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EDUCAÇÃO SUPERIOR EM ENFERMAGEM: FORMAR PARA QUE
COMPETÊNCIA?
Rosa Maria Rodrigues1
Maria Helena Salgado Bagnato2
O texto é o resultado de busca bibliográfica em que se discutiu a origem e inserção da
noção de competência que tende a ser elemento orientador da formação, seja nos
currículos das séries iniciais atingindo também o nível superior. Objetivou oferecer
subsídios para discussão dos encaminhamentos curriculares a partir dessa noção,
delimitando para análise a área da saúde, mais especificamente a formação de
Enfermagem de nível superior. A noção de competência é oriunda, num primeiro
momento de correntes da psicologia, sendo absorvida posteriormente pelo mundo
empresarial que vê nesta noção a possibilidade de formar o novo trabalhador necessário
para o mundo do trabalho em sucessivas mudanças. Para tanto, tal trabalhador deverá
ser flexível, adaptável as novas demandas que lhe são a todo o momento colocadas, ou
seja, deve ser competente. Registra com os autores uma certa falácia nesta lógica, uma
vez que o que temos é falta de emprego, precarização, subtrabalho, subcontratação.
Registra ainda que há, na especificidade da área da saúde, a afirmação de que apesar de
que a noção de competência possa encaminhar na maioria das vezes, no sentido estrito
do desenvolvimento de capacidades para execução de tarefas, é preciso ousar
ressiginificar o conceito. Questiona a possibilidade de tal ressignificação e também se
os mesmos suportes teóricos do campo industrial pode ser utilizado no momento de
pensar a formação humana e, em especial formação em Enfermagem.
Palavras Chave: Enfermagem, Educação Superior, Competência.
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Enfermeira, Mestre em Enfermagem pela EERP/USP, Doutoranda em Educação pela Faculdade de
Educação da UNICAMP, Docente do Colegiado do Curso de Enfermagem da UNIOESTE, Campus de
Cascavel. Rua Cristóvão Colombo, 519, Aptº 503, Bl 02, Pioneiros Catarinense, CEP: 85 805-510 Email: [email protected], telefone: 45-326 9357
Enfermeira, Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UNICAMP, Docente da Faculdade
de Educação da UNICAMP. Coordenadora do PRAESA (Laboratório de Estudos e Pesquisas em
Práticas de Educação e Saúde).
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INTRODUÇÃO
A relação educação e trabalho é tema de muitos estudos no contexto atual. Ela
tem ocupado um espaço relevante diante das mudanças ou transformações no mundo do
trabalho e neste processo a educação tem sido chamada para dar respostas, através dos
processos formativos, às novas demandas colocadas.
O presente texto pretende fazer aproximações a essas discussões, considerando
que as transformações nos processos de trabalho vêm produzindo mudanças nas
orientações oficiais do governo para a educação brasileira desde as séries iniciais, o
ensino profissionalizante, atingindo também a Educação Superior, inclusive na
educação de Enfermagem. As Diretrizes Curriculares, aprovadas em novembro de 2001
(Resolução CNE 03/2001), tem como um de seus elementos orientadores a noção de
competência que, no momento atual, como veremos, tem intensa ligação com os
discursos das mudanças no mundo do trabalho. Sabemos que a noção de competência
não é específica nos cursos de graduação em Enfermagem, sendo orientação presente
para todos os níveis de ensino e para todas as áreas, indistintamente. Assim, essa
primeira análise pretende trazer uma problematização de possíveis implicações da
presença deste “norte” na educação em Enfermagem de nível superior.
OBJETIVO
Oferecer subsídios para discussão dos encaminhamentos curriculares que
tendem a ser organizados a partir da noção de competência presente nos textos oficiais
da Educação Superior em Enfermagem no Brasil.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo bibliográfico que resgata a origem da noção de
competência a partir de autores do campo da Educação, bem como das traduções que a
noção teve em alguns autores do campo da saúde, mais especificamente da Enfermagem
no Brasil, além de buscar em autores de diferentes contextos informações que subsidiem
ou enriqueçam a temática. O estudo quer indicar linhas de questionamento que
problematizem a adoção ou a orientação curricular a partir da noção de competências,
para os currículos de Enfermagem de nível superior.
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TRABALHO E EDUCAÇÃO: elementos de contexto que ajudam a pensar os
encaminhamentos da Educação Superior em Enfermagem
O contexto em que vamos localizar a problemática trabalho e educação é,
necessariamente, o contexto do capital mundializado, uma vez que esses dois espaços
como todos os outros da vida social são profundamente afetados pelas investidas do
capital na sua necessidade de produzir e reproduzir-se.
Assim, o capitalismo tem dado forma a todos os espaços da vida humana, sendo
que, no momento atual, sua forma de organização e expansão tem sido caracterizada
pelo que se convencionou chamar de globalização ou mundialização que nos dizeres de
Ianni (2001) expressam, na verdade, o movimento de internacionalização do capital.
Desta forma, os elementos atuais, no plano macro, são representados pela
globalização da economia, dos mercados, pela diminuição do poder dos Estados
Nacionais, entre outros elementos. Esse contexto tem relação direta com a temática
educação e trabalho, dado que ele não se restringe a imprimir mudanças nos espaços
econômicos, mas, imprime as mesmas mudanças nos espaços de trabalho e da formação
como procuraremos mostrar nos próximos itens.
Se a acumulação capitalista, materializada na globalização/mundialização
conforme nos alerta Ianni (2001), penetra em todos os espaços da vida há um desses
espaços em que ela se apresenta de forma bastante evidente. O mundo do trabalho.
Antunes (2001, p. 15), considera que:
nas últimas décadas a sociedade contemporânea vem presenciando profundas
transformações, tanto nas formas de materialidade quando na esfera da
subjetividade, dadas as complexas relações entre essas formas de ser e existir da
sociabilidade humana. A crise experimentada pelo capital bem como suas
respostas, das quais o neoliberalismo e a reestruturação produtiva da era da
acumulação flexível são a expressão, têm acarretado, entre tantas conseqüências,
profundas mutações no interior do mundo do trabalho. Dentre elas podemos
inicialmente mencionar o enorme desemprego estrutural, um crescente
contingente de trabalhadores em condições precarizadas, além de uma
degradação que se amplia, na relação metabólica entre o homem e natureza,
conduzida pela lógica societal voltada prioritariamente para a produção de
mercadorias e para a valorização do capital
David Harvey descreve as mudanças que aconteceram nos espaços do trabalho
na chamada acumulação flexível, informando que não só o capital tornou-se flexível, na
sociedade globalizada, mas a flexibilidade invade também os processos de trabalho, as
formas de consumo, os mercados de trabalho, a acumulação flexível, termo utilizado
por ele,
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é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na
flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos
e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção
inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros,
novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação
comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas
mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como
em regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego
no chamado ‘setor de serviços’, bem como conjuntos industriais completamente
novos em regiões até então subdesenvolvidas (...) (Harvey, 2000, p. 140).
Além dessa flexibilização dos processos de trabalho também se flexibilizam as
relações de trabalho, sendo o desemprego, o subemprego, o trabalho em tempo parcial e
precário os grandes achados desse momento para proporcionar a continuidade da
acumulação do capital.
O mercado de trabalho, por exemplo, passou por uma radical reestruturação.
Diante da forte volatilidade do mercado, do aumento da competição e do
estreitamento das margens de lucro, os patrões tiraram proveito do
enfraquecimento do poder sindical da grande quantidade de mão-de-obra
excedente (desempregados ou subempregados) para impor regimes e contratos
de trabalho mais flexíveis (...) Mesmo para os empregados regulares, sistemas
como ‘nove dias corridos’ ou jornadas de trabalho que tem em média quarenta
horas semanais ao longo do ano, mas obrigam o empregado a trabalhar bem mais
em períodos de pico de demanda, compensando com menos horas em períodos
do redução da demanda, vêm se tornando muito mais comuns. Mais importante
do que isso é a aparente redução do emprego regular em favor do crescente uso
do trabalho em tempo parcial, temporário e subcontratado (Harvey, 2000, p.
143).
Além dessa face do trabalho, ou seja, a falta de trabalho, trabalho precário, as
mudanças no mundo do trabalho têm tido grande influência nos processos de formação.
Para falar sobre isso é preciso resgatar a forma de organização do trabalho do período
fordista até chegar ao momento atual, em que a flexibilidade presente nos processos de
trabalho é um dos elementos que conforma as ditas mudanças na educação.
Conforme Bihr (1998), a partir do final do século XIX, surgem dois novos
princípios de organização do processo de trabalho que mudarão as condições de
exploração capitalista na grande indústria. O taylorismo e o fordismo. O taylorismo é
um termo derivado do nome do seu inventor, “um engenheiro americano Taylor (18651915), baseado na estrita separação entre as tarefas de concepção e execução,
acompanhada de uma parcelização das últimas, devendo cada operário, em última
análise, executar apenas alguns gestos elementares” (Bihr, 1998, p. 39).
Para Antunes (1998), o fordismo é entendido como a
forma pela qual a indústria e o processo de trabalho consolidaram-se ao longo
deste século, cujos elementos constitutivos básicos eram dados pela produção em
massa, através da linha de montagem e de produtos mais homogêneos; através
do controle dos tempos e movimentos pelo cronômetro fordista e produção em
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série taylorista; pela existência do trabalho parcelar e pela fragmentação das
funções; pela separação entre elaboração e execução no processo de trabalho;
pela existência de unidades fabris concentradas e verticalizadas e pela
constituição/consolidação do operário-massa, do trabalhador coletivo fabril,
entre outras dimensões (Antunes, 1998, p. 17).
Essa forma de organização do processo de trabalho que foi hegemônica durante
quase todo o século, foi sendo, em certa medida, superada por uma outra, o toyotismo.
O toyotismo, conforme Antunes (1998, p. 26), tem traços característicos que podem ser
assim resumidos: “a produção sob o toyotismo é voltada e conduzida diretamente pela
demanda. A produção é variada, diversificada e pronta para suprir o consumo. É este quem
determina o que será produzido, e não o contrário, como se procede na produção em série e de
massa do fordismo” (Gounet; Coriat, apud Antunes, 1998, p. 26)
Com o modelo novo há a exigência de que o trabalhador não seja mais um
especialista, pois ele deverá estar preparado para operar diferentes instrumentais e
executar diferentes tarefas. Esse nos parece que são alguns dos elementos do conjunto
de mudanças no trabalho que se denominou de trabalho flexível. Se antes com o modelo
fordista as teses indicavam que, gradativamente, o trabalhador iria se especializando,
com a emergência do modelo flexível, essas teses não se confirmaram e, ao contrário, o
trabalhador deverá ser o mais polivalente possível. Conforme Hirata (1994, p. 129), essa
flexibilidade permitiu a superação da crise do padrão de acumulação fordista, e indicaria
uma mudança no processo de trabalho, com a volta ao trabalho de tipo artesanal, mais
qualificado com uma relação de cooperação entre gerenciadores e “operários
multifuncionais”. Ainda para essa autora, as
qualificações exigidas no interior desse ‘novo modelo produtivo’, representado
pelo modelo empresarial japonês, contrastam fortemente com aquelas
relacionadas com a lógica taylorista de remuneração, de definição de postos de
trabalho e de competências: trata-se da capacidade de pensar, de decidir, de ter
iniciativa e responsabilidade, de fabricar e consertar, de administrar a produção e
a qualidade a partir da linha, isto é, ser simultaneamente operário de produção e
de manutenção, inspetor de qualidade e engenheiro (p. 130).
Ainda conforme esta autora, as novas teses sobre a qualificação do trabalhador
fizeram se repensar as afirmações de Braverman (1974), do início dos anos setenta que
indicavam uma desqualificação progressiva dos trabalhadores, dada a introdução das
novas tecnologias. Segundo esse autor, haveria um processo de polarização das
qualificações em que a modernização tecnológica “estaria criando, de um lado, uma
massa de trabalhadores desqualificados e, de outro, um punhado de trabalhadores
superqualificados” (Hirata, 1994, p. 131). Postulava-se que com a introdução das novas
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tecnologias se exacerbaria a divisão do trabalho e uma contínua desqualificação do
grande contingente de mão-de-obra.
Para esta autora este paradigma dominante de análise é contestado a partir dos
anos oitenta. “Vinte anos depois dos primeiros estudos sobre as conseqüências da
introdução de novas tecnologias sobre a divisão do trabalho e a qualificação, autores
como M. Freyssenet, B. Coriat, H. Kern e M. Schumann, constatam uma requalificação
dos operadores, ou uma reprofissionalização, com o aprofundamento da automatização
de base microeletrônica nas indústrias” (Hirata, 1994, p. 131).
As exigências do processo produtivo, a partir da introdução das novas
tecnologias, ao contrário de requerer pessoas sempre mais desqualificadas, exigiam
agora a requalificação dos trabalhadores. Isso inaugurava uma nova forma de encarar a
produção em que as empresas adotariam organizações do trabalho ditas qualificadoras,
tanto pelas oportunidades de formação profissional abertas pela introdução de inovações
na empresa quanto pelas próprias modalidades de execução das atividades produtivas
(Hirata, 1994).
Essa nova forma de encarar o processo produtivo encaminha para a adoção de
uma massa de conhecimentos e atitudes diferentes das até então requeridas pelo
processo produtivo do tipo taylorista, exigindo então, a adoção do modelo japonês,
considerado flexível e mais qualificante. Conforme Hirata (1994, p. 132) “a tese da
requalificação dos operadores com a adoção de novas condições de produção vai
conduzir – dentro da sociologia das qualificações – a uma superação do paradigma da
polarização das qualificações, dominante desde o fim dos anos setenta e à emergência
do modelo de competência”.
Deluiz (2001, p. 8), assim se expressa sobre as mudanças que estão ocorrendo no
mundo do trabalho e as exigências de atitude por parte dos trabalhadores: “capacidade
de diagnóstico e de solução de problemas, e aptidões para tomar decisões, trabalhar
em equipe, enfrentar situações em constantes mudanças e intervir no trabalho para
melhoria da qualidade dos processos, produtos e serviços, passam a ser exigidas dos
trabalhadores no quadro atual de mudanças na natureza e no processo de trabalho”.
Diante das transformações apontadas no mundo do trabalho, quais são as
exigências colocadas para os espaços de formação? Uma primeira discussão é preciso
ser feita para explicitar as dinâmicas impostas aos espaços de formação nesse novo
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contexto. Exemplo disto é o deslocamento da noção de qualificação para a de
competência. Para discutir essa questão, apoiamo-nos em Manfredi (1998), que realizou
um trabalho de sistematização das discussões em torno da noção de qualificação e
competência, que pareceram pertinentes para uma aproximação da temática, mas que
nos limites deste texto será tocado superficialmente. Conforme Manfredi (1998, p. 15),
as expressões qualificação e competência, segundo os trabalhos realizados,
parecem ter matrizes distintas. A noção de qualificação está associada ao
repertório teórico das ciências sociais, ao passo que o de competência está
historicamente ancorado nos conceitos de capacidades e habilidades, construtos
herdados das ciências humanas – da psicologia, educação e lingüística”. Hirata
(1994, p. 132), coloca que a “competência é uma noção oriunda do discurso
empresarial nos últimos dez anos e retomada em seguida por economistas e
sociólogos na França (cf. M. Dadoy, 1990). Noção ainda bastante imprecisa, se
comparada ao conceito de qualificação, um dos conceitos-chave da sociologia do
trabalho francesa desde os seus primórdios (cf. P. Naville, 1956); noção marcada
política e ideologicamente por sua origem, e da qual está totalmente ausente a
idéia de relação social, que define o conceito de qualificação para alguns autores
(cf. D. Kergoat, 1982, 1984; M. Freyssenet, 1977, 1992)”.
Deluiz (2001, p. 10), citando Paiva (2000), diz que o conceito de qualificação
estava vinculado “à escolarização e sua correspondência no trabalho assalariado, no
qual o status social e profissional estava inscrito nos salários e no respeito simbólico
atribuído a carreiras de longa duração”. Para Deluiz (2001, p. 10), o
tradicional conceito de qualificação estava relacionado, portanto, aos
componentes organizacionais e explícitos da qualificação do trabalhador:
educação escolar, formação técnica e experiência profissional. Relacionava-se,
no plano educacional, à escolarização formal e aos seus diplomas
correspondentes e, no mundo do trabalho, à grade de salários, aos cargos e às
carreiras. A crise da noção de posto de trabalho associado ao modelo de
classificações e de relações profissionais fordistas resultou, assim, na adoção de
um novo modelo de organização do trabalho e de gestão da produção calcado nas
competências e no desempenho individual dos trabalhadores.
Manfredi (1998) diz que nos últimos dez anos, a concepção de qualificação
tecnicista (cuja matriz é o modelo job/skills), ancorada nas normas previamente
estabelecidas pelas empresas, está convivendo ou sendo substituída por uma outra
concepção, que vem sendo designada modelo da competência. Ela introduz na discussão
as justificativas que estão sendo colocadas para a substituição da noção de qualificação
pela noção de competência. Informa, citando Machado (1994, pp. 165-184) que, no
Brasil, desde o início da década de 1990 “vários estudos empíricos têm enfocado as
transformações que estão ocorrendo nos diferentes setores da economia, constatando
realidades diferenciadas, heterogêneas, contraditórias, mostrando que não é possível
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concluir, de forma linear e universal, que o caráter inovador das atuais transformações
na base técnica e material do trabalho se expressa, também e genericamente, por
ganhos de qualificação por parte dos trabalhadores” (Manfredi, 1998, p.25).
Apesar de reconhecer que há a sobrevivência de diferentes formas de
organização do trabalho e de várias estratégias de qualificação e requalificação do
trabalho, apontando para diferenças regionais e inter e/ou intra-setores da economia, os
estudos sobre a temática revelam, também, a emergência de um “novo perfil de
qualificação da força de trabalho” que tende a institucionalizar as seguintes exigências:
posse de escolaridade básica, de capacidade de adaptação a novas situações, de
compreensão global de um conjunto de tarefas e das funções conexas, o que
demanda capacidade de abstração e de seleção, trato e interpretação de
informações. Como os equipamentos são frágeis e caros e como se advoga a
chamada administração participativa, são requeridos também a atenção e a
responsabilidade, haveria, também, um certo estímulo à atitude de abertura para
novas aprendizagens e criatividade para o enfrentamento de imprevistos. As
formas de trabalho em equipe exigiriam ainda a capacidade de comunicação
grupal (Machado, 1996, apud, Manfredi, 1998, p. 25).
Hirata (1998), fala da noção de qualificação salientando sua riqueza sendo uma
acepção multidimensional, ao passo que a noção de competência corresponderia a um
novo estágio chamado de pós-taylorista de organização do trabalho e de gestão da
produção. Ancorada em Zarifian (1992), menciona que sua gênese estaria associada à
crise da noção de postos de trabalho e a um certo modelo de classificação e de relações
profissionais.
Deluiz (2001, p. 10) tratando do modelo das competências diz que nele “importa
não só avaliar a posse dos saberes escolares ou técnico-profissionais, mas a
capacidade de mobiliza-los para resolver problemas e enfrentar situações de trabalho.
Os componentes não organizados da formação, como as qualificações tácitas ou
sociais e a subjetividade do trabalhador assumem, no modelo das competências,
extrema relevância”.
Manfredi (1998, p. 27) aponta que no Brasil, “a noção de competência, apesar
de já ser conhecida no âmbito das ciências humanas (notadamente no campo das
ciências da cognição e da lingüística) desde os anos 70, passa a ser incorporada nos
discursos dos empresários, dos técnicos dos órgãos públicos que lidam com o trabalho
e por alguns cientistas sociais, como se fosse uma decorrência natural e imanente ao
processo de transformação na base material do trabalho”. Ao citar Leite (1996),
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reforça que a noção de competência é usada indistintamente nos campos educacionais e
do trabalho como se fosse portadora de um significado universal.
Ainda é importante registrar com essa autora a referência à identidade da noção
de competência com as que constam dos documentos das agencias internacionais como,
por exemplo o documento da UNESCO sobre a educação para o século XXI. Para ela
esses documentos possuem conotações que “reatualizam alguns conceitos já
desenvolvidos pela Teoria do Capital Humano, reafirmando, por meio de novas
palavras, conotações que visam a reintegração dos trabalhadores aos novos contextos
de reestruturação do capital no âmbito dos locais de trabalho” (p. 29).
Também Hirata chama a atenção para a imprecisão que marca a noção de
competência em oposição a antiga codificação dos postos de trabalho. Há uma
supervalorização das aptidões pessoais que, conforme Lerolle (1992) apud Hirata
(1998), quanto “menos os empregos são estáveis e mais caracterizados por objetivos
gerais, mais as qualificações são substituídas por ‘saber-ser’”. Nesse particular
relembramos o documento da UNESCO, intitulado “Educação: um tesouro a descobrir”
que dedica um capítulo aos “quatro pilares da educação para o século XXI” (aprender a
conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros e
aprender a ser), reforçando, assim a valorização dos elementos subjetivos a serem
desenvolvidos nas pessoas através do processo educativo. Parece-nos que o princípio
orientador não se diferencia em muito das teorias que vêem na educação uma forma de
resolver os grandes dilemas da humanidade. Nesse momento em que há a ameaça de
destruição da natureza e também do homem, imputa-se à educação a tarefa de criar as
consciências desejáveis para o novo século.
Vários autores tem elaborado críticas a noção de competência, apontando seus
limites e suas “possibilidades”. Ramos (2001, p. 284) tecendo considerações sobre a
noção de qualificação e competência no trabalho diz que:
(...) no marco do conceito de qualificação, as dimensões econômica, sociológica,
ético-política e pedagógica da profissão relacionam-se organicamente.
No marco da competência, reconfigura-se a dimensão ético-política da
profissão, mediante a ascendência da dimensão psicológica sobre a dimensão
sociológica. Sob as novas relações de produção haveria, então, a tendência de se
configurar uma profissionalidade de tipo liberal. Esta se baseia no princípio da
adaptabilidade individual do sujeito às mudanças sócio-econômicas do
capitalismo tardio. A construção da identidade profissional torna-se produto das
estratégias individuais que se desenvolvem em resposta aos desafios externos.
Funda-se um novo profissionalismo: estar preparado para a mobilidade
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permanente entre diferentes ocupações numa mesma empresa, entre diferentes
empresas, para o subemprego ou para o trabalho autônomo. Em outras palavras, o
novo profissionalismo é o desenvolvimento da empregabilidade.
Embora possamos perceber nos documentos oficiais que a noção de competência
pretende ultrapassa a noção de qualificação por incluir os aspectos subjetivos que
explicitamos acima com a denominação de “saber-ser”, os estudos têm mostrado que o
que se tem efetivado é a noção de competência enquanto adaptabilidade do trabalhador
aos novos processos produtivos, havendo limitado ganho qualitativo em sua formação.
Além disso, autores como Antunes (2001); Bihr (1999); Harvey (2000); Segnini (1998),
tem mostrado que embora haja a flexibilidade dos processos de trabalho, há, em
contrapartida, muito mais que a qualificação do trabalho, a intensificação dos processos
de trabalho, para os quais a noção de flexibilidade do trabalhador (resultado da
formação por competências), se presta em ampla medida.
Muito mais que “saber-ser” constante dos discursos o que tem se efetivado é a
identificação das competências com uma aplicação prática do que se aprende. Isso se
explicita quando se implanta ou se busca certificar quais as competências que a pessoa
adquiriu no seu processo educativo. É nesse momento que os discursos se diluem e o
que fica é a fria adequação do trabalhador as demandas do trabalho, na antiga relação
expropriadora entre capital trabalho. Deluiz (2001, p. 11), tratando sobre a certificação
das competências dos trabalhadores da área da saúde salienta que no
modelo das competências, os conhecimentos e habilidades adquiridos no
processo educacional devem ter uma ‘utilidade prática e imediata’ e garantir a
empregabilidade dos trabalhadores. A qualidade da qualificação passa a ser
avaliada pelo ‘produto’ final, ou seja, o trabalhador instrumentado para atender às
necessidades do processo de modernização do sistema produtivo. O ‘capital
humano’ das empresas precisa ser constantemente atualizado para evitar a
obsolescência e garantir o diferencial de competitividade necessário à
concorrência na economia globalizada. Nessa ótica, a questão da
empregabilidade é colocada como responsabilidade individual dos trabalhadores
e as possibilidades de sua inserção ou permanência no setor formal e no informal
dependem da posse daqueles saberes teóricos, práticos ou metodológicos mais
adequados à competição pelas ocupações e empregos disponíveis.
Outro risco apontado pela autora na formação por competências é o de “reduzir
a formação do trabalhador à esfera profissional, em detrimento de uma formação
integral que abranja a dimensão de cidadania, a abordagem por competências tende a
tornar-se reducionista, instrumentadora e tecnicista” (Deluiz, 2001, p. 11).
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Também Ramos (2001, p. 23), chama a atenção para os perigos de se direcionar
a formação, em especial a formação profissional, pelo modelo de competências, dizendo
que precisamos ter cuidado
para não realizar uma redefinição pedagógica de tal ordem que tudo se passe
como se o conhecimento científico tivesse atingido um grau suficiente para que a
escola (pelo menos a profissional) não tivesse mais que transmiti-lo,
principalmente porque os processos automatizados seriam suficientes para captalos e pô-los em prática. Por essa ótica, a formação responsabilizar-se-ia somente
por ordenar as atitudes e práticas profissionais em coerência com a organização e
o funcionamento dos processos de produção. A escola perderia, em certa medida,
a exclusividade como agente transmissora de conhecimento. Com variações que
não permitem fazer dessa afirmativa uma generalidade, a escola seria forçada a
abrir-se para o mundo econômico como meio de redefinir os conteúdos de ensino
e atribuir sentido prático aos saberes escolares, de forma que sua legitimidade
reduzir-se-ia à utilidade prática. A armadilha de se regressar ao tecnicismo
educacional ou de se reduzir a educação profissional aos aspectos operacionais
das atividades profissionais está presente o suficiente para que estejamos muito
atentos ao pensar na apropriação das competências como referência educacional.
Deluiz (2001, p. 15), ainda referindo-se à temática das competências elenca
pontos positivos e negativos dessa concepção. Em relação aos pontos positivos diz que
podem ser apontados
a valorização do trabalho, que assume um caráter mais intelectualizado, menos
prescritivo, exigindo mobilização de competências que envolvem domínios
cognitivos mais complexos e que vão além da dimensão técnica, demandando
novas exigências de qualificação do trabalhador e a elevação dos níveis de
escolaridade. (...) a valorização dos saberes em ação, da inteligência prática dos
trabalhadores, independente de títulos ou diplomas; uma maior polivalência do
trabalhador, que lhe permite lidar com diferentes equipamentos, assumir
diferentes funções e tornar-se multiqualificado; a possibilidade de construir
competências coletivas a partir do trabalho em equipe, maior comunicação,
participação e autonomia para o planejamento, execução e controle dos processos
produtivos.
Quanto aos aspectos negativos, Deluiz (2001, p. 15), diz que podem ser
identificados a
intensificação do trabalho e a desprofissionalização, que são conseqüências de
uma polivalência estreita e espúria, decorrente do reagrupamento das tarefas pela
supressão dos postos de trabalho, ou pelo enxugamento dos quadros das empresas
com demissões. A intensificação da exploração do trabalho se traduz no fato de
os trabalhadores operarem simultaneamente várias máquinas, ou desempenharem
várias tarefas, em um ritmo e velocidade determinados pela mediação da
automação e da informatização, ampliando a jornada de trabalho que passa a
depender muito menos de contratos previamente acordados entre capital e
trabalho, e muito mais das necessidades da produtividade capitalista.
Diante desses perigos e limites, temos percebido que, principalmente na
Enfermagem, há um discurso para o que se denomina de ressignificação das
competências. É nesse sentido que foram aprovadas as Diretrizes Curriculares para o
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Ensino Profissional e para a Educação Superior, que, como para as outras áreas de
conhecimento foram estruturadas tendo como um de seus elementos a noção de
competência. Ramos (2001), após elencar todos os problemas afetos à noção de
competência, diz que ela exige a ressignificação, mas, mesmo assim deve ser tomada de
forma subordinada ao conceito de qualificação como relação social. A referida
ressignificação me parece que se encaminha para a tomada da competência como
competência humana que Deluiz (2001), diz, baseada em Demo (1997), que é a
competência humana de
saber humanizar o conhecimento para que este possa servir aos fins éticos da
história e não descambe em mera instrumentação da competitividade. Ou a
competência humana como ‘(...) apenas outro nome para a cidadania, e, como
esta, apontar para o processo emancipatório’, que significa ‘o processo histórico
de conquista da condição de sujeito coletivo e autônomo’. A emancipação
depende substancialmente da formação da consciência crítica, da elaboração
histórica de um projeto alternativo, da organização política coletiva e do
desenvolvimento humano integral.
Ressalta a autora que essa competência seria o esperado para a área da saúde que
tem além dos aspectos técnico-instrumentais também a humanização do cuidado na
direção do cliente.
Torres (2001, p. 3), discutindo a avaliação das competências do processo ensino
aprendizagem da educação profissional em Enfermagem, identifica os problemas
relacionados à noção de competência presente nos documentos do Ministério da
Educação sobre a educação profissional e salienta que nós como sujeitos críticos temos
que ousar recontextualizar o conceito de competências. Ela entende que é preciso
“ousar recontextualizar as competências profissionais” descritas nas regulações
oficiais, “colocando efetivamente em prática o discurso da autonomia, criatividade e
contextualização, para a promoção de aprendizagens significativas dentro das práticas
profissionalizadas, que já estão mais que mergulhadas no mercado”. Parece-nos que
essa recontextualização tem a mesma intenção dos processos de ressignificação acima
abordados, justificando nossa afirmação de que há, na área da saúde e, especificamente
na Enfermagem, a crença na possibilidade de ressignificar ou recontextualizar a noção
de competências, utilizando-a em favor dos trabalhadores e não apenas como forma de
expropriação e alienação como tende a continuar acontecendo com a educação dos
trabalhadores no novo modelo das competências.
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Diante disso, duas questões nos parecem essenciais. A primeira é referente à
possibilidade de haver, efetivamente, a ressignificação da noção de competência, seja
como qualificação social, seja como competência humana, quando todo o sistema
econômico, social e, principalmente educativo está organizado em direção oposta; a
segunda é: se para o nível profissional existe certa justificativa para a adoção do modelo
de competências, dado se tratar da formação para o trabalho numa relação linear, como
se justifica a adoção desse modelo no nível superior e nas séries iniciais que não tem
essa relação de linearidade com o mundo do trabalho?
Pensamos que essas são questões importantes, para as quais ainda não
vislumbramos respostas. No que se refere a adoção do modelo de competências para o
nível superior, poderíamos arriscar a dizer que uma possível explicação seria o papel de
país periférico no que tange a produção e utilização do conhecimento, caracterizado
pelo consumo dessas produções oriundas dos países centrais. Se essa é a lógica da
convivência centro/periferia, não se sustenta a necessidade de uma formação
verdadeiramente sólida no nível superior dado que não se pensa nesse nível de educação
como espaço de produção do conhecimento nos países periféricos e sim a nossa
permanência apenas como consumidores. Nesse sentido até se explicaria a adoção da
noção de competência inundando os currículos do ensino superior no Brasil. Mas, tratase apenas de uma suspeita merecedora de outras indagações e explicitações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No texto podemos perceber que alguns conceitos são apropriados e recriados nos
diferentes espaços sociais. Por exemplo, o conceito de flexibilidade que perpassa tanto a
discussão da sociedade mundializada, quando se fala de flexibilização do capital e dos
mercados, passando pela flexibilidade do trabalho e a flexibilização dos processos
educativos para que o trabalhador dê conta das exigências que lhe são colocadas na
execução do trabalho.
Passando pelas mudanças referendadas aos processos educativos nos deparamos
com o deslocamento da noção de qualificação que, segundo os teóricos da área seria
portadora de maior significação social para a classe que vive do trabalho (nas palavras
de Antunes, 2001), para a noção de competência que conforme as análises
empreendidas pelos críticos, têm se materializado em retrocessos à formação tecnicista,
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sendo valorizado apenas a ação quando as competências são postas à prova ou são
avaliadas.
Diante de toda essa discussão, fica patente que, na organização capitalista da
produção, as classes sociais, embora os discursos de valorização do trabalhador e do
conteúdo do seu trabalho continuam, no limite, sendo o fundamento sobre o qual se
exerce a expropriação. Apesar do discurso qualificador impera ainda a exploração dos
trabalhadores, através da intensificação do trabalho, do trabalho precarizado, entre
outros. A flexibilização do processo produtivo parece, nesta fase, ter reinventado formas
de maximizar a produção do trabalhador e garantir o mais trabalho.
Preocupa-nos agora que, especificamente na formação dos profissionais da área
da saúde, o discurso da ressignificação dos conceitos seja possível. Entendemos que há
uma forte determinação do mundo produtivo que deixa pouco espaço para construção de
alternativas, sem romper com a lógica do capital.
Preocupa-nos ainda que os espaços educativos que tem especificidades estejam
tão subjugados a mudanças que se originam em um processo de trabalho tão diverso que
é o da grande indústria e, mais efetivamente nos países centrais. Uma última questão é:
será que é possível padronizar os processos de trabalho e de formação na área da saúde
que tem um objeto tão diverso do da indústria, nos mesmos moldes do modelo
industrial? Quais os limites e as aproximações possíveis entre campos tão distintos?
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