, sugerindo que não haveria boa resposta à inibição puberal. Após o diagnóstico, o tratamento deve ser imediatamente iniciado, incluindo-se fisioterapia e terapia ocupacional, além de múltiplas cirurgias e órteses, que facilitam os movimentos e a ambulação.3,7 Hall analisou registros de 2.500 casos de artrogripose e encontrou onze dos assistidos que sobreviveram a tentativas maternas de interrupção clínica ou cirúrgica das respectivas gestações. Concluiu que esse grupo de pacientes apresentava risco de deficiência intelectual acima de 50%.11 Esse achado contrasta com o conceito de que usualmente não ocorre déficit mental na artrogripose múltipla congênita.2,7 Hoff e colaboradores analisaram 757 casos de artrogripose múltipla congênita na Europa e encontraram prevalência de 8,5 por 100.000, e 67% dos indivíduos acometidos nasceram vivos.12 A artrogripose múltipla congênita ocorreu isolada em 37% dos enfermos e associada com outras malformações em 51%.12 Embora não tenha ocorrido nessa paciente, o hemangioma na linha média facial é observado em até 90% dos casos de amioplasia quadrimélica.6 Contraturas congênitas múltiplas são condições caracterizadas por limitação de movimentos em duas ou mais articulações de duas ou mais regiões do corpo.6 Outros estigmas incluem face arredondada, narinas antevertidas, micrognatia, assimetria facial, gastrosquise, hipoplasia de genitália, escoliose e hérnias.6 A etiopatogenia da amioplasia permanece pouco conhecida, mas alguns fatores são associados com essa entidade, como apresentação fetal pélvica, fraturas durante o parto e hipocinesia fetal.6 A ocorrência de amioplasia parece ser um fenômeno isolado, portanto, sem risco de recorrência.6 A doente apresentava escoliose, detectada no primeiro ano de vida, que progrediu sem resposta favorável ao uso de colete corretivo, em concordância com algumas descrições na literatura.5 Além disso, a deformidade incluiu obliquidade pélvica e hiperlordose lombar, o que prejudicou o alinhamento postural.5 A artrogripose múltipla congênita precisa ser diferenciada de outras contraturas congênitas múltiplas, que compreendem aproximadamente trezentas doenças e síndromes.3,5,6 A variante neurogênica de artrogripose é mais raramente descrita. Ambegaonkar e colaboradores estudaram fenótipos dessa entidade em 27 crianças (52% meninas), e os quatro membros 292 • Brasília Med 2012;49(4):289-293 Embora dados sobre doenças ou uso de medicamentos durante a gestação se limitassem a um terço dos casos, aparentemente essas duas condições não exerceram influência na origem da artrogripose múltipla congênita.12 Fato semelhante ocorreu no presente relato, pois não foram identificados fatores predisponentes. A paciente aqui registrada sofreu, concomitantemente, duas doenças descritas como raras, circunstância inédita e que poderia levantar a possibilidade de etiopatogenia compartilhada. Com base nos dados clínicos e achados de exames complementares, tanto a artrogripose quanto a puberdade precoce descritas no presente estudo de caso foram consideradas entidades idiopáticas. A associação de artrogripose com puberdade precoce parece constituir um fenômeno casual. Entretanto, considerando-se que as duas entidades podem se originar Fernanda Silveira Tavares e cols. • Artrogripose e puberdade precoce idiopática de desordens do sistema nervoso central,2,4,6,9,10 deveria ser excluída, em definitivo, a possibilidade de uma relação de causalidade entre ambas. De fato, limitações inerentes ao estudo de caso isolado não permitiram descartar essa hipótese, mas os autores acreditam que o relato possa motivar a descrição de eventuais casos semelhantes. rEFErÊNCiAs 1. 2. 3. 4. Ambegaonkar G, Manzur AY, Robb SA, Kinali M, Muntoni F. The multiple phenotypes of arthrogryposis multiplex congenita with reference to the neurogenic variant. Eur J Paediatr Neurol. 2011;15(4):316-9. Chowdhuri R, Samui S, Kundu AK. Anesthetic management of a neonate with arthrogryposis multiplex congenita for emergency laparotomy. J Anaesthesiol Clin Pharmacol. 2011;27(2):244-6. Fassier A, Wicart P, Dubousset J, Seringe R. Arthrogryposis multiplex congenita. Long-term follow-up from birth until skeletal maturity. J Child Orthop. 2009;3(5):383-90. Gaitanis JN, McMillan HJ, Wu A, Darras BT. Electrophysiologic evidence for anterior horn cell disease in amyoplasia. Pediatr Neurol. 2010;43(2):142-7. 5. Greggi T, Martikos K, Pipitone E, Lolli F, Vommaro F, Maredi E, et al. Surgical treatment of scoliosis in a rare disease: arthrogryposis. Scoliosis. 2010; 5:24-34. 6. Nichols T. Natural history study of arthrogryposis multiplex congenita, amyoplasia type (2011). UT GSBS Dissertations and Theses. Paper 150 [acesso 10 set 2012]. Disponível em: http://digitalcommons.library.tmc.edu/utgsbs_dissertations/150. 7. Eriksson M, Gutierrez-Farewik EM, Broström E, Bartonek A. Gait in children with arthrogryposis multiplex congenita. J Child Orthop. 2010;4(1):21-31. 8. Battaglia C, Mancini F, Regnani G, Persico N, Iughetti L, De Aloysio D. Pelvic ultrasound and color Doppler findings in different isosexual precocities. Ultrasound Obstet Gynecol. 2003;22(3):277-83. 9. Leung AK, McArthur RG. Recent advances in the treatment of isosexual precocious puberty: identifying all the problems. Can Fam Physician. 1991;37:2597-604. 10. Moreno-Pérez O, Carles Genovés C, Moreno Macián F, Rius Peris J, Albiach Mesado V. Complete isosexual precocious puberty: clinical, pelvic ultrasound and laboratory features. An Pediatr (Barc). 2008;69(5):413-9. 11. Hall JG. Arthrogryposis (multiple congenital contractures) associated with failed termination of pregnancy. Am J Med Genet A. 2012;158A(9):2214-20. 12. Hoff JM, Loane M, Gilhus NE, Rasmussen S, Daltveit AK. Arthrogryposis multiplexa congenita: an epidemiologic study of nearly 9 million births in 24 EUROCAT registers. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 2011;159(2):347-50. Brasília Med 2012;49(4):289-293 • 293