15ª Jornada Nacional de Literatura
Leituras jovens do mundo
12º Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura
e Patrimônio Cultural
Leitura, arte e patrimônio: redesenhado redes.
De 27 a 31 de agosto de 2013
UPF
Passo Fundo (RS), Brasil.
A IDENTIDADE ADVINDA DA EXPERIÊNCIA
HISTÓRICA NA LITERATURA DE MIA COUTO E
CHIZIANE
Renata Ribeiro i (UFPel)
Pode a literatura, através de uma escrita individual, representar uma
experiência traumática coletiva? Uma obra literária, ou um conjunto de obras, que
versem sobre a guerra poderiam ser emissárias de uma narrativa de teor testemunhal?
Para compreender estas relações em que a experiência histórica é materializada
através da literatura foram escolhidos autores que leem o passado e o presente através
da experiência histórica. Os moçambicanos Mia Couto e Paulina Chiziane representarão
um fazer literário que nos indica vestígios do passado corporificados no presente.
Mia Couto e Chiziane sustentam-se no impulso da experiência histórica e
existem elementos comuns aos dois escritores. Por esta razão, o viés de análise
escolhido é o comparatista, que articulada literatura e história através da
interdiscursividade. Esse passado histórico − ressignificado na obra de ambos− e a
experiência denotada através do entrecruzamento entre literatura e história são os
objetos de reflexão deste trabalho, que foca ainda a narrativa de teor testemunhal.
Para compreender a experiência histórica e a narrativa de teor testemunhal,
advindos do registro literário, fora escolhido o seguinte corpus: Terra Sonâmbula
(2007), A varanda do frangipani (2008) e O último voo do flamingo (2005), a
denominada “trilogia da guerra” de Mia Couto; e Ventos do apocalipse (2006), romance
de Paulina Chiziane que também abarca a temática do conflito.
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1. NARRATIVA DE TEOR TESTEMUNHAL
A experiência, mundo vivido, e o ato de narrar, sua interpretação, pertencem ao
fluxo da história e ao fluxo da narração. Encontram, portanto, campo de reflexão tanto
na história quanto na literatura. Experenciar e narrar possuem intrínseca relação. O fato
vivido no passado é trazido para o presente através da narrativa. Sendo assim, cabe
analisar os conceitos e mecanismos vigentes no ato de rememorar e narrar.
De acordo com White (1994) houve muita relutância entre os historiadores em
aceitar as narrativas históricas como o que elas de fato são, ou seja, ficções verbais cujo
conteúdo é tão inventado quanto descoberto, as quais, por vezes, encontram maior
ancoragem na literatura do que na área das ciências. Para White, a história não é nem
uma ciência exata, nem uma ciência natural. Somente aproximando-se história e
narrativa ter-se-ia a ciência da história.
A história, segundo White, se escreve da mesma forma que se escrevem as
narrativas, selecionando, interpretando e ordenando os eventos narrados. A narrativa
histórica pressupõe um enredo e um fato isolado não significa nada, adquirindo valor
apenas quando posto em narrativa. A estrutura narrativa é dotada de conteúdos, não de
fatos em si. A ordenação dos fatos é que traz a relação de causalidade. Deve-se,
portanto, colocar a ênfase nos procedimentos da escrita da história, que são os mesmos
da escrita da literatura, notando-se, porém, que através destas escritas (históricas ou
ficcionais) não é possível recuperar a verdade exterior ao texto, já que as narrativas
decorreram destas escolhas, ordenações, feitas pelo narrador e este já aplicou o seu
filtro.
Cabe então refletir acerca do papel de quem narra a história. Devem-se analisar
as influências políticas, religiosas, classe social; de onde fala, época, hierarquia social,
aspectos geográficos que vivenciou; o que fala, qual o interesse do narrador em deixar
essa história registrada; para quem fala e para quem pretende dirigir o seu discurso.
O testemunho seria, a priori, presumidamente verdadeiro. Desta forma,
direciona-se a discussão para a concepção de narrador testemunhal, (SELIGMANN-
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SILVA, 2008, p.65) “aquele em que a memória do trauma é sempre uma busca de
compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela
sociedade”.
Neste viés, Seligmann-Silva (2008) traz à tona o testemunho das catástrofes, que
é exatamente sobre o qual se debruça este estudo. A guerra em Moçambique é a
ancoragem factual dos testemunhos coligidos na literatura ficcional de Mia Couto e
Chiziane. Estes marcos traumáticos problematizam a figura da testemunha, já que o
eventos é por vezes tão contaminante que torna difícil o afastamento necessário da
vítima para que possa narrar seu testemunho de forma lúcida e íntegra.
No entanto, consegue-se testemunhar aquilo que o narrador já conseguiu manter
determinada distância e, por isso, “necessita” narrar. “O trauma é caracterizado por ser
uma memória de um passado que não passa” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p.69),
assim sendo, registrar este passado torna-se quase uma obrigação para quem o viveu,
não só para que ele possa ficar inscrito na história dos subalternos, mas também para
que possa ser dirigido ao esquecimento, suscitando novas memórias.
A memória, que não é da ordem privada, como afirma Ricouer (1997), só possui
valor na coletividade. O testemunho, com a carga de verdade que lhe deve ser atribuída,
encontra na história a ancoragem e na narrativa de teor testemunhal um canal para o
registro e preservação da memória coletiva.
O que pode gerar inquietação sobre uma narrativa de teor testemunhal é a
relação individual/coletividade. Candau (2004) afirma que mesmo na coletividade os
indivíduos mantém a sua memória particular e isto é que traz o tom da dúvida.
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2. MEMÓRIA COLETIVA: ARTICULAÇÃO ENTRE INDIVIDUAL E
COLETIVO PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA
IDENTIDADE
Segundo
Halbwachs
(1990),
ainda
que
estejamos
rememorando
um
acontecimento individual, em que estivemos sozinhos, nossa lembrança permanece
coletiva. O autor afirma que, na realidade, nunca estamos só. A teia das lembranças é
tecida através da nossa experiência e da intervenção que quaisquer outras pessoas façam
─ ou deixem de fazer ─ em relação a ela.
A memória individual, de acordo com Halbwachs, não se basta. Ela tem
necessidade de apoiar-se na de outrem. Precisa-se reconstruir uma lembrança a partir de
dados ou noções comuns. Só assim, a recordação pode ser reconstruída e reconhecida
como tal. A lembrança, só existe se existe sociabilidade, compartilhamento. De acordo
com o autor, por esse motivo não somos capazes de recordar lembranças remotas de
nossa infância, pois ainda não somos um ser social. Não existiria, portanto, uma
memória estritamente individual.
Os atos, pensamentos, de um indivíduo estão
pautados pelas regras da sociedade, por isso esta intervém na memória individual.
A memória coletiva,portanto, é possível,porém, cada indivíduo imprime nela seu
próprio estilo,sua interpretação. De acordo com Candau,(2002) a memória coletiva é
mais do que a soma dos esquecimentos e recordações,é o resultado de uma elaboração
individual,daquilo que se tem em comum e daquilo que se precisa esquecer.
Candau, em seu texto, Antropologia da memória, cita Halbwachs para teorizar
que marcos coletivos ou marcos sociais de memória são mais convincentes do que o
termo memória coletiva. Halbwachs( apud CANDAU,2002, p.65), no seu texto “Lês
cadres sociaux de la mémoire”, afirma que:
Não existe memória fora dos marcos que os homens utilizam para
viver em sociedade, para fixar e encontrar suas lembranças. Estes
marcos não são somente um envolto para a memória, eles mesmos
integram antigas recordações que orientam a construção dos novos.
Quando eles são destruídos, ou simplesmente se modificam,os modos
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de memorizar da sociedade também se alteram para poderem adaptarse aos novos marcos sociais que se instauraram. (HALBWACHS apud
CANDAU,2002, p.65)
É necessário inventar uma memória para construir uma identidade e esquecer
fatos traumáticos. Os africanos inventam novas fórmulas culturais ─ como a literatura ─
capazes de permitir a preservação da sua identidade, tradições e mitos, sem, entretanto,
recusar a dinâmica da mudança.
Quando um país passa por conflitos como guerras, ditaduras, massacres, e estes
acabam por destruir o todo que forma uma nação, é comum que se busquem alternativas
para reconstruir essa identidade esfacelada e Moçambique é um dos países que tiveram
que passar por esse processo de reconstrução identitário.
A literatura de Mia Couto denota através de metáforas o sentimento do povo,
reflete as angústias, dramas e resquícios da colonização.
A baleia moribundava,esgoniada. O povo acorreu para lhe tirar
as carnes, fatias e fatias de quilos. Ainda não morrera e já seus ossos
brilhavam no sol. Agora, eu via meu país como uma dessas baleias
que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e já as facas lhe
roubavam pedaços, cada um tentando o mais para si. Como se aquele
fosse o último animal, a derradeira oportunidade de ganhar uma
porção. (COUTO,2007,p.23)
No trecho supracitado, a baleia representa, dito explicitamente, o país, uma
nação desmantelada pelas sucessivas guerras, a qual fora obrigada a entrar nas
engrenagens portuguesas (a faca a roubar pedaços) e agora não mais consegue formar
um todo coeso, pois suas raízes já estão há muito adormecidas.
3. EXPERIÊNCIA HISTÓRICA
A experiência, de acordo com Walter Benjamin (1985) era um conceito que há
muito se atrelava à autoridade que a velhice trazia. No entanto, o autor problematiza o
quanto as narrativas proferidas pelos idosos ainda encontram espaço para serem ouvidas
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pelos jovens interlocutores? Que linguagem seria a mais adequada? Aonde encontra-seiam estes idosos dispostos a transmitir a experiência?
Uma das conclusões a que se chega é de que o discurso é tão importante quanto
a experiência. A maneira de transmitir o conhecimento, sua coerência, sua
intencionalidade é que darão conta de torná-los universais e necessários.
Contudo, esta narrativa calcada na experiência não é um simples entrelaçar de
fatos. Benjamin percebeu que muitos dos que passavam por experiências traumáticas,
como a guerra, necessitavam do silêncio. Tais experiências eram tão dilaceradoras que
era impossível comunicá-las. Surgiram então os livros sobre a guerra. A literatura
emerge como um dos suportes encontrados como via para estes depoimentos.
Já Lukács (2011) discorre sobre a experiência linkando-a à literatura através do
viés das crises históricas nacionais. Analisa o romance histórico de Walter Scott e relata
que os herois construídos pela nação são significativos há medida em que existe uma
comoção nacional, a qual decorreu de uma experiência, como a trazida por ele, a
Revolução Francesa. A “grandeza humana” estaria retratada nas personagens que
denotam seus conflitos através de suas ações na diegese. Os tipos sociais históricos
(2011, p.151) ganhariam vida através da literatura e eles que representariam a realidade.
Por esta forma de figuração humana e histórica Scott dá vida à
história. (...) ele representa a história como uma série de grandes
crises. Sua representação do desenvolvimento histórico (...) é uma
série ininterrupta de crises revolucionárias.( LUKÁCS, 2011, p. 72)
No seu livro intitulado O romance histórico (2011) com o autor afirma que o
verdadeiro romance histórico traz o passado para perto de nós, de maneira a torná-lo
experenciável. Sem uma relação experenciável com o presente, a figuração da história
seria impossível. Portanto, o vínculo com o passado é essencial e a experiência,
necessária.
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4. MIA COUTO E CHIZIANE
As obras de Mia Couto e Chiziane estão inseridas em uma fase na qual
Moçambique busca uma nova identidade. A literatura, neste contexto, emerge como
uma forma de registrar esta nova identidade, um suporte material que integra o
patrimônio cultural deste país.
Como todo patrimônio, ainda que imaterial, é alvo de disputa entre grupos,
pois ele agrega valores culturais, identitários e, muitas vezes, de poder. Assim, percebese que cultura pode ser sinônimo de conflito e decidir qual tipo de representação se
exalta, qual a política de representação desse patrimônio, é decidir a maneira como se
está reconstruindo o passado desta nação, a memória de que grupo(s) está-se fazendo
representar.
Cada autor traz, a sua maneira, o passado ressignificado. Nota-se na obra de
Chiziane uma maior dureza nas palavras. Já Mia Couto, através da sua prosa poética,
nos revela a mesma experiência dolorosa advinda da guerra, mas sob uma linguagem
mais sinuosa, mais encantada.
Em todos os romances analisados a guerra é o pano de fundo da diegese. No
entanto, a visão sobre a guerra, a experiência advinda dela é relatada por personagens
que não pertenceriam à versão oficial da história. A eles os autores emprestam a
palavra, como no romance Ventos do Apocalipse (2006), de Chiziane, no qual os
curandeiros e mestres de cerimônia relatam os horrores da guerra, as mulheres contam
as tristes sagas de fuga e de morte dos filhos e maridos. Ou no intitulado O último voo
do flamingo(2005), de Mia Couto, no qual prostitutas e feiticeiros ganham espaço
contando suas versões da história.
A ordenação dos fatos, a seleção do que nos será contado, como indica White
(1994), é feita por estas personagens que não tiveram oportunidade de construir uma
história oficial, mas que relatam como foi de fato a experiência da guerra. Em Terra
Sonâmbula (2007), romance de Mia Couto, os cadernos são o suporte de memória. As
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estórias são vestígios da história e quem seleciona o que contar é o velho que repassa as
narrativas ao garoto.
A experiência, que nos indica Benjamin (1985), é trazida à tona pela crise da
guerra. Mas de fato não é tarefa fácil relatar os momentos vividos. As incoerências se
fazem presente. As várias versões em torno de uma mesma memória, como no caso da
A Varanda do Frangipani (2008), de Couto.
Todos os romances elencados apresentam o caráter de narrativas de teor
testemunhal. Como afirma Selligmann-Silva (2008) é necessário narrar. Esta
necessidade é nítida quando feita a leitura das obras. Ela perpassa toda a narrativa, por
vezes é explicitada. Nota-se também o desejável distanciamento do fato traumático para
que pudesse haver a narração já ocorreu, devido do à temporalidade das narrativas.
Todavia os resquícios do trauma aparecem nas recordações, no rememorar, através da
narrativa das memórias coletivas.
Aspectos Conclusivos
Através deste trabalho pôde-se melhor compreender como funciona o processo
de reconstrução das “identidades” presentes em Moçambique. A memória do trauma
contida na literatura ajuda a recriar os espaços e o evento traumático (a guerra).
Esta reflexão espera que
seja confirmada a hipótese de que a memória
traumática e a experiência que precisa ser narrada são registros identitários importantes
e servem de suporte de memória. Depois de decorrida a experiência histórica, ela é
ressignificada individualmente e a partir daí advém o testemunho.
Também concluiu-se que o testemunho, enquanto gênero literário, acaba
afunilando-se para a experiência e que Mia Couto e Chiziane se sustentam no impulso
da experiência histórica. Existem temáticas, preocupações comuns aos dois escritores e
pôde-se perceber que ambos leem o passado e o presente a partir da experiência
histórica.
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Referências
BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985[ pp. 114-119].
CHIZIANE, Paulina. Ventos do Apocalipse. Lisboa: Caminho, 2006.
COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras,2005.
___________________. Terra sonâmbula. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
___________________. A varanda do frangipani. São Paulo: Cia das Letras, 2008
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice Editora, 1990:
[pp.25-52]
LUKACS, Gyorgy. A forma clássica do romance histórico. O romance histórico. Trad.
Arlenice Imeida da Silva. São Paulo:Boitempo Editorial, 2011 [pp.33-113].
RICOEUR, Paul. A crítica e a convicção. Conversas com François Azouvi e Maré de
Launay. Lisboa: Edições 70, 1997.
___________________. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: ed.
Unicamp, 2008.
SELIGMANN- SILVA, Marcos. Narrar o trauma - A questão dos testemunhos de
catástrofes históricas.
Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010356652008000100005&lng=en&nrm=iso&tlng=en>
Acesso em: 13 ago. 2013.
WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. Trópicos do discurso:
ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 1994 [pp. 97-196].
i
(Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural, UFPel, Brasil)
E-mail: [email protected]
9
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a identidade advinda da experiência histórica na literatura de mia