O PERFIL DO ENGENHEIRO AO LONGO DA HISTÓRIA Fernando Schnaid , Fernando F. Barbosa, Maria I. Timm Universidade Federal do Rio Grande do Sul Av. Osvaldo Aranha, 99 – 90035-180, Porto Alegre – RS Fone (51) 91731851 – Fax (51) 316 3983 nucleo.multimí[email protected] Resumo: O artigo reflete sobre as características pessoais dos engenheiros, em vários momentos do desenvolvimento da sociedade e da tecnologia, desde a Idade da Pedra, passando pela Revolução Industrial e chegando à chamada Era da Globalização. Mesmo que a atividade desses indivíduos, transformadores das condições ambientes e geradores de tecnologia pouco desenvolvida, não possa ser enquadrada nas definições correntemente aceitas de engenharia, é possível identificar um perfil que se assemelha ao do profissional que hoje chamamos de engenheiro. Ao examinar as exigências para a formação desse profissional a partir dos paradigmas da sociedade pós-industrial, remete para a incapacidade dos cursos de engenharia, no Brasil, para atender essas exigências. Sugere a necessidade de institucionalização de mudanças destinadas a reposicionar o engenheiro no contexto do desenvolvimento social e econômico do país, através de um ensino de engenharia que seja capaz de formar profissionais com as características históricas – habilidade de cálculos, objetividade, espírito prático e outras – acrescidas de criatividade, comunicabilidade, familiaridade com a cultura do auto-aprendizado, da incerteza e da complexidade, entre outras. Palavras-chave: Diretrizes, Perfil, Ensino de Engenharia DTC - 87 1. INTRODUÇÃO 1.1. Cabeça de engenheiro: espírito prático e ciência Considerado um dos executivos mais influentes da atualidade, depois de liderar a reestruturação da Renault e, desde 1999, encarregar-se da recuperação da japonesa Nissan, (no final de 2000 já apresentava indicadores de que seria bem sucedido), o empresário brasileiro Carlos Ghosn tem um conselho singelo aos jovens empreendedores. Podem começar a vida tirando Engenharia, diz ele, e terão uma boa base para administrar negócios de qualquer natureza. Em entrevista publicada na Revista Veja de janeiro de 2001 [8], ele dizia que “’é preciso ter cabeça de engenheiro para manter-se atualizado com tantas tecnologias novas sendo desenvolvidas”. Cabeça de engenheiro é uma expressão corrente, às vezes para definir uma qualidade – caso do entrevistado, que identificou o engenheiro ao perfil do empreendedor capaz de enfrentar desafios de grande porte – ou um defeito. Os que consideram cabeça de engenheiro um defeito, costumam referir-se a uma certa objetividade – considerada excessiva pelos que formulam essa idéia - no trato de questões de qualquer natureza. Muito cálculo, muita frieza de raciocínio, muita falta de emoção... é a queixa... Refletir sobre a identidade do engenheiro talvez deva ser o primeiro passo para aqueles que querem contribuir para a formação do futuro profissional dessa área, não apenas como alguém qualificado a desempenhar uma função produtiva e de liderança no mercado de trabalho, mas como um ser humano de múltiplas facetas, capaz de compreender, aceitar, defender e melhorar a percepção – e a realidade – do que significa cabeça de engenheiro. Também pode ser bom para jovens aspirantes a engenheiro refletirem sobre essa identidade, observando em si mesmos as características da profissão, as habilidades e até mesmo as dificuldades que, ao que parece, tendem a ser associados aos engenheiros... como por exemplo a facilidade nos cálculos ... a dificuldade de escrever ou se expressar... a habilidade manual... a tendência a visualizar os fenômenos antes de descrevê-los sintática ou matematicamente... A lista pode ser bem grande (complete-a você mesmo, leitor, com boas ou más impressões...). O objetivo desse artigo é percorrer alguns exemplos da história da humanidade, até o presente, identificando um personagem comum: o engenheiro, quer ele tenha sido chamado dessa maneira ou não. Esse exercício pode servir para a construção de uma identidade, um perfil do engenheiro, cuja natureza externa se adapta e/ou transforma o seu tempo e o desenvolvimento científico e tecnológico desse tempo e dessa cultura, mas cuja natureza interna guarda sempre algumas semelhanças. O encontro com esse velho personagem também pode contribuir para que o engenheiro do terceiro milênio saiba se reconhecer no seu papel de construtor das condições de vida e conforto dos habitantes do planeta, manter o olhar preciso e a ação objetiva que caracterizaram sua inserção ao longo da história e acrescentar a eles as novas habilidades permitidas – exigidas – pelo novo tempo. 2. DESENVOLVIMENTO 2.1. Curiosidade e observação da natureza Usando uma metáfora, talvez se poderia pensar que o engenheiro contemporâneo é filho de um casamento muito bem sucedido entre o espírito prático dos homens, que já no tempo das cavernas lascavam pedras para construir armas e utensílios rudimentares, com a ciência moderna, calcada na observação, na mensuração e na conseqüente capacidade de formulação de leis e modelos de comportamento dos fenômenos físicos. É possível imaginar que entre os lascadores primitivos havia algum que provavelmente percebia, de forma rudimentar, a diferença entre a dureza das várias pedras que lascava. É possível também que DTC - 88 percebesse a necessidade de opor pedras de graus de dureza variados, para obter uma lasca um pouco mais afiada... Talvez fosse aquele que observasse a lasca produzida acidentalmente a partir da pedra quebrada e identificasse nela um lado mais afiado, útil para quebrar ou raspar a casca do fruto, por exemplo. Essa capacidade de observação, mesmo empírica, baseada na experiência de quem realizava a operação, poderia ser o diferencial na hora de um enfrentamento do grupo com a necessidade de abater um animal, ou de acessar sua carne, por exemplo, ou mesmo no enfrentamento com outro grupo, interessado em dividir com o nosso engenhoso ser pré-histórico o mesmo alimento. Note-se aqui que o termo “engenhoso” não significa a engenharia sistematizada e apoiada em cálculos matemáticos e considerações científicas. Significa uma postura, um olhar curioso e uma ação, uma intervenção nas condições concretas, pela modificação ou uso de materiais que estão à sua disposição. Pode ter sido essa capacidade de observação que guiou empiricamente alguns homens préhistóricos na escolha das pedras mais resistentes – sílex - , o que garantiu a sobrevivência de instrumentos rudimentares, por milhares de anos, permitindo que os estudiosos reconstituam o tipo de vida e o conhecimento existente entre os membros dos grupos humanos da Idade da Pedra. Se o leitor flexibilizar seu conceito de tecnologia e de indústria, poderá imaginar um primo muito distante do engenheiro atual, pertencente à espécie que hoje é designada “homo erectus”. Há dois milhões de anos, ele produziu e usou ferramentas toscas (pontas, martelos e enxadas rudimentares), que não precisaram ser modificadas, ao longo de milhares de gerações, porque serviam exatamente às necessidades de sobrevivência do grupo. Esse conjunto de itens tecnológicos (possivelmente associado a utensílios de couro e cascas de ovos ou árvores, que não sobreviveram à ação do tempo), hoje chamado indústria de Olduvai (em função do local onde se situa, na África), serviu para prover a fantástica capacidade de sua locomoção do grupo, estimada em 10 quilômetros a cada geração, suficiente para que os “erectus” ganhassem o status de nômades. [Haaf,1979] Ao perseguirem a caça e os melhores frutos, em baixa velocidade de locomoção, os grupos nômades observaram um fenômeno curioso: o fogo, produzido pelo raio que incendeia a savana. Se todos viram o fogo, alguns (os curiosos-engenhosos?) tiveram a idéia de que bem poderia ser domesticado, para gerar luz e calor nas cavernas escuras e úmidas, afugentar os animais... e sabe-se lá o que mais... Aprisionar o fogo era tarefa que exigia certamente um pouco de habilidade manual. Mais fácil deve ter sido descobrir, na prática, que também servia para melhorar o gosto da carne. E mais engenhoso descobrir a qualidade do fogo para endurecer as ferramentas. Já manter o fogo aceso, antes de aprender a produzi-lo, deve ter exigido uma boa dose de gerenciamento, já que as brasas vivas eram um tesouro pertencente ao grupo, que deveria alimentá-las ao longo de inúmeras gerações. A propósito, “manter o fogo aceso” é uma das funções que a pré-história do Rio Grande do Sul também registra, no grupo dos M’bias guaranis que habitaram a região muito antes da civilização. Cabia às mulheres da tribo essa tarefa. No caso dos nômades, cabia aos membros mais confiáveis de cada tribo transportar e conservar a preciosa fonte de energia: a promessa de fogo, que só seria completamente cumprida milhares de anos depois, quando os homens de espírito prático não se contentaram apenas com a manutenção das brasas e, por acaso ou teimosia, dominaram as pederneiras para produzir faíscas e gerar novos focos de fogo. Feito isso, com uma boa trilha sonora e um belo efeito especial – nos moldes “2001, Uma Odisséia no Espaço”- o humano grava na pedra (e depois no silício) sua nova identidade de cidadão do planeta, capaz de transformar observação em pensamentos e idéias e traduzi-los, na prática, em conforto para si e para seu grupo (e isso não é exatamente o que fazem os engenheiros, quando transformam matériaprima em produto?). 2.2. Solução para problemas práticos DTC - 89 Mais adiante, talvez um descendente do lascador de pedras ou do fazedor de fogo manifestou-se quando alguém precisou transportar uma grande presa abatida em caçada ou, por exemplo, uma grande quantidade de madeira para fazer fogo ... Sabe-se lá por que método de observação da natureza - uma pedra redonda, ou um tronco de árvore rolando com facilidade encosta abaixo ... - , conexão de idéias, intuição ou algum outro processo mental, mas certamente foi um ancestral do engenheiro quem visualizou uma solução possível e adaptou uma roda rudimentar ou uma alavanca, para facilitar o deslocamento. Lá estavam o espírito prático, a capacidade de visualização do problema e de sua solução, a observação dos fenômenos, a habilidade manual... Alguma coisa faltando? E se procurássemos mais alguma idéia no mais antigo dos livros e ponto de partida da cultura ocidental, a Bíblia? Vejamos: a quem, senão a um proto-engenheiro, o Criador demandaria, por exemplo, que construísse “...uma arca de (...) de trezentos côvados de comprimento”, com “um andar de baixo, um segundo e um terceiro”. Pois quem ouviu a ordem divina, o mitológico Noé, certamente deveria ser observador, curioso e habilidoso como seu ancestral, e também deveria já ter agregado uma outra característica: ser dado à precisão das medidas e ter confiança na própria engenhosidade para aceitar o desafio de fazer sustentar um andar sobre o outro e além disso, sustentar à arca, ele próprio, sua família e as espécies animais do planeta sobre a água, em um fantástico desafio de engenharia civil, naval e de logística, uma vez que Noé também deveria pensar na sobrevivência de toda a tripulação por 40 dias, dentro da arca. Experimente pensar em estoque de comida para atender às necessidades de espécies tão distintas; dimensionar as condições sanitárias; a navegabilidade da arca; a manutenção de sua estrutura; o gerenciamento da circulação interna e um verdadeiro sem-fim de problemas, e isso sem pensar nos dilemas éticos, morais, legais e – pelo menos no exemplo bíblico – religiosos. Um problema complexo, com muitas variáveis, convenhamos: coisa para uma cabeça de engenheiro... E já que lembramos logística (uma área que hoje faz parte dos estudos em engenharia de produção), vamos fugir dos exemplos tradicionais de edificações (as pirâmides egípcias e os templos gregos) e saltar do relato bíblico para o planejamento das ações militares, na vida real. Na Roma antiga, legiões de combatentes precisavam ser movimentadas ao longo dos territórios do Império. E com elas as tendas, os alimentos, a água, os animais, os carros, os servos, as armas, as munições e a infinidade de seres e utensílios afins a tais empreitadas. Era preciso avaliar e otimizar as condições de estradas, captação de água, saneamento dos acampamentos, manutenção dos armamentos e outros itens igualmente fundamentais para definir a posição entre vencidos e vencedores. Não se chamavam engenheiros ainda esses senhores que sabiam, por exemplo, como fazer para desviar o curso de um rio, através de diques, para permitir ou impedir uma passagem; ou podiam garantir aos generais que a catapulta seria suficientemente robusta para lançar a pedra à distância necessária. Mas se não eram “engenheiros”, talvez possam pelo menos se considerar parentes distantes dos profissionais de engenharia, porque lidavam com problemas complexos; calculavam, com os conhecimentos da época, as condições de implementação de soluções; desenvolviam soluções a partir de condições e de materiais existentes; desenvolviam estratégias para alterar resistência, dureza e outras características desses materiais. Em resumo: resolver problemas... Mas todos esses exercícios de imaginação, a rigor, ainda não definem a cabeça de engenheiro nos padrões de objetividade que devem fazer parte da exigência de alguém como... um engenheiro. Seria preciso observar, descrever, medir, quantificar, comparar... ou seja, agregar ciência ao processo empírico de solução de problemas. 2.3. Definição e breve histórico da Engenharia DTC - 90 Seriam todos os indivíduos acima mencionados engenheiros? Para responder esta pergunta faz-se necessária uma definição de engenharia. Uma que serve bem a nossos propósitos é a de Smith[7]: “Engenharia é a arte profissional de aplicação da ciência para a conversão ótima dos recursos naturais para o benefício do homem.” Se, como Lewis[2], definirmos ciência como “a busca da verdade através da observação e da experimentação”, poderemos concluir que nossos antepassados pré-históricos ou, pelo menos, alguns deles, eram engenheiros. Baseados, fundamentalmente, na observação empírica conseguiram, usando os recursos que a natureza proporcionava, construir ferramentas e outros objetos para uso e benefício de seu grupo. Um projeto de engenharia cujo produto mantém sua grande importância até nossos dias ocorreu ainda no período neolítico, a agricultura. Os coletores de produtos vegetais observaram a periodicidade do desenvolvimento das plantas comestíveis, determinaram as variedades com maior produção e tomaram uma decisão surpreendente: devolver à terra parte dos grãos colhidos na esperança de vê-los multiplicados. Esta “revolução Copérnica”[2] originou, entre outros efeitos importantes, o assentamento permanente das tribos, a domesticação de animais para serem usados como fonte permanente de alimentos, a possibilidade da especialização profissional e o início de um comércio de trocas, resultando, finalmente, no aparecimento das cidades. O aparecimento das cidades e a especialização profissional trouxeram de arrasto o crescimento da metalurgia. As cidades mostraram a necessidade da fabricação de novos artigos, alguns utilitários, outros artísticos. Paralelamente ao uso da cerâmica, a especialização permitiu que a cadeia produtiva necessária a produção de artigos metálicos pudesse ser implantada: prospectadores, mineiros, forjadores, transportadores e finalmente os artesãos. Nos seus primórdios, a metalurgia baseou-se no uso de metais disponíveis em forma nativa, posteriormente no uso de minérios cuja purificação era possível dentro das limitadas temperaturas conseguidas nos fornos da época e cujos resultados dependiam essencialmente das características do minério ou liga e não do tratamento térmico. A metalurgia do ferro, extremamente dependente do processo a que era submetido o minério, desenvolveu-se mais lentamente. Desde então, a evolução da engenharia tem seguido a evolução da ciência: estradas, pontes, barragens, edificações, engenhos de guerra, canalizações de água e esgoto e muitas outras obras de engenharia foram construídas baseadas nos conhecimentos ainda empíricos disponíveis aos engenheiros das diversas épocas. Algumas destas obras ainda desafiam os pesquisadores pela dificuldade de relacionar seu porte com o ferramental técnico e científico disponível a seus projetistas. Entre estas podemos citar as pirâmides que se desenvolveram em diferentes e longínquas civilizações. O cultivo de algumas ciências na Grécia Clássica permitiu que os proto-engenheiros pudessem basear suas obras em algo muito semelhante ao que hoje entendemos como ciência. A geometria desenvolvida em algumas escolas filosóficas gregas proporcionou grande desenvolvimento à mecânica, trazendo como conseqüência a diminuição do necessidade do trabalho manual. Engenhos mecânicos, como as roldanas e o moínho giratório, facilitaram a realização de tarefas que até então empregavam grande número de animais de tração ou mesmo seres humanos. Durante a dominação romana que se seguiu, a tônica foram obras ligadas ao transporte, ao abastecimento de água potável e à arte da guerra. Muralhas, estradas, viadutos e aquedutos, gigantescos cortes em rocha e máquinas e implementos de guerra construídos durante a expansão do Império Romano ainda podem ser admirados hoje, comprovando a solidez dos conhecimentos de engenharia de que dispunham. A queda do Império Romano do Ocidente trouxe, entre outras conseqüências importantes, o declínio da ciência e da tecnologia na Europa. As obras romanas foram abandonadas, bem como a tecnologia por eles empregada, resultando em uma qualidade de vida inferior à existente até então. Algumas práticas já conhecidas dos romanos, como o uso de moinhos de água, prosperaram por sua utilidade para o sistema social da época. Outras DTC - 91 foram criadas, como o uso do arado pesado, as indústrias da lã e do vidro e o uso do carvão mineral na metalurgia, proporcionando o crescimento do uso do ferro como material para fabricação de diversos utensílios. O centro tecnológico do mundo ocidental deslocou-se para Bizâncio e para os países árabes. O planejamento urbano, o contínuo desenvolvimento da construção civil, a retomada do uso de barragens e canais para regular o fluxo de água, as indústrias têxtil, naval e do papel, os moinhos de vento e a produção química são frutos desse longo período da história da busca de conhecimentos novos para a melhora da condição humana. Muitas vezes os conhecimentos eram insuficientes para o porte das obras, o caso mais famoso provavelmente, sendo o da Torre de Pisa... 2.4. A ciência como método e a simulação O final da Idade Média trouxe consigo um novo estilo de ciência, mais adequado à definição da National Academy of Sciences[6]: “O objetivo da ciência é buscar uma explicação naturalista dos fenômenos”. Até então a maior parte da atividade científica se resumia na coleção de informação obtida de maneira empírica, como já tinham feito os antepassados. A procura da explicação por trás dos fenômenos observados constituiu-se, daí por diante, na tarefa primordial do cientista. E a conseqüente formulação e comprovação de teorias armou o engenheiro com uma nova e poderosa ferramenta: a possibilidade de prever o comportamento de seus projetos e experimentos sem a necessidade de construí-los antes. Aliada à experiência adquirida ao longo de uma vida profissional, a ciência possibilitou ao engenheiro, a partir desse momento, procurar atender ao requisito “ótimo” presente na definição anteriormente citada. Ótimo, entre outras coisas, também presume econômico, ou seja, as menores quantidades de material e mão-de-obra necessárias para que o produto funcione bem. O desenvolvimento da ciência e o progresso da engenharia viabilizaram o que hoje chamamos de simulação, primeiro através dos cálculos e das representações gráficas e hoje, graças à sofisticação do processamento e das interfaces gráficas dos computadores, através dos modelos dinâmicos que antecipam e testam cenários para fenômenos térmicos, químicos, mecânicos e outros. As possibilidades da simulação são aplicáveis também a outras áreas fora do âmbito de atividade dos engenheiros, como a medicina e a farmácia. 2.5. Não são máquinas... Há aproximadamente 300 anos, o homem protagonizou a criação de uma nova sociedade. Forjada nas chaminés e linhas de montagem, a revolução industrial modificou as relações sociais e a organização do trabalho, valorando os bens consumo e de capital e caracterizando a estrutura econômica pela troca de mercadorias. O pulmão desta revolução é movido com energia proveniente do carvão, gás e petróleo, utilizados na propulsão de um gigantesco avanço tecnológico. Novas máquinas foram diretamente ligadas ao sistema de produção em massa, produzindo aço, ferro, têxteis, produtos químicos e componentes elétricos e, com eles, roupas, automóveis, aviões, arranha-céus, armamento pesado e computadores. Uma geração de jovens constitui-se na nova força de trabalho, arregimentada na tecnologia eletro-mecânica – e no centro desta transformação encontra-se o engenheiro, produto e representante maior desta sociedade (e talvez, por isso, muitas vezes culpabilizado e hostilizado em algumas análises sobre as lacunas na dimensão humanista do processo tecnológico-industrial). Coincidindo com uma fase de intensa disseminação de idéias e de conhecimento (propiciada, a propósito, pelo domínio de tecnologias, cujo desenvolvimento, deve ter custado boas horas de observação e construção das melhores soluções de alguém muito engenhoso...), a institucionalização do perfil do engenheiro convencional também correu o mundo, quem DTC - 92 sabe acarretando algum esboço ainda inconsciente do que seria a cabeça de engenheiro referida no início desse trabalho. Não por acaso, também ocorre nesse período da história (ao redor do final do Século XIX) uma separação radical (e talvez irreal) entre a ciência e a filosofia, com suas respectivas áreas de influência jogadas para cada lado: a ciência, por positiva, carrega o bônus e ônus do desenvolvimento tecnológico; e a filosofia, por crítica, encampa todas as áreas de humanas e se opõe ao que se anuncia como des-humano. A crítica aos processos industriais mecanizados, repetitivos, insalubres, predadores da humanidade e da natureza, destinam-se também àqueles que usaram e aplicaram sua ciência para a “conversão ótima dos recursos naturais”: os engenheiros. Sem descuidar da certeza da perversidade dos modelos sociais e políticos gestados no caldo de cultura da revolução tecnológica que marcou o Século XX, não custa lembrar que nesse período a população do planeta descobriu as vantagens da comunicação telefônica, do transporte aéreo e da climatização dos ambientes, sem falar no cinema e nos computadores, todos esses itens acessíveis – em maior ou menor grau – a uma população decuplicada, com expectativa de vida potencializada através de processos que exigiram muita ciência e muito espírito prático. Ou alguém imagina que o Festival de Woodstock teria a mesma capacidade de sensibilização do público sem o trabalho de vários engenheiros de som, que amplificaram e distribuíram o fantástico rock’n roll eletrônico das guitarras? Mas isso já é coisa do século passado... 2.6. ... homens é o que são Neste início de milênio, uma nova civilização está emergindo na chamada era pósindustrial, trazendo consigo novos estilos de vida, uma nova economia, profundas mudanças profissionais e conflitos políticos de outra natureza. Diz-se desta nova civilização que o capital intelectual passa a ser sua força motriz, imagens e idéias passam a constituir-se no bem de maior valor agregado. Pensadores e cientistas políticos, como por exemplo Domenico di Masi, redefinem os paradigmas do mundo trabalho, incluindo neles a criatividade, o lazer e a humanização como itens necessários e simultâneos à eficiência. Sugerem que nesta nova sociedade o engenheiro tradicional perde espaço, na medida que a venda de conceitos gera recursos superiores à venda de bens e mercadorias. É crença dos autores, ao contrário do que parece sugerir di Masi, que a engenharia, enquanto área do conhecimento, não só não perde espaço como situa-se no epicentro do processo de transformação das sociedades, tanto industrial quanto pós-industrial. Algumas provas dessa idéia podem ser detectadas na importância do papel que o ensino de engenharia e outras ciências exatas passam a ter nas últimas décadas, nos países que lideraram a revolução econômica e tecnológica do final do Século XX. Milititisky[4], quando define o impacto da atividade de engenharia e seu ensino sobre a economia dos países, sugere que o que está em jogo é provavelmente a própria sobrevivência econômica dos países. Segundo este autor, não há dúvida que a reengenharia do ensino das ciências exatas nos Estados Unidos, na década de 80 do século passado, foi motivada pela constatação de que as empresas, indústria e serviços norte-americanos não estavam sendo competitivos em escala global, perdendo terreno para os japoneses, alemães e tigres asiáticos. Atuando de acordo com a natureza pragmática de sua cultura, os engenheiros e professores de engenharia norte-americanos acataram o desafio proposto na época pelo Comitê de Engenharia da National Science Foundation (NSF): aumentar a competitividade das empresas para aumentar a geração de riquezas e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos do país, pela qualificação dos seus programas de ensino. O país vencedor, pela ótica exposta em conferência da instituição, seria aquele que tiver superávit em sua balança de pagamentos e combinar este superávit com aumento de qualidade de vida do povo, do PIB e da renda per capita. A receita passava (e ainda passa) pelo reconhecimento do papel fundamental da engenharia e do domínio da tecnologia no desenvolvimento econômico. Nos DTC - 93 países vencedores, mesmo no Século XXI, engenheiros ainda são entendidos como agentes de transformação da sociedade e a própria sociedade deve ser capaz de reconhecer neles esta contribuição. Para se localizar nessa nova geografia econômica e tecnológica que vem sendo chamada de era pós-industrial, entretanto, talvez não baste apenas o espírito prático, a boa capacidade de observação e o livre trânsito pela ciência básica e suas aplicações. Mapear a cabeça de engenheiro, hoje, implica reconhecer nela outras qualidades e habilidades, até então talvez pouco necessárias, como a comunicabilidade, a intuição, o bom gerenciamento das relações humanas e as diversidades culturais, a ética e a responsabilidade social e ambiental. Tome-se por base as recomendações da ABET– Accreditation Board for Engineering and Technology, instituição norte-americana que procura estabelecer critérios de qualidade específicos para cada habilitação, concentrando-se nos atributos comuns esperados de todo profissional de engenharia. Cada programa de graduação deve ser capaz de demonstrar que seus graduados em engenharia tenham: capacidade para aplicar conhecimento de matemática, ciências e engenharia; capacidade para projetar e conduzir experimentos, assim como analisar e interpretar resultados; capacidade para projetar um sistema, componente ou processo para atender a determinados requisitos; capacidade para atuar em equipes multidisciplinares; capacidade para identificar, formular e resolver problemas de engenharia; compreensão da ética e responsabilidade profissional; capacidade para comunicar-se efetivamente (por escrito, oral e graficamente); uma educação ampla, necessária para entender o impacto das soluções da engenharia no contexto social e ambiental; a convicção da necessidade do engajamento no processo de aprendizagem permanente; capacidade para usar técnicas e ferramentas modernas para o exercício da prática da engenharia. Supondo-se que todas as sugestões da ABET pudesssem ser implantadas de forma integral e eficiente, num apertar de botões, ainda assim não estaria suficientemente completa a cabeça de engenheiro necessário para enfrentar os desafios pós-industriais. Em países como o Brasil, também deverá ser capaz de enfrentar as barreiras impostas pelo domínio tecnológico das nações mais avançadas, em vários setores da economia, e compreender as nuances da economia globalizada. Finalmente, para entender a necessidade de formação e o perfil desejável do engenheiro, hoje, é necessário desmistificar a própria Engenharia enquanto área do conhecimento. De ciência ou profissão determinística, dogmática, na qual há necessidade de se renunciar à complexidade da natureza e de seus fenômenos físicos, passa a ser o domínio da complexidade e da incerteza Se refletirmos sobre o significado de complexidade, como a extrema quantidade de interações e de interferências entre um número muito grande de unidades, que desafiam as nossas possibilidades de cálculo, veremos que este se aplica rigorosamente à Engenharia, na medida em que temos que conviver cotidianamente com as incertezas decorrentes da modelagem da natureza. De fato o engenheiro lança mão de soluções analíticas na solução de seus problemas, porém, parafraseando René Thom, o determinismo na ciência não pode ser visto neste caso como um dado, mas como uma conquista. A engenharia exige sim a adoção de uma racionalidade crítica, mas definitivamente deverá estar misturando intuição, flexibilidade e experiência ao conhecimento formal. 2.7 – Instrumentalizar a atitude Possivelmente o descendente contemporâneo do proto-engenheiro lascador de pedras, se viver no Brasil, no ano de 2001, estará com boa parte de sua curiosidade, observação e desejo de resolver problemas voltado para o consumo de energia elétrica e os programas de racionamento e racionalização de uso. Ele (ou ela) não hesitarão em sair do banho mais rápido para rabiscar um mecanismo de controle da temperatura da água do chuveiro que lhe ocorreu, assim... por intuição. A diferença em relação ao seu ancestral é que o engenheiro terá hoje, à DTC - 94 sua disposição, os transdutores de potência já desenvolvidos, para transformar sua idéia em realidade: os equipamentos eletrônicos, as informações disponíveis, os catálogos e manuais. Trata-se, possivelmente, da mesma natureza curiosa, da afinidade com os cálculos e as precisões, do gosto pela objetividade e da tendência a observar os fenômenos ao seu redor para transformar (para melhor) o ambiente. Mas se, como os autores propuseram no início do artigo, refletir sobre a identidade do engenheiro deva ser o primeiro passo para melhor formálos, pela geração de um ambiente de aprendizado capaz de estimular as características e as habilidades que definem esse perfil e além disso dar conta de todas as novas exigências geradas pela sociedade pós-industrial, é forçoso que se perguntem se os cursos de engenharia, hoje, no Brasil, oferecem esse ambiente, ou se, ao contrário, ainda é possível encontrar alunos desmotivados e prontos para deixar seus cursos, apesar de possuírem legítimas e férteis cabeças de engenheiro? Algumas mudanças já foram realizadas pelas universidades brasileiras para adequar a formação dos alunos ao perfil considerado ao novo engenheiro. Hoje, por exemplo, a idéia de que o profissional de engenharia deve trabalhar isolado, disseminada nos cursos até as décadas de 60 e 70 do século passado, já está irreversivelmente ultrapassada. Os alunos são estimulados ao trabalho em equipe desde os primeiros anos de sua formação. Também já são coisa do passado os currículos integralmente obrigatórios, nos quais disciplinas como topografia ou geologia tinham que ser compulsoriamente freqüentadas por alunos de todas as áreas de engenharia. Hoje, há uma boa flexibilidade propiciada pela oferta cada vez mais diversificada de disciplinas eletivas. A revolução promovida pela informática e os paradigmas da globalização econômica estão sendo incorporados à cultura acadêmica, apesar do tempo elástico da implantação de novas culturas. Um tempo, aliás, incompatível com a velocidade das mudanças estruturais. A questão de maior relevância precisa ainda ser respondida – as mudanças estruturais apontadas são suficientes para recolocar as universidades no caminho da modernidade atendendo aos paradigmas acadêmicos necessários à formação do engenheiro do Século XXI? A reposta é infelizmente negativa, pois os cursos de engenharia continuam engessados à estrutura curricular formatada nas décadas de 50 e 60. Ainda são cursos prioritariamente informativos, apesar do fato de que a informação está hoje inteiramente acessível e os conteúdos disponibilizados em múltiplas mídias, inclusive na internet. Há boas iniciativas individualizadas, em várias universidades, sobre como tornar esse ensino mais formativo, capaz de instrumentalizar a atitude curiosa e observadora do engenheiro, transformando-a em uma saudável cultura de busca autônoma de informações, apropriação e uso do conhecimento para tomada de decisões e flexibilidade na escolha por soluções criativas e inovadoras [5]. Mas como já ensinaram as experiências de outros países, são necessárias mudanças institucionais, percebidas como processos integrados às necessidades da economia e da sociedade, capazes de realmente fazer diferença na valorização do engenheiro como agente potencializador da qualidade da vida dos cidadãos. O grande desafio é a necessidade de uma formação básica adequada que sirva de alicerce à formação continuada, à atitude do autoaprendizado, do olhar criativo e flexível, da curiosidade e do prazer pela busca do conhecimento, de si mesmo e do mundo. 3 – CONCLUSÕES É forçoso reconhecermos que estamos lamentavelmente despreparados para enfrentar os desafios impostos pelas novas tecnologias e necessários à formação do engenheiro do Século XXI. Talvez seja preciso que os professores e pesquisadores do ensino de engenharia observam o processo de ensino/aprendizagem também como um complexo problema de múltiplas variáveis a serem modeladas dinamicamente, gerando possivelmente soluções de várias (e algumas novas) áreas de engenharia - a engenharia pessoal, a engenharia econômica, a engenharia do conhecimento – cada uma das quais com sua respectiva ciência e tecnologia. DTC - 95 Talvez também seja indispensável que os próprios professores sejam permeáveis a vivenciar em si mesmos os processos de auto-conhecimento, desenvolvimento de habilidades de comunicação, estímulo à curiosidade e ao auto-desafio, transformando os foros de produção e discussão dessa da pesquisa em ensino em ambiente obrigatoriamente interdisciplinares. Talvez tenham que instrumentalizar sua atitude cotidiana, como professores de engenharia, através do aprendizado (contínuo e permanente) dos modernos conceitos da psicologia, da pedagogia, da cognição, da comunicação, da arte e da cultura contemporâneos e tantos outros. Possam ensinar, como Chaplin, no filme Tempos Modernos: “Não sois máquinas... homens é o que sois...”. Flexibilizar-se, sem perder o espírito prático e o olhar da ciência. Sobretudo é urgente reconhecer a responsabilidade de encaminhar as discussões sobre a formação do engenheiro para a formulação de ações que disseminem as novas idéias e definam as estratégias e políticas de implantação de mudanças. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] E. Lewis, http://www.vf.k12.mo.us/cccb1/sld017.htm. [2] E. Marcorini, Science and Technology – A Narrative Chronology, Facts on File, New York, NY, 1988, p. 4. [3 ] G. A. Haaf, Origem da Humanidade, Círculo do Livro, Abril, São Paulo, 1979 [ 4] J. Milititsky, O desafio de formar engenheiros como transformadores sociais. Editorial ao Suplemento Engenharia, encartado no jornal Gazeta Mercantil/RS de 17 de agosto de 1998. [ 5 ] M. A. Zaro, M.I. Timm, LMM: Uma experiência pedagógica no ensino de instrumentação. XXVII COBENGE, 1999 (Natal, CE). [6] Nacional Academy of Sciences, http://www.nas.edu/ [7] R.J. Smith, B.R. Butler, and W.K.LeBold, Engineering as a Career, McGraw Hill, New York, NY, 1983, p. 5. [ 8 ] R. Villela, Ele fez. Agora acontece. In: Revista Veja de 10 de janeiro de 2001, Editora Abril, p. 108/109 [9 ] W. A. Bazzo, L. T. Do V. Pereira, Introdução à Engenharia, 4a. Ed., Editora da UFSC, Florianópolis, 1996. DTC - 96