Brasil
O Brasil que ainda
D
“Avisei para um funcionário
do hospital que eu estava
surtando e que ia me cortar.
Ele me falou para esperar
o turno dele acabar e passar
a lâmina no pescoço”
uas décadas e meia
depois do fim da ditadura militar (1964-1985), o Brasil não
está livre da tortura – uma das pragas que
marcaram o regime. Sevícias como pressão psicológica, choques, espancamentos,
violência sexual e assassinatos ainda
fazem parte do cotidiano de delegacias,
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ISTOÉ 2175 20/7/2011
J., ex-interno do Hospital de Custódia
e Tratamento Psiquiátrico de Taubaté (SP)
Solange Azevedo
batalhões da PM, presídios e unidades
para adolescentes infratores. Nos anos de
chumbo, as vítimas preferenciais eram estudantes engajados, intelectuais e líderes
políticos. Os militares se viram obrigados
a arrefecer quando as ações praticadas
nos porões da repressão repercutiram
no Exterior. Atualmente, os torturadores
mostram sua face mais cruel aos pobres
e encarcerados. Pessoas sem voz e com
pouquíssimo acesso à Justiça. Mas tudo
indica que a violência contra esses cidadãos, em breve, também repercutirá
além das fronteiras nacionais e voltará a
abalar a imagem do País. Uma delegação
do Subcomitê da ONU para a Prevenção
tortura
O que a delegação da ONU,
que virá ao Brasil em
setembro, irá encontrar em
todo o território nacional
da Tortura virá ao Brasil, provavelmente
em setembro, e fará visitas-surpresa a
locais de privação de liberdade. O objetivo do grupo é traçar um panorama
das agressões e pressionar para que o
Estado tome providências.
Não existem números confiáveis sobre
tortura no País. Como se trata de um
crime praticado, em geral, por policiais
ou carcereiros, as vítimas têm medo de
denunciar. Casos como o dos seis PMs
presos em flagrante na semana passada
por terem ameaçado e ateado fogo num
morador de rua em Taboão da Serra,
na Grande São Paulo, são raríssimos. O
que chega aos tribunais é uma pequena
parcela do que ocorre diariamente. “A
tortura no País é cultural, generalizada
e sistemática. Começou no período da
escravidão e se mantém até hoje”, afirma
Margarida Pressburger, integrante do
Subcomitê da ONU. “A vocação brasileira para a tortura se solidificou porque
os torturadores não são punidos.” Para
castigar, arrancar confissões ou obter
informações sobre terceiros, agentes do
Estado adotam a ferramenta criminosa
da tortura como método de trabalho.
“Os dados nacionais mais recentes
são de 2003. Depois disso, o programa
Disque-Denúncia federal foi desativado.
Em dois anos, foram recebidas 20 mil
denúncias”, diz Luciano Mariz Maia,
procurador da República e membro
do Comitê Nacional Contra a Tortura.
Maia afirma que, de cada três casos de
tortura, um é praticado por policiais civis,
fotos: joão castellano/ag. istoé; www.felipevaranda.com;
um por PMs e o outro por categorias como
a dos carcereiros e dos guardas civis. “Em
um terço dos registros, não há crime
aparente, como quando alguém é pego
só porque está olhando o quintal de
uma casa”, relata o procurador.
Pela lei brasileira, torturar é “constranger alguém com emprego de violência ou
grave ameaça, causando-lhe sofrimento
físico ou mental com o fim de obter
informação, declaração ou confissão”
ou “submeter alguém, sob sua guarda,
poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso
sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida
de caráter preventivo”. O engenheiro
R., 34 anos, sentiu na pele o que isso
significa. Vive à base de remédios desde
2007, quando foi detido por policiais do
Departamento de Investigações sobre
Crime Organizado (Deic), em São Paulo.
Suspeito de repassar linhas de teste da
Vivo para o crime organizado, ele foi
abordado sem mandado de prisão, algemado e jogado numa viatura. No trajeto
“Torturaram e mataram meu
filho dentro da delegacia.
Quero que os responsáveis
sejam punidos”
Indaiá Moreira, 43 anos, mãe de Vinicius
até o Deic, de acordo com o depoimento
de R. à Corregedoria, os policiais pararam num galpão e o torturaram. Ele afirma que levou socos, choques nas pernas
e no ânus e foi abusado sexualmente.
Os policiais exigiram que ele confessasse um crime que não havia cometido.
No ano passado, R. foi inocentado pela
Justiça. Apesar da absolvição, ele não
consegue levar uma vida normal. Faz
acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Já tentou suicídio. Raramente sai
de casa e entra em pânico quando vê
aglomerações. R. perdeu tudo: o emprego, a mulher, os amigos, a saúde. Ele
denunciou o caso à Corregedoria. Mas o
órgão arquivou duas apurações preliminares alegando “ausência de elementos
e fragilidade da declaração prestada”.
“Ficavam me perguntando
quem era o dono de uma
moto amarela e falando
que, se eu indicasse alguma
boca de fumo, eles me
soltariam. Mas eu não
vi nenhuma moto”
S., 42 anos, enfermeira
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Brasil
Entre 2007 e maio de 2011, segundo a
Secretaria da Segurança Pública de São
Paulo, 77 policiais civis foram demitidos
por violência – o que inclui, entre outros
delitos, lesão corporal e tortura.
“Quem investiga é a própria polícia
ou funcionários dos presídios. Muitas
vezes, é o torturador quem leva a vítima
para o exame de corpo de delito, e os
médicos que fazem os laudos se omitem”,
diz José de Jesus Filho, assessor jurídico
da Pastoral Carcerária Nacional. “É um
problema o Judiciário imaginar que
torturadores são psicopatas”, afirma o
procurador Maia. “A tortura é racional
e quem a pratica acha que está fazendo
algo positivo para a sociedade, que está
desvendando delitos. No meio em que
esses indivíduos estão inseridos, é uma
escolha intimamente defensável.”
A enfermeira S., 42 anos, foi presa em
março de 2010. Ela relata que, logo depois de pegar carona com um amigo da
filha e um conhecido dele, uma viatura
os abordou. Ao revistar o carro, um dos
PMs teria encontrado uma arma debaixo
do banco. Começava ali o tormento. S.
conta que os três foram levados para o
37o Batalhão da Polícia Militar, na zona
sul da capital paulista. “Estava algemada
e fui empurrada várias vezes contra a
parede, fiquei com um galo na testa. Me
jogavam no chão, davam socos na minha
nuca e chutes na minha bunda, me puxa-
“Eram cinco policiais me
batendo e me xingando.
Davam socos e tapas.
Tentaram me chutar no
rosto, mas me protegi
com as mãos e fiquei com
os dedos machucados”
T., 42 anos, trabalha num ferro-velho do Rio
vam pelos cabelos”, diz.“Ficavam me perguntando quem era o dono de uma moto
amarela e falando que, se eu indicasse
alguma boca de fumo, eles me soltariam.
Mas eu não vi nenhuma moto.”
S. chora ao recordar que uma policial exigiu que ela ficasse nua para ser
revistada. “A porta estava aberta e todo
mundo que entrava se achava no direito
de me bater”, lamenta. “Os policiais riam
e falavam: ‘Olha que desgraça, que baranga’. Um deles beliscou o meu mamilo.
Fiquei das quatro da tarde até umas 7
horas apanhando. Os meninos pagaram
R$ 5 mil e foram liberados. Só falaram
que o revólver estava na minha bolsa
porque também foram torturados.” S.
passou 38 dias na cadeia. Procurada por
ISTOÉ, a Assessoria de Imprensa da PM
foi lacônica. Em nota, respondeu que a
responsabilidade administrativa de três
policiais, “por terem conduzido pessoa
presa para dependências do quartel
para que fosse realizada revista pessoal
minuciosa”, está sendo apurada.
“Quando agressões são um método investigativo e agentes públicos se
sentem no direito de mitigar a vida, a
tortura se torna apenas um detalhe”,
afirma o advogado Rildo Marques, do
Centro Santo Dias de Direitos Humanos. Em junho, J. encontrou o neto com
hematomas nos braços e nas pernas. Ele
é um dos 16 internos que apanharam na
Unidade 28 da Fundação Casa (antiga
Febem paulista). “Tinha menino com
o pé quebrado, com pontos na cabeça,
com o dedo decepado”, diz J.
O relato dessa senhora, de 62 anos, foi
confirmado à ISTOÉ por mães de outros
três internos. A instituição, no entanto,
Vítimas e algozes
A tortura no Brasil começou no período escravagista e, embora com
motivações diferentes, se mantém até os dias de hoje
Período:
escravagista
(1530-1888)
Agente agressor direto:
capitão do mato
Agente agressor indireto:
senhor branco
Vítimas:
negros escravos
Objetivos:
humilhação,
submissão e
castigo
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Período:
ditadura militar
(1964-1985)
Agente agressor direto:
policiais e militares
das Forças Armadas
Agente agressor
indireto: Estado
Vítimas: estudantes,
intelectuais e lideranças
políticas
Objetivos: obter confissões,
informações e inibir
movimentos pró-democracia
Período:
Pós-Constituição Federal de 1988
Agente agressor
direto: policiais
e agentes penitenciários
Agente agressor
indireto: Estado
Vítimas:
população pobre,
detentos e suspeitos de
crimes
Objetivos:
obter confissões, informações sobre delitos
de terceiros e castigo
“Tinha menino
com o pé quebrado,
com pontos na
cabeça, com o dedo
decepado”
J., 62 anos, avó de um interno da
Unidade 28 da Fundação Casa
não admite tamanha violência. “Há indícios de que o tumulto foi iniciado pelos
adolescentes e que houve excesso de
alguns funcionários. Estamos apurando”,
alega Jadir Pires de Borba, corregedor da
fundação. “Houve confronto. Há adolescentes com escoriações e ferimentos na
cabeça, mas nenhum com fraturas ou
dedo decepado.” Seis funcionários foram
atendidos no pronto-socorro. Desde
2005, 77 servidores da instituição foram
demitidos por justa causa em decorrência de agressões e maus-tratos.
A tortura física pode deixar marcas
visíveis. A psicológica, não. J., 26 anos,
passou 2010 no Hospital de Custódia
e Tratamento Psiquiátrico de Taubaté.
Dependente de crack e inserido num
quadro que a ciência chama de “borderline” – um distúrbio em que o indivíduo
apresenta sintomas inerentes a qualquer
ser humano, mas com uma intensidade
que o afasta do eixo da normalidade –
ele foi internado após roubar um celular
e ser considerado pela Justiça paulista
incapaz de responder por seus atos.
Na companhia da mãe, J. contou que
ficava trancafiado na cela 20 horas por
dia e que não recebeu tratamento médico. “Minha mãe pediu para o pessoal
do hospital não me dar prestobarba,
porque eu me cortava. Mesmo assim,
eles davam. Uma vez, avisei a um funcionário que eu estava surtando e que ia
me cortar. Ele me falou para esperar o
turno dele acabar e passar a lâmina no
pescoço”, diz o rapaz. “Fizeram alguma
coisa na minha cabeça. Sai pior do que
entrei. A psicóloga falava que minha
mãe estava contra mim.” Contatada por
ISTOÉ, a SAP não se manifestou.
O Subcomitê da ONU encontrará
histórias escabrosas. A sequência de torturas praticadas por policiais no Rio de
Janeiro levou parlamentares a tomar uma
providência inédita no Brasil. O deputado Marcelo Freixo (PSOL) criou, através
de lei, o Comitê de Prevenção à Tortura
no Estado para monitorar delegacias,
presídios, unidades socioeducativas e
manicômios. “A ditadura militar acabou,
mas a tortura continua”, garante Freixo.
Não faltam exemplos. Em março, T., 42
anos, foi agredido durante três horas
numa delegacia da capital fluminense.
“Queriam que eu confessasse que era
parceiro de um traficante”, afirma. “Eram
cinco policiais me batendo e me xingando.
Davam socos e tapas. Tentaram me chutar no
rosto, mas me protegi com as mãos e fiquei
com os dedos machucados. Um deles pegou
um alicate, apertou e puxou meu pênis”.
Diante da dor insuportável, T. assinou a
confissão. Cinco policiais que o agrediram chegaram a ficar 15 dias presos.
Assim como outras vítimas entrevistadas para esta reportagem, T. preferiu
manter o anonimato porque teme pela
própria segurança e de familiares. Indaiá
Moreira, 43 anos, não. Ela percorre os
tribunais fluminenses em busca de Justiça desde 2009. O filho dela, Vinicius,
morreu 20 dias depois de ser preso.
“Torturaram e mataram meu filho dentro da delegacia”, conta Indaiá. Vinicius,
20 anos, tinha um ferimento subcutâneo
na cabeça, o que lhe causou um coágulo,
e marcas de queimaduras de cigarro
pelo corpo. Indaiá recebeu uma inde-
fotos: Adriano Machado, Joao castellano / Ag. IstoÉ, Masao Goto Filho / Ag. IstoÉ, felipe varanda. Ilustrações: Rubineto
Pela reforma
das polícias
Relator especial das Nações
Unidas contra a Tortura, o argentino Juan E. Méndez esteve no
Brasil há duas semanas para o II
Seminário Latino-Americano de
Justiça de Transição. À ISTOÉ, ele
defendeu uma reforma institucional profunda na Polícia Militar
para limpá-la dos entulhos legais
e culturais da ditadura.
ISTOÉ – Qual sua análise sobre a
ocorrência de torturas e maus-tratos em delegacias e presídios no
Brasil?
Juan E. Méndez – É
uma situação grave,
que remete à necessidade de uma reforma
institucional profunda
nas polícias, especialmente na Polícia Militar, que ainda é regida
por leis da ditadura.
Hoje mesmo, durante o
seminário, recebi uma
denúncia de um Estado
do Nordeste.
ISTOÉ – O que mais
pode ser feito para melhorar essa
situação?
Méndez – O governo brasileiro tem
que criar um mecanismo nacional
de prevenção à tortura e investigar
os crimes do passado também.
ISTOÉ – A brutalidade de hoje é
efeito colateral do passado?
Méndez – E só terminará com a
justiça e a verdade sobre esses crimes. Não basta só a reparação financeira às vítimas. A Lei da Anistia
é um obstáculo a esse objetivo.
Claudio Dantas Sequeira
nização de R$ 50 mil porque o Estado
reconheceu que falhou na guarda de
Vinicius, pego numa tentativa de assalto.
“Não me interessa o dinheiro, quero que
os responsáveis pela morte dele sejam
punidos”, sentencia Indaiá. “Sei que vai
ser difícil, mas vou lutar até o fim.”
Colaborou Francisco Alves Filho
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O Brasil que ainda tOrtura