Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/
Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.
Realização Curso de História – ISSN 2178-1281
VIDAS-LAZER: CORPO, CINEMA E PROFANAÇÃO
Vinicios Kabral Ribeiro1
RESUMO
A proposta desta comunicação é no rastro de uma virada afetiva (Clough, 2010) - uma
investigação/poetização sobre a "vida-lazer" na contemporaneidade. Esta expressão aparece
no Filme Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002) com a personagem Tabu: “comprar uma
máquina Singer, de pedal, pra costurar as fardas do meu anjo de bondade, meu marido. E
viver uma vida lazer”. Em Viajo porque preciso, volto porque te amo (Aïnouz e Marcelo
Gomes, 2009) a expressão é enunciada pela personagem Patty. Neste contexto, de que
maneira os encontros, os amores, as morte e as paixões nos conduzem ou nos afastam de uma
vida-lazer? Mais ainda, o que seriam essas vidas-lazer? A ideia de uma vida-lazer levanta
questões que conclamam uma reflexão detida para a possibilidade de uma visada ao cinema a
partir do afeto, imbricada numa imaginação afetiva que permeia o cotidiano. Assim como em
aproximações e urdiduras de expressões artísticas que tornam o afeto como uma possibilidade
de experiência, uma forma de se conhecer e se aventurar pelo mundo. E finalmente, arrisco a
dizer que as propostas de vidas-lazer podem ser, aos modos de Agamben, profanadoras.
PALAVRAS-CHAVE: cinema brasileiro; corpo; afeto; vida-lazer;
Uma vida-lazer?
Em Viajo Porque Preciso, Volto Porque te amo, Patrícia Simone da Silva (Patty) cria o
conceito de uma vida-lazer. Segundo sua filosofia de não-filósofa (Deleuze, 1988):
Uma vida lazer é assim: eu na minha casa, eu e a minha filha, o companheiro
que eu tiver ao meu lado, pra esquecer esses momentos todos porque não dá
certo. É triste a pessoa gostar sem ser gostada.
A partir do conceito de Patty, podemos lançar pistas do que seria uma vida-lazer. É possível
que vida-lazer nos fala do gostar, de ter seu companheiro, de um amor conjugal e filial. Nos
fala de afetos.
Separemos, pois, os termos:
1- Vida.
Giorgio Agamben (2000) pensa em formas-de-vida. E o que seriam?
Apostemos nas
singularidades da vida; em existências não se constituindo apenas como fatos ou evidências,
1
Doutorando em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ECO/UFRJ. Email:
[email protected].
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mas como potencialidades. Formas de individuação em constantes reinvenções. Rancière, ao
propor uma partilha do sensível, ressalta que da vida cotidiana devemos nos atentar ao banal,
sendo ele o que “torna-se belo como o rastro do verdadeiro (2009, p.50)”.
Vida-lazer não é estática, está em constante reinvenção. A vida-lazer é uma vida banal. Ela
nos fala de exemplaridades, de narrativas, de histórias de si. A vida-lazer é uma
potencialidade. É um devir?
Edgar Morin em suas proposições sobre o pensamento complexo dedica um, de seus
sete princípios da complexidade, para ressaltar que a vida, especialmente a humana, é autoecoorganizadora. Dessa maneira, nossa autonomia está intimamente ligada à dependência da
cultura e da natureza, da sociedade e de seu universo geoecológico. A vida e seu pensamento
complexo “é capaz de reunir, contextualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo de reconhecer
o singular, o individual, o concreto (MORIN, p.77, 2003)”.
A vida-lazer é uma forma de conhecimento, de pensamento, de energia. Da vida-lazer
extraímos modos e maneiras de sentir e estar no mundo. Habitar o cotidiano. A vida-lazer é
uma constante produção de sentidos e saberes. Ela é quereres, prazeres, dizeres.
Vida-lazer como promessa de vida. A vida como produção colaborativa de lazeres. “A vida
como o aprendizado de regras e a feitura do dever de casa, o mundo como uma escola
(BAUMAN, 1998, p.162)”.
Na passagem acima, entoada pelo sociólogo da liquidez Zigmunt Bauman, é quase
automático pensar em uma sociedade disciplinar, como bem notada e esmiuçada por Foucault.
Mas a vida-lazer de que quero tratar é reinvenção, certo? Logo, a escola acionada não é
aquela de cadeiras enfileiradas, currículos disciplinares, punições e normatizações. A escola
do mundo, ou a escola da vida-lazer, é onde aprendemos e mediamos às paixões e os amores.
Onde partilhamos os afetos e os blocos de sentimentos (Deleuze; 1992). A escola-vida-lazer
está aberta para matrículas, em sua ementa e proposta nos diz que:
É preciso fazer aparecer o inteligível sobre o fundo da vacuidade e negar
uma necessidade; e pensar que o que existe está longe de preencher todos os
espaços possíveis. Fazer um verdadeiro desafio inevitável da questão: o que
se pode jogar e como inventar um jogo? (FOUCAULT, 1981, p.5)
Como inventar uma vida-lazer? Quase dormindo, José Renato deseja: “Eu quero uma
vida-lazer”. A questão, José Renato, é: qual sua vida-lazer? Falamos de vida, de escola, de
jogos. Então,
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A vida-lazer pede passagem, quer romper fronteiras. Ela é um jogo, um complexo jogo. É
lúdica, é tácita, é íntima. A vida-lazer, herança de Foucault, tem a amizade como linhas de
vida e propulsora de outras gramáticas afetivas.
2. Lazer
Ilana Feldman (2010) ao escrever sobre a vida em cena versa sobre a vida-produto, a
vida-lazer, a vida-trabalho, a vida-performance. Ela abre caminhos para reflexão de uma
subjetividade capturada pelos dispositivos do capitalismo cognitivo (Lazzarato, 2006). Para
Feldman, a apresentadora Ana Hickmann é um exemplo de vida-produto. O filme Pacific
(Marcelo Pedrosa, 2009) trata de vida-trabalho. Já a exposição da intimidade na cultura
midiática (Sibilia, 2008) e a subjetividade empreendedora enquanto sintomas da vidaperformance. A vida-lazer é citada brevemente e é feita ao acarinhar Viajo porque preciso,
volto porque te amo. Das vidas em cena, apresentadas por Feldman, fico com a última, a que
desejo: a vida-lazer.
Em princípio seduzi-me em articular o que eu imaginava de vida-lazer com uma
discussão sustentada pelo conceito deleuziano de dispositivo. Posteriormente, associaria a
ideia de lazer acoplada ao discurso contemporâneo do trabalho imaterial e a indistinção entre
os momentos “lazeres e laborais”. Buscaria discussões travadas sobre a nova condição do
capitalismo, onde a mais-valia é uma auto-expropriação do proletário. O indivíduo
concebendo sua vida como um investimento, calculando seus riscos e lucros (Lazzarato,
2006).
E, por fim, imaginei compreender o discurso de uma vida-lazer – especialmente na
enunciação de Tabu e Patty – como uma reprodução de modelos e discursos enraizados em
nossa cultura. Se uma travesti almeja uma vida-lazer onde a costura e a conjugalidade ocupam
seu cotidiano, seria a matriz heteronormativa operando. A prostituta saindo das ruas e sendo
salva por um de seus clientes, como uma higienização das práticas sexuais dissidentes. A
mudança de rota e a fuga vieram no momento em que me recordei de três frases: duas de
Deleuze e outra de Foucault.
1. “A arte que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha.” (DELEUZE,
2010, p. 219).
2. “Um pouco de possível, senão eu sufoco” (2010, p. 132).
3. “Não há poder sem recusa ou revolta em potencial” (FOUCAULT, 2003, p. 384).
Lançando-me aos desejos despertados pelas frases acima, assumo e entendo uma
hipótese de vida-lazer que se configure como espaços de liberdade nas redes de poder. A vida
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como um sopro, um respirar calmo e contemplativo dos territórios que habitamos. A vida
como imagem, vida-lazer como obra de arte.
Finalmente, Corroboro com a discussão
proposta por Gustavo Gutierrez (2001), onde o prazer e o lazer devem ser reavaliados sobre
novas perspectivas, distantes das concepções herdadas de um modelo industrial, pautadas em
um binarismo trabalho/lazer. Prazer-lazer articulados com a política, intimidade, trabalho.
“Uma política dirigida à extensão e redistribuição do tempo livre, no qual o lazer como busca
do prazer possa ser perseguido e reivindicado como bem fundamental e imprescindível à vida
humana (GUTIERREZ, 2001, p.108).”
A vida-lazer é individual e coletiva. É colaborativa, é política, econômica, ecológica. É a
intimidade, a amizade, os arranjos afetivos. É um projeto de felicidade, prazer. É intensidade,
é um tratado, um caminho.
Afeto-lazer
O afeto como intensidade é uma maneira de aproximação do campo cinematográfico e
de análise da imagem considerando o corpo, tanto o imaterial que pavoneia nas telas quanto o
espectorial, dos sujeitos que se põe frente a essas imagens. Nesse sentido, Del Rio (2008)
investe seus esforços para uma questão levantada por Espinosa, atualizada por Deleuze e
urgente para a contemporaneidade: o que pode o corpo? Ainda para a autora, Deleuze
compreende o corpo como um conjunto de forças que afetam e são afetadas em consonância
com uma gama de outras forças e devolve ao corpo o seu campo de intensidades anuladas nos
modelos de representação.
Elena Del Rio (2008) sustenta que essa força corporal e essa capacidade de afetar são
extremamente criativas e performativas. E esse poder de afecção e imanência criativa dos
corpos contribuem nos processos geradores da existência. O corpo como performativo, como
força da e na cultura. O corpo que não se encerra em um molde de representação. Um corpo
que conclama o outro, o toque, o encontro. Corpos vibráteis. O corpo como lócus de
criatividade anárquica, e por sua visão performativa como um meio de passagem do afeto, das
emoções, dos sentimentos.
Mas de que falamos, então, quando falamos, dos afetos e das emoções? Aos modos de
Espinosa o afeto é potência de agir. As emoções seriam a interpretação e codificação cultural
das afecções, os sentimentos, como a raiva, a alegria, a tristeza. Os filmes que proponho
analisar - e aqui especialmente O Céu Sobre os Ombros - nos falam de encontros, laços ora
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frágeis ora intensos, abandonos e despedidas; acima de tudo encontros. Como pensar esses
encontros de uma outra maneira que não recaia nos recorrentes discursos de fragmentação,
individualidade, obsolescência e tantos outros sintomas de uma dita pós-modernidade? E
dialogando com Fábio Ramalho: como esses encontros são capazes de potencializar nossas
afecções? E de que maneira conduzir a discussão e a pertinência do afeto nos corpos de
imagem que tomam o mundo?
Ramalho recupera Elena Del Rio para problematizar as maneiras em que ocorre uma
sobreposição entre o narrativo e o afetivo no cinema, tendo o afeto uma potência de afetar e
mobilizar a narração do filme. E, assim, considerar não só o corpo encenado, o corpo-coletivo
e corpo-espectorial, mas todo o conjunto de corpos que se imbricam e potencializam o agir.
Um afetivo-performativo comandado pelos corpos-vivos: simbiose de todos os corpos
possíveis. Acredito que essa noção de afetivo-performativo pode ser um ponto de partida
futuro para situar e contextualizar a personagem Everlyn.
Essa virada afetiva (Clough, 2010) é, também, a possibilidade do afeto emergir como
potência estética, conceitual e contemporânea de compreensão da experiência humana.
Quebrar os muros que separam as produções artísticas, os saberes, as formas de se conhecer e
experimentar o mundo. Buscar nas imagens mais que suas dimensões técnicas e aspectos
formais de elaboração, e sim seus vestígios, suas partilhas, sensibilidades e vibrações. Por
fim, corroboro com a ideia de Ramalho:
e se, enfim, as imagens que veiculamos têm o poder de afetar aqueles que as
confrontam, podemos então discernir uma forma de articular a estética e a
política, e sustentar que o conceito de afeto pode nos dizer mais do mundo
visivo e das imagens em circulação do que simplesmente qualificar um
conjunto de procedimentos, uma forma de registro ou uma “tendência
contemporânea (2010, p.9-10).
É necessário definir estritamente o que seria um afeto? Ganhamos ao pensar no afeto
como possibilidades plurais? O afeto como sinônimo de medos, de emoções, de potências de
agir, da efemeridade do instante? De que maneira pensar os afetos como potências
aglutinadoras de vidas comuns, singulares, lazeres? De que modo se pode entender os afetos
como contribuintes para uma ética, estética e política na possibilidade de se viver juntos em
um espaço heterogêneo, reconhecendo a profundidade do outro? E qual o espaço da amizade
(Foucault, 1981), dos arranjos para além de dados genéticos, propulsados pelo encontro, pelas
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viagens, pelo corpo? De onde emergem os afetos de uma puta, de uma transexual, de uma
puta transexual?
Jeudy (2002), ao retomar aos estudos de Deleuze sobre Espinoza, também recupera a
questão “que pode o corpo?” e logo garante que “nenhuma pessoa tem condições de sabê-lo,
pois ninguém conhece os limites de nossas afecções (JEUDY, 2002, p. 109)”. Portanto, é
sobre esse terreno desconhecido, em saber o que pode o corpo, é que podemos relacionar as
possibilidades de experimentação, de ativação de potências, de sensibilidades vibráteis
(Deleuze, 2010). Nesses terrenos onde também podemos perguntar quem são esses e essas
que habitam as vidas-lazer?
Profanações ou a vita-licere2
Giorgio Agamben (2007) retoma o Império Romano para investigar o sentido de
profanar. Os universos religiosos ou sagrados estavam sob o auspício dos deuses, apartadas da
humanidade, impossibilitados de usos comuns. Sacramentar era a indisponibilidade para o
livre uso, e o sacrílego configurava-se como gesto transgressor dessa proibição ao humano.
Consagrar (sacrare) era a retirada das coisas do domínio e do direito humano; profanar
(profanare) era a restituição que se fazia das coisas apartadas e destinadas aos deuses.
É possível entender a vida-lazer como um ato de profanação? Se sim, quais as formas
de se profanar? E o que se profana? De que maneira uma proposta de vida-lazer pode ser
combatente de um mundo onde o capitalismo se funda e se mescla em cada fresta do
cotidiano? E como pensar uma vida-lazer que seja outro templo, bem distinto do templo
religioso que emerge do capitalismo?
Giorgio Agamben (2007), ao continuar as reflexões de Walter Benjamin (2007) sobre
o capitalismo como religião, pondera que essa doutrina contemporânea generaliza e absolutiza
a característica de separação presente nas esferas religiosas. Mas nessa modalidade religiosa
atingida pelo capitalismo, a separação é feita em sua forma pura, sem mais nada a separar. E a
consagração também o é vazia e integral. O autor afirma:
[como], na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que
se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche
inapreensível, assim agora tudo que é feito, produzido e vivido – também o
corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba sendo
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Vida-lazer em latim.
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dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não
define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se torna duravelmente
impossível (AGAMBEN, 2007, p.71).
Uma vida-lazer pode contribuir para libertar os usos do mundo, dos prazeres, da vida?
O projeto de uma vida-lazer, que a priori pode ser tomada como utópica, pode profanar as
práticas que separam a vida do lazer? Uma vida-lazer é possível em um contexto onde “o
capitalismo como religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a destruição do
mundo.” (AGAMBEN, 2007, p.70). É possível restituir esses mundos?
O capitalismo tem como pressuposto ser improfanável. Contudo, Agamben (2007)
insinua que o improfanável seja passível de profanações, e que despontam formas possíveis
de profanare. De que modos e maneiras? A proposta de uma vida-lazer, as poéticas do
cotidiano, a tomada do comum e do banal no cinema, podem contribuir para essa tarefa de
profanação. Mas o autor ressalta que o gesto profanador não é simplesmente resgatar o uso
anterior à separação. É um exercício complexo e ardiloso. A busca de um meio sem fim.
“Assim, a criação de um novo uso só é possível ao homem se ele desativar o velho uso,
tornando-o inoperante.” (AGAMBEN, 2007, p.75) Assim, a vida-lazer é movimento, é
produção de novos usos. É um desafio que se traduz em uma última questão que lanço: como
traduzir esteticamente, no campo das imagens, uma vida-lazer?
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