O Outro Primordial no Projeto
Freudiano
Maria Cristina Vecino Vidal
Cem anos depois qual seria a importância do retorno ao "Projeto" (Entwwf)!
Como o lemos agora? Num a-posteriori este manuscrito de 1895 traz o fundamento da teoria psicanalítica. Freud interroga nele o modo de entrada do infans
na estrutura da linguagem e seu confronto com o Outro real representado inicialmente pela quantidade.
A preocupação de Freud é, segundo suas palavras "estruturar uma psicologia
que seja uma ciência natural, representar os processos psíquicos como estados
quantitativamente determinados"1.0 aparelho que Freud apresenta supõe uma
arquitetura neuronal que possibilita a circulação de quantidades energéticas. A
quantidade vem sempre do exterior, seja do mundo externo ou do corpo próprio,
existente como radicalmente alheio ao sujeito. Nessa exterioridade radical manifesta-se o caráter intrusivo da quantidade como presença de um Outro pré-histórico.
A quantidade expressa o registro do inassimilável da experiência, e permite
teorizar o insuportável para o aparelho. A quantidade sem nome dá o modelo da
dor e do trauma. Há então uma Q inicial, insuportável mas indispensável, pois é
a que impulsa o trabalho de simbolização. Ela representa um estado de tensão
inicial que força o aparelho a desenvolver sistemas simbólicos e a instaurar a
função de um juízo. A atividade judicativa tem notícias dessas quantidades, do
desconforto que produzem e indica como elas podem ser transmitidas e descarregadas, ou seja, constitue uma diferenciação na estrutura indiferenciada das
quantidades.
Os processos primários de juízo são marcados pela predominância dos processos associativos entre a catexia desiderativa (quantidade que vem do interior)
e a catexia perceptiva (quantidade que vem do exterior). Os processos secundários
do juízo emergem pela alteração dos processos associativos e sua função primordial seria o reconhecimento do objeto enquanto ausente e o adiamento da descarga
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das quantidades. Essa diferenciação no processo de juízo, deixa um resto que foge
a toda articulação possível. Freud disse: "o que chamamos aí coisas são resíduos
subtraídos ao juízo"2.
A judicação só é possível pela não coincidência entre o complexo desiderativo
e o complexo perceptivo. Sua coincidência interromperia provisoriamente o processo de pensamento. Este é representado numa escrita minimal de três letras: a,
b, c. O complexo desiderativo seria hipoteticamente a + b e a percepção a +c,
sendo a, portanto o que permanece constante, a Coisa, enquanto que b é o
elemento variável, que pode faltar, o atributo da Coisa e c aquele elemento que,
no lugar áebéa marca da não coincidência. Dela provém o ato na tentativa de
encontrar o b faltante. Freud exemplifica este processo no lactente:
suponhamos que a imagem mnêmica desejada seja a do peito materno com o
mamilo, visto de frente, mas a primeira percepção real obtida de dito objeto tem
sido uma visão lateral, sem o mamilo. A memória da criança incluirá uma
experiência adquirida casualmente ao amamentar, segundo a qual a imagem
frontal se transforma numa imagem lateral quando se realiza um determinado
movimento cefálico. A imagem lateral percebida agora conduz ao movimento
da cabeça e uma prova lhe demonstrará que este movimento deve efetuar-se no
sentido inverso com o fim de obter a percepção da imagem frontal.
Freud ilustra com esse exemplo o encontro sempre faltoso do lactente com o
objeto seio, inerente a desemelhança no campo do Outro. A identidade de percepção que o aparelho tenta reproduzir encontra um elemento c diferente de b,
impulsor da função do juízo. A Coisa, escrita com a letra a, é o constante, o
inominável, que não se deixa apreender por atributo nenhum e permanece como
causa do desejo e do ato do sujeito.
A Coisa (das Ding) é o que sobra e resta à articulação simbólica dos juízos
primários e secundários. É resto, mas também funciona como causa desses processos. Está fora, mas seu destino é ser substituída no aparelho. Está no solo da
simbolização. Todo o sistema de substituição se apoia sobre das Ding que organiza o idêntico e o diferente.
A primeira apreensão da realidade pelo sujeito é através do que Freud denomina Nebenmensch = neben: próximo, mensch: homem. Seria o homem próximo,
o vizinho, o semelhante. É a partir do próximo que Freud articula a função do
Outro nas dimensões nomeadas a partir de Lacan: Imaginário, Simbólico e Real.
Freud reconhece no complexo do semelhante uma parte muda, inassimilável que
permanece imutável: a Coisa (Das Ding). O primeiro Outro, encontra no próximo
um suporte,
é dividido em duas porções, uma das quais dá impressão de ser uma estrutura
constante que persiste como Coisa, enquanto que a outra porção pode ser
compreendida no início da atividade da memória, quer dizer reduzida a uma
informação sobre o próprio corpo do sujeito4.
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É o que o eu reconhece através de sua própria experiência, de seus próprios
movimentos. A qualidade do objeto que pode ser formulada como atributo, entra
no investimento do sistema psi (y) e constitui as representações primitivas, as
primeiras Vorstellungen, a partir das quais o aparelho regula o prazer-desprazer.
"Das Ding é absolutamente outra coisa"5: excluída no interior do campo do Outro,
ela não recebe atributos, não é predicavel. É o fora-significante na estrutura da
linguagem que inaugura uma nova topologia do sujeito. Lacan coloca a Coisa no
centro e, em volta dela, o mundo subjetivo do inconsciente, estruturado nas
cadeias signifícantes, mas destaca a dificuldade de sua representação topológica:
"está no centro mas no sentido de estar excluída"6.
A noção de das Ding formulada por Freud no "Projeto" presentifica uma
divisão constitutiva no campo do Outro e, portanto, no sujeito. Na relação com o
Outro, algo no sujeito é expulso. É em torno desse primeiro exterior expulso que
se orienta o encaminhamento subjetivo. O sujeito, na sua relação com a realidade,
vai ao encontro do objeto que é, desde sempre, perdido. Vai a procura daquilo
que é imposível de ser achado: Das Ding — o Outro absoluto — a mãe.
A lei de proibição do incesto determina a inacessibilidade da mãe. É o que
está no fundamento de das Ding. Freud designará posteriormente como interdição
do incesto o princípio da lei primordial, mola de todos os desenvolvimentos
culturais e, ao mesmo tempo, identifica o incesto como o desejo mais fundamental,
o desejo do filho pela mãe. Só há desejo porque o objeto é interditado e inatingível.
O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito pois representaria o fim da demanda
e do inconsciente. A mãe ocupa o lugar da Coisa como impossível no inconsciente.
Lacan diz no Seminário A ética da psicanálise
o passo dado por Freud, no nível do princípio do prazer, é o de mostrar-nos que
não há Bem Supremo, que o Bem Supremo que édas Ding, que é a mãe, o
objeto do incesto, é um bem proibido e que não há outro bem7.
Das Ding, lugar ao qual a mãe é chamada, não permite constituir o ideal de
uma mãe completa como presença que responda as necessidades da criança. A
mãe aparece sempre no lugar do Outro como falta nas três dimensões que, a partir
de Lacan, podemos distinguir na experiência analítica:
- No Simbólico, como Outro da linguagem.
- No Imaginário, sustentada no complexo do próximo, como semelhante.
- No Real enquanto das Ding.
A mãe vem a ocupar o lugar do Outro simbólico para a criança, Outro da
linguagem que aparece, no "Projeto", em termos de intervenção do mundo externo, ajuda alheia chamada a socorrer a carência inicial, denominada desamparo
(Hilflósigkeif). Essa intervenção constitui a ação específica. Incapaz de realizá-la
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sem ajuda exterior o organismo é compelido a inscrever-se na linguagem e, com
isso, trocar suas necessidades em demanda. Ele não só recebe o alimento, recebe
também a palavra O grito tem uma função primordial nessa inscrição, por estar
enlaçado desde o início com a linguagem. O grito é, em princípio, um meio de
descarga da tensão acumulada e, ao mesmo tempo, a expressão do estado de
desamparo e urgência inicial.
O Outro, representado pela mãe, escuta o grito da criança e o interpreta no
seu sistema de significação. A criança escuta seu próprio grito que lhe retorna
como rudimento significante do exterior. Nesse instante, o sujeito se divide em,
aquele que emite o som e aquele que recebe a notícia: "só falta um curto passo
para chegar a invenção da linguagem"8. Freud destaca, no "Projeto", a função do
grito na ordem de um apelo ao Outro que possibilita a entrada do sujeito no
Simbólico. O grito, que é abertura do sujeito no campo do Outro, precede a
primeira inscrição pela via da experiência de satisfação. Ela é a marca da impossibilidade do encontro do sujeito com o objeto. Não há primeiro encontro. Trata-se
sempre de um (re)encontro pois o objeto é, desde sempre, perdido. A primeira
experiência inscreve o sujeito no campo do desejo. Quando, ante a falta de objeto,
são investidos, simultaneamente, os traços da experiência de satisfação o desejo
emerge presentificando a dimensão de perda e de retorno a uma satisfação já
experimentada.
Na dimensão imaginária situamos o lugar da mãe enquanto objeto: "esse
objeto próximo, íntimo ao sujeito, seu primeiro objeto satisfatório, seu primeiro
objeto hostil e também sua única força auxiliar"9. É no próximo que o ser humano
aprende por primeira vez a (re)conhecer. O semelhante, enquanto outro e imagem,
informa ao sujeito sobre os movimentos de seu corpo próprio. Freud escreve:
dos complexos perceptivos emanados de seu semelhante serão em parte novos
e incomparaveis como por exemplo seus traços na esfera do visual; mas outras
percepções visuais (o movimento de suas mãos, por exemplo) coincidirão no
sujeito com sua própria lembrança de impresões visuais similares emanadas do
próprio corpo, lembranças com as quais ficarão associadas outras lembranças
de movimentos experimentados por ele mesmo. Igualmente acontecerá com
outras percepções do objeto; assim por exemplo, quando este imita um grito,
evocará a lembrança do próprio grito do sujeito e, decorrente disso, a de suas
próprias vivências dolorosas .
O Outro primordial está encarnado no Nebenmensch que permite a constituição do infans como corpo, em especularidade à imagem do corpo do outro.
No começo o corpo próprio é o corpo do outro, a imagem do outro é a própria
imagem fundamento da identificação pela qual o "sujeito da superfície"quer se
ver como unidade:
o corpo do outro, lhe é tão próximo como o seu. Teria podido amá-lo da mesma
forma que a ele mesmo antes que ele fosse outro e que lhe seja tão próximo
como o seu... Pode se servir deste outro, desde então vazio, como de um espelho
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para proteger aí a superfície que é ele mesmo para ver aí desenhar-se a Coisa,
que não tem nome que poderia ser o fim do gozo .
Estas palavras de Lacan destacam que esta imagem do complexo do próximo
já opera como função de separação do gozo do Outro, sendo das Ding o vazio
que está no cerne de sua formação, produzindo o traço diferencial que se inscreve
no Simbólico.
Na relação com o Outro há sempre uma dimensão de perda. Segundo Lacan,
Freud "coloca na origem da conquista da realidade o objeto perdido, que não pode
atingir, pois mesmo presente sua lembrança o situa numa outra cena". Esse resto
que se perde que portanto fica excluído de toda símbolização e de todo revestimento imaginário é o das Ding que, no "Projeto", representaria o Outro absoluto,
aproximando a dimensão real enquanto impossível.
Freud escreve no "Projeto" e na correspondência à Fliess um aparelho desprovido de qualquer referência psicológica, portanto, no limite, o texto não é para
ser lido. Foi precisamente com esta escritura que Freud apresentou a função
primordial do Outro pré-histórico, inigualável, que antecede ao sujeito como
função do desejo. Esse Outro primordial não só oferece sua face de luz com seus
traços distintivos mas sua face de sombra onde se prefigura o lugar de uma falta.
O nó que Lacan constitui com os três registros não só orientam a leitura de
Freud, mas permite revelar no texto, a função de um Outro heterogêneo primordial
na constituição do sujeito. No entanto, Lacan salienta que no texto freudiano não
há nada que faça supor a existência do nó borromeano.
Os psicanalistas que se ocuparam da criança produziram uma ocultação do
lugar do Outro como falta preenchendo-o com a mitologia da relação mãe-filho.
O nascimento do sujeito é uma subtração operada no campo do simbólico. O Outro
barrado pelo significante, que separa o sujeito do gozo, indica a não complementação possível entre o recém nascido e sua mãe. A criança representa parte da
falta do Outro que ela nunca chegará a preencher. A Coisa é o vazio na imagem
que nunca poderá reencontrar.
O Outro primordial é o lugar da subtração e o advento do sujeito na dimensão
da linguagem repete a perda originária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. FREUD, S., "Projeto para uma Psicologia para neurólogos" in Obras Completas, v.XXII,
Buenos Aires, Santiago Rueda, 1956, p.378.
2. Ibidem, p.410.
3. Ibidem, p.411.
4. Ibidem, p.413.
5. LACAN, J., A ética da psicanálise, Rio, Jorge Zahar, 1986, p.68.
18
6.
7.
8.
9.
10.
11.
100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO
Ibidem, p.91.
Ibidem, p.90
FREUD, S., "Projeto para uma Psicologia para neurólogos", op.cit, p.438.
Ibidem, p.413.
Ibidem, p.413
LACAN, )., Conference a l'Évolution Psychiatriquete23.7.7962: "De ce que J'enseigne", in Petits Ecrits et Conferences. p.586.
12. Ibidem, p.588.
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