Avaliar é humano,
auto-avaliar humaniza
Renata Lima Aspis
Professora de Filosofia, mestranda em Educação pela Unicamp,
capacitadora de professores do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças
e autora do livro Ensinando a Pensar com: idéias que contam histórias, histórias das idéias do Zé.
Livro de orientação para professores
A
avaliação na educação de crianças e jovens dentro da escola vem sendo
um grande problema há muito tempo.
Numa escola onde a educação é praticada (não necessariamente de forma
confessa) como formatação de comportamento e acúmulo de informações
memorizadas, o aluno não encontra qualquer vínculo entre o conhecimento e sua
realidade sensível, e vê-se aprisionado a um sistema que ceva-o com dados e
depois o castiga se passar mal.
Mesmo se nos aproximarmos de muitas escolas ditas progressistas,
notamos ainda, numa tentativa de “avaliação contínua” ou “avaliação do
processo”, muitas vezes o professor se perde numa infinita seqüência de
provinhas e provonas. Essas nada mais são que recortes unilaterais do processo
ensino-aprendizagem, não dando conta, assim, de avaliá-lo como um todo.
Ora, e por que não? Em primeiro lugar porque a única coisa que se avalia é
a assimilação dos conteúdos como foram transmitidos (isso na melhor das
hipóteses, pois não é raro encontrar uma confusão entre assimilação de
conteúdo e comportamento na hora da atribuição do conceito) e, em segundo
lugar, porque a avaliação é feita só pelo professor.
Não é difícil ouvirmos reclamações dos alunos quanto à quantidade de
provas marcadas para a mesma data. Por que ele não pode fazer duas ou três
provas no mesmo dia? Porque passa a noite anterior tentando entender ou
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decorar aquilo que não fez parte da sua vida até aquele momento, embora
fizesse do programa e das aulas do professor. Se assim é, fica realmente quase
impossível se sair bem em todas elas. A prova para esse aluno é só o meio de
tirar uma nota e a nota é o passaporte para sua “liberdade”. Depois daquela
prova ele pode esquecer o que tinha decorado. A prova, portanto, é o passaporte
para sair do conhecimento, e não entrar nele!
Falamos sobre o que acreditamos que não deve ser feito, mas o que, então,
deve ser a avaliação? Deve estar diretamente relacionada aos eixos que
norteiam o processo ensino-aprendizagem, a saber, os conteúdos, as habilidades
cognitivas e as atitudes.
Parece que estamos passando por um momento em que há alguma
confusão em relação a essas três coisas. Talvez seja útil lembrar que fazemos
essa divisão mais para efeito de análise e estudo do que por acreditar que seja
dessa forma estanque que funcione. Não há conteúdo sem habilidade e nem
habilidade sem conteúdo. Assim como não há nada no reino humano que não
envolva uma atitude do sujeito.
Muitas críticas são feitas aos colégios tradicionais ditos de ensino “forte” e
possivelmente muitas são justas, mas aquela que diz que um ensino assim está
só preocupado com conteúdo não tendo nada de habilidades cognitivas, parece
equivocada. Ele é justamente classificado como “forte” porque, além da
memorização de dados, oferece aos alunos exercício de raciocínio. No entanto,
esses exercícios são feitos sempre dentro dos padrões de cada componente
curricular, sem comunicação entre eles e, por isso, sem consciência e autonomia
do aluno. E quem sabe até mesmo sem essa consciência por parte do próprio
professor.
Desprovido da consciência do processo de seu pensamento, está
impossibilitado de transferir procedimentos de um contexto para o outro. E não só
isso: mas também não poderá se autocorrigir. Sem o olhar distanciado daquele
que tem consciência do quê, como e porque está fazendo, o aluno não poderá
participar de sua educação. Em outras palavras, o processo ensinoaprendizagem tem que ser de metacognitivo.
O homem imagina. Pode imaginar-se. Pode e deve planejar a pessoa que
quer ser, o mundo no qual quer viver. Não podemos deixar de perceber que todo
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esse complexo balé que tricota o mundo humano está totalmente perspassado
de avaliação. Como a primeira machadinha de graveto e pedra amarrados se
transformou na serra elétrica, se não por que o homem é um animal avaliador?
Errar é humano? Então, avaliar é humano. Chamar o erro de erro já é estar
avaliando o que deu certo e o que não deu certo, segundo os planos.
Se educação for o fomento das capacidades humanas, então não podemos
deixar que se aliene do aluno seu grande trunfo, o que justamente caracteriza-o
enquanto homem: a reflexão. Assim sendo, a avaliação é questionamento. E sem
ela não há liberdade humana. Portanto, avaliar humaniza.
A maneira mais justa, portanto, assim de se fazer avaliação na escola é a
auto-avaliação. Essa deve começar a ser exercitada assim que começa a vida
escolar. Obviamente não estou propondo aqui que devemos abolir todos os
instrumentos de avaliação até aqui usados para nos dedicarmos exclusivamente
ao que o aluno “acha” dele mesmo. Com certeza a orientação do professor em
todos os tipos de avaliação é imprescindível. Se há conteúdo, não podemos
deixar de verificar se ele significa algo para o aluno. A diferença deve estar em
como essa “provação” é encarada pelo aluno e isso depende de como o
professor a introduz.
• Se depois de uma prova há uma aula de correção, na qual o professor
explica a resolução de cada questão com a participação dos alunos sugerindo e
perguntando; se depois disso cada um puder escrever um texto no qual analise
os motivos de seus erros, reconhecendo-os e detectando razões que o levaram a
isso; se, além disso, os alunos puderem depois refazer a prova, com certeza sua
idéia de prova vai mudar bastante.
• Se o professor, numa outra ocasião, propuser que sejam os alunos que
elaboram as questões da prova, tendo como pano de fundo os objetivos que
devem ser alcançados naquele momento do curso, e coloque a regra que só se
pode perguntar o que se sabe responder, talvez ele nem precise aplicar essa
prova!
• E se o professor propuser exercícios, explicitando claramente os critérios
de avaliação, depois fizer uma troca para que cada aluno corrija o exercício do
outro e depois se sentem juntos para comentarem, justificarem e modificarem o
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que for necessário, provavelmente estará fazendo uma considerável mudança no
que seus alunos entenderam por avaliação até hoje.
• Se o professor incentivar no aluno o abandono da borracha para que
possa apreciar a história dos seus erros, para que possa ir analisando o seu
processo na aprendizagem, o caminho de seu próprio raciocínio, podemos dizer
que esse aluno estará ensinando-se ao mesmo tempo em que está aprendendo
e também está conhecendo mais de si e do homem. Isto é metacognição e coautoria no processo ensino-aprendizagem. Isto é humanizante.
Além dos diversos instrumentos de avaliação de conteúdos/habilidades do
pensamento que o professor pode criar – sempre com a clareza de seus
objetivos – talvez seja interessante ter um instrumento mais abrangente e
pessoal para cada aluno fazer a sua auto-avaliação. No entanto, para que não
haja confusão entre auto-avaliação e auto-enganação é necessário que os
critérios sejam determinados por todos do grupo, depois de discutirem suas
necessidades e entrarem em acordo. Assim cada um estará assumindo uma
atitude de compromisso público com o conhecimento, consigo mesmo e com o
outro. Isso pode representar o começo da passagem da heteronomia para a
autonomia intelectual na qual cada um pode pensar por si mesmo de forma
criteriosa, consciente de si e sensível ao contexto.
Talvez, assim, estejamos colaborando não só para a mudança no conceito
de avaliação, mas também para ajudar a modificar a idéia de estudo que o aluno
hoje normalmente tem. Não é necessário que o jovem seja colocado em contato
com o conhecimento acumulado da humanidade como quem estivesse num
cemitério. Sua relação com as idéias tem de ser viva. A questão é: como abrir
caminhos para que o aluno descubra a paixão intelectual, a guia intelectual? E
mais que isso, como indicar que é a escola justamente o lugar para se fazer
isso?
Parece fácil perceber que uma tal mudança na forma de avaliar requer uma
revisão de nossos métodos. Uma educação para o pensar propõe um
redimensionamento do papel do professor, da relação professor-aluno e da
relação aluno-aluno. Não será mais tolerável enfileirar os alunos, expor o nosso
modo de ver as coisas, esperar que eles concordem, desejar que se interessem
e exigir que o reproduzam. Temos que pensar em desenvolver maneiras de
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investigar juntos, avaliar juntos e definitivamente poder assumir o aluno como
produtor de conhecimento.
Só mais uma questão: quanto estamos preparados para tais mudanças?
Parece que para uma educação assim precisamos também cuidar da relação
professor-professor.
Se
não
houver
coerência
entre
nós,
cooperação,
consciência das razões e propósitos que nos movem, como esperar que haja
entre os alunos?
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