ESTADO DE MINAS COMUNICAÇÃO COMPORTAMENTO A teoria sistêmica e o jogo armado nas CPIs Regina Navarro Lins fala de sexualidade PÁGINA 3 PÁGINA 6 3 1 D E D E Z E M B R O D E 2 0 0 5 O FUTURO KATSUMI KASAHARA S Á B A D O , c m y k C e o passado VIRGILIO FERNANDES ALMEIDA omeço por um título. Um título de ficção científica, pensariam os leitores mais apressados. Nonsense, diriam aqueles mais influenciados pelo pragmatismo dos americanos. Mas é justamente o incômodo do título e suas possibilidades nos tempos que estão por vir que tornam a questão inquietante. Não se trata de um devaneio, nascido da proximidade com a tecnologia. Trata-se, sim, de como as percepções humanas mais fundamentais, como o tempo, a memória e a lembrança vão sendo silenciosamente moldadas pela natureza tecnológica do mundo contemporâneo. A literatura do escritor moçambicano Mia Couto, despojada do cenário de modernidade e próxima do homem e da natureza, leva-nos a refletir sobre o caminho oposto, marcado pela simbiose do homem com os modernos artefatos tecnológicos. Ao tratar da África e suas tradições orais, Mia Couto constrói um terreno que serve como contraponto às sociedades contemporâneas, em que termos como “digital” e “tempo real” tornaram-se deuses da atualidade. Sociedades e pessoas entrelaçam-se por meio de processadores, memórias eletrônicas e softwares, onipresentes nos computadores, TVs, celulares, games, DVDs, aparelhos domésticos e internet. Sem contar os dispositivos eletrônicos e microprocessadores que vêm sendo implantados no corpo humano para a cura de deficiências diversas. Tudo tende a interligar-se cada vez mais e o mundo global ruma para se tornar um grande palco, em que o diaa-dia ocorrerá em tempo real e na forma digital. As guerras, os conflitos urbanos, os debates políticos, os desastres ecológicos, os casamentos de celebridades, as relações amorosas e até nascimentos são colocados nas redes de comunicação e computação em tempo real, em que imagens e informações não param nunca de fluir. O tempo humano vai sendo esquecido, intimidado pelo tempo acelerado das máquinas. Não custa lembrar um dito de Tizangara, a vila moçambicana de O último vôo do flamingo: “O mundo não é o que existe, mas o que acontece.” No ritmo de bolero interminável, dois pra lá, dois pra cá, a tecnologia digital dá seus passos em todas as direções, assimilando antropofagicamente características intrínsecas da condição humana. Como disse Machado de Assis, “isto é a vida; não há planger ou imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros e ir por diante.” Assim sendo, é melhor mergulharmos nessas novas questões e entender um pouco mais o que há nesse título, pois a expansão do mundo digital é inexorável. O jogo é seguir os sinais captados pela sensibilidade da literatura e seus autores. Por meio das vozes dos personagens da literatura africana de Mia Couto, buscaremos comprender o sentido dessa inversão dos tempos futuros e passado. Como uma cobra-de-duas-cabeças, a alta tecnologia nos atrai e nos assusta. Afastamo-nos da natureza, aproximamo-nos das máquinas, em busca do conforto da modernidade, do esquecimento do tempo e da cura de males humanos. Em um instante de reflexão em Terra sonâmbula, Kindzu faz uma constatação essencialmente humana: “Afinal, em meio da vida sempre se faz a inexistente conta: temos mais ontens ou mais amanhãs?” Por não estarem sujeitas à morte, as máquinas não sentem o incômodo do tempo, não necessitam do bálsamo do esquecimento e não diferem entre o registro na memória eletrônica e o prazer puramente humano da lembrança. É quando Luarmina pergunta a Zeca, em Mar me quer: “Sempre quero saber se é você que inventa a lembrança ou se é a lembrança que inventa você.”A máquina não tem lembranças, não in- venta lembranças, tem apenas memória, com capacidade praticamente ilimitada para registrar tudo, dados, sons e imagens. Imobilizados pelo poder da ciência e tecnologia, nós nos confundimos. Às vezes, iludidos pela imortalidade das máquinas, pensamos que o tempo e a memória humana poderiam seguir o ritmo das máquinas. Esquecemos a natureza. Viramos as costas às limitações humanas. Como pensava o velho Sulplício em O último vôo do flamingo, “o corpo humano era feito de tempo. Acabado o tempo que nos é devido, termina também o corpo.”O passar do tempo humano tem a ver mais com movimentos existentes na natureza e com os sentimentos e percepções humanas do que com o tempo das máquinas. Mais uma vez, podemos ouvir as vozes da África contrapondo-se ao tempo artificialmente acelerado pelas máquinas eletrônicas: “A lua anda devagar mas atravessa o mundo”. Do que vale ter memória se o que mais vivi é o que nunca se passou. “O último vôo do flamingo”, Mia Couto A memória eletrônica das redes, formadas por centenas de milhões de computadores interligados, cria uma espécie de memória pública e coletiva. Por meio da Web e internet, crescente parte da população global recorre à busca de dados e informações do passado e do presente. Como Ítalo Calvino chamou em um de seus contos, trata-se da construção da memória do mundo: “O conteúdo das mais importantes bibliotecas do mundo, dos arquivos, dos museus, das coleções de jornais de cada país e também uma documentação recolhida ad-hoc, pessoa por pessoa, lugar por lugar.” Ou seja, as máquinas vão aos poucos tecendo redes, que guardam a memória do mundo, que passam a influenciar a memória individual das pessoas. “Olhei na internet”, “pesquisei na máquina de busca”, “descobri isso”, “encontrei essas fotos” e “encontrei alguém na internet” passaram a ser expressões comuns entre as pessoas. Virou prática rotineira entre os mais novos, que vão se formando num mundo diferente no qual conhecimento escolar, relações pessoais e divertimento se apóiam no universo construído pelas máquinas eletrônicas. Vão formando uma visão de mundo, que não mais vem só dos livros e das conversas com a família e amigos de vizinhança ou escola. Uma visão moldada pela maneira como tecnologia e as máquinas simbolizam e armazenam os fatos e as informações da vida. Uma visão que não é mais influenciada pelos limites da distância geográfica ou pelos grupos sociais que vivem numa mesma área. A noção de distância geográfica foi abolida pela rede. Um cenário inexistente até há poucos anos, mas que hoje nos surpreende e mostra seu poder cada vez que desejamos entrar em contato com alguém em algum ponto do CYAN MAGENTA AMARELO PRETO mundo, lembrar ou buscar uma informação que não sabemos ainda onde está, se existe ou onde poderia ser encontrada. Uma memória coletiva que vai se tornando complemento da memória individual das pessoas, embora essas duas memórias tenham tão pouco em comum. A memória das máquinas e das redes limita-se à objetividade das informações. Não sofre a influência da subjetividade. As máquinas ainda não se arriscam no ilimitado terreno humano da subjetividade, ignorando os prazeres e as dores das paixões, lembranças, crises, dúvidas e morte. A máquina não pensa como Luarmina, quando difere entre memória e lembrança: “Não recebo quentura da água. Quem me aquece são lembranças, doces lembranças”. A memória do mundo em construção é ainda fria e incompleta. A memória do mundo é um processo em construção na internet. Novas tecnologias ampliam as funcionalidades disponíveis, criando os blogs, wikis e outros artefatos que têm características sociais. A Web vai sendo transformada pelas interações dinâmicas entre comunidades de usuários em tempo real. Opiniões, comentários e pensamentos vão sendo divulgados à medida em que vão aparecendo. O impacto desses pensamentos pode também ser avaliado em tempo real pelas reações e opiniões que os leitores de blogs deixam para seus autores. A memória eletrônica do mundo é, no entanto, incompleta, cheia de “buracos”, representando a heterogeneidade do mundo globalizado. Questões econômicas, religiosas, políticas e divisões sociais e nacionais que permeiam o mundo moderno excluem pessoas, comunidades e conhecimento da Web, tornando a memória do mundo seletiva, deixando “buracos” referentes aos não incluídos na era digital. O perigo mora na possibilidade de que a visão proporcionada pela memória montada pelos artefatos tecnológicos – computador, internet, Web e games -torne-se a visão das futuras gerações. Uma visão que, por não ter os pés na terra, pode vir a ser compartimentada, pasteurizada e sem as diferenças que surgem da relações com a natureza e as pessoas. Como disse o velho Mariano em Um rio chamado tempo, uma casa chamada Terra, “os livros são um estrangeiro para mim. Porque eu estudo na chuva. Ela é minha ensinadora.” “Com Estevão se passou o seguinte: sua vida esqueceu-se da sua palavra. O hoje comeu o ontem”, descreve o narrador em O último vôo do flamingo. Aqui começa a pista para a compreensão do título. Poderíamos parafrasear Mia Couto e ousar dizer que, no mundo eletrônico, o amanhã comerá o hoje, recriando o ontem. Calvino também lançou luzes sobre essas questões nos anos 1960, quando a tecnologia para isso ainda inexistia: “O que será do gênero humano no momento de sua extinção? Uma certa quantidade de informações sobre si mesmo e sobre o mundo, uma quantidade finita, dado que não poderá mais se renovar e aumentar.” Mais ainda, Calvino emitia sinais que alertavam sobre perigos dos “buracos” na memória do mundo: “Deve-se fazer com que nada fique de fora (da memória do mundo), pois o que ficar de fora será como se nunca tivesse existido”. A exiqüibilidade de modificação, intencional ou não, da memória do mundo armazenada eletronicamente em bilhões de computadores torna possível imaginar um cenário em que fatos futuros poderão, em certa extensão, remodelar a “cara do passado”. Há, para o bem ou para o mal, consequências que ainda não vislumbramos, mas que, talvez, a arte e a literatura dos homens continuem a dar pistas para encontrá-las. Professor titular do Departamento de Ciência da Computação da UFMG CYAN MAGENTA AMARELO PRETO A humanidade corre o risco de ver a memória moldada por artefatos tecnológicos, como internet e computador, transformar-se na única visão das futuras gerações c m y k