UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIENCIAS EXATAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
CURSO DE HISTÓRIA
RITA DE CÁSSIA GOMES NASCIMENTO
PELAS CRIANÇAS DESVALIDAS: o Instituto de Assistência à Infância do Maranhão nas
primeiras décadas do século XX
São Luís
2007
RITA DE CÁSSIA GOMES NASCIMENTO
PELAS CRIANÇAS DESVALIDAS: o Instituto de Assistência à Infância do Maranhão nas
primeiras décadas do século XX
Monografia apresentada ao Curso de História
da Universidade Estadual do Maranhão, para
obtenção do grau de Licenciatura em História.
Orientadora: Prof. Msc. Márcia Milena
Galdez Ferreira
São Luís
2007
NASCIMENTO, Rita de Cássia Gomes.
Pelas Crianças Desvalidas: o Instituto de Assistência à Infância do
Maranhão nas primeiras décadas do século XX / Rita de Cássia
Gomes Nascimento. ___São Luís, 2007.
73 f.. : il.
Monografia (Graduação em História) – Universidade Estadual do
Maranhão, 2007.
1. Infância 2. Assistência 3 Século XX. I Título.
CDU 364. 4 – 053.2
RITA DE CÁSSIA GOMES NASCIMENTO
PELAS CRIANÇAS DESVALIDAS: o Instituto de Assistência à Infância do Maranhão nas
primeiras décadas do século XX
Monografia apresentada ao Curso de História
da Universidade Estadual do Maranhão, para
obtenção do grau de Licenciatura em História.
Aprovada em: _____/_____ /_____ .
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Prof. Msc. Márcia Milena Galdez Ferreira
____________________________________________
1º Examinador
____________________________________________
2º Examinador
Ao meu irmão Júnior sempre presente em cada
passo e em cada conquista.
AGRADECIMENTOS
Ao espírito e força divina ligada a mim de um jeito muito particular.
À minha mãe D. James que por sua força e sonho me trouxe até aqui com auxílio do meu pai.
Aos meus irmãos Jorge e Júnior e minha irmã Ana Carolina sempre juntos na luta diária de viver
e resistir aos golpes do inesperado.
Às minhas sobrinhas queridas, Mariana Cristina e Maria Victória recém-chegadas na família, mas
já possuidoras de um espaço enorme em nossas vidas.
À Jamilson Miranda Mesquita por acompanhar esta etapa da minha história e por me incentivar
através das palavras de carinho.
À Jeane Carla e Larissa Rachel pela amizade sincera de “dias de sol e de chuva” e, também , pela
ajuda necessária no processo de construção da monografia. A vocês dedico uma imensa
admiração.
À “Ala Rebelde”, grupo de amigas unidas pelo carinho e determinação. Meus sinceros
agradecimentos à Bruna Rachel, Kellen Regina, Patrícia Guzmán, Marilda Martins, Flávia
Cilene, Carla Rabelo e Delene Thaís. Obrigada pela força.
Aos demais amigos e companheiros de caminhada no curso de História: Yara, Salomão, Patrícia
Costa, Daniel, Jhonatan, Maykon Levi, Poliana, Arisson , Mardeine e Marco Aurélio.
Aos amigos queridos Sávio José e Ubiratane Rodrigues, pela solicitude e cumplicidade.
À pessoas queridas como Dona Teresa, Alberto Wallas, Wilma, Adão, Wilson, Lena, Pedro,
Lucas, Weberth, Elaine e Elisângela que cederam gentilmente seu espaço. Agradeço a Álvaro
pela generosidade do livre acesso à “República do Azul”. À Dona Graça por me receber tão bem
em seu lar.
Aos professores do curso de História, de forma especial à Professora “Lourdinha”, uma mestra, e
a Professor Fábio Monteiro pelo “afeto paternal”.À orientadora Márcia Milena Galdez pelas dicas
finais, porém valiosas.
Às funcionárias da Biblioteca Pública Benedito Leite.
Aos alunos e alunas do II Projeto Magistério do PRONERA/UFMA/MST/ASSEMA com quem
aprendo a me humanizar e encampar a luta por uma educação do campo libertária e libertadora.
À equipe do PRONERA/UFMA/MST/ASSEMA.
Enfim, a todos e todas que acompanharam um pouco desta história de conquista, minha sincera
gratidão.
.
O historiador é um profissional cujo trabalho
consiste em costurar panos rotos com agulha e
linhas novas. Por essa razão, sempre que pretende
finalizar sua tarefa e precisa dar o último nó,
quase sempre deve tudo recomeçar, posto que o
pano invariavelmente se rompe.
Manoel de Jesus Barros Martins
RESUMO
Neste estudo pretende-se abordar a infância desvalida em São Luís, especificamente, nas
primeiras décadas do século XX, através da atuação do Instituto de Assistência à Infância do
Maranhão (1911-1939).
Para tanto, analisa-se o papel e a natureza desta instituição de caráter privado e filantrópico
através da descrição de sua organização e funcionamento. Tal enfoque serviu como pano de
fundo para se compreender as condições sociais das crianças pobres no período pesquisado; e o
sentido do discurso assistencial – aliado ao da medicina social, higiene, eugenia e puericultura –
que fundamenta a implementação da prática institucional.
Nesse sentido, a pesquisa aponta que, no limiar do século XX, o tratamento assistencial ao menor
desvalido, através do Instituto, estava articulado às aspirações elaboradas no curso da ordem
republicana que pretendia inserir novas concepções de progresso, civilização e cidadania aos
sujeitos e aos espaços urbanos.
Palavras-Chaves: Infância desvalida, Instituto de Assistência à Infância, República, Século XX.
RESUMÉ
Ce étude prétende-on aborder l`enfant en São Luís, spécifiquement dans les premiéres décade du
siècle XX, à travers l`atuation du Instituto de Assistência à Infância do Maranhão (1911-1939).
Donc, analyse-on le rôle et la nature de cet institution de caractére privé et philantropique à
travers la description de sa organisation et functionnement. Tel abordage, a servi comme pan de
mur pour on comprendre les conditions sociaux des l`enfant dans la période recheché; et le sens
du discurs assistentiel – allié au de la médicine social, hygiène, eugénie et puériculture – que
fonde l`implantation de la pratique institutionel.
Ainsi, la recheche indique que, dans le seuil du siècle XX, le traitement assistentiel aux enfants à
travrs l`Instituto, était articulé avec les aspirations sortis de l`ordre républicaine que a voulu
insérir nouvelles conceptions de progrés, civilisation et citoyenneté aux sujets et aux espaces
urbains.
Mots-clés: Enfants, Instituto de Assistência à Infância, République, Siècle XX.
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 11
2
ASSISTÊNCIA AOS PEQUENOS DESVALIDOS: da caridade à filantropia..........1519
3
“O CORPO É O ALVO”: medicina social, higienismo e eugenia................................1925
3.1 “Um a mais a corrigir, um a menos a tratar”: URBS, Ordem Médica e Norma Familiar...36
4 “PELAS CRIANÇAS”: O Instituto de Assistência à Infância do Maranhão..................45
4.1 “AUXILIAI A ASSISTÊNCIA À INFÂNCIA”: Os Intelectuais e A Pacotilha............... 355
4.2 “A REGENERAÇÃO DOS COSTUMES PARTE DO ALTO”: a atuação das Damas de
Assistência................................................................................................................................... 61
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................67
LISTA DE ILUSTRAÇÕES......................................................................................................69
REFERÊNCIAS....................................................................................................................... 70
1 INTRODUÇÃO
Neste estudo aborda-se a infância pobre na capital ludovicense, especificamente nas
primeiras décadas do século XX, através do assistencialismo de caráter privado e caritativofilantrópico do Instituto de Assistência à Infância do Maranhão.
Situa-se o assistencialismo à criança desvalida nas primeiras décadas do século XX como
o conjunto de discursos e práticas implementadas pela elite local representada por alguns
intelectuais, como é o caso de Fran Paxeco (1874-1952), por filantropos, médicos; “senhoras bem
nascidas” e pelo poder público estadual que também subsidiava estes tipos de práticas.
Procurou-se analisar o Instituto de Assistência à Infância (1911-1939) na articulação do
sentido de sua existência como o contexto de época (nacional e local) marcado por anseios
advindos da República que buscava, ainda neste momento, se consolidar dentro dos sujeitos,
sobretudo citadinos, e também nos espaços sócio-institucionais. Buscou-se focalizar a estrutura
organizacional do instituto e seu modus operandi na intenção de perceber os critérios de
admissão das crianças neste espaço e as condições e a natureza do assistencialismo praticado.
Concebeu-se a assistência social a partir de múltiplas referências (VENÂNCIO, 1999;
MARCÍLIO, 2005), mas pode-se destacar aqui a concepção lançada pela historiadora Vera Lúcia
Braga de Moura na dissertação “Pequenos Aprendizes: Assistência à Infância Desvalida em
Pernambuco no século XIX”, defendida no ano de 2003 na Universidade Federal de Pernambuco.
Para esta estudiosa, a assistência social refere-se a uma expressão nascida na segunda metade do
século XIX, com o objetivo de amparar os chamados menos favorecidos da sociedade. Nesse
sentido, esta categoria pauta-se no referencial da sociedade capitalista na construção de um
projeto de orientação e amparo àqueles considerados, na ótica do sistema, ignorantes e
incapacitados, física e psicologicamente, para que sejam integrados na sociedade como
indivíduos produtivos (MOURA, 2003).
A infância assistida tem sido, neste sentido, um campo explorado pela história social da
Infância (KUHLMANN JR, 2004). Configura-se como um campo de pesquisa que vem se
consolidando pari passu com os estudos da infância na História. Nesse sentido, o presente
trabalho visa somar forças na construção deste espaço de estudo dentro da historiografia local.
Estudar a infância dentro da História maranhense é ainda um campo pouco explorado dentro das
universidades. Nessa perspectiva, tal estudo faz-se importante.
É necessário traçar aqui, mesmo de forma breve, algumas pontuações acerca do caminho
percorrido pela história da infância no sentido de perceber como se deu o processo de
delineamento da história social da infância e sua articulação com os estudos na perspectiva da
assistência institucional. Os primeiros passos podem ser localizados desde a década de 1960
quando a história da infância tem recebido grande impulso. Vários trabalhos vêm sendo
publicados na historiografia inglesa, francesa, norte-americana e italiana1 tomando como
referência principalmente as pesquisas na área da demografia histórica que forneceu grandes
subsídios à história da família, da mulher e da assistência às crianças.
Referente ao abandono de crianças, por exemplo, Venâncio (1999) destaca que foi a
demografia histórica que descobriu o volume e as flutuações do nível deste fenômeno no
passado; afirma, ainda, que “os estudos inovadores da jovem ciência trouxeram à luz realidades
humanas insuspeitáveis” (VENÂNCIO, 1999, p.09) com números sobre mortalidade e natalidade
pode-se visualizar a situação e cultura de cuidado às criancas.
A história da infância é um campo que vem paulatinamente consolidando espaço na
historiografia nacional e internacional. Mesmo ligada, desde seu surgimento, à história da
família, de gênero, do espaço privado, da população, da urbanização, do trabalho, das relações de
produção e das instituições educacionais vem desenvolvendo certa autonomia no que diz respeito
às categorias teórico-explicativas elaboradas nos esquemas de análise histórica. Tal fato dá-se
com mais vigor, sobretudo no século XX quando são lançadas obras sobre a infância como é o
caso da célebre tese do historiador francês Phillipe Ariès que buscando problematizar o modo
dominante de pensar a infância, conseguiu na obra, originalmente lançada em 1962, História
Social da Criança e da Família, polemizar acerca de uma temática até então pouco teorizada. Seu
trabalho, em larga medida, segundo Kohan (2003) constituiu-se em um divisor de águas entre
1
COLEMAN, E. R. Infanticide dans le Haut Moyen Âge. Annales. Èconomies, Sociétes, Civilisatios, 29 (2): 31536, mar/abr., 1974; BEAVER, M. W. Population, Infant Mortality and Milk. Population Studies, 4 (1973);
FLANDRIN, Jean-Louis. Enfance et Societé, Annales Esc, 19 (1964) et alli.
historiadores da psicologia social. Este autor afirma, ainda, que depois da produção de Phillipe
Áries,
os historiadores da infância não mais puderam afirmar impunemente uma noção
a-histórica da infância, ou, em todo caso, passaram a dever enfrentar os
argumentos de Áries, que se tornou referência obrigatória para acólitos e
profanos” (KOHAN, 2003, p.63)
As teses de Ariès, grosso modo, giram em torno de
dois eixos de análise. O primeiro parte da defesa
de que nas sociedades européias, durante a época
medieval, não havia um sentimento ou
“consciência da infância”. Era, pois um “momento
da vida” tido como sem importância, não fazendo
sentido, portanto, qualquer registro de lembrança
ou sofrimento com a perda repentina de um
infante. Para Ariès (1981), a demografia do
medievo pode ser vista como uma das
justificativas deste tipo de indiferença.
Ariès traça, assim, um quadro de surgimento ou descoberta da infância a partir da
observação de indícios ou vestígios que vão se tornando com a modernidade cada vez mais
aparente. Para isto, utiliza como fontes as imagens e costumes (escola, trajes, jogos etc) que
denotam estas transformações de mentalidade e postura em relação aos pequenos.
A descoberta da infância começou sem dúvida no século XVIII, e sua evolução
pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e
XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente
numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século
XVII. (ARIÈS, 1981, p.65).
O segundo ponto teorizado por Ariès refere-se ao afloramento, a partir do século XVII, de
um novo sentimento em relação à “infância”. Isto quer dizer que se desenvolve uma perspectiva
diferenciada acerca da criança que passa a ser considerada o centro das atenções dentro da
instituição familiar. Não só isso, mas os pequenos passam a serem considerados como meios de
distração e relaxamento dos adultos. “A família torna-se um lugar de ‘afeição necessária’ a partir
da valorização da educação” (ARIÈS, 1981, p. 12). A criança sai, assim, do anonimato quando a
ambiência educacional estende-se ao convívio familiar.
A partir do século XX, a escola surge como mecanismo de distanciamento do mundo
adulto. Sua aprendizagem de vida deixa de ser a experimentação prática e precoce da vida adulta
para ser assumida pela escolarização. Como conseqüência há uma “polarização da vida social no
século XIX em torno da família e da profissão e o desaparecimento da antiga sociabilidade”
(ARIÈS, 1981, p.12). Neste contexto, a criança adquire um novo espaço dentro e fora da
instituição familiar.
As teses de Phillipe Áries abriram caminho para um intenso debate, em particular nos
anos 1970 e 1980, entre os pesquisadores. Muitas críticas foram lançadas tentando desconstruir as
idéias acima descritas. A aceitação de sua interpretação de infância deu-se com maior entusiasmo
entre medievalistas, psicólogos e sociólogos (HEYWOOD, 2004). Alguns estudiosos da infância
na história, como é o caso de Colin Heywood, demonstram grande preocupação em relação à
tomada do estudo de Ariès como obra maior da literatura historiográfica da infância por ter
iniciado uma discussão até então sem visibilidades dentro da academia.
É importante, contudo, que não se “naturalize” a análise de Áries, ou seja, a infância
como conceito culturalmente construído resguarda e necessita de visões diversas que ajudem a
preencher lacunas no percurso histórico. Deve-se, assim, criticar Ariès no que se mostrou, a partir
das demandas atuais como incipiente, como no caso da iconografia medieval tomada enquanto
interpretação absoluta do real no medievo.
Segundo Heywood (2004) a afirmação da inexistência de consciência ou sentimento da
infância é forte e impreciso. A definição na época era feita de forma diferenciada e pouco clara.
Para compreender esta especificidade, primeiramente, deve-se superar a visão estática de Europa
Medieval. Isto nos permite, por exemplo, contrapor a assertiva de Ariès quanto à idéia de
inexistência, até o século XII, da infância nas artes medievais. É importante que se compreenda
que a iconografia da época não indicava especificamente um não-lugar da infância no universo
social, mas, que a concentração nos temas religiosos e/ou hagiográficos excluiu de suas
produções toda uma vida secular, o que não torna a ausência da criança como especificamente
significativa ou intencional.
Outro ponto a ser considerado é o
desmonte da idéia fechada da inexistência de uma
consciência da infância quando se sabe que
conceitos como infância são historicamente
definidos e situados, o que torna plausível a
afirmação de que “o mundo medieval
provavelmente teve um conceito de infância, mas
suas concepções eram muito diferentes das
nossas” (ARCHARD apud HEYWOOD, 2004,
p.27).
Dentro do campo historiográfico brasileiro
acerca da infância pode-se destacar os
apontamentos introdutórios registrados por
Gilberto Freyre na década de 1930. não elabora
um estudo sistemático sobre a infância brasileira,
mas tece fases de evolução da infância na
sociedade colonial e no Brasil Império. Em Casa
Grande e Senzala (2003), Freyre descreve a
“meninice” dentro da sociedade patriarcal refletida
na precocidade e no amadurecimento rápido em
direção ao mundo adulto. Para Moura (2003),
Freyre descreveu uma criança que tinha vergonha
de sua infância o que motivava a modificação do
seu comportamento “adultizado”, além , é claro,
da necessidade clara de crescimento e formação de
“pequenos senhores” que exercessem e
perpetuassem o poder senhorial.
Gilberto Freyre (2003), pontua o processo
infantil não só da criança branca, moradora da
Casa Grande, mas teceu importantes considerações
sobre a criança indígena. Um ponto de análise que
cruza a versão de Gilberto Freyre acerca da
infância dos três tipos de crianças acima citadas é
a comum exposição à crueldade – segundo a
leitura ocidental - e severidade em universos
diversos. A criança indígena era submetida a
imposições ritualísticas e culturais de flagelo e
perfuração de partes do corpo, a criança branca era
explicitamente vítima de espancamentos e
crueldades feitas pelos próprios pais por fins
pedagógico-disciplinares e a criança negra sofria a
condição de ser objeto de uso de uma sociedade
escravista (MOURA, 2003). Gilberto Freyre
descreve a condição de criação e vida das crianças
no período colonial, constituindo-se, portanto,
como fonte de pesquisa da História da Infância.
Para Cambi e Ulivieri (apud KUHLMANN, 2004), há pelo menos dois grandes setores da
história da infância: a história social da infância e a história do imaginário da e sobre a infância.
Na primeira, estudam-se as condições de vida, as instituições, as práticas de controle, a família, a
escola, a alimentação, os jogos, a vida material e social. Já a segunda pretende perceber as
modificações no imaginário em relação ao fenômeno-conceito infância.
Convém definir o presente trabalho como pertencente à categoria da história social da
infância por concentrar esforços na descrição e análise das condições de vida das crianças tidas
como pobres da capital maranhense durante as primeiras décadas do século XX a partir da
atuação do Instituto de Assistência à Infância do Maranhão, entidade de caráter privado e
assistencialista-filantrópico.
A pesquisa situa-se, mais especificamente, no estudo da assistência à criança pobre que
tem, segundo Kuhlmann Jr. (2004), assumido certa evidência entre os historiadores, fato
justificado por sua historicidade e pelo volume significativo de fontes capazes de alimentar essas
pesquisas principalmente no limiar do século XX.
Optou-se no presente trabalho pela criança submetida a condições de vida conceituada
como pobre ou miserável pelos sujeitos da elite, mas que vivia sob uma estrutura familiar, ou
seja, estava sob a responsabilidade de algum adulto, a quem era incumbido a matrícula na
referida instituição devendo ter, ainda, um endereço fixo que permitisse a assistência médica
domiciliar. É importante fazer este esclarecimento para que não se confundam os sujeitos desta
pesquisa com crianças abandonadas, também recorrente no contexto de época, mas que eram,
geralmente assistidas nas Rodas e Casas de Expostos existentes em São Luís até o ano de 1946.
Para desenvolver este estudo, foi necessário o uso de fontes localizadas em importantes
lugares de memória da capital maranhense, como é o caso do Arquivo Público do Estado do
Maranhão (APEM) e Biblioteca Pública Benedito Leite. Nestes locais efetuou-se a leitura de
jornais de época, destacando-se A Pacotilha por sua ligação “umbilical” com a instituição
pesquisada, Relatórios do Instituto de Assistência à Infância, mais especificamente os de 1917 e
1918; Leis do Estado do Maranhão (1912, 1914, 1918 e 1931); além de obras raras como o livro
“Geografia do Maranhão” (1922), de Fran Paxeco, e História da Imprensa no Maranhão (18211925), de Antônio Lopes. Esta etapa foi ao mesmo tempo prazerosa e angustiante, prazerosa por
ser um momento de descoberta e re-descoberta a cada contato com as fontes, e de angústia, pois a
cada inquietação surgiam “novas perguntas”, nem sempre possíveis de serem respondidas tão
facilmente. Historiar o passado pelas fontes-documento, segundo Marc Bloch (2001), significa
partir da necessidade-desafio de fazer as palavras dos testemunhos falarem mesmo a contragosto.
Isto faz parte do que Bloch (2001) denomina de “espetáculo da busca” que resguarda grande
dificuldade, porém é condição vital para uma pesquisa bem conduzida.
Uma das grandes angústias também vivenciadas na presente pesquisa esteve relacionada
às condições das fontes, sobretudo jornais, que se encontravam em avançado estado de
deterioração o que dificultava por vezes a pesquisa. Mesmo aqueles micro-filmados
apresentavam-se impossibilitados de leitura, pela ausência de regularidade no tratamento químico
adequado, sem contar as máquinas de leitura do micro-filme que já estão um tanto defasadas,
prejudicando sobremaneira a visão do pesquisador.
Divide-se a monografia em três capítulos. O primeiro, Assistência aos Pequenos
Desvalidos: da caridade à filantropia, tem como objetivo discutir conceitos que permeiam este
trabalho, como a natureza e significado da assistência e os sentidos assumidos no Brasil durante o
período colonial, com a caridade exercida, sobretudo pela Igreja e a filantropia do final do século
XIX e início do século XX ligada ao ideário republicano de “prevenção do desvio” e pela
iniciativa privada através de ações de proteção à infância, tendo como pano de fundo as
concepções médicas de ordenamento dos sujeitos e do espaço urbano.
O capítulo segundo “O Corpo é o Alvo”: medicina social, higienismo e eugenia
relaciona-se à construção e efetivação de um projeto de normatização da cidade e sociedade do
inicio do século XX à emergência da medicina enquanto instrumento de viabilização a ordem. A
medicina manifesta-se, sobretudo, através do higienismo e eugenia concepções que pretendiam
fazer frente à degeneração social pela via da prevenção. O objetivo do capítulo é enfatizar a força
destas concepções no Brasil do século XX para que se compreenda a relação da intensidade do
discurso médico dentro das práticas assistenciais direcionadas à infância pobre.
O terceiro capitulo “PELAS CRIANÇAS”: O Instituto de Assistência à Infância do
Maranhão descreve-se o surgimento da instituição, seu caráter, corpo social envolvido na
criação desta iniciativa, motivações, práticas estabelecidas e estrutura de funcionamento. Analisa
a atuação do Instituto como possibilidade de compreensão da situação das crianças ditas pobres
de São Luís e o lugar que ocupavam dentro desta sociedade. Este capítulo possibilita, ainda, o
entendimento do cenário urbano ludovicense e os conflitos e tensões produzidas pelo embate
entre a discursividade “modernizadora” da elite, representada pela intelectualidade, e o que esta
conceitua como pobreza social.
Outro ponto importante é a evidencia que se dá às Damas da Assistência no sub-item “A
Regeneração dos costumes parte do alto” como possibilidade de conhecer o papel da mulher no
projeto filantrópico, suas ações e o seu próprio discurso sobre pobreza e assistência.
Acredita-se que a importância desta pesquisa reside em inúmeros aspectos levantados
sobre assistência social da criança pobre em São Luís nas primeiras décadas do século XX,
servindo de referências para se compreender as permanências atuais no que diz respeito ao
sentido compensatório, esquadrinhador e fortalecedor da desigualdade. Há, além disso, o intento
de somar esforços na construção da historiografia da infância no Maranhão, ainda um campo
carente de produções.
2 ASSISTÊNCIA AOS PEQUENOS DESVALIDOS: da caridade à filantropia
Os discursos e práticas de assistência às crianças desvalidas ou abandonadas ganharam,
no curso da história nacional, variados contornos e sentidos. Múltiplas visões, situadas
historicamente, foram produzidos para dar sustentação às práticas de atendimento aos
“pequenos”. Neste sentido, é preciso, antes de perceber a assistência praticada, compreender
quem gera, sobre que intenção e pautado em que ideário se edifica a estrutura de “proteção”.
A compreensão da temática parte do jogo de relações entre os conceitos de infância,
assistência (via medicina social, puericultura, higienismo e eugenia), pobreza urbana e controle
social. São sobre estes pontos conceituais que são traçados os esquemas teórico-explicativos aqui
pretendidos.
Para penetrar no estudo da “infância desvalida” é necessário, inicialmente, perceber os
sentidos e as práticas de abandono no seio da camada popular no início do século XX. Neste
sentido, lança-se à tentativa de compreender as mudanças que se dão em termos de assistência às
crianças e também em relação aos atores sociais que se debruçam a desenvolver as ações de
cunho assistencialista, sejam elas caritativas ou filantrópicas.
O assistencialismo, em suas primeiras manifestações, assume um caráter eminentemente
caritativo. A concepção cristã que permeia a história desde o medievo alcança os séculos XVII,
XVIII e XIX e tem na Igreja Católica e ordens religiosas o lócus de efetivação da beneficência.
Inicialmente, era comum o abandono de recém-nascidos em portas ou altares de Igrejas,
conventos e mosteiros. Tal prática, no entanto, toma nova forma com surgimento das “Rodas dos
Expostos”, no início do século XVIII, que, institucionalizando o ato do abandono (MARCÍLIO,
1996), criam locais especializados de depósito de crianças nas denominadas “Casas de
Expostos”.
A assistência à infância no Brasil obedece a um percurso calcado em três fases distintas.
O primeiro momento, que compreende o período de transição da Colônia ao Império, é
caracterizado pelo predomínio das instituições religiosas guiados pelos princípios da caridade
cristã. A Igreja, dessa forma, conduz ações respondendo às demandas sociais dos variados
setores, nesse contexto insere-se a “Roda dos Expostos” que, segundo a historiadora Maria Luiza
Marcílio (2001, p.53), “quase por século e meio foi praticamente a única instituição de assistência
a criança abandonada em todo o Brasil”.
A roda, “aparelho no formato de um cilindro e incrustada no muro dos asilos” (RIZZINI,
2003, p.11), obedecia a múltiplas necessidades. Para Leite (1996), os governantes a criavam com
o objetivo de salvar a vida de recém-nascidos abandonados para encaminhá-los depois para
trabalhos produtivos e forçados.
Na visão de Renato Pinto Venâncio (2005), este mecanismo de “abandono
institucionalizado” era justificado tanto por imposições morais – crianças indesejadas que
manchariam a honra de uma família de elite – quanto econômicas, expressas na miséria social
experimentada por grande número da população urbana neste contexto.
É importante destacar que estas instituições, presentes primeiramente nos grandes centros
da época como Salvador (1726), Rio de Janeiro (1738) e Recife (1789), foram iniciativas
pontuais que escondiam uma realidade obscura, pois, altos eram os índices de mortalidade entre
os infantes expostos. Muitos viajantes estrangeiros, como Jean Baptiste Debret, denunciaram o
espaço insalubre e pouco estruturado da “roda” (LEITE, 1996), onde poderiam se desenvolver e
proliferar doenças contagiosas. Outra condição apontada nos relatos de europeus viajantes era a
má nutrição, dada à alimentação carente ali oferecida.
FIGURA 1: UM GRUPO DE CRIANÇAS ASILADAS DA RODA DE
EXPOSTOS DE SÃO LUÍS
FONTE: PAXECO, Fran. Geografia do Maranhão. São Luís: Typografia
Teixeira, 1922 (p. 659)
Em São Luís, a exposição de crianças através da roda de enjeitados dar-se a partir de
1829, quando o presidente Pedro José da Costa Barros estudava a possibilidade de realizar na
Santa Casa de Misericórdia, melhoramentos necessários. O recurso para sua fundação saiu da
doação de dois contos de réis do viúvo de dona Ana Joaquina Jansen quando de sua morte
(LIMA, 1951).
É Importante destacar que a Roda de Expostos em São Luís é ainda uma instituição pouco
pesquisada. Um dos poucos esforços de estudo é o trabalho monográfico de Santos (2004). Esta
pesquisa fornece importante contribuição para se pensar a infância maranhense dentro do
percurso histórico, sua condição de vida, a prática do abandono e mecanismo de assistência.
A Roda de Expostos de São Luís fora administrada pela Irmandade da Misericórdia e
objetivava acolher a criança abandonada e garantir o anonimato dos pais dos abandonados.
Anexa à igreja de São Pantaleão, acolhia, segundo Olavo Correia Lima (1951), além de crianças
expostas, recolhidas (asiladas por caridade) e pensionistas. O governo financiava os alimentos, a
Santa Casa mantinha as recolhidas e as pensionistas contribuíam com a mensalidade de quarenta
e cinco mil réis. Fica claro, portanto, que a caridade empreendida pela Igreja era subsidiada pelo
Estado, tal fenômeno será também visualizado no limiar do século XX com a iniciativa
filantrópica.
A roda funcionou dia e noite e qualquer pessoa, furtivamente ou não, poderia
deixar um “pequerrucho” no cilindro, sem ser notado ou muito menos
incomodado e interrogado. Este era mais um dos compromissos aceitos pela
Casa da Roda: não fazer qualquer investigação de quem seriam os pais dos
abandonados, já que a roda tinha por finalidade precípua não constranger
pessoa alguma. A ausência de processos, inquéritos, devassas e investigações
detalhadas implicou muitas vezes na multiplicação de incógnitos silêncios.
(SANTOS, 2004, p.58)
A Roda ludovicense sobreviveu até 1946
convivendo com a difusão das concepções
médico-higienista e o filantropismo científico
grandes opositores da forma caritativa-religiosa de
assistir crianças desvalidas.
FIGURA 2: A RODA DE EXPOSTOS DE SÃO LUÍS ANEXA Á
IGREJA DE SÃO PANTALEÃO
FONTE: PAXECO, Fran. Geografia do Maranhão. São Luís:
Typografia Teixeira, 1922 (p. 647)
O segundo momento é caracterizado pelo crescimento do interesse acerca da família e da
criança por parte de políticos, médicos, e juristas a partir de meados do século XVIII. Critica-se o
modelo caritativo das “rodas dos expostos” em favor de um discurso de “racionalização da
assistência através da intervenção do Estado” (RIZZINI, 1993, p. 22). O Maranhão em relação a
este fenômeno manterá-se na postura de transposição de modelos de assistência praticada pela
então capital do Brasil, o Rio de Janeiro. Transpõe, portanto, modelos e discursos reproduzidos
pela elite intelectual.
Esta fase prepara espaço para entrada do terceiro momento, considerado extremamente
rico em movimentos e práticas assistenciais. A ordem republicana permite o florescimento de um
contexto propício à proteção da infância, uma vez que concepções acerca da natureza e do papel
desta para o “mundo modernizado” avançavam continuamente. É neste contexto, segundo Irma
Rizzini (1993) que a medicina social representada pelo higienismo penetra vorazmente no tecido
social, influenciando discursos e ações de assistência às crianças desfavorecidas.
O higienismo e eugenia representam a perspectiva de limpeza e eliminação da degradação
social encarnada na pobreza e abandono moral das crianças. As medidas higiênicas presentes em
instituições de assistência e/ou de educação pretendem expurgar a vagabundagem, o vício e o
crime da urbs. As crianças pobres, em condição de rua ou não, tornam-se problemas para as
autoridades, tanto pelo temor do desvio, visto como hereditário ou “condição natural” de classe,
quanto pela “sujeira estética” que provocam num tempo-espaço onde as palavras de ordem são
progresso, urbanização e modernização.
A preocupação com a infância nos meios médico e jurídico do início do século (XX) está intimamente relacionada ao projeto de normalização
da sociedade, defendido por representantes das elites intelectuais, econômicas e por autoridades do país. O que se pretendia era eliminar as
desordens de cunho social, físico e moral, principalmente, nos centros urbanos (RIZZINI, 1993, p. 19).
O espaço de onde emanam estes discursos refere-se basicamente às primeiras décadas do
século XX, quando as indústrias entram em franco crescimento e as cidades acompanham este
ritmo. Em outras palavras, “a urbanização descontrolada dará suporte para o desenvolvimento da
medicina social do país”. (RIZZINI, 1993, p. 20). É neste ambiente que são gestadas, então, as
instituições de assistência pública, entendida aqui também como órgãos de controle e
normatização de comportamentos.
Esboçam-se assim, inicialmente, políticas sociais elaboradas pela iniciativa privada de
caráter filantrópico. Criam-se então os institutos de proteção e assistência à infância,
primeiramente em 1901, no Rio de Janeiro, que expande seu modelo em diversas partes do país,
inclusive em São Luís dez anos depois.
Fundado pelo médico Artur Moncorvo Filho 2, o Instituto de Assistência à Infância do Rio
de Janeiro visava atender às crianças pobres de até 14 anos, além de gestantes e amas de leite.
2
O médico-puericultor Moncorvo Filho foi um dos precursores do movimento pró assistencialismo médico aos
infantes pobres da então capital do Brasil, o Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX.
Pretendia-se, portanto cuidar da saúde da infância, além da moral, uma vez que os grandes
temores das classes privilegiadas eram a mortalidade infantil e a criminalidade.
Busca-se assim, partindo da perspectiva eugênica, evitar o processo de “degenerescência”
(RIZZINI, 1993, p. 22). Esta se refere ao impedimento social, que passava pela preocupação no
início do século XX da própria constituição étnica do brasileiro, construída sobre a miscigenação.
Sobre isto, o movimento eugênico, que ganhou adeptos na intelectualidade nacional nas três
primeiras décadas do século XX, buscava prevenir, ou melhor, sufocar o aparecimento dos traços
característicos da mistura étnico-cultural objetivando alcançar a pureza racial.
Referente à infância pobre, a eugenia tentava afastar a criança de um contexto sóciofamiliar conturbado permeado pelo alcoolismo, prostituição, criminalidade entre outros. Toma-se
como objetivo, desta forma, normatizar o ser social, moldando-o a um padrão de conduta
moralmente aceitável para a época.
Esta atitude perante a infância e a pobreza, de uma forma geral, permite a reflexão sobre a
intencionalidade mais profunda deste conjunto de idéias e práticas. Para tanto, faz-se necessário
lançar mão de Michel Foucault (1926-1984) que identificou, em suas obras, os conceitos
definidores da modernidade, como é o caso da disciplina, definida como instrumento de
dominação e controle, destinado a suprimir ou domesticar os comportamentos divergentes
(FOUCAULT, 1987). Através de Foucault, é possível perceber o Instituto de Assistência a
Infância do Maranhão como um espaço de “docilização dos corpos infantis”. É neste local que se
modela um sujeito em tenra idade para assumir um comportamento compatível às demandas do
sistema social da época.
Sufocam-se, assim, atitudes e ações espontâneas do sujeito-criança, dirimindo as
possibilidades de esta desviar-se moralmente e atacar o próprio corpo social. Desta forma,
protege-se muito mais os interesses do grupo social favorecido, do que propriamente a infância
desvalida3.
3
Expressão de época, recorrente principalmente em jornais, como A Pacotilha, que denominava as crianças
expostas à situação de carências extremas.
3 “O CORPO É O ALVO”: Medicina Social, Higienismo e Eugenia
O filósofo Michel Foucault, na obra Microfísica do Poder (2005), nos dá a dimensão do
processo de nascimento e consolidação da medicina social, e sua significância na teia de relações
edificada entre o corpo e o poder que se movimenta no seio da sociedade. Inicia destacando que a
medicina moderna é um campo que toma como eixo a “tecnologia do corpo social”. Dessa forma,
afirma que é com o capitalismo do fim do século XVIII e início do século XIX que a medicina
social terá como objeto maior o corpo produtivo, especificamente destinado a constituir-se
enquanto força de produção. Neste sentido, o corpo “proletário” torna-se alvo de poder, por ser
sobre ele que se monta um aparato de domínio (FOUCAULT, 2005).
O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, como o
corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A
medicina é uma estratégia bio-política (FOUCAULT, 2005, p.80).
Descreve, ainda, o surgimento da “polícia médica do Estado” como marca do momento de
estatização e normatização da medicina e do médico. A medicina passa a ser um espaço
subordinado ao “poder supremo” do Estado. Porém, Foucault (2005) alerta que não é o corpo
produtivo que é assumido pela administração estatal, mas o corpo dos indivíduos constituidores
do Estado, ou seja, não visa a sedimentação da força de trabalho e sim de uma força do poder de
Estado.
Este modelo de Medicina de Estado foi característico na Alemanha oitocentista, já na
França, em fins do século XVIII, houve o desenvolvimento da medicina articulado às demandas
da cidade crescentemente em processo de urbanização. O crescimento da urbs traz consigo novas
problemáticas principalmente referentes a conflitos sociais. Tal cenário, segundo este estudioso,
gera aquilo que ele mesmo denominou de “medo urbano” manifestado na angústia do citadino em
confrontar-se com um ambiente conflitivo e em ampla expansão. O “medo urbano” seria, então, o
Medo das oficinas e fábricas que estão se construindo, do amontoamento da
população, das casas altas demais, da população numerosa demais; medo,
também, das epidemias urbanas, dos cemitérios que se tornam cada vez mais
numerosos e invadem a cidade; medo dos esgotos, das caves sobre as quais são
construídas as casas que estão sempre correndo o perigo de desmoronar.
(FOUCAULT, 2005, p.87).
É interessante observar que a medicina tomou como enfoques de ação, primeiro o Estado,
em seguida a cidade e só por último os pobres e trabalhadores. Na França, por exemplo, a
ausência da visão do pobre enquanto perigo social era justificado pelo fato do pobre movimentar
a vida urbana, assegurando a funcionamento da cidade. Esta virada de perspectiva dar-se-á no
segundo terço do século XIX quando o temor das agitações sociais torna-se mais forte, além do
surgimento de epidemias, como a da cólera, que influenciam o esquadrinhamento do espaço
urbano francês (FOUCAULT, 2005).
Nesta perspectiva do “medo urbano” é que serão delineadas ações que pudessem eliminar
do cenário urbano as “desordens de cunho físico e moral”, surge, então, no limiar do século XX,
nos meios médico e jurídico uma maior preocupação com a infância manifestada em ações de
cunho assistencialista. Tal preocupação, no entanto, tem como pano de fundo um projeto de
normalização da sociedade pelo discurso da medicina que também procurava se consolidar
enquanto campo de poder.
A construção de uma cidade moderna e saneada passava, necessariamente, por uma
“limpeza estética” que negasse as mazelas sociais evidenciadoras do caos urbano. As crianças de
rua tornam-se, assim, um problema que precisa ser resolvido uma vez que está diretamente ligado
à necessidade de prevenir uma possível ampliação futura do quadro de crime e vagabundagem da
cidade.
FIGURA 3: CENA DAS RUAS DE SÃO LUÍS – CRIANÇAS NUAS
FONTE: PAXECO, Fran. Geografia do Maranhão. São Luís: Typografia
Teixeira, 1922 (p. 23)
A pobreza urbana acompanhava o avanço das relações capitalistas de produção (RIZZINI,
1993). A cidade aumentava e, com isso, novas questões eram postas em evidência, como as
doenças, epidemias e altas taxas de mortalidade infantil. É nesse contexto que é desenvolvida,
discursiva e praticamente, a medicina social.
É no cerne destes fenômenos que a medicina social vai intervir. A medicina
estuda a população e suas condições de vida, através de análises estatísticas,
demográficas, mas também propõe medidas especificas a fim de preservar a
saúde da população, não só visando ao bem-estar dos indivíduos, mas à
prosperidade e a segurança do Estado. (MACHADO apud RIZZINI, 1993,
p.23).
Mais que uma questão de ordem social, as tensões urbanas são consideradas como lugar
de intervenção normativa da medicina. Sanear a população passa, necessariamente, pelo controle
dos supostos vícios e costumes “imorais”, pela disciplina e “docilização de corpos e mentes”
(FOUCAULT, 1993).
A intervenção médica no espaço social se fará através da higiene pública,
definida por Foucault (1986) como a “técnica de controle e de modificação dos
elementos do meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, prejudicar
a saúde” (p.93). O controle “político-científico” deste meio é a resposta médica
à “inquietude político-sanitário” (p.89) que se instala com o crescimento do
tecido urbano que é o medo do amontoamento da população, de seu
crescimento desordenado, das epidemias, dos cemitérios, das fábricas, dos
esgotos, do ar, da água...(p.87). Em suma, tudo que é desordenado,
contaminador e que foge ao controle do poder político representado pela
burguesia. (RIZZINI, 1993, p.20).
Vigilância e controle tornam-se palavras-chaves nesta proposta. O poder político e técnico
são exercidos via esquadrinhamento, onde o indivíduo e o espaço urbano são reorganizados. Para
isso, são pensados e criados mecanismos que concretizam este ideário. Surgem, assim, as
instituições de assistência pública que pretendem constituir-se espaços de operacionalização
médica na sociedade.
O Rio de Janeiro, a partir do final do século XIX, enfrenta a expansão destes tipos de
órgãos, como é o caso da Diretoria Geral de Higiene e Assistência Pública do Rio de Janeiro
(1893); o Instituto Sanitário Federal (1894), além da criação de vários postos médicos municipais
por iniciativa de Pereira Passos, em 1906 (RIZZINI, 1993).
Porém, mais que o caráter
assistencial houve a prevalência da “política sanitária”.
A população, dentro deste processo, nem sempre aceitava a metodologia de intervenção
adotada. Os serviços de profilaxia faziam-se, muitas vezes, em tom autoritário o que alimentava a
resistência popular á adoção das medidas governamentais de controle de endemias. Neste sentido,
“o Estado vai intervir no espaço social através do policiamento de tudo que for causador da
desordem física e moral e pela ordenação desta sob uma nova ordem” (RIZZINI, 1993), o que
ocasionava, vez por outra, choques com a camada popular gerado pela insatisfação com o método
utilizado e acirramento das contradições sociais, como é caso da Revolta da Vacina
(CARVALHO, 1990).
Porém, é importante destacar que a iniciativa estatal da assistência pública emergiu pari
passu com a iniciativa privada “que teve importante papel não só na organização da assistência
como no encaminhamento de políticas sociais no país, como também no controle e
operacionalização. São as associações religiosas como a Santa Casa de Misericórdia; as
associações filantrópicas como os Institutos de Proteção e Assistência à Infância; os socorros
como os Dispensários e os patronatos de Menores” (RIZZINI, 1993).
Para MACHADO (1987), a higiene, no projeto de normalização da sociedade, “aparece
como um instrumento na tática utilizada para dar à medicina estatuto político próprio” (p. 258). A
higiene pensada está intrinsecamente relacionada à lógica preventiva. Prevenir significa nesse
terreno uma das estratégias de efetivação normatizadora à luz da eugenia e teoria da
degenerescência social manifestadas nas práticas assistencialistas e projetos de lei. Além disso,
há o fator de proteção da camada privilegiada da sociedade que sente receio do alastramento das
doenças que , via de regra, desconhecem classe social, cor e status.
A hijiene é a baze fundamental da vida. A ciencia medica hodierna, nos seus
ensinamentos múltiplos, vivendo de par com a hijiene, tem assentado suas
bazes sobre as profilaxias defensiva e repulsiva, dela não podendo prescindir,
nem viver por que sua queda inevitável.
E tão grandes são os laços que prendem a hijiene á vida que, hoje, como
assunto palpitante e primordial, delle se ocupam o plebeu, o mendigo, o
abastado, o milionário e o homem da ciencia.
(...)
E, assim, o termo hijiene explode de todas as bocas com muita clareza
compreendido como um dos mais belos sintomas de nossa civilização.
(...)
Em boa linguagem comumente se diz que a boa hijiene do pobre salvaguarda a
saude do rico (...). (A PACOTILHA, 18 DE JUNHO DE 1912).
Segundo Costa (apud RIZZINI, 1993, p.22), “a prevenção se fundamentava na eugenia;
isto é, na idéia de que se purificando a raça, evitavam-se os caracteres psíquicos, físicos e
culturais nocivos presentes nas ‘raças inferiores’”, sobre tal missão o médico possuiria um papel
fundamental.
O médico Moncorvo Filho defende uma supervalorização da sua profissão como
promotor de um programa de “prevenção dos fatores de degeneração da raça” (MONCORVO
FILHO apud RIZZINI, 1993) percebendo como “colaboradores eficientes, verdadeiros dirigentes
na luta pelo engrandecimento material do país”. Este projeto de “eugenia do povo” (p. 03) partiria
de um investimento na assistência pública.
É importante destacar que o temor pela degenerescência está relacionado ao temor pela
delinqüência infantil cuja causa era muitas vezes justificada pela manifestação de uma herança
patológica. Focaliza-se o discurso na correção de costumes “viciados” da família pobre,
sobretudo das mães e crianças. Sobre isso, elegeu-se três fatores de preocupação que
influenciavam a degenerescência, a saber: alcoolismo, sífilis e tuberculose. Recomendava-se o
afastamento das pessoas acometidas por estes males, tidos como próprios da “sub-raça”
caracterizada pela miscigenação. A eugenia, nesse sentido, estuda os fatores de melhoria e de
decadência da raça e forma junto com a eugenética (“estudo das condições que devem presidir
uma boa procriação”) a base da puericultura.
Estas teorias tomaram como foco de estudo e intervenção a família e a infância na
tentativa de prevenir o desvio social através de projetos e programas de cunho filantrópico. Para
isso, realizava-se o estudo da condição de vida e de cuidado dos filhos e, a partir disto, traçava-se
a orientação necessária às mães sobre higiene infantil e educação dos filhos.
Como estes princípios assentavam-se na melhoria da raça, enquanto projeto para o futuro,
a medicina interessava-se no atendimento mais consistente à criança, por isso, a mãe era vista
como mediadora a ser educada para ajudar a viabilizar esta “missão”. Desta maneira, formaramse vozes, saídas do círculo da elite intelectual, que apontaram os elementos que compunham os
perigos ao desenvolvimento de uma infância saudável e feliz.
O discurso da intelectualidade do início do século XX – médicos, juristas, educadores e
jornalistas – denunciava os perigos no maltrato a que as crianças pobres eram submetidas, bem
como, da alta mortalidade infantil. Tais perigos poderiam, via de regra, influenciar um futuro
desvio social, o que tornava imprescindível, aos olhos temerosos da elite intelectual, barrar o
desenvolvimento e expansão do número de criminosos. Isto se daria nas propostas, projetos, leis
que serviam para “proteger e assistir a ‘infância desvalida’, mas também, de aliviar a consciência
de uma sociedade envergonhada e ameaçada com sua presença” (RIZZINI, 1993, p.26).
FIGURA 4: CENA DO COTIDIANO DA CIDADE: CRIANÇA
VENDEDORA AMBULANTE
FONTE: PAXECO, Fran. Geografia do Maranhão. São Luís:
Typografia Teixeira, 1922 (p. 33)
O problema da criança no seio familiar é localizado, para o médico Moncorvo Filho
(1914), sobretudo na “ignorância dos pais” o que também é defendida pelo médico Cézar Arruda
em relação ao contexto maranhense (LIMA, 1951). A ignorância, de forma específica, é
identificada nos maus tratos e abusos, na ausência de higiene, no oferecimento aos filhos de
álcool, drogas e alimentos inadequados, além de agressões físicas e morais.
Segundo Romero (2002), o discurso baseava-se num deslocamento das causas sociais,
econômicas ou políticas. As desigualdades humanas eram entendidas como reflexos das
limitações do próprio ser humano, “falho e incompetente”, principalmente quando este era
resultado do círculo da pobreza. Tal visão se estendia também à teoria e prática da eugenia que
tinha nas “vítimas” as principais responsáveis pelas iniqüidades e anomias sociais. As
desigualdades são tratadas, assim, como problemas ocasionados pelos próprios sujeitos
“degenerados”. Almejando a pureza social, a eugenia baseava-se num discurso que se sustentava
pelo quadro caótico da urbanização, fornecendo armas “para justificar cientificamente as mais
variadas e cruéis estratégias de controle social” além de visões e ações de cunho discriminatório
(ROMERO, 2002). Foi o discurso eugenista que fabricou as “moléculas da exclusão social”, que
atribuíam aos negros, mestiços ou imigrantes indesejáveis o estigma das doenças transmissíveis,
dos “miasmas infernais” e da impureza do sangue.
A partir da primeira República, vê-se um crescimento da preocupação do Estado frente às
mazelas da saúde. Rodrigues Alves, presidente do país entre 1902 e 1906, estabeleceu o
saneamento e o combate à peste bubônica e à febre amarela como pontos de prioridade em sua
plataforma de governo. O clima torna-se, assim, propício ao crescimento da visibilidade médica
através de ações como campanhas sanitárias, educação higiênica, propaganda, surgimento de
serviços de combate à tuberculose, lepra e ‘doenças venéreas’ (ROMERO, 2002).
Todas estas medidas pretendiam tornar a cidade um espaço saneado e civilizado através
da limpeza e ordenamento social. Nestes termos, o médico tomava para si mais que uma tarefa
restrita ao cuidado e manutenção da vida, alcançava ao âmbito da intervenção social. Os médicos
“ampliaram então a definição da saúde e estenderam sua prática a todos os âmbitos da vida
cotidiana. Consideraram-se, assim, não só médicos, mas cientistas sociais (ROMERO, 2002,
p.19). O médico assume um papel que ultrapassa a esfera técnica – é um “conselheiro de
costumes” inserindo-se num plano de construção da nação pós-instauração da República
(RIZZINI, 1993).
Nos princípios da medicina higiênica, percebe-se uma discursividade marcada pelo medo
e insegurança (FOUCAULT apud RIZZINI, 1993) caracterizado pela suposta ameaça provocada
pela “massa degenerada” em suas formas de viver e conviver no corpo social. Por isso, o anseio,
em tom emergencial, pela ordem, equilíbrio e progresso onde a chaga da pobreza, conflito e
choques entre classes seria eliminado através de medidas de isolamento do “mal” do convívio
público.
Todo comportamento considerado diferente deveria ser visto como resistência
ao sistema como uma anomalia impeditiva do funcionamento do corpo social e
seus agentes deveriam ser enquadrados nas prisões, nos hospícios e institutos
disciplinares. (ROMERO, 2002, p.22).
A medicina enfrentava a força do saber popular que acabava preponderando por seus
remédios naturais e carregados de superstições. Os ‘curandeiros’ e suas formas de tratar as
doenças são tenazmente combatidas, principalmente no decorrer do século XIX, quando se dá
maior crescimento e urbanização das cidades. Para isso, utiliza-se de alguns instrumentos como é
o caso da manipulação do sentimento de medo e culpa da população para afastar as crenças
populares e introduzirem as normas corporais e psicológicas necessárias para a implantação do
sistema capitalista, justificando ao mesmo tempo as diferenças de classe na República e
continuando o a cimentar a idéia de culpabilizar a massa popular “degenerada”.
A coletividade deverá continuar sentindo-se culpada por seus males, mas dessa
vez não por desobediência a Deus, mas sim quando for contra os preceitos
ditados pelos médicos, que, sem nenhuma modéstia, pretenderão ser, se não
porta-vozes de Deus, ao menos seres tocados como que por uma aura divina
(ROMERO, 2002, p.35)
No período colonial, as epidemias e enfermidades que, vez por outra, se espalhavam eram
atribuídas às mais variadas causas advindas das crenças populares e religiosidade. A epidemia de
bexigas que assolou o Brasil em 1666, por exemplo, foi justificado segundo Rocha Pita pelo
aparecimento de um cometa que por muitas noites “arredeu com infausta luz sobre nossa
América e lhe anunciou o dano que haveria de sentir” (apud ROMERO, 2002, p.29). Já em 1685,
a chegada da febre amarela é explicada por este mesmo cronista como resultado das turbulências
no cenário político, bem como da corrupção dos costumes da população que provocavam a ira
divina (ROMERO, 2002, p.30). Tais motivações colocavam o homem atingido como incapaz de
agir perante tamanho mal, um dos poucos métodos científicos adotados era a sangria que
objetivava reequilibrar os homens alterados pela peste. As explicações de ordem natural e divina
darão lentamente lugar à “certeza do saber médico”.
Outro ponto que merece ser destacado refere-se ao temor pela epidemia que impulsionava
também a busca por culpados e por razões dos males. Segundo Jean Delumeau (1989), é preciso
responsabilizar alguém para que o coletivo fique isento de culpa, além disso, possibilita um foco
de ação para sanar o mal. É o que ocorreu, por exemplo, no caso dos negros submetidos a toda
sorte de suspeita por serem considerados “inferiores” e vindo de “terras estranhas”.
Nomear um culpado é também pôr em ação um remédio, impedindo os
semeadores da morte de continuar sua obra nefasta e se a epidemia era uma
punição, era preciso procurar bodes expiatórios que seriam acusados
inconscientemente dos males da coletividade. (DELUMEAU, 1989, p.140)
Romero (2002) coloca que os negros foram esquadrinhados com olhar minucioso apesar
de produzirem, através do trabalho com seu corpo escravizado, a riqueza da terra e dos homens.
Foram considerados ameaças tanto pelo perigo da revolta, quanto “por serem vistos como
portadores de humores corrompidos, como origem das doenças, despertando repugnância e
medo” (ROMERO, 2002, p.39). Porém, no século XIX, esse sentimento estendeu-se também a
outros setores da população brasileira, o que influenciou a criação e o repensar de formas de
subordinação social.
O isolamento foi um mecanismo utilizado para assegurar a salubridade urbana. Tudo que
ameaçasse a ordem e harmonia dos citadinos deveria ser posto às margens dos limites físicogeográficos e sociais da urbs. “Era também uma forma de afastar dos olhos o terrível espetáculo
da qual ninguém estava livre de ser protagonista”.(ROMERO, 2002, p.43).
Outro mecanismo foi a prevenção expressa em vacinações, por exemplo. Isto se dá,
principalmente, quando o Estado toma para si o papel de guardião da saúde pública. Desenvolvese, apesar da inicial desconfiança popular devido ao desconhecimento e insegurança quanto aos
métodos em certa medidas autoritárias, uma paulatina confiança no discurso e prática médica.
Opera-se, assim, uma lenta, porém constante, separação entre o “saber erudito” e o saber popular,
seja definindo o povo como ‘estúpido’ e seu conhecimento como crença, seja acusando de
charlatães os que exercessem curas sem possuir o diploma de médico.
O século XX será o tempo da “confiança total na ciência”, no “temor e vergonha da
doença” e na “culpa pela degeneração da prole”. (ROMERO, 2002 p.52). A medicina, nesse
sentido, alcançava o terreno da intervenção social, identificando e curando mazelas de natureza
coletiva. Tal objetivo somava forças ao projeto de construção da jovem nação que nasceria sob a
égide da ciência médica.
O pensamento médico situa-se, portanto, na lógica do esquadrinhamento social
(FOUCAULT, 2005) e na separação silenciosa das classes sociais através da “criação de novos
critérios de seleção social”. Para Romero (2002), o objetivo é aproximar as elites entre si, criando
formas de identificação pelo simples olhar e, ao mesmo tempo, distanciar, desqualificar o
diferente e o popular considerando-os baixos, vulgares e inferiores.
Definida como a arte de analisar a população e os espaços por ela ocupados, notadamente
a cidade e suas instituições, o esquadrinhamento é uma técnica disciplinar que tem na medicina
social seu instrumento por excelência, manifestado nos estudos detalhados acerca do
comportamento e ambiente próprios da população, visando definir e guiar intervenções nos
espaços que se apresentarem insalubres.
Segundo Foucault (1986, p.176), o esquadrinhamento, tecnologia de controle
social que se sustenta pela justificativa médica do isolamento da doença, surge
como ideal da sociedade disciplinar: a utopia da cidade perfeitamente
governada, voltada para o progresso e para o bem-estar da população.
(RIZZINI, 1993, p.35).
Contudo, o esquadrinhamento não é um mecanismo restrito somente à ação médica.
Encontrará espaço, também, dentro do campo de saberes jurídicos e pedagógicos, além de
associações filantrópicas, serviços de Estado e legislações.
No que diz respeito à infância, o esquadrinhamento ocasionará o desenvolvimento de um
processo detalhado de classificação, sobretudo acerca da “infância desviante ou em perigo”. Tal
decomposição objetivava identificar novos alvos para assistência e novas necessidades sociais.
Mas, seguindo esta lógica, como se opera a técnica do esquadrinhamento em relação à criança
desvalida? Dar-se-ia o trabalho dividido, grosso modo, em duas etapas, a primeira se situaria na
pesquisa do contexto de vida onde está localizada a criança. Esta etapa serviria para dar suporte
às ações da segunda fase baseada na intervenção dentro do ambiente pesquisado, mais
especificamente, nos usos e costumes da família.
O esquadrinhamento exercido pela assistência se dará em outros níveis também,
como por exemplo:  o estudo das condições de vida das crianças pobres a
título de dar-lhes a proteção adequada, o que implica num penetrar a família,
conhecer o seu cotidiano, como vive e como cuida de suas crianças;  a
intervenção propriamente dita sobre esta família, o que será feito através de
recursos vários como a assistência médica gratuita e os conselhos às mães
pobres de como cuidar e educar seus filhos;  o projeto de organização de uma
assistência asilar fundamentada nos princípios da prevenção e recuperação.
(RIZZINI, 1993, p. 36)
Neste sentido, o esquadrinhamento dará suporte à ação filantrópica que, guiada pelo
“método científico”, pretenderá tornar a “massa ociosa e degenerada”  vagabundos, mendigos,
doentes, loucos, desempregados e menores abandonados  a partir de um universo de atuação
baseada na metodização da assistência que tem como pano de fundo os princípios da disciplina,
equilíbrio, norma, ordem e distinção. Além, é claro, do saneamento da cidade visto como lócus
representativo da concepção de modernidade.
A infância pobre será classificada, nesta perspectiva, em várias categorias em relação à
origem familiar da criança e a condição moral de sua criação. Quando de sua fundação, em 11 de
Agosto de 1911, no escritório do jornal A Pacotilha, o Instituto de Assistência à Infância do
Maranhão estabeleceu pontos importantes para elaboração do seu Estatuto em relação à natureza
e especificidade de suas ações. Colocou, a respeito da classificação do público-alvo, que assistiria
os “meninos maltratados” divididos em cinco grupos.
1. Os que recebem “muitos tratos físicos”, habituais ou excessivos; 2. Sujeitos a
negligencia dos cuidados dos pais; 3. Os que por habito se entregaram a
mendicidade, a vadiagem ou libidinagem; 4. Os ocupados em ofícios perigosos
impróprios a sua idade; 5. Os moralmente abandonados. (A PACOTILHA, 11
AGOSTO DE 1911).
Sobre os pais também recorre à lógica classificatória quando se refere ao “abandono
moral”. Divide-os conforme o perigo que oferecem enquanto más influências. Encaixou-os,
assim, em quatro grupos específicos: “1. Pais com conduta escandalosa; 2. Pais entregues à
embriaguez; 3. Pais que vivem da mendicidade; 4. Pais condenados ao crime” ( A PACOTILHA,
11 de Agosto de 1911, n° 187).
O “perigo moral” é o alvo privilegiado da medicina. É sobre ele que repousa sua tutela
manifestada no acompanhamento, vigilância em relação à saúde e educação das crianças, “em
função da incapacidade dos pais de fazê-lo por si mesmos” (RIZZINI, 1993). Para os médicos
higienistas, o Brasil era “um grande hospital”. Belisário Penna (1923), sanitarista brasileiro,
percorrendo o país nas primeiras décadas do século XX constatou que dificilmente encontraria
alguém com relativa saúde. Descreveu um cenário caótico cheio de tipos adoentados
apresentados na narrativa em tom animalesco.
(...) nas suas jornadas deparou com incontável impaludados agudos e crônicos,
caquéticos com opilados escangues, bestificados com papudos e aleijados que
em contorções satânicas rastejavam-se como répteis uns, como batráquios
outros, com cretinos e trejeitos simiescos, com asmáticos e entalados.
(ROMERO, 2002, p. 66).
Entre os médicos esta visão tinha como pano de fundo tanto a necessidade do
reordenamento da moral e do “bom criar” os filhos, quanto a urgência em resolver o grande
problema das doenças e epidemias que assolavam o país e que prejudicavam o alcance do posto
de civilização moderna.
3.1 “Um a mais a corrigir, um a menos a tratar”: URBS, Ordem Médica e Norma Familiar
O século XX representou um contexto marcado por mudanças relacionadas à grande
expansão da economia industrial capitalista no cenário internacional. Os amplos e diversos
setores da sociedade foram influenciados por estas modificações. É nessa lógica que a cidade se
torna o centro representativo das idéias de civilização, progresso e modernidade. Dessa forma, é
que se monta um conjunto de normas que objetivam sanear, física e esteticamente, a urbs
garantindo-lhe o espaço da limpeza e harmonia do mundo moderno.
Neste momento, as teorias cientificistas encontram grande aceitação entre a camada
intelectual que defende o fortalecimento da ciência médica em detrimento dos saberes populares
tidos como reflexos dos vícios e supertições. Este ideário foi utilizado nos centros de grandes
projetos de sanitarização
que tinham como finalidade reformular a paisagem urbana do país, tornando
urgente a implementação de programas de higienização de ambientes e nos
‘corpos’, a fim de aperfeiçoar e corrigir o homem, assim como ordenar a cidade
para materializar o corpo social. (MELO, 2005, p.18).
Segundo Romero (2002), a medicina, assim como a igreja e militarização, construiu
instrumentos de controle eficientes dos indivíduos para a América Portuguesa. Constituíram,
portanto, mecanismos importantes que atendiam aos interesses normativos da elite agráriopolítica.
Outro ponto importante na compreensão do processo de crescimento da notoriedade do
saber médico no Brasil foi a chegada da Corte Portuguesa, em 1808, e o aumento populacional do
Rio de Janeiro com a vinda de diplomatas, comerciantes estrangeiros e famílias rurais o que
ocasionou o acréscimo de cerca de um terço do contingente demográfico carioca. Houve, a partir
daí, com maior força, grande pressão pela expansão da profilaxia com os cuidados higiênicos no
meio urbano que era enormemente barrado pela burocracia estatal (ROMERO, 2002).
Tentando superar a postura anti-higiênica dos habitantes da Colônia, a medicina tentou
desenvolver uma técnica análoga à adotada pela militarização onde havia uma inserção do
controle no interior da vida popular.
Suscitou o interesse do indivíduo por sua própria saúde. Cada habitante tornouse seu próprio almotacé (agente responsável pelo controle fiscalizador das
medidas higiênicas entre a população) e, em seguida, almotacé de sua casa e da
vizinhança (ROMERO, 2002, p.29).
O espaço de normatização e exercício do saber médico se amplia vertiginosamente
apossando-se do cenário urbano imprimindo-lhe as marcas de seu poder. A órbita médica é
compostas pelos mais variados elementos urbanos englobando ar, água, esgoto, escolas, fábricas,
cemitérios, quartéis, prostíbulos, matadouros e casas. Adentra ao cotidiano demarcando seu poder
enquanto discurso e prática legitimamente reconhecidos pela sociedade.
O médico assume crescentemente grande prestígio neste período. Sua função de
“resguardador da vida” o faz se aproximar, no imaginário popular, a um tipo de missionário,
quase um sacerdote. Tal fato se dá, entre outros fatores, pelo fortalecimento da medicina no
século XIX e aparecimento da Medicina Social. Foucault (2005), coloca que esta foi responsável
pelo estabelecimento de uma nova prática médica dedicado à cura e prevenção do universo
coletivo. Este caráter “regenerativo e preventivo” baseado no “controle político e científico do
meio” ganha espaços em locais públicos como escolas, igrejas, prisões, portos, hospitais,
moradias populares etc; instituindo medidas profiláticas para a contenção das epidemias.
O profissional da medicina, ao intervir diretamente no tecido social agia em
áreas antes desconhecidas pelo ‘saber médico’, e nos problemas que tanto
inquietavam a imagem da sociedade civilizada e moderna, pretendida pela
nação. Tornou-se um profissional indispensável para a vida moderna, sujeito
representativo do poder do Estado sobre os agentes sociais, pois estabelecia
uma saída para os males da sociedade e delimitava um receituário para a vida
moderna.(MELO, 2003, p.22).
O século XIX impunha alguns mitos à profissão médica confrontado ao ideário de morte
anunciava a intervenção nas epidemias, induzindo à cura. Segundo Lílian Schwarcz (1993), o
crescimento da notoriedade do médico faz com que ele deixe de depender de seu trabalho
individual, passando a viver de seu ofício enquanto cientista e pesquisador, “que, financiado pela
nação e formado pelas universidades, intervém na realidade e a transforma” (SCHWARCZ, 1993,
p.191). Além disso, assim como a educação e a engenharia, a medicina, principalmente entre as
primeiras três décadas do século XX, foi um dos campos privilegiados para a definição do
paradigma moderno brasileiro (HERSCHMANN & PEREIRA, 1994).
É neste contexto que a “arte do operatório” dos médicos, educadores e engenheiros
suplanta a “arte da retórica” dos bacharéis. “A questão naquele momento era produzir um ‘cultura
da reforma’, que compreendia não só a remodelação do plano urbano (reformas de
embelezamento da cidade), mas relatórios, artigos publicados nos jornais, polêmicas públicas,
etc” (HERSCHMANN & PEREIRA, 1994, p.23). Em São Luís, por exemplo, vê-se a
implementação de Regulamentos e Códigos de Posturas, como o de 1866, que visava (re)definir a
ordem urbana, via saneamento do espaço, através do controle das habitações populares. Percebese a discursividade médica fortemente presente nos escritos legais da cidade ludovicense
(RODRIGUES, TROVÃO & VARGA, 2005).
A prática de controle urbano, porém começa a se delinear desde os oitocentos. Nesse
período as cidades brasileiras começaram a se tornar foco de controle, quando a Metrópole lançase à normatização da sociedade colonial através da introdução prática e conceitual da ordem, lei,
justiça, transgressão e punição. Porém, apesar da intenção, a dinâmica do mundo colonial é
caracterizada pelo “caos urbano” e isto permanece intocado no século precedente (COSTA,
1999).
Além disso, as epidemias, principalmente varíola e febre amarela, prejudicavam
sobremaneira a dimensão econômica do país, mais especificamente, as relações sociais com a
Europa, bem como o projeto de imigração estrangeira para as lavouras de café em São Paulo e
para a promoção do embranquecimento da população “tupiniquim”. Desta forma, houve uma
mobilização de autoridades e médicos na proposta de construção de uma imagem de um Brasil
“salubre, civilizado” e atraente aos olhos do Velho Mundo. Porém, as ações oficiais realizadas
para efetivar o projeto, como juntas e comissões que objetivavam isolar as doenças mostraram-se
pouco eficazes por ignorarem as condições sanitárias que possibilitava o alastramento das
moléstias (ALMEIDA, 2004). Somente a partir da República há uma intensificação da busca por
soluções constituindo-se, agora, como “compromisso do novo regime” republicano reagir sobre
esta situação que também produzia por parte da elite certo sentimento de vulnerabilidade.
Os propagandistas republicanos atribuíam os problemas que afligiam o país às
idéias retrógradas e a falta de vontade dos monarquistas. Cresceu ainda a
convicção de que as epidemias que assolavam o país representavam uma grave
ameaça às classes abastadas, visto que elas não respeitavam classes sociais.
(ALMEIDA, 2004, p. 235)
Paulatinamente, a idéia de punição à desordem urbana (vadiagem, furtos e mendicância)
entra em contato com a perspectiva da prevenção que exigia, dessa forma, a adoção de
instrumentos de controle ou a concentração, física ou social, para melhor manifestação do
aparelho legal ou punitivo da cidade. Isso também será uma tônica em São Luís na passagem
para o século XX.
O século XX reflete um contexto peculiar no que diz respeito a forma de se vê e organizar
o espaço urbano. Desde o século XIX delineava-se paulatinamente um ideário normatizador e
esquadrinhador da forma de habitar na cidade. Vê-se, em São Luís, nos idos do período
oitocentista a proibição legal, com o Código de Posturas de 1866, da coexistência de habitações
de palha no mesmo espaço dos grandes sobrados (CORREIA, 2006). Tal configuração parte da
idéia de que “a cidade apenas evidencia ‘as circunstâncias contraditórias do mundo em que faz’”
(ARGAN apud CORREIA, 2006, p.28).
A cidade é, portanto, um palco privilegiado de relações sociais, é um “ponto de
intercessão entre a idealidade e a concretude”, onde discursos e práticas se cruzam em intensa
contradição. “São Luís é também um lugar que une, mas também que separa a sua gente, na tensa
relação que se estabelece quando se cruzam no mesmo espaço diferentes visões de mundo e
distintas oportunidades de vida” (CORREIA, 20006, p.30). É um espaço da invenção e reinvenção de um discurso competente (CHAUÍ, 1997), que, pode ser captado tanto na dimensão
da palavra, oficial ou não, quanto na imagem, é o que ocorre, por exemplo, nas discussões da
medicina higienista que são transplantadas nas ações políticas de normatização do espaço.
Dessa forma, a cidade torna-se uma espécie de cenário onde pulula a movimentação e
características de um século (XX) marcado por inovações e acirramento das contradições em
variados campos. Não se pretende com esta perspectiva tomar São Luís deste período como uma
ruptura abrupta com os séculos precedentes, pretende-se, assim, perceber as permanências em
articulação com o ideário inovador que se instala mesmo na restrita área central da cidade.
FIGURA 5: SÃO LUÍS – BONDE “PUXADO A BURROS”
FONTE: PAXECO, Fran. Geografia do Maranhão. São Luís: Typografia
Teixeira, 1922 (p. 59)
O final do século XIX, em São Luís, é marcado por um crescimento amplo do número de
cortiços e “baixos de sobrados”. A complexidade social se intensifica na diferença de acesso aos
serviços básicos (água, iluminação, transporte público e limpeza das ruas) que se desenvolvem
mesmo que precariamente nas primeiras décadas do século XX. Como aponta Romero (2002) em
relação às cidades, há a forte presença das tensões sociais produzidas pelo embate gerado, em
larga medida, pela multiplicidade social, como é o caso do discurso médico-sanitário que se
difunde como pano de fundo do projeto de embelezamento da cidade e que culpabiliza a camada
pobre como fonte da degeneração, sujeira e costumes desviantes.
Deste modo, a crer no muitos artigos publicados em diferentes jornais, a São
Luís da virada do século XIX, enfrentava não poucos problemas, pois o que
capta o olhar lançado sobre a cidade e a partir de uma perspectiva higienista é o
desrespeito geral pelas questões referentes à higiene que deve existir no espaço
urbano; isso quando essas questões, pelo menos, existem, pois aquilo que mais
se destaca no chão da cidade são habitações construídas de maneira imprópria
para a vida; ruas e praças que se transformam em monturos; praias tomadas por
focos de infecção e viveiros de germes; enfim, torrentes de miasmas que
infectam a atmosfera (CORREIA, 2006, p.59)
Tomam, nesse sentido, a teoria miasmática como justificativa das doenças ‘reinantes”
num determinado espaço, servindo-se, assim, da elaboração dos mecanismos de ordenamento
urbano em São Luís. O discurso médico-higienista e a teoria miasmática eram expressos nos
Códigos de Posturas de São Luís demarcando as condições de insalubridade urbana desde o
século XIX através da denúncia dos “maus ares” produzidos pelos condenáveis excrementos e
lixo presentes no cenário da cidade. Palhano (1988), por exemplo, coloca que as epidemias em
São Luís decorriam do quadro caótico de insalubridade da Capital visíveis nas “águas estagnadas
em várias ruas do centro, mistura de água doce com água salgada, lixo e esterco de animais em
todos os lugares” (PALHANO, 1988, p.147)
As condições sanitárias da cidade de São Luís deixavam muito a desejar no
início da república, situação esta que acarretava sérios problemas para a
população ludovicense, principalmente para a parcela menos favorecida, que
em sua maioria vivia em condições miseráveis. Sobre ela, incidiam as mais
graves conseqüências da falta de políticas eficazes de saúde pública, pois, além
de não dispor de serviços satisfatórios nessa área, era ainda responsabilizada
pelo aparecimento e proliferação das doenças infecto-contagiosas que
castigavam a cidade, aliás, como ocorria nas demais capitais brasileiras.
(ALMEIDA, 2004, p. 235).
Para Rodrigues, Trovão e Varga (2005), o surto industrial em São Luís, a partir de 1890,
mexeu com a configuração e dinâmica do espaço urbano com um incremento populacional e
crescimento horizontal da cidade. A cidade crescia com a formação de “grandes bairros
operários” ao redor das fábricas, o que agravava a questão dos serviços públicos urbano não
estendidos a estes núcleos de povoamento, agravando a questão da saúde pública.
A teoria miasmática mostra sinais de desaparecimento no discurso da política de saúde e
disciplinamento urbano a partir do final do século XIX quando emerge no cenário científico a
teoria microbiana que fortalece a crença “da idéia de unicausalidade para as doenças, enquanto
caía em desuso a análise geográfica/ambiental” característica da teoria miasmática.
(RODRIGUES, TROVÃO & VARGA, 2005, p. 62)
As primeiras décadas do século XX percebe-se, em São Luís a forte presença do discurso
da “reforma urbana”. As administrações governamentais de Luís Domingues, entre 1910 e 1914,
e Urbano Santos, entre 1918 e 1922, tomaram o discurso da reforma como tônica de suas ações
(PALHANO, 1988). Segundo Almeida (2004), o Estado isentava-se da sua responsabilidade em
garantir a saúde pública e este assunto foi bastante difundido por políticos, médicos e intelectuais
a partir da última década do século XX, “quando as atenções se voltaram para o interior do
Brasil, que fora finalmente ‘descoberto’, colocando a nu uma realidade que as autoridades
insistiam desconhecer, isto é, um país povoado de doenças” (ALMEIDA, 2004, p. 254).
Um importante instrumento utilizado, sobretudo pela medicina social, foi a família. Dado
o seu poder na criação e adestramento de “mentes” era necessário mantê-la sobre o domínio
através de táticas veladas de convencimento. O choque entre o discurso médico e os usos e
costumes familiares, apoiados na tradição popular, poderia prejudicar a adoção das medidas
profiláticas. São criadas técnicas de persuasão e manobra que terão como denominação a
“higiene familiar”.
A medicina, para obter aceitação no meio social, lança-se à elaboração de um discurso
sedutor onde a idéia da sujeição ou submissão às leis médicas significaria ganhos incalculáveis à
vida humana. Mostravam-se os ganhos e benefícios do acatamento fiel das medidas. Buscava-se,
com isso,
não mais cultivar o medo da morte, ou pelo menos, só reanimá-lo em casos
extremos. O fundamental era alimentar o gosto pela vida. Mostrar e demonstrar,
exaustiva e reiteradamente, que a submissão tem um prêmio: a persistência da
prole, o prolongamento da saúde, a felicidade do corpo. (COSTA, 1999, p.31)
No século XIX vê-se a família de elite submetida ao ideário normatizador da medicina
social através da política higienista. Esta política reduziu a família ao estado de dependência
extremada com a internalização cada vez mais profunda da higiene médica na intimidade dos
lares.
Segundo Costa (1999, p.12), “a higiene conseguiu impor à família uma educação física,
moral, intelectual e sexual, inspirada nos preceitos sanitários da época” e esta emana no seio
social como medida de solução pensada para sanar o quadro caótico que é traçado na época com
os altos índices de mortalidade infantil e precárias condições de saúde dos adultos.
Os costumes familiares são vistos como espaços a serem civilizados com a quebra e
superação da ignorância e vícios que, segundo os médicos higienistas da época, são os maiores
motivadores das mazelas anteriormente citadas. Os pais são concebidos, assim, como incapazes
de proteger a vida de suas crianças e para isso seria justificável a adoção de uma “pedagogia
médica” que ditasse um novo perfil sanitário para a família e, consequentemente, alterasse sua
feição social refletida na nuclearização crescente dos grupos familiares. Isto motivou, em larga
medida, a cristalização de um modelo familiar convencionalmente denominado de burguês, dessa
forma, “a família nuclear e conjugal, higienicamente tratada e regulada, tornou-se no mesmo
movimento, sinônimo histórico de família burguesa” (COSTA, 1999, p.13).
Com a instalação de um modelo próprio da burguesia na forma de organização familiar
institui-se também padrões de convívio social dentro do mesmo. A educação higiênica é vista
como um dos elementos que fomentou a elaboração dos símbolos e valores próprios da família
nuclear burguesa e do corpo burguês. Corpo este higienicamente urbanizado e disciplinado, que
exerce fascínio pela contraposição da fragilidade e debilidade marcada pela carência.
Contudo, a educação higiênica não se pretende demonstrar somente na normatização de
comportamentos pela prática da repressão e censura de atos insalubres. A tática era fazer com que
o indivíduo internalizasse o autocontrole de suas ações, refinando e cultivando o cerceamento
como instrumento de purificação de costumes populares. A entrada dos especialistas na leitura e
julgamento da relação familiar só ilustra a idéia, acima citada, da ignorância dos pais no
tratamento e educação dos filhos.
Perante os novos técnicos em amor familiar, os pais, via de regra, continuam
sendo vistos como ignorantes, quando não ‘doentes’. Há sempre um ‘a mais’ a
corrigir, um ‘a menos’ a tratar. Amar e cuidar dos filhos tornou-se um trabalho
sobrehumano, mais precisamente, ‘científico’. Na família burguesa os pais
jamais estão seguros do que sentem ou fazem com suas crianças. (COSTA,
1999, p.15)
Para este autor, tal relação de tirania e imposição pode ser uma das respostas para os
questionamentos contemporâneos acerca da desagregação familiar articulada ao seguimento
“cego” das normas da saúde e equilíbrio impostos.
Estas abordagens pautam-se num modelo cientificista onde o discurso político é
esvaziado, dando lugar puramente à constatação diagnóstica que não concebe a realidade em seu
caráter multifacetado e complexo.
Inserem na categoria das práticas não-discursivas de normatização, como apregoa Jurandir
Costa (1999), que os define como mecanismos formados pelo conjunto de instrumentos que
materializam o dispositivo: técnicas físicas de controle do tempo dos indivíduos ou instituições;
técnicas de organização arquitetônica dos espaços; técnicas de criação de necessidades físicas e
emocionais etc.
Segundo Donzelot (apud Costa, 1999), o Estado Moderno, voltado para o
desenvolvimento industrial, tinha necessidade de um controle demográfico e político da
população adequado àquela finalidade. E isto se manifestava num controle efetivo recebido junto
às famílias, buscando disciplinar a prática anárquica da concepção e cuidados físicos dos filhos,
além de, no caso dos pobres, prevenir as perigosas conseqüências políticas da miséria e do
pauperismo. Isto pode ser denominado de “economia social” expressa na idéia de saneamento ou
“economia do corpo”. Para Donzelot (1986), o Estado que negligencia o tratamento às crianças
estabelece a si mesmo prejuízos á sua própria constituição política e econômica.
Estabeleceu-se, assim, a intervenção normativa que se manifestava na defesa da saúde
pública e moral das famílias. A primeira dessas intervenções se referia à medicina doméstica.
Segundo Costa (1999), esta medicina no interior da família, estimulava a política populacionista,
reorganizando os grupos familiares em torno da conservação e educação das crianças. No que diz
respeito às famílias pobres, refletia-se nas campanhas de moralização e higiene da coletividade e
nas instituições de caráter filantrópico fundadas no início do século XX.
4 “PELAS CRIANÇAS”: O INSTITUTO DE ASSISTÊNCIA Á INFÂNCIA DO
MARANHÃO
O processo de criação do Instituto de Assistência à Infância do Maranhão, sediado na
capital São Luís, como nos grandes centros urbanos do Brasil - Rio de Janeiro, São Paulo e
Salvador - iniciou-se no círculo de discussão das elites. Dentro da redação do jornal A Pacotilha
são lançados os primeiros ecos em prol da “infância desvalida”. A iniciativa, portanto, de
discussão e elaboração de um plano de ações para ser efetivado emana de um seleto grupo de
médicos, intelectuais e damas de elite, que defendem a responsabilização de todos pelas questões
acerca da infância, saúde e pobreza, como forma de resguardar a ordem e progresso desta
sociedade ludovicense que busca atingir o status de civilizada no limiar do século XX.
O Instituto de Assistência à Infância do Maranhão é, portanto, uma entidade nascida do
âmbito privado. Não se referindo mais, pelo menos no plano teórico, à caridade que marca
instituições católicas de amparo às crianças pobres e abandonadas como as Rodas dos Expostos,
Casa dos Expostos e Asilos de órfãos do século precedente, busca instaurar um modelo de
assistência filantrópica que passava pelo cuidado e normatização de costumes tanto das crianças
pobres quanto de suas famílias.
A idéia é oficializada numa das salas do referido jornal, em 10 de Agosto de 1911.
Estiveram presentes nesta sessão, além do criador da idéia, Cesário Arruda, os médicos Lima
Aguiar, Carlos Fernandes, Tarquínio Lopes Filho, Aníbal de Andrade, Paulo Carvalho, José
Murta e os Srs. José Barreto, Domingos Barbosa, Luso Torres, Fran Paxeco, Frederico Filgueira e
Agostinho Reis (LIMA, 1951). Era um grupo diverso, porém pertencente ao mesmo círculo de
abastados da capital ludovicense, que lançara a discussão e demarcação clara e precisa dos
objetivos da instituição.
Definida as diretrizes, dez dias depois é oficializada a fundação numa sessão solene na
sede do Congresso Legislativo do Estado. Neste evento fez-se a discussão e aprovação dos
estatutos e definiu-se a diretoria provisória – o Coronel Frederico Figueira, presidente; Domingos
Barboza e Virgílio Domingues da Silva, primeiro e segundo vice-presidente; Astolfo Marques e
Artur Paraizo, primeiro secretários; Manoel Joaquim do Nascimento Ferreira, tesoureiro e
Agostinho Reis, bibliotecário – essencialmente masculina, composta por senhores da alta camada
da sociedade ludovicense. Às mulheres caberia o espaço das “Damas da Assistência”, há,
portanto, uma divisão de gênero nos papéis da assistência.
Somente no dia 28 do mesmo mês fora confirmado a escolha dos membros do conselho
administrativo que teve como diretor técnico o Dr. Cezar Arruda, além do presidente e vicepresidente honorários, o governador do Estado e o bispo diocesano. Tal proposta denota que a
filantropia se fazia a partir da legitimação dos poderes regentes desta sociedade, mais
especificamente, a esfera política e a religiosa.
A presença de um grande número de pessoas neste evento, num local representativo do
poder do Estado, denota que apesar da iniciativa privada há um diálogo com a instância pública
mesmo rarefeita. Nesta ocasião foi escolhida a primeira diretoria do Instituto, sob a presidência
do Cel. Frederico Filgueiras, antecedida de discursos calorosos proferidos por Fran Paxeco e
Cesário Arruda acerca da condição de cuidado da infância pobre na capital e da necessidade de se
apoiar a criação de uma instituição desta natureza. Estes discursos pretendiam atrair um número
significativo de sócios doadores de recursos para a manutenção das atividades da instituição.
Sobre isto, o artigo que noticiava a fundação afirmou que,
Os auspícios sob que aparece está por demais louvável associação levam-nos a
prever-lhe um êxito completo. A estatística demógrafo-sanitaria de S. Luiz, em
que se acuza uma compujente morti-natalidade, obrigará todas as pessoas
bondozas, e até as indiferentes, a colaborar na mais que benemerita e
prometedora tentativa. (A PACOTILHA, 21 AGOSTO DE 1911)
O Instituto encontrou sede definitiva a 7 de Setembro de 1911 num prédio de dois
pavimentos à Avenida Rio Branco n° 308, doado pelo presidente Luís Domingues, então
governador do Estado do Maranhão, após sensibilizar-se pelo discurso proferido pela menina
Floripes de Carvalho que abordando “o suplício das criancinhas” e falando em vosso nome,
comoveu o referido presidente que “ergueu-se enternecido, abraçando-a e hipotecando-nos o seu
assentamento”. (LIMA, 1951).
Destaca-se neste intento a atuação de Fran Paxeco, cônsul português, que esteve à frente
do projeto de assistência desde as articulações do pequeno grupo na redação do jornal A
Pacotilha para a fundação do Instituto de Assistência à Infância. Este intelectual que também
atuou no Estado do Pará, notabilizando-se por obras como Geografia do Maranhão (1922) e O
Maranhão: Subsídios Históricos e Corográficos (1998), onde realizou trabalhos-síntese de
reunião de dados relevantes à produção geográficas e historiográficas local. A presença de
Paxeco foi, portanto, um indício do papel legitimador da intelectualidade no referido projeto.
FIGURA 6: FOTOGRAFIA DO INTELECTUAL FRAN PAXECO
FONTE: PAXECO, Fran. Geografia do Maranhão. São Luís: Typografia
Teixeira, 1922 .
Em 1913, o Instituto mantinha os seguintes serviços médicos: Dispensário, Creche,
Hospital de Crianças Moncorvo Filho, Maternidade Benedito Leite e Gabinete Odontológico, e ,
em 1915, uma farmácia. O Dispensário pertencia à estrutura de funcionamento do Instituto,
referindo-se a uma espécie de ambulatório de medicina infantil atendendo às crianças
matriculadas com idade de até 14 anos. Neste espaço as crianças eram atendidas com consultas,
injeções, curativos, ortopedias, atestados de saúde e cirurgias. Além disso, recebiam consultas no
Instituto ou em domicílio, conforme gravidade da moléstia, sendo que as receitas eram dirigidas
às farmácias particulares (Caldas, Confiança, Minerva, Normal, Rabelo, João Vital, Francesa,
São José e Esculápio), em 1915, esta atividade passou a ser assumida pela farmácia interna da
instituição (LIMA, 1915).
A creche surgira apenas 4 meses depois da fundação do Instituto. Destinava-se
especificamente ao amparo dos filhos e filhas de mães empregadas funcionando todos os dias das
06 às 18 horas. Obedecia, portanto, ao tempo do trabalho daquelas que poderiam ser operárias
“do lar”, do comércio ou das fábricas. O instituto exigia comprovação tanto de pobreza quanto
certificado dos patrões ou diretores do estabelecimento a qual a genitora trabalhava
(RELATÓRIO DE 1917). O Instituto atendia, assim, crianças pobres advindas de um meio
carente que as impossibilitava receber cuidados médico-assistenciais do sistema público,
desproporcional ao tamanho dos necessitados deste serviço.
É importante inferir quem eram estas crianças atendidas pelo Instituto e qual seu perfil.
Objetivando oferecer maiores informações sobre as crianças assistidas na instituição, realizou-se,
no presente trabalho, a descrição e análise de dados sobre matrículas dos infantes desvalidos
retirados do Jornal A Pacotilha, entre 1911 e 1913, que diariamente registrava desde a fundação
solene do instituto o nome, idade e cor da criança no momento da matrícula. Foram registradas
oficialmente neste três anos 643 crianças, porém devido a não disponibilidade de algumas
publicações do referido jornal ou mesmo pelo mau estado do periódico que impossibilitava a
leitura, perdeu-se parte dos registros de matrículas contabilizando o número de 227 inscrições.
GRÁFICO 1: Classificação por sexo das crianças atendidas entre
1911 e 1913.
51,5
51
50,5
50
49,5
49
48,5
Masculino
Feminino
48
47,5
47
Percebeu-se um equilíbrio quanto ao sexo no que diz respeito ao atendimento às crianças,
isto leva a crer que inexistia restrição de gênero. Sobre a cor das crianças, a questão se
complexifica, uma vez que, são definidas nos registros de matrículas basicamente três cores de
classificação: branco, preto e pardo. A maioria das crianças registradas, porém, são brancas e
pardas, o que impõe uma questão quanta a metodologia de definição das cores. O silêncio quanto
a presença de negros dentro dos registros acessados permite questionar seriamente o método de
classificação, pois é notório o grande números de negros na sociedade maranhense,
principalmente pertencente à camada popular. Sobre isto, não se sabe, porém, se a classificação
era realizada no instituto ou se era a própria família da criança que a realizava. Sobre a idade,
notou-se que a maioria das crianças assistida vai até 13 anos, sendo que há uma distribuição
equilibrada quanta a faixa etária.
GRÁFICO 2: Classificação por cor das crianças atendidas entre
1911 e 1913.
60
50
40
30
20
10
0
Branca
Parda
Preta
Não
Identificado
O instituto contava com um quadro de
funcionários que ia de médicos, amas de leite,
auxiliares gerais de limpeza, corpo administrativo.
Havia, porém, certa carência quanto a enfermeiras.
Objetivando sanar tal demanda, a instituição
conseguiu articular forças e contatos para trazer
enfermeiras diplomadas da Europa, mais
especificamente da Inglaterra, para trabalhar nesta.
Destacam-se aqui nomes das principais
enfermeiras que aceitaram a “missão”: Miss Sara
Thakeray, Misses Margaret Laurie e Martha
Philson, Miss Florence May Garret e Miss
Gertrudes Ellen Gollet (LIMA, 1915).
Sara Thakeray foi considerada, segundo afirmação de Olavo Correia Lima (1951), a
criadora da Maternidade Benedito Leite. Porém, sabe-se que havia um movimento em prol da
criação desta maternidade dentro do Jornal A Pacotilha, desde o ano de 1912. Sobre isso, podemse encontrar, no mesmo jornal, artigos intitulados “Pró-Maternidade” , como é o caso do
publicado em 09 de Abril de 1912, que levanta a bandeira de criação da referida instituição na
capital.
A “Pacotilha”, num belo gesto, a que não regateamos os nossos francos
aplauzos, abriu suas colunas uma subscrição, para se criar uma maternidade,
anexa á Assistência á Infância em cujo estatuto figura esse humanístico
empreendimento.
Fundamentando o seu apelo, a brilhante vespertina inseriu, numa das suas
edições, um rutilo artigo, demonstrando o alto alcance de tão útil cometimento e
exortando nosso publico generozo a concorrer um óbolo, para se levar a efeito a
projetada obra (A PACOTILHA, 09 DE ABRIL DE 1912)
A vinda desta enfermeira para trabalhar no Instituto podia ser justificada também por sua
ligação com a Igreja Protestante, que se lançava em missões pela América Latina a partir da
prestação de serviços filantrópicos à comunidade local. Chegara ao Maranhão aos 43 anos
ficando ali por curto tempo - o período do contrato durava em média três anos -, retornando à
Inglaterra onde falecera em 1919. Seu trabalho nesta terra fora financiada pelo “(...) filantropo
inglês Huntington Stone (que) forneceu-lhe os meios necessários para vir trabalhar ‘nessa terra
estranha...onde como sabemos, a moral das classes inferiores é quase um mito’, como afirmou
Julius Jacobsen em relatório” (LIMA, 1951, p.116). Isto sugere que as enfermeiras lançavam-se a
uma espécie de “missão salvacionista” que pretendia retirar os “despossuídos” de saúde e de
“valores morais” do estágio de degeneração. Pelas palavras de Julius Jacobsen, acima descritas,
percebe-se nitidamente uma tendência colonizadora.
Margaret Laurie e Martha Philson chegaram em São Luis, em 01 de Janeiro de 1915,
comprometendo-se em assumir serviços internos em troca de sustento e moradia, contudo, não
lhe era vetado realizar atividades externas. Martha Philson seguiu ao Canadá, em 1918, já Miss
Laurie permanecera mais tempo sendo professora da Escola de Enfermagem na década de 1920.
Chegaram, hontem, a esta cidade, miss Philson e Laurie, parteiras escocezas,
que vêem trabalhar na maternidade do Instituto de Assistência á Infância, sob a
direção de Miss Tackeray.
Miss Philson é diplomada em obstetrícia pela Central Midwines Board Glascow, em hijiene pelo Leal
Governement dow Scotland e como enfermeira geral pelo Glascow Paris Council. Miss Laurie obteve
diploma pelo Glascow Paris Council, obstetricia pelo Central Midwines Board NewCastlle de Tyne, em
hijiene pelo Glascow Hospital. (A PACOTILHA, 10 DE SETEMBRO DE 1912)
Em substituição a Miss Philson chegou na capital,
em 1918, Miss Florence May Garret. Assumira um
contrato de três anos que lhe assegurava direitos
de trabalho e permanência. Neste contrato, “(...)
comprometia-se a trabalhar gratuitamente com a
condição do mesmo lhe dar casa, comida, roupa
lavada, serviços médicos, liberdade de trabalho
fora do estabelecimento, e direito de passagem de
volta, no fim do contrato” (LIMA, 1951, p.117).
Fora substituída por Gertrudes Gollet, em 1921,
que possui habilitação com o trabalho de
ginecologia sendo também uma das fundadoras da
Associação das Enfermeiras do Maranhão (1921).
A passagem das enfermeiras inglesas para atender
às necessidades no tratamento clínico das crianças
pobres de São Luís denota as enormes carências
existentes na capital no que diz respeito a
disponibilidade de profissionais qualificados ao
trabalho. Apesar disso, havia grande resistência
em criar meios formativos de fornecer enfermeiras
para as demandas locais. Ao contrário do que
ocorria na Inglaterra, como cita Lima (1951), os
médicos de São Luís recusavam-se a dar aulas
teóricas às moças (de boa família) que, por sua
vez, se recusavam também, conforme proposta da
Associação das Damas, em ir à Inglaterra estudar
enfermagem com todas as despesas pagas.
Em 1921, surge então a Escola de Enfermagem e Parteiras em São Luís, com seu
regulamento construído por Fran Paxeco, Luiz Viana e Cesário Veras, componentes do Instituto
de Assistência à Infância do Maranhão, o que evidencia uma clara ligação entre as instituições.
Seu corpo docente também era composto pela maioria dos envolvidos na administração e no
atendimento médico-hospitalar do Instituto.
A primeira turma formara-se em 26 de Dezembro de 1921 - era formada por cinco moças
havendo entre elas representantes do interior do estado, dentre elas, Eugenia Francelina Alves,
Hermenegilda Martins Amaral e Celeste Dulce Costa. Receberam, durante o curso, um currículo
similar ao do curso das Enfermeiras Oficiais do Rio de Janeiro, tendo aulas de anatomia,
fisiologia, higiene, clínica cirúrgica, ginecologia, cuidado aos recém-nascidos e noções de prática
de farmácia (LIMA, 1951).
O século XX, como assinala Kulhmann Jr (2004), é marcado pelos congressos científicos
relacionados à infância e à saúde, onde são publicados experiências e divulgados concepções
sobre cuidado e atendimento assistencial à criança. O Instituto de Assistência à Infância do
Maranhão esteve presente através de seus representantes, como Cesário Arruda e Marcelino
Machado, em importantes reuniões científicas como foi o 1º Congresso Americano da Criança e
o 1º Congresso Brasileiro de Assistência à Infância. O primeiro realizou-se em Buenos Aires, em
1916, aonde Marcelino Machado chegou a participar do “Comitê Nacional Brasileiro”. Já o
segundo realizou-se, em 1920, no Rio de Janeiro, também representando por Marcelino
Machado, então deputado federal nomeado por Urbano Santos (LIMA, 1951). Estes médicos
tinham no meio social da época grande prestígio. Nunes (2000) identifica no século XX
maranhense a formação discursiva dos médicos via produção científica e intelectual consagrada
no campo da ciência.
Sobre a condição financeira do instituto, é importante frisar que a origem dos recursos era
diversa. Advinham de donativos, “presentes, sêlos caritativos, festivais, loterias federais, impôsto
de caridade federal, contribuição de sócios, principalmente das Damas de Assistência, renda de
pensionistas parturientes, da creche, da Escola de Enfermagem” (LIMA, 1915, p.114). Além, é
claro, das subvenções oficiais que vinham da parte da União, do Estado e do Município que
constituía importante força de sustentação para o trabalho do Instituto. Sobre isso, o relatório da
instituição elaborado em 1917 chega a afirmar que “(...) ser-nos-ia bem difícil prosseguir a
marcha, não obstante o poderoso amparo dos governos federal, estadual e municipal, cujos
subsídios muitíssimo teem concorrido, também, para valer as indescritíveis misérias, enxugando
inúmeras lágrimas” (RELATÓRIO DE 1917). Apesar disso, o governo, principalmente das
esferas estadual e municipal, mostra-se oscilante na regularidade da oferta de recursos tanto que,
em 1925, Lino Machado, integrante do conselho administrativo do Instituto, lançará duras
queixas quanto ao “desinteresse dos governantes” afirmando que:
seria também, (oh, doloroso contraste!), acentuar, com traços negros, a
desorientação dos espíritos doentios, de paranóicos governantes, que tentam
fechar as portas dessa divina instituição, privando-a das subvenções que num
gesto de justiça lhes foram concedidas pelo Congresso do Estado (LIMA, 1951,
p.115).
A presença restrita do Estado neste projeto denota
a característica do tempo onde a responsabilidade
não era assumida de forma oficial. Cabia ao
governo demarcar subsídios para as políticas de
caridade e filantropia financiando ações de cunho
privado. A entrada do Estado de forma direta darse-á mais fortemente a partir da década de 1930
quando que há uma penetração maciça das
questões sócio-assistenciais na plataforma oficial
(MARCÍLIO, 2006).
Segundo Olavo Correia Lima (1955), em 1930, o Instituto de Assistência à Infância
mostrava sinais de decadência. Tal assertiva se deve às condições econômicas da instituição, que
tinha como recursos de sustentação maior as subvenções oficiais, além disso, pouco era o
crescimento do quadro de sócios “benfeitores”, que, em 1938, contava com o reduzido número de
52. Com isto, a estrutura de funcionamento entrara em amplo desarranjo. Muitas normas do
instituto, no que diz respeito às crianças pobres, mostravam marcas de pouca eficiência.
As eleições se precediam sem obediência aos estatutos, apezar da casa possuir um
patrimônio de mais de trezentos contos, não tinha escrita regular, e finalmente
não mantinha os serviços de outrora e os que restavam não apresentavam a
eficiência técnica dos melhores dias de vida do Instituto. (LIMA, 1951, p.120).
Assinala-se, a partir daí, no contexto maranhense a chamada terceira fase da história da
social da infância elaborada por Marcílio (2006) denominada também de estatização do cuidado.
O Estado do Maranhão passa a intervir, em 1935, assumindo o Instituto que é entregue
provisoriamente à orientação técnica da Saúde Pública (LIMA, 1951). A intervenção estatal é
estendida a todos os setores da instituição, inclusive a Associação das Damas da Assistência que
continuava com a mesma estrutura e componentes.
O Instituto de Assistência à Infância do Maranhão é transformado em Associação de
Assistência e Proteção à Infância em 1939. Declara-se, portanto, o fim da instituição tomada
agora como parte das políticas de proteção e cuidado da infância de caráter público estatal. Sobre
esta mudança, o médico Olavo Correia Lima faz um desabafo sobre a estatização da assistência à
infância, percebida enquanto prejuízos para a prática filantrópica. Segundo ele,
O Instituto quasi nada lucrou com a intervenção oficial. O número de sócios
diminuiu e os poucos áulicos que entraram logo deixaram de contribuir: a
entrada de novos sócios não ficou menos difícil, pois o autor destas linhas, não
conseguiu associar-se à casa, apesar de ser pediatra e de suas relações pessoais
A Associação das Damas de Assistência teve a mesma sorte.
Os serviços clínicos não se ampliaram nem deixaram de viver sem extrema
dificuldade.
Os tempos estavam mudados. Esmaecera o interesse dos maranhenses em
contribuir individualmente à obra de tal natureza; os médicos não mais
praticando a medicina dos 3P, vão mais e mais exigindo remuneração pelos
seus serviços. Diminuindo as liberdades civis, o governo vai sendo obrigado a
assumir as responsabilidades dos problemas sanitários e assistenciais. (LIMA,
1951, p.120)
Percebe-se, então, o sentimento de perda que carrega as palavras do médico
contemporâneo ao instituto. O tom de desabafo pode ser justificado também pela supressão da
participação privada, ou melhor, da elite principal interessada no exercício do “melhor controle
sobre a sociedade, como pondera Foucault”. A filantropia “de elite” pretendia, assim, “preparar o
homem higiênico (capaz de viver bem nas grandes cidades, em boa forma e com boa saúde)
formar o bom trabalhador, estruturar o cidadão normatizado e disciplinado” (MARCÍLIO, 2006,
p. 207).
A entrada do Estado na proposta filantrópica marca o movimento de superação da
“caridade oficial” para o desenvolvimento da “assistência pública”, mas condizente com o regime
republicano. Para Rizzini (1993), o investimento estatal na assistência não visava, contudo,
ocupar o lugar da beneficência privada ou inibir qualquer iniciativa deste tipo. O controle do
Estado visava, assim, somar novos valores à assistência cimentando e difundindo, sobretudo a
moral burguesa da ordem, disciplina, trabalho e liberdade como ideologia oficial de busca de
“unidade moral”. Utilizou-se das concepções e instrumentos da higiene e eugenia já estruturadas
na filantropia privada, aproveitou-se, portanto, do modelo estabelecido para construir sua marca
assistencial.
Tendo por meta ‘o preparo de uma gente sadia’ no sentido de ‘eugenia de um
povo’, a assistência pública recorreria a instrumentos difundidos pela filantropia
médica, tais como ‘disseminação dos socorros de puericultura’ e a ‘propaganda
da higiene infantil’. À ‘classe médica brasileira’ estaria reservado um lugar de
destaque no desenvolvimento da assistência pública, pois o médico promove
não só a saúde física dos indivíduos, mas também, ‘são os colaboradores
eficientes, verdadeiros dirigentes na luta pelo engrandecimento material e moral
do país. (RIZZINI, 1993, p. 95).
A diferença marcante estaria na definição da assistência pública como promotora de uma
economia igualmente pública que ativasse o trabalho e a indústria enquanto viabilizadores do
progresso da pátria. O pobre, principalmente, a criança, dentro da ideologia do “futuro da nação”,
passam a ser oficialmente tutelado pelo Estado e isto é percebido na difusão de inúmeras
instituições, declarações, legislações e regulamentos que abordam a assistência à camada
despossuída.
4.1 “AUXILIAI A ASSISTÊNCIA À INFÂNCIA”: Os Intelectuais e A Pacotilha
Desde agosto de 1911, o Jornal A Pacotilha reserva espaço específico à descrição das
crianças pobres da capital denominado de “A Infância Desvalida”. Nesta sessão, quando dos
meses precedentes à criação do Instituto nesta cidade, destinava-se á relatar a necessidade de
sensibilizar a sociedade da época no cuidado das crianças (marginalizadas), uma vez que são
tidas como “futuro da pátria” ou “força vital da nossa nacionalidade” (A Pacotilha, 02 de Agosto
de 1911).
No mês anterior à fundação da referida instituição os indivíduos que compõem o grupo de
iniciantes do projeto de assistência utilizam A Pacotilha como meio de difusão de seu ideário.
Para isso, lançam artigos relacionados à condição e cuidado das crianças pobres, tanto no que diz
respeito à saúde e alimentação como ao cuidado e assistência.
Através deste veículo se divulga e convida vários sujeitos e damas de elite a se fazerem
sensíveis à causa dos “pequenos infelizes”. Por vários dias, antes da implementação do instituto,
foi colocado na primeira página do referido jornal, em letras garrafais, para ser notado pelo
grande púbico leitor, a frase chamativa “Auxiliai a Assistência à Infância” Além disso,
propagandeava-se as várias sessões de “films” oferecidos para a arrecadação de donativos para o
instituto, onde se realizavam as chamadas “festas da caridade”. (A PACOTILHA, 17 de Agosto
de 1911).
Amanheceu em galas o apreciado cinema ideal.
É que se realiza hoje à noite, a simpática festa que os seus dignos e esforçados
proprietários oferecem ao Instituto de Assistência á Infância. É digno de nota o
acolhimento que nosso público tem dispensado á novel instituição.
Também os srs. Parada & Gomes quizeram contribuir para que a récita do Ideal
tivesse o maximo de brilhantismo, mandando ornamentar a frente daquella caza
de diversões.
As bandas de muzica do corpo militar o Estado e do 48 de caçadores;
gentilmente cedidas pelos srs. Coronel Abílio Noronha e major Pereira de Melo
tocaram lindas peças de seu vasto repertório. (...) Comparecerão as duas, á
noite, devendo tocar ali enquanto durar a bela festa.
Os srs. Friedheim, Aguiar & C distribuirão, hoje, á noite, no Ideal, pacotes de
farinha Nestlé entre os espectadores.
(...)
Consta que falarão, nesse festival (7 de Setembro) os ilustres literatos Antonio
Lobo e Domingos Barboza lendo este um conto de sua lavra. Falará também
Dr. Cezario Arruda. (A PACOTILHA, 18 DE AGOSTO DE 1911)
Fica claro nessa passagem quem são os sujeitos participantes do projeto de assistência e
seu distanciamento frente ao mundo de carências e miséria dos pobres a serem assistidos.
Realizam-se “festas de caridades” nas quais somente são dignos de presença as damas e os
senhores empreendedores da “missão protetora”. Denota-se, assim, o enorme “apartheid social”
em que a miséria aparece aqui ou acolá no discurso e desaparece do círculo de convívio da
sociedade abastada. Pretendem, portanto, assistir uma pobreza de que são obrigados a encarar na
cidade e que fazem grande esforço para evitar maior contato.
O grande alvo de denúncia do jornal A Pacotilha era a mortalidade infantil seja a
motivada por questões sanitárias seja as ocasionadas por questões alimentícias. Eram correntes
artigos que traziam estatísticas sobre o grande indício de letalidade infantil no Rio de Janeiro, a
então capital do Brasil, com objetivo de chamar atenção para a temática, sensibilizando o olhar
para a realidade local.
Verificaremos por um paciente trabalho do dr Moncorvo, filho, que, do ano de
1895 a 1905, foi esta a percentajem da mortalidade infantil, em relação á
mortalidade geral, no Rio de Janeiro:
1895 – 32 %
1896 – 28,1 %
1897 – 33 %
1898 – 31 %
1899 – 36,4 % 1900 – 31,8 %
1901 – 33,5 % 1902 – 33,2 %
1903 – 42,4 % 1904 – 45,1 %
1905 – 46 %
Por estes dados se conclue que é avultadíssima a cifra da letalidade infantil em
relação á mortalidade geral. Esta estatística versou sobre crianças de 2 anos. (A
PACOTILHA, 5 DE SETEMBRO DE 1911)
Trazia, ainda, números referentes à Bahia e São Paulo, capitais modelos da implantação
do sistema de proteção. Conclui que estas capitais contam com “coeficientes assombrosos”,
mesmo dispondo de um aparato assistencial, como é o caso de instituições de assistência à
infância, hospitais de crianças, creches e serviços confiáveis de venda de leite. Considera que a
grande causa destes números restringe-se à alimentação que poderia ser solucionada com serviços
assistenciais e inspeções sanitárias. Desconsidera, como já foi assinalado em análises anteriores,
as condições sócio-econômicas das famílias dessas crianças à margem dos serviços básicos e de
condições dignas de sobrevivência.
A redação da Pacotilha era usada, nesse sentido, tanto para divulgar a causa das crianças
pobres, sensibilizando a população ludovicense, mais especificamente, as famílias de elite,
quanto servia como lócus de encontro do grupo que se lançou à concretização deste projeto de
criação da instituição. Constituiu-se, portanto, enquanto via importante de difusão do ideal
assistencialista na sociedade da época. Sobre este papel e função dentro da instituição, o próprio
Jornal destaca em suas páginas que
Conscia do verdadeiro papel da imprensa moderna, que sabe amparar e
defender tenazmente todas as boas cauzas, a folha da praça João Lisboa, muito
há feito na sua salutar propaganda, a favor da magna cruzada da proteção á
infância pobre, secundada valentemente por todo jornalismo sanluizense, que
não tem poupado esforços para que o nome da instituição da rua Rio Branco
ecôe de boca em boca, como uma obra vencedora do nosso auxilio e fadada a
produzir benefícios, sagrados frutos.
Não somente no palacete alcatifado do rico, como na agreste choupana do
pobre, a assistência á infância é recebida com um carinho desvanecedor e isto
deve-se quaze excluzivamente a esse baluarte inexpugnável, fiel condutor do
bem, da luz e da verdade; - a imprensa.
Sem este elemento poderozo, o que ficaria reduzida qualquer iniciativa? Sem o
brado convincente de suas palavras, onde encontrariam guarida as aspirações
justas?
Facho luminozo do progresso, muito há auxiliado, entre nós, a fecunda cauza da
infância desvalida. (...) Onde quer que se torne necessária a sua cooperação ellla
surje infatigável e decidida, com a concludente lojica dos fatos, a animar e
despertar os espíritos, ainda os mais tíbios. (A PACOTILHA, 09 DE ABRIL
DE 1912)
Era um jornal de grande aceitação que fora criado em 1880, segundo Antônio Lopes
(1959), marcado pela causa abolicionista e republicana. Reunia, entre fundadores e
colaboradores, nomes importantes da imprensa e também das artes literárias maranhenses como é
o caso Antônio Francisco Leal Lobo (1870-1916), Vítor Lobato (1854-1893), Raul Astolfo
Marques (1876-1918), Agostinho Reis (1877-1924), Aluísio Azevedo (1857-1913), Sà Viana
(1860-1922), Barbosa de Godóis (1860-1923), João Francisco Gromwell (1865-1901), José
Barreto Costa Rodrigues (1868-1925), Fran Paxeco (1874-1952), entre outros.
Participaram, portanto, deste movimento em prol da assistência figuras notórias da cidade
ludovicense freqüentadoras dos círculos privilegiados da elite local. Alguns deles, como é o caso
de Fran Paxeco, escrevia e participava intensamente das atividades de divulgação e arrecadação
de fundos para instituição. Além, é claro, da presença no conselho administrativo deliberando
questões de grande relevância para a instituição. Outro intelectual que participou sobremaneira
fora o poeta Antônio Lobo, principalmente nos eventos feitos em prol do instituto, onde
declamava suas poesias e proferia discursos eloqüentes sobre a causa. A presença de indivíduos
da intelectualidade numa proposta desta natureza permite perceber-se a necessidade de oficializar
ou justificar o discurso da assistência através da imagem e da palavra dos intelectuais.
Outro ponto que merece ser considerado é o momento que a intelectualidade enfrentava
no início do século. Segundo Martins (2006), São Luís vivenciava nas “referências imagéticas”
dos intelectuais da época, também denominados de neo-atenienses, como é o caso de Antonio
Lobo, Fran Paxeco, Astolfo Marques e Nascimento de Moraes, um período de decadência4.
Havia, portanto, um sentimento de perda da “Idade de Ouro e Glória” experienciada em meados
do século XVIII após a implementação das medidas pombalinas no campo econômico. Isto era
refletido nas obras carregadas de um sentimento negativista e melancólico que ajudou a edificar a
discursividade do mito da Atenas Brasileira.
a ação desta geração (de neo-atenienses), no limite, tinha por escopo inventar
um Maranhão reatado a suas antigas tradições inventadas de fausto econômico,
de proeminência política, de requinte social e de cosmopolitanismo cultural, de
onde frutificava esmerado belentrismo. (MARTINS, 2006, p. 58)
Este cenário permite perceber uma íntima relação
entre a angústia promovida pelo sentimento de
decadência da cidade outrora enriquecida e a
necessidade de se criar, mesmo num passado
fatalmente perdido, saídas que transformem este
meio decaído em um florescente espaço da
civilização e ordem. Tentava-se minimizar as
tensões e a “tendência a degeneração” de um povo
miscigenado e pobre, como cimentava o discurso
de época, através de uma proposta que salvasse o
corpo social do desvio. Não se resgatava, com
isso, os áureos tempos, mas se evitava, com a
4
Terminologia adotada por Martins (2006)
assistência à criança pobre e potencialmente
desviante - segundo discurso de época - o
mergulho nas profundezas da decadência moral.
Eram, portanto, intelectuais que tinham como característica marcante a permanência no
“torrão natal” (MARTINS, 2006), interferindo mais diretamente, como foi o caso destes
envolvidos na proposta assistencial, no cotidiano real da cidade nada poética das tensões
decorrentes das dificuldades de transporte, primeiro dos bondes puxados a burro e mais tarde dos
movidos a eletricidade; da precariedade dos serviços públicos como abastecimento de água,
esgotos e limpeza pública, além de educação e saúde de restrito acesso (PALHANO, 1988). O
jornal A Pacotilha permitia também esta ponte com a crueza da dinâmica da realidade diária e a
justificativa discursiva do envolvimento com o Instituto, que segue fielmente o modelo carioca,
lócus privilegiado de divulgação, na época, do ideal e prática civilizatória de sociedade e também
de espaço urbano.
Por ter sido aluno e discípulo de Moncorvo Filho, o criador do Instituto no Maranhão, o
então tenente-médico do Exército Doutor Césario Correa de Arruda (também conhecido com Dr.
Cezar Arruda) adotou um discurso e prática que em muito se assemelham com as do médico
carioca (LIMA, 1951). Formando-se em 1909, Cezar Arruda defendeu a tese sobre pediatria,
preparado no Instituto de Assistência à Infância do Rio de Janeiro, versando sobre aleitamento
artificial e sua influência no índice de mortes entre os bebês. Sua tese foi muito divulgada na
forma de artigos, intitulados “Pelas crianças”, no Jornal A Pacotilha. Em texto publicado quartafeira, 23 de Agosto de 1911, Cezar Arruda dissertou acerca do “Uzo das Papas”. Neste artigo,
expôs que tal alimento é tido como causa da grande letalidade infantil, responsabiliza, portanto,
as mães, sobretudo as da camada popular.
É na classe pobre que o uzo das papas é mais espalhado; isso, talvez, devido a
não poder a genitora amamentar o filho, ou pela sua miséria tiziolójica, ou por
ter de passar o dia lonje da criança, no afanozo labor quotidiando.
É também essa classe a que fornece o maior continjente para elevar a cifra da
mortalidade infantil, conforme demonstraram os drs. Azevedo Sodré e
Moncorvo Filho. (A PACOTILHA, 23 DE AGOSTO DE 1911)
Em outro artigo, também intitulado “Pelas Crianças”, Cezar Arruda relaciona a
problemática da alimentação artificial com a urgência em estabelecer na cidade de São Luís um
serviço de assistência às crianças. Seu texto denota claramente sua visão acerca da função da
medicina higienista e da relação médico e mãe.
(...)As crianças pagam um dolorozo tributo ao nosso desleixo.
Muitas genitoras cometem verdadeiros assassinatos, sendo, na frase de um
notavel pediatra francez, assassinas inconscientes.
Pensando fazer um beneficio ao filho, alimentando-o com comidas
extravagantes, essas genitoras introduzem, no organismo infantil, verdadeiros
venenos, que não tardam a explodir.
Um facto, para corroborar o que venho de afirmar.
Fui, ante-hontem, prodigalisar os meus cuidados a uma criança.
Um quadro dolorozo se me apresentava: ––Uma infeliz criaturinha jazia inerte
no seu leito de dôr; os seus olhos fixos e imóveis, a rijidez dos musculos e todo
um cortejo de sintomas alarmantes indicavam o termo final da meningite que a
vitimava. Foi o meu primeiro cuidado indagar da alimentação.
Papa de farinha mimosa, responderam-me.
Eis a cauza do mal, disse contristado, á genitora, que se debulhava em pranto,
ante a sentença fatal que aguardava aquela vida em rebento.
A assistência vem pôr um paradeiro a esse desalabro, principalmente pela
instrução á genitora acerca da criação dos filhos e, por todos os preceitos de
higiene infantil, a que se há de obedecer.
Foi a norma que se tracei: junto ao leito do enfermo, mostrar á genitora os erros
em que incorrem e indicar-lhe o caminho lizo e sem acidentes. (A
PACOTILHA, 30 DE SETEMBRO DE 1911)
Cesário Arruda corroborava da idéia corrente na puericultura acerca da ignorância
materna como causa primeira da mortandade dos infantes defendendo a medicina como fonte de
redenção. Caberia, nessa ordem, ao puericultor “educar” estas mulheres no cuidado mais simples
ao mais complexo das crianças. Não considerava com tanta ênfase as variáveis sócio-econômicas
das famílias como pontos de justificativa do alto número de letalidade infantil. A culpa recaia
desconsiderando a força das condições objetivas desta camada marcada pela miséria e carência
do atendimento dos seus direitos mais básicos. Na ótica dos médicos-higienistas era preciso
“aculturar” esta massa despossuída, e não pensar formas de retirá-la da pobreza extrema, para
evitar a expansão do “perigo social” da falta de higiene.
Defendia a assistência aos pequenos como forma
de prevenir futuros desvios. Evocava a
necessidade urgente de se criar em São Luís um
serviço desta natureza dado os altos índices de
mortalidade infantil, bem como o temor pelo
aumento da ociosidade e vagabundagem no espaço
da cidade. Chamava a atenção pela miopia do
poder público no trato assistencial com os
pequenos.
“Pelas Crianças”
Evidentemente, a Assistência a Infância vem preencher uma grande lacuna, de
que muito de resentia esta capital.
As crianças são dezapiedosamente dizimadas pela falta de um serviço
escrupuloso e bem organizado de assistência.
Os poderosos constituidos não podem deixar de tomar em consideração esse
relevantissimo serviço, de importancia vital para o Estado, ao qual cumpre
estabelecer leis tendentes ao amparo desse grande viveiro de crianças, que serão
os homens de amanhã.
É deveras contristador o estado lastimozo em que jazem, por ahí afora,
innumeras criancinhas, que estão a reclamar, de nós, os melhores princípios de
humanidade.
Ao passo que levamos vantagem aos nossos irmãos do continente, pelo nosso
território, uberdade do solo, pelas nossas riquezas naturais, industria, pelo nosso
poder defensivo, enfim, por todos os outros ramos em que se divide a nossa
actividade, neste particular, estamos colocados na retaguarda, caminhando ao
passo de caranguejo.
Essa inércia, porém, dos nossos governos transforma-se agora em movimento,
disposto, como parece estar o Marechal Hermes, em estabelecer oficialmente,
entre nós, esse magno problema, que muito e muito tem preocupado a atenção
de outros povos.
De uma ação conjunta de vontade de nosso povo, depende o brilhante futuro
das criancinhas de nosso paiz.
O primeiro passo está dado pelo belo chefe da nação, auxiliando o Dispensário
Moncorvo.
Resta converter em lei o projeto sobre a proteção das crianças da primeira idade
e a regulamentação das ama de leite e outras que a prática e as nossas condições
determinarem. (A PACOTILHA, 30 DE SETEMBRO DE 1911)
Apesar de ser pioneiro de uma proposta de caráter
privada, enxergava na estatização da assistência
uma forma de ampliar o alcance do trabalho que
agregaria muito mais crianças da camada pobre.
Isto possibilitaria a efetivação do ideal de
higienização do corpus urbano com maior
velocidade.
4.2 “A REGENERAÇÃO DOS COSTUMES PARTE DO ALTO”: a atuação das Damas de
Assistências
Similar à estrutura adotada pelo Instituto de Assistência à Infância do Rio de Janeiro, no
Maranhão também se deu a criação da Associação das Damas de Assistência à Infância. Fundada
em 1911, surgiu com o objetivo principal de “auxiliar a diretoria do Instituto, na humanitária
tarefa de proteção ás crianças pobres” (LIMA, 1951).
Suas ações estavam mais relacionados à coleta de donativos, corte de “fazendas” para
fazer roupas para as crianças, além da organização de festas para as mesmas em datas
comemorativas, como Natal e “Ano Bom”. Não estavam, dessa forma, presentes na comissão que
geria administrativa e financeiramente o órgão, o que permite perceber permanências no que diz
respeito às relações de gênero que separavam as mulheres de atividades públicas de
gerenciamento, tidas como essencialmente masculina (LIMA, 1951).
As Damas de Assistência representavam o lado maternal do Instituto. Seus discursos,
proferidos pela presidente, a socialmente reconhecida dama da elite ludovicense Dona Lucíola,
refletia o olha da elite feminina sobre a condição dos infantes. Seriam estas “damas”, as mães
postiças destas “crianças desvalidas” entregues ao abandono físico e moral, como apregoavam
suas falas e documentos da instituição.
FIGURA 7: AS DAMAS DE ASSISTÊNCIA DO INSTITUTO DE SÃO LUÍS
FONTE: PAXECO, Fran. Geografia do Maranhão. São Luís: Typografia Teixeira, 1922 (p. 19)
Quando da fundação da Associação das Damas fica evidente o discurso acerca do lugar
da mulher nas práticas assistenciais. Era preciso definir um espaço específico à atuação feminina
e as “Damas” proporcionariam esse apartheid. Sobre a visão do papel da mulher dentre deste
projeto, o diretor técnico Dr. Cezar Arruda sintetiza no seu discurso de fundação da associação
feminina descrito pelo Jornal A Pacotilha, em 11 de Setembro de 1911.
Falou sobre a influencia da mulher na sociedade moderna, qualificando-a de
potencia universal. Referiu-se ao papel da espoza e mãe, dizendo que, com
carinho e a ternura, apezar de ser taxada de sexo frágil se torna um ente
fortíssimo capaz de abalar o mundo. Embora levando o seu concurso a todos os
ramos da atividade humana, abraçando as profissões liberais, fazendo-se
política etc..., etc., continua o orador, a mulher acha-se mais no seu elemento,
no aconchego do lar, entre o carinho da espoza e a doçura dos filhos. Disse,
como Guyau, que a prática seria para a mulher uma ocupação estéril e pouco
pratica; a filantropia seria sua verdadeira e única função (A PACOTILHA,11
DE SETEMBRO DE 1911).
À mulher era negado o espaço decisório, mesmo no limiar do século XX. A filantropia era
considerada, nas permanências do pensamento patriarcal-machista cultivado nos séculos
anteriores, o lugar em que a mulher se realizava enquanto esposa, mãe e cidadã republicana ao
doar seu tempo e trabalho aos chamados “pequenos infelizes”. Pode-se identificar na citação
acima um discurso marcado pela não aceitação da ampliação do espaço de atuação da mulher,
com se isto representasse um choque como uma “natural” predisposição feminina à maternidade,
ao casamento e ao cuidado da família.
Uma das intenções das lutas feministas do início do século XX era retirar a mulher da
clausura da família e da vida conjugal, impeditivos “morais” da saída da mulher, sobretudo de
elite, para a vida fora do lar. Porém, a atuação das “damas”, mesmo representando aparentemente
este movimento de trabalho fora do ambiente doméstico, não significou um passo na conquista de
maior visibilidade feminina por concentrar um número de mulheres que tinham no instituto uma
extensão da “missão maternal” de cuidado das crianças, somando aí também os valores cristãos
da caridade e solidariedade ao próximo.
A Associação das Damas de Assistência representava, frente ao Instituto, uma espécie de
apêndice. As ações do conselho administrativo, composto somente pelos homens da classe alta e
média, eram consideradas as de grande relevância para a organização e funcionamento da
instituição tanto que um dos seus princípios básicos refere-se ao auxílio obrigatório do conselho
administrativo do Instituto sempre que este solicitar “para a fiel execução de seu programa” ( A
Pacotilha, 11 de Setembro de 1911).
A responsabilidade das “damas” concentrava-se especificamente no trabalho mais
caritativo que filantrópico. Caberia a elas, senhoras e senhoritas, estar mais próximo da criança e
de suas necessidades diárias desenvolvendo ações focalizadas e de caráter compensatório em tom
maternal. A associação tinha como base de atuação os seguintes princípios:
1° Promover os meios de proteger eficazmente a infância pobre,
proporcionando-lhe os cuidados de que carecer;
2° Angariar objetos que lhe possam ser úteis à vida;
3º Incumbir-se, pelo trabalho de suas sociais, da confecção de vestes e de
tratamento das crianças, quando enfermas;
4º Oferecer ás crianças pobres festas e brinquedos por ocazião do Natal, Ano
Bom e Reis.
5º Auxiliar o Conselho Administrativo do Instituto de Proteção e Assistência do
Maranhão sempre que este solicitar a sua coadjuvação, para a fiel execução de
seu programa;
6º Promover, pelos processos que forem mais profícuos ao fim que dezeja
atinjir os recursos de que o Instituto precizar, para o sua permanente e condigna
instalação. (A PACOTILHA, 11 DE SETEMBRO DE 1911)
As Damas da Assistência, apesar de terem seu trabalho limitado em relação ao conselho
administrativo, como já fora mencionado, envolviam-se também, conforme o 6º princípio de
atuação, acima citado, no movimento de pressão ao governo para obtenção de recursos para a
instituição. O jornal A Pacotilha, vez por outra, faz referência a reuniões e encontros entre as
damas e os chefes de governo, com o intuito de expor as necessidades “dramáticas” da instituição
e das “crianças necessitadas” do atendimento, como noticiado na Pacotilha, no dia 01 de
Fevereiro de 1912.
Mantinha-se, portanto, um diálogo constante entre instituto e as esferas executiva e
legislativa. Era comum a instituição receber visitas de representantes maranhenses da câmara
federal na época, como é o caso de Costa Rodrigues e do congresso estadual como o capitão
Pereira Rêgo a fim de conseguir apoio. (A PACOTILHA, 09 DE MARÇO DE 1912)
Para Moncorvo Filho (1914), as mulheres são chamadas a este trabalho por estarem mais
próximas das crianças compreendendo melhor sua natureza, bem como suas necessidades. Por
saberem decifrar “o mistério da sua alma” e seus sorrisos e lágrimas foi-lhe dado, quase que
naturalmente, a “obra de alquimia moral que consiste em transformar a miséria, a ignorância e o
vício, na saúde, na virtude e na felicidade” (MONCORVO FILHO, 1914, p. 09)
Tal fato põe em discussão a natureza essencialmente filantrópica do Instituto uma vez que
os resquícios da caridade manifestam-se correntemente nas ações assistenciais. Não se verifica
uma separação efetiva entre a filantropia e a caridade. Aquela não tem sua prática guiada apenas
pela ciência, mas mantém práticas que caracterizam a caridade, como a doação de leite para
recém-nascidos; e roupinhas e medicamentos para as mais carentes, o que leva a pensar que a
higiene moral da sociedade não é alcançada somente através dos métodos frios e precisos da
ciência.
A mulher representava este diálogo maior com o espírito mais caritativo que filantrópico.
Dessa forma, seria necessário eleger uma mãe maior que sintetizasse esta perspectiva moralmente
cristã de assistir os pequenos excluídos dos serviços médicos. Dona Lucília Wilson Coelho de
Sousa, era a mulher mais notável da instituição sendo considerada a “alma do instituto”, segundo
palavras de Dr. Cezario Arruda (LIMA, 1951). Representava, de certa forma, o perfil-padrão das
“damas” e da mulher preocupada com o futuro das “criancinhas” e conseqüentemente
incomodada com o possível futuro da própria sociedade ludovicense.
Nascida em São Luís em 07 de Maio de 1863 era filha “bem nascida” do casal Wilson
Bringham Wilson – maranhense e vice-cônsul da Inglaterra – e Da. Maria Amália Coelho
Wilson, senhora também pertencente à camada abastada. Estudou o ensino primário em São Luís,
seguindo para a Inglaterra com o objetivo de concluir o curso secundário. Casara-se aos 23 anos
com Dr. Antenor Gustavo Coelho de Sousa, oficial médico da Marinha de Guerra Nacional, seu
parente (LIMA, 1951).
Dona Lucília Wilson mostrava certa erudição e iniciativa no trabalho administrativo
conseguindo penetrar, devido ao destaque e respeito conquistado no restrito círculo de elite,
ocupando uma das cadeiras administrativas da instituição. Esteve à frente da Associação das
Damas, porém era uma das poucas mulheres, ou talvez a única, que deliberava sobre assuntos da
agenda administrativa. Ocupava um espaço que era dificilmente conquistado mesmo pelas
mulheres da elite.
Aparentemente, a causa da criança desvalida parece ter atraído a atenção e sensibilizado
as tão “solícitas” senhoras da sociedade ludovicense. Porém, é importante destacar que não fora
tão fácil a conquista da adesão feminina. Havia certa resistência entre as “mulheres de boa
família” no exercício deste tipo de caridade. Para as resistentes, assistir meninos e meninas
pobres era tomado como “ofensa aos sentimentos religiosos” por servirem, muitas vezes, a
crianças e mães que não se encaixavam no padrão nuclear, cristão e burguês de família. Para
essas mulheres, a assistência à infância desvalida implicava num incentivo ao desvio social.
Tentando aproximar mais sócias para o círculo das “Damas”, Dona Lucília lançava mão
de discursos que apelavam para a emoção como uma estratégia de minimização das oposições.
Nestes discursos esta senhora reconhecia e reafirmava o quadro de degeneração que se dava nos
costumes populares manifestado na paternidade negada, nas crianças bastardas ou sem-família,
nas “mulheres decaídas”, porém chamava a atenção das senhoras para a “missão salvadora” da
sociedade e de seus valores através do trabalho na referida instituição.
É necessário, portanto, que aumentemos o número de sócias. Sei que é grande a
relutância da parte das senhoras, julgando que a nossa iniciativa ofende os seus
sentimentos religiosos, já pelos seus diligentes auxiliares, já pela classe, que
patrocinamos. Urge combater êsses preconceitos. É verdade que as nossas
portas se não fecharão as decaídas, as vítimas, muitas vêzes, dos êrros e crimes
de outrem! Quizeramos, ó sim, que os leitos da nossa Maternidade só fosses
ocupadas por mulheres honestas, saídas de um lar casto, esposas de lactários!
Mas de quem a culpa, se nem todas foram purificadas pela bênção da igreja se
não estão ligadas pelo vículo da lei?
Nossa inteiramente nossa. É indispensável que nos convençamos, e a todos que
nos cercam, de que a regeneração dos costumes parte do alto. Que a ignorância
do valor próprio, e a falta de dignidade pessoal é que tornam fácil a sedução.
(LIMA, 1951, p. 110)
A estatização do Instituto, em 1939, que o transforma em Associação de Assistência e
Proteção á Infância do Maranhão não dissolve, porém, a atuação das damas de sua estrutura de
funcionamento. Contudo, este contexto acentua o quadro de diminuição de sócias e de força do
trabalho das senhoras. Vê-se, portanto, a lenta dissolução das Damas de Assistência, grandes
representantes do espírito caritativo-maternal.
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do trabalho, buscou-se compreender as condições sociais das crianças pobres
da sociedade ludovicense no início do século XX. Para isto, tentou-se construir uma análise do
surgimento e atuação do Instituto de Assistência à Infância do Maranhão (1911-1939) e das suas
práticas de cuidado e proteção à infância através do ideário da medicina social como perspectiva
higienista. A pesquisa indicou diversos aspectos deste cotidiano institucional, como o
envolvimento de elementos da elite intelectual através do Jornal A Pacotilha como meio difusor
da proposta de assistência.
A assistência médico-filantrópica destas crianças acontecia de forma bem variada indo do
tratamento médico individual das enfermidades ao inspecionamento das suas formas de viver e
habitar. Sobre isto, há registros ainda pouco precisos, mas o objetivo do aprofundamento deste
trabalho a posteriori é perceber a amplitude das ações institucionais.
A atuação das damas de Assistência sinalizou sobre a discussão acerca do debate da
natureza das práticas do Instituto. Dessa forma, a pesquisa mostra indícios de uma articulação
muito próxima entre a caridade e a filantropia. Não se percebeu, nesse sentido, uma separação
clara entre estes diferentes conceitos assitenciais.
O trabalho indica, ainda, que o assistencialismo dispensado aos menores pobres não
percebia a infância como fase peculiar da vida na perspectiva da sua ludicidade, livre e
necessária. Enfatizava-se , ao contrário, este período como propensamente desviante à vadiagem,
ociosidade e crime, constituindo, assim, como futuro perigoso para a harmonia do corpo social
Fez-se o esforço de “ouvir” os sujeitos viventes na sociedade da época, não só os
pertencentes ao círculo de elite, mas aqueles que vivenciam o “chão da cidade”, mais
especificamente, a camada menos favorecida que trabalha e movimenta a vida urbana. São as
mulheres, homens e crianças da camada popular que, por força de algumas limitações impostas
nesta etapa do trabalho, não se tornou favorável perscrutar estes sujeitos, via documentação,
sobre a sua perspectiva da prática assistencial do Instituto e de sua relação com os anseios da elite
no que diz respeito aos ideais republicanos de cidade, homem, higienismo e medicina social.
Além, é claro, da receptividade da caridade-filantropia dos mais pobres em relação ao Instituto. É
importante destacar, que esta impossibilidade, própria apenas deste momento, será transposta à
medida que a metodologia de pesquisa e análise das fontes alcançar maior amadurecimento. Será
um dos objetivos, portanto, do trabalho de aprofundamento na pós-graduação tentar responder a
estas muitas inquietações. Espera-se, assim, ter contribuído para a reflexão sobre o tema da
infância pobre no século XX.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1: UM GRUPO DE CRIANÇAS ASILADAS DA RODA DE EXPOSTOS DE SÃO
LUÍS
FIGURA 2: A RODA DE EXPOSTOS DE SÃO LUÍS ANEXA Á IGREJA DE SÃO
PANTALEÃO
FIGURA 3: CENA DAS RUAS DE SÃO LUÍS – CRIANÇAS NUAS
FIGURA 4: CENA
AMBULANTE
DO
COTIDIANO
DA
CIDADE:
CRIANÇA
FIGURA 5: SÃO LUÍS – BONDE “PUXADO A BURROS”
FIGURA 6: FOTOGRAFIA DO INTELECTUAL FRAN PAXECO
FIGURA 7: AS DAMAS DE ASSISTÊNCIA DO INSTITUTO DE SÃO LUÍS
VENDEDORA
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(a): Rita de Cássia Gomes Nascimento