Qualidade do crédito e bolha de endividamento
Gilmar Mendes Lourenço
A inadimplência dos consumidores brasileiros chegou a 6,8% das cifras devidas em
maio de 2010, o menor patamar desde janeiro de 2005 (5,9%), conforme estimativas
da Serasa Experian, contra 5,3% nos Estados Unidos (EUA), por exemplo. No total, a
inadimplência atinge 5,1%, sendo 3,7% para as pessoas jurídicas.
Apesar de terem crescido 1,9% e 4,3% em maio de 2010, frente ao mesmo mês de
2009 e ao mês anterior, respectivamente, as dívidas vencidas há mais de 90 dias
declinaram 3,7% entre janeiro e maio de 2010, em relação a igual período de 2009,
representando o maior recuo desde 2000.
Lembre-se que, de acordo com estimativas do Banco Central (BC), a inadimplência
representa 37,4% do spread (diferença entre os juros cobrados do tomador e aqueles
pagos na captação dos recursos). Os demais componentes do spread seriam os
recolhimentos compulsórios (3,6%), os tributos (8,1%), os outros impostos (10,5%), as
despesas administrativas (13,5%) e a margem líquida dos bancos (26,9%).
Tais constatações contrariam os prognósticos feitos por grande parte dos meios
especializados, que indicam risco de estouro de uma bolha de endividamento no país,
cuja formação teve início com a flexibilização monetária implementada desde fins de
2005 e que atualmente absorveria 22,0% dos orçamentos domésticos.
O surto de dívidas foi agravado pelos estímulos monetários e fiscais ao consumo
de bens duráveis (automóveis, eletrodomésticos de linha branca e móveis) e materiais
de construção, acionados pelo governo federal para mitigar os impactos internos da
crise financeira internacional, verificada entre o final de 2008 e o 1º semestre de 2009.
A parcela de incentivos monetários ficou a cargo da redução dos juros e do
alargamento dos prazos de financiamentos e o pedaço fiscal limitou-se à redução do
Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).
A explicação para essa aparente incongruência, composta por pronunciado
endividamento e toleráveis atrasos, em um sistema econômico caracterizado por
demanda de crédito e consumo ainda bastante deprimida, repousa em uma raiz
principal e algumas ramificações acessórias concatenadas. O eixo básico corresponde
à preservação conjuntural da massa de rendimentos, movida a geração de empregos
1 Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.3, n. 5, julho 2010 | formais e a salários reais, e impulsionada pelo prosseguimento da valorização do
mínimo e pela conquista de reajustes de remunerações superiores às taxas de inflação,
pela maior parte das categorias de trabalhadores.
Levantamento preparado pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos
Socioeconômicos (Dieese) aponta que 93,0% de uma amostra de 635 classes de
profissionais assalariados acompanhadas no Brasil, conseguiram reajustes reais de
salários, por ocasião dos acordos e dissídios coletivos em 2009, tendo o Índice
Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) como referência da inflação para as
negociações.
As variantes articuladas da não disparada do calote começam com o
aperfeiçoamento do perfil de pagamentos da emergente categoria de mais de 30,0
milhões de consumidores demandantes do mercado de crédito, principalmente das
frações C e D da pirâmide, a partir do fenômeno de mobilidade social (enfatizado pelos
elementos virtuosos da estabilidade monetária, renda e emprego), detentoras de maior
risco de atraso crônico. Lembre-se que enquanto a dimensão de calote para os
mutuários tradicionais é de 6,7%, para os novos é de 8,4%.
A propósito da rearrumação da estrutura social, nota-se substancial ampliação da
fração C (constituída por famílias com renda mensal entre 03 e 10 salários mínimos SM) e encolhimento da D e E (renda inferior a 3,0 SM), decorrentes dos incrementos
reais do SM e dos gastos e coberturas previdenciárias de quase 80,0% e mais de
90,0%, respectivamente, entre 2001 e 2010, e do alargamento da abrangência do
Programa Bolsa Família.
Outra vertente, refere-se à disponibilização de linhas de crédito com maior garantia
de cobertura, por parte das instituições financeiras. As concessões asseguradas
representam ¾ do crédito total acessado por pessoas físicas e podem ser
desmembradas em veículos (32,0%), com desconto em folha (23,0%) e imóveis (20,0%).
O derradeiro vetor de não surgimento da instabilidade no retorno dos créditos,
abarca a administração mais adequada das carteiras de débitos pelas famílias, com a
permanente procura de feitura de permuta entre dívidas velhas e caras, hospedadas
em cartões e em cheques especiais, por passivos menos onerosos, como o crédito
direto e as linhas em consignação, com transferência automática da conta do mutuário
para a do credor quando do depósito dos proventos.
2 Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.3, n. 5, julho 2010 | Se bem que, pesquisa do BC e da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban),
constatou perigosa migração de dívidas no cheque especial (que cobram juros de
160,0% a.a.) para o cartão de crédito (240,0% a.a.), sendo que nesta linha, 67,6% da
dívida é quitada no vencimento da fatura.
O peso do “limite da conta corrente” recuou de 64,0% para 34,4% dos empréstimos
totais feitos pelas famílias no intervalo 2000-2010, sendo o menor patamar desde o
começo da década, mesmo representando a maior modalidade de crédito para as
pessoas físicas. Em paralelo, levantamento da Partner Consult apontou que a
participação do cartão de crédito na cobertura do valor consumido pelas famílias
brasileiras passou de 2,0% em 1995 para 30,0% em 2010.
Nesse caso, é interessante assinalar que o horizonte de tempo médio para a
quitação das compras a prazo, feitas pelos consumidores, estaria em cerca de um ano
e meio, para o conjunto de bens comercializados, e, de dez anos, para a área de
habitação. Além do que, é perfeitamente compreensível a chance de não encaixe
pleno, na programação de desembolsos de recursos, dos compromissos simultâneos
com automóveis e imóveis.
Contudo, existem fortes indícios de arrefecimento da rota cadente da inadimplência
constatada desde 2009, em face da provável desaceleração dos níveis de negócios,
com o retorno de uma orientação monetária restritiva, no afã de sufocar as pressões
inflacionárias, subjacentes à subida das cotações das commodities nos mercados
externos e ao aquecimento da demanda doméstica, turbinada pela majoração dos
gastos públicos, em linha com o ciclo eleitoral.
A ortodoxia monetária virá comandada pela compressão do crédito, via elevação dos
recolhimentos compulsórios dos bancos junto ao BC, e por novas rodadas de impulsão
dos juros, capitaneadas pela Selic, referência para a rolagem da dívida do governo, para
as transações interbancárias e para a calibragem das metas de inflação, estipuladas pelo
Conselho Monetário Nacional (CMN) em 4,5% para 2010, 2011 e 2012, cujo
cumprimento é monitorado pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do BC.
3 Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.3, n. 5, julho 2010 | 
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