Formação histórica das Declarações de Direitos Esdras Boccato Mestre em Direito do Estado – USP Procurador da Fazenda Nacional 1. Noções preliminares 1.1. Primeiras impressões Facilmente, observa-se que alguns dos principais fatos históricos da humanidade foram precedidos ou acompanhados pela elaboração de Declarações de Direitos. Assim aconteceu na Inglaterra com o rei João “Sem Terra”, episódio em que é assinada a Magna Charta (1215); na França à época da Revolução Francesa, na qual foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789); e com a ONU, quando se editou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). 1. Noções preliminares 1.2. Pressupostos teóricos Sendo documentos formais nos quais alguns direitos são afirmados como inerentes à pessoa humana e oponíveis a qualquer Estado, as Declarações de Direitos devem ser analisadas a partir do contexto histórico vivenciado no século XVIII, sob pena de não se compreender a função a estas Declarações era atribuída. Por isto, não se pode esquecer das teorias que buscavam fundamentar tanto a existência do Estado (contratualismo) como a do próprio Direito (jusnaturalismo). 1. Noções preliminares 1.2. Pressupostos teóricos Segundo os contratualistas, o Estado originou-se a partir do acordo de vontade dos indivíduos para sobrevivência e desenvolvimento da sociedade. Por isto, nesta acepção, o Estado foi instituído para assegurar o gozo dos direitos que integram a própria natureza humana. Por sua vez, segundo os jusnaturalistas, existem direitos naturais ao ser humano que são aferíveis pela razão, que são eternos, absolutos e válidos para todos os homens, e que servem de fundamento para o direito legislado (positivado) pelo Estado. 1. Noções preliminares 1.2. Pressupostos teóricos Assim, neste contexto, a Declaração de Direitos é considerada documento solene através do qual o delineamento do pacto social é reduzido a termo, evidenciando os direitos naturais a serem conservados pelos Estados, com clareza e precisão. Daí se afirmar que, nas Declarações, “os direitos enunciados não são aí instituídos, criados, são ‘declarados’, para serem recordados” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Direitos humanos fundamentais, 14ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012, p. 41). Por isto é que as primeiras Declarações de Direitos não fazem parte dos textos das respectivas Constituições. 2. Antecedentes 2.1. Magna Charta (1215) Tida como um dos antecedentes das Declarações de Direitos, a Magna Charta é o documento solene através do qual os barões ingleses impuseram limites aos poderes do rei João “Sem Terra”, protegendo os privilégios dos senhores feudais e dos homens livres ingleses. Apesar de ser limitada, pode ser considerada um importante avanço na afirmação de direitos, pois alguns de seus princípios ganharam notoriedade: § 39. Nenhum homem livre poderá ser detido ou mantido preso, privado de seus bens, posto fora da lei ou banido, ou de qualquer maneira molestado, e não procederemos contra ele nem o faremos vir, a menos que por julgamento legítimo de seus pares e pela lei da terra” (due process of law). 3. Declarações de direitos 3.1.Declarações de direitos norte-americanas A primeira Declaração de Direitos Humanos propriamente editada pela então colônia inglesa da Virgínia, mediante a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, de 1776. Nela foi proclamado que “todos os homens são por natureza iguais e independentes”, “o governo é, ou deve ser, instituído para o comum benefício, proteção e segurança do povo”, etc. A ela se sucedeu a Declaração de Independência (1776), em que é registrado que “todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis; que, entre eles, estão a vida, a liberdade, a busca da felicidade; que a fim de assegurar esses direitos, instituem-se entre os homens os governos, que derivam seus justos poderes do consentimento dos governados”. 3. Declarações de direitos 3.2. Declaração Universal de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão foi o principal documento a proclamar os direitos “naturais, inalienáveis e sagrados do homem” com caráter universal. Em 16 artigos, são consagradas as liberdades dos indivíduos, em especial a liberdade, igualdade, propriedade e legalidade. Com teor marcadamente liberal, a Declaração reconhece as chamadas “liberdades públicas”, apesar de nela não se prever nem a liberdade de reunião, nem a de associação. 3. Declarações de direitos 3.2. Declaração Universal de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) - Preâmbulo “Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos maltes públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres, a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade de toda instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral”. 3. Declarações de direitos 3.3. Evolução do perfil das Declarações de Direitos As reivindicações do séculos XVIII e XIX tiveram como alvo acabar com a opressão política a que a burguesia era submetida. Por causa disto, as primeiras Declarações de Direitos limitaram-se a consagrar as liberdades públicas como meio de resistência e de limitação ao poder do Estado. Ao Estado caberia abster-se. Contudo, com a formação da classe operária, observou-se que a opressão a ela imposta vinha também do modelo capitalista. De nada adiantava assegurar liberdades a todos se a maioria não detinha condições materiais de exercê-las. “De que adianta a liberdade de imprensa para todos aqueles que não têm os meios para fundar, imprimir e distribuir um jornal? – perguntavam esses críticos” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Curso de direito constitucional,..., p. 324). 3. Declarações de direitos 3.3. Evolução do perfil das Declarações de Direitos Além disto, as concepções acerca da relação entre indivíduos e Estado começam a sofrer mudanças. Enquanto nos meios burgueses “o que se pedia era liberdade de ação contra o Estado, ou apesar do Estado; nos meios proletários, o que se almeja era proteção e amparo por parte do Estado. Enquanto para a mentalidade predominante nas classes ricas o Estado era o inimigo, embora um inimigo às vezes útil, para o proletariado era ele talvez a última esperança” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves,..., p. 324). Enfim, como reação a este quadro, surge o Manifesto Comunista, a Constituição Francesa de 1848, a Constituição Mexicana de 1917, etc. 3. Declarações de direitos 3.4. Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado (1918) Aprovada no Terceiro Congresso Panrusso dos Sovietes, tal Declaração firmou as bases da Revolução Soviética (1917) e, ao invés de firmar direitos individuais ao lado de direitos sociais, propunha a “suprimir toda exploração do homem pelo homem, abolir definitivamente a divisão da sociedade em classes, arrasa, sem piedade, todos os exploradores, realizar a organização socialista da sociedade e fazer triunfar o socialismo em todos os países”. Contudo, não teve maiores repercussões universais, pois além de o socialismo russo ter rumado ao estalinismo, a Constituição Soviética de 1936 superou-a. 3. Declarações de direitos 3.5. Constituição de Weimar (1919) Buscando evitar a assunção do comunismo na Alemanha do pós-1ª Guerra Mundial, é editada a Constituição de Weimar (1919) na qual são previstos deveres a serem cumpridos pelo Estado alemão em favor dos cidadãos. É por esta razão que é considerada a mais importante quanto à previsão de direitos sociais, isto é, direitos de exigir prestações concretas em face do Estado. Nela, pioneiramente se estabelece a função social da propriedade (art. 153). Também se prevê o financiamento público ao ensino (146), a reforma agrária (art. 155), etc. Apesar de não ter sido implementada, a Constituição alemão influenciou a feitura de Constituições em diversos países. 3. Declarações de direitos 3.6. Declaração Universal dos Direitos do Homem Após o fim da 2ª Guerra Mundial, é criada a Organização das Nações Unidas (ONU) objetivando evitar guerras tais quais as desencadeadas nas décadas anteriores. Além disto, visando impedir que os horrores do nazismo contra judeus e minorias fossem novamente cometidos, entende-se ser necessário a aprovação de uma Declaração de Direitos a servir de base à reformulação dos Estados no pós-guerra. É editada, assim, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), com a finalidade de consagrar e proteger a dignidade humana (art. VI – Todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei). 3. Declarações de direitos 3.6. Declaração Universal dos Direitos do Homem Em seu preâmbulo é estabelecido: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo; considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum”.