CORPO E PENSAMENTO: ENTRE A ALTITUDE E A
BEATITUDE
Marcos Guilherme Belchior de Araújo
Michel Serres, no livro Variações sobre o corpo 1 , consegue transmitir algo que,
para o objetivo do presente escrito, constitui a experiência fundamental de um exercício
afirmativo do pensamento e de sua perspectiva de diferenciação. Já nos agradecimentos,
percebemos a orientação de sua empreitada, quando se refere aos seus professores de
ginástica, treinadores e guias de montanhismo como aqueles que o ensinaram a pensar.
No que parece estranho à primeira vista, mas revelando uma complexidade sutil que
justifica tais relações, Serres passa a desdobrar os saltos e as vertigens de seu
pensamento numa abertura a sensibilidades diferenciantes e plurais acionadas na
experiência que seu corpo vive em práticas corporais, em especial no montanhismo. A
caminhada por terrenos irregulares, a escalada em rochas, o cálculo minucioso e
inventivo dos movimentos, o aroma e a visão das alturas, o peso do equipamento e o
peso dos hábitos. Tudo isto produzindo assombros e interferências, um turbilhão de
sensações misteriosas e pululantes que mergulham o corpo em outras dimensões,
povoadas por devires inumanos, animais, ancestrais. E Serres se permite o desafio de
capturar, no exercício da escrita, as ressonâncias desses devires em seu próprio corpo e
em seu próprio pensamento. Resgata potências corporais adormecidas, esgarça-se por
todos os lados e se (re-)individua num processo em que já não é mais possível dizer-se
através de um “eu”: “Eu nunca soube explicar o eu nem descrever a consciência.
Quanto mais penso, menos sou; quanto mais eu sou eu, menos penso e menos ajo”. 2
Contudo, por qual motivo trago esse texto curioso para explanar o que nos
interessa, que seria um esboço das mútuas interferências entre corpo e pensamento? E
como articular essa perspectiva a um plano de imanência que lhe é constituinte? Quais
seriam as implicações da minha aventura em lidar com questões e conceitos tão
abrangentes como os que saltam aqui?
Primeiramente, compartilho com o autor a paixão pelo montanhismo e pelo
contato com a floresta. Nas trilhas e escaladas que faço, percorro dezenas de
quilômetros mata adentro em três ou quatro dias numa imersão absoluta com outros
1
2
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
Ibid., p.13.
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insondáveis e desconhecidos devires (animais, tribais etc.) que, através de meu corpo,
falam outras línguas, compreensíveis somente num nível espiritual e intensivo prélinguístico, pré-individual, e cujo abalo me contorcem e me fazem construir outras
relações com o mundo. A princípio, o que acontece é uma abertura aos “mais ínfimos
limites do sensível”, uma exposição do corpo e dos hábitos nele contraídos a situações
que forçam o pensamento a se desestruturar e a tomar novos contornos, novas
processualidades metaestáveis.
Além da provocação pessoal, o texto de Michel Serres suscita a presença de um
outro plano que denomino de ‘corporeidade do pensamento’ que, apesar da distinção
semântica entre os termos, fazem referência antes de tudo a domínios que comparecem
perturbando e interferindo um no outro, mergulhados em movimentos, lutas, contágios,
afecções que constituem uma zona de indiscernibilidade entre ambos, seu plano de
imanência. Mas vamos devagar.
Quando utilizo a expressão ‘corporeidade do pensamento’, refiro-me à dimensão
potencial e nutridora do pensamento, à superfície de contato com a alteridade-mundo e
meio de impregnação pelos afectos e perceptos na ação do pensar, pois é através do
corpo e das forças que o interpelam que somos coagidos a pensar, a agir, a criar. Serres
observa que em “qualquer atividade a que nos dedicamos, o corpo é o suporte da
intuição, da memória, do saber, do trabalho e, sobretudo, da invenção. Um
procedimento maquinal pode substituir qualquer operação do entendimento, jamais as
ações do corpo”. 3
Nietzsche, no seu Zaratustra, faz referência ao corpo como aquele que
experiencia o mundo e que dá sentido a todas as nossas vertigens de pensamento, de
juízo, de valor. A alma é um produto determinado de devires corporais particulares: “O
corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma
paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena razão,
meu irmão, à qual chamas ‘espírito’, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande
razão”. 4 E é esta grande razão que produz o orgulhoso “Eu”, uma vez que proporciona
ao “Eu” a intensidade da experiência: “O ser próprio diz ao eu: ‘Agora, sente dor!’ E,
então, o eu sofre e reflete em como poderá não sofrer mais – e para isto, justamente,
deve pensar. O ser próprio diz ao eu: ‘Agora, sente prazer!’ E, então, o eu se regozija e
3
Ibid., p. 36.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. 9a ed. Trad. Mário da
Silva. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. Pp. 51.
4
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reflete em como poderá ainda regozijar-se muitas vezes – e para isto, justamente, deve
pensar”. 5
Nietzsche sugere que, no encontro com o mundo, é nosso corpo que apreende e
registra afectos e perceptos a partir dos diversos campos de forças atuantes na realidade,
é ele também que conduz a energia que estimula o pensamento e que o incita a se
exercer enquanto tal, na sua diferença mesma. O filósofo alemão apreciava caminhadas
por bosques e montes. A vida é como uma trilha na montanha, uma escalada: o terreno é
irregular, cada passo exige uma performance díspar; movimentos repetitivos e
desconectados de sua corporeidade equivalem à queda, à morte. (E é na morte que o
“eu”, esse ícone da interiorização racional encontra sua maior expressão; para alguns,
haveria um paradoxo em conjugar o verbo morrer em primeira pessoa = eu morro, isto
é, seria inconjugável. Contudo é na primeira pessoa que o verbo morrer encontra seu
maior aliado. É quando o ‘eu’, o sonho identitário, atinge seu auge e repousa quieto e
absoluto na sua plenitude mesma, serena, interior, sem vida, sem alteridade, só eu,
agora, morto!).
Levando-se em conta que a corporeidade do pensar equivale a conceber o corpo
como
produtor
de
sensações
díspares
que
mobilizam o
pensamento,
ora
desterritorializando-o, ora reterritorializando-o, e que tais sensações se referem a um
campo vital-intensivo acionado pela presença do outro em sua singularidade, logo
concluímos que, na atualidade em que vivemos, o corpóreo do pensamento, essa
conectividade, esse nosso espaço vital, encontra-se ameaçado. A cada dia, deixamos de
ocupá-lo, de vivê-lo, de sê-lo. Estamos incorporando, naturalmente, um processo de
inquilinato para conosco. Por um lado, estamos abandonando nossa experiência vibrátilcorporal consigo e com o mundo. Por outro lado, tal abandono nos conduz a processos
de dependência em relação a determinadas formas de poder que nos privam de viver e
pensar em nosso plano, em detrimento do conforto de viver e pensar nos mundos
criados a serviço do consumo. Uma relação de inquilinato estabelece que não somos
proprietários do espaço onde habitamos e que temos que pagar de alguma maneira os
custos desse espaço estranho. Acontece que o espaço que está sendo tornado estranho é
a nossa própria carne, colonizada e cafetinada a serviço do capital e de suas estratégias
de captura.
5
Ibidem, p. 52.
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Entretanto, se o corpo-subjetividade trafega em zonas cujas forças são movidas
para a repetição, a conservação e a manutenção do mesmo, há necessariamente forças
que perpassam o mesmo corpo-subjetividade e que comportam propriedades
diferenciantes. A possibilidade de tecer um plano de singularização, de estilização, a
partir de um domínio dessas forças em si constitui o que Deleuze chama de dobra da
força, ou processo de subjetivação para Foucault 6 .
Em última instância, trata-se não de enfatizar o corpo mesmo, nem a infinita
gama de possibilidades experimentais que o corpo permite e comporta. O que nos
interessa é destacar uma determinada zona que viabiliza experiências de singularização
não-subjetivadas e não-objetivadas, zona essa que dota o pensamento de uma
propriedade mais visceral e ao mesmo tempo imaterial, mais singular e ao mesmo
tempo coletiva. Ou seja, a relação de imanência que há entre pensamento, corpo e vida.
Deleuze 7 caracteriza a imanência como um plano em si, um plano impessoal,
não individuado, definido como UMA VIDA. Não se trata de imanência para a vida,
mas do imanente que existe absoluto em si, “ele próprio, uma vida”. Trata-se de pensar
a imanência em sua plena impessoalidade, em sua total e apriorística condição de ser
anterior a qualquer plano subjetivante ou objetivante, sem contudo deixar de ser-lhes
co-extensivos. Não é a vida que valida o plano de imanência, pois correríamos o risco
de apontar “que vida?”, e de procedermos a uma reatualização do ontológico-universal.
É que o plano de imanência, em sua propriedade de não mais se remeter a um Ser, não
cessa de se situar em uma vida (expressão cujo artigo indefinido demarca seu não-lugar,
sua singularidade, contudo imanente e absoluta).
Segundo Deleuze, uma vida está presente em todos os lugares, ocasiões e
acontecimentos que habitam os sujeitos vivos e objetos vividos, vida imanente que
“transporta os acontecimentos ou singularidades que não fazem mais do que se atualizar
nos sujeitos e nos objetos”. Atualização esta que sinaliza seu nomadismo, seu
movimento de devir: abertura e construção de possíveis. Princípio que não se encontra
regido pelos eventos de um passado-presente transformados em gravuras, registros,
arquivos, algo que não sou mais [atual]; trata-se, antes, de um plano processual que
aponta na direção do que somos em devir.
6
DELEUZE, G. (1987). Foucault. Trad. de José Carlos Rodrigues. Lisboa: Vega.
Publicado originalmente em Philosophie, número 47, 1995: 3-7. Utilizo a tradução de Tomaz Tadeu da
Silva. Disponível em: http://www.ufgrs.br/faced/tomaz/imanencia_i.htm
7
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A vida impessoal, segundo Deleuze, não se confunde nem comporta os campos
do já adquirido e do atual, não há uma ligação do tipo ‘o que sobrevém ou o que
sucede’, mas na sua profundidade a-temporal, essa vida indefinida se estende no
acontecimento por vir e no já ocorrido. “As singularidades ou os acontecimentos
constitutivos de uma vida coexistem com os acidentes d’a vida correspondente, mas não
se agrupam nem se dividem da mesma maneira”. O que difere um do outro é o modo
como se comunicam. Por um lado, temos a passagem de intensidades entre devires,
comunicação inumana, molecular; por outro lado, as comunicações circulam entre
formas compostas e forças disruptivas, que sempre estão interagindo com planos
definidos, individuados. Singularidades e acontecimentos impessoais circulam à
vontade, por exemplo, nas crianças bem pequenas.
Entre comunicações inevitáveis, o pensamento ressoa na vida e vice-versa, num
movimento cadenciado pelo acaso, sem sujeitos e sem objetos, só em puro
acontecimento. Aqui, o pensamento, tecido por partículas impessoais, forma
corporeidades e vidas que lhe são correspondentes. Livre do jugo de quaisquer
pronomes pessoais, conjuga-se a si mesmo, destrói mundos, constitui outros. Creio ser
nosso desafio compor com esse tipo de pensamento-acontecimento estilos que resgatem
nossa corporeidade para a vida. Pensar a partir de si e construir zonas de diferença
significam um risco e uma violência que se exercem primeiro para consigo, numa
viagem incerta rumo ao desconhecido, fora dos limites tranqüilizadores e à mercê de
todas as vertigens de altitude e de beatitude.
Marcos Guilherme Belchior de Araújo é psicólogo e mestrando pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da
Subjetividade / Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC/SP.
E-mail: [email protected]
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