1 O QUE É APOSENTADORIA? MORTE SOCIAL, CULPA E CONSTRANGIMENTO OU DEVER CUMPRIDO, PRAZER E LIBERDADE? Ao pesquisar o tema aposentadoria nos deparamos com uma questão fundamental: afinal, o que é aposentadoria? Nesta perspectiva buscamos na literatura estudos que nos trazem algumas definições. Estas vão desde a ruptura com o mundo do trabalho, o retorno aos aposentos, o recebimento do benefício mensal, e a preocupação ligada às questões financeiras, à perda do significado da vida, nos casos em que vida é sinônimo de trabalho. Encontramos também aspectos relacionados ao prazer de usufruir o tempo livre, a realização de novos projetos no futuro, como um novo ponto de partida. A partir de entrevistas com pré-aposentados e aposentados, procuramos compreender como os trabalhadores explicam e vivem a aposentadoria, em suas contradições e ambivalências. De um lado aparece o júbilo, o sentimento do dever cumprido e da conquista de um direito, um merecimento. De outro, o medo, o sofrimento, a culpa e o constrangimento de se sentir fora do mundo produtivo do trabalho, a perda da identidade profissional e do sentido de vida a ela atrelado. Não é nosso objetivo, neste artigo, apresentar os resultados das pesquisas por nós desenvolvidas. Optamos por fazer um ensaio teórico, relatando apenas trechos de entrevistas já realizadas, por entendermos que ilustram as situações e confirmam achados de outros pesquisadores: não há conceito ou definição capaz de abranger todos os aspectos do processo de aposentadoria. Cada sujeito vive este momento conforme suas condições psicológicas, históricas, sociais, políticas e antropológicas. Tanto pode configurar-se como “morte social”, quanto como início de um novo espaço-tempo, amplo em perspectivas e realizações. Palavras-chave: aposentadoria; trabalhadores; identidade; ambivalência. Vera Regina Roesler - Graduada em Psicologia e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Psicóloga clínica e organizacional. Endereço: Rodovia Amaro Antônio Vieira, 2371/1012, CEP 88034-101, Itacorubi, Florianópolis, SC. E-mail: [email protected] Dulce Helena Penna Soares - Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Coordenadora do LIOP (Laboratório de Informação e Orientação Profissional) e Pesquisadora Produtividade do CNPq. Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Louis Pasteur, em Strasbourg, na França. Pós Doutoranda no Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitária da UFRGS. Conselheira e fundadora da Associação Brasileira de Orientação Profissional – ABOP. Endereço: Rua das Tibiras, 408, CEP 88053 479, Jurerê Internacional, Florianópolis, SC. E-mail: ([email protected]). Introdução Como pesquisadoras do tema “aposentadoria”, nos deparamos com uma questão crucial: o que é, afinal, aposentadoria? E, a partir desta, podemos elencar um número quase infinito de indagações, todas passíveis de múltiplas respostas: Quando alguém está realmente aposentado? Não nos referimos à aposentadoria sob os aspectos legais e sim às contradições de ordem psicossocial decorrentes do rompimento dos vínculos laborais. Existiriam determinadas condições que permitem ao sujeito reconhecer-se na 2 “categoria” de aposentado, se “assenhorando” do novo estatuto que carrega em si uma reconstrução identitária, incluindo as dimensões temporais em seu movimento dialético - quem foi, quem é e quem poderá vir a ser? Nas limitações deste artigo e com o objetivo de contribuir para a compreensão desta temática, nos propomos a explorar brevemente algumas discussões a este respeito. Para contextualizar a discussão, apresentamos alguns fragmentos de relatos de participantes de duas pesquisas em andamento 1 , as quais não pretendemos aqui expor. Nosso foco são os significados atribuídos à aposentadoria pelos sujeitos entrevistados. As informações foram obtidas a partir de entrevistas semi-estruturadas, com homens e mulheres entre 45 e 77 anos, residentes em diversas cidades brasileiras, alguns já aposentados e outros prestes a adquirir este direito. Encontramos, no primeiro grupo, pessoas já usufruindo do benefício mensal pago pelo Instituto Nacional de Seguridade Social - INSS, mas ainda em atividade laboral remunerada, com ou sem vínculo empregatício. No segundo grupo temos pré-aposentados que participam de programas de preparação para aposentadoria em seus locais de trabalho. Todos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e seus nomes, para fins deste texto, foram alterados. Aposentadoria: idéia/conceito em transição O conceito de aposentadoria é fluído e vem mudando ao longo do tempo, assim como as condições sociais e as expectativas individuais. O mesmo ocorre com a noção de trabalho, devidamente diferenciada de “emprego” e de “carreira”, que traz impresso em seu percurso histórico as contradições constitutivas da relação capital/trabalho, cujas características e desdobramentos podem ser observados em nossa sociedade “hipermoderna” (PAGÈS et all, 1987) ou da “modernidade líquida” (BAUMAN, 1999). Ao procurarmos a origem histórica da palavra “aposentadoria”, encontramos em alguns dicionários, como no “Aurélio”, variações indicando, ao mesmo tempo, o desligamento de um emprego e a noção de “abrigar, alojar”: “Hospedar, dar aposentadoria a; conceder reforma ou dispensa do serviço com soldo ou ordenado por inteiro, ou parte dele, a; jubilar; abrigar, acolher; rel. residir, morar, viver; p. tomar aposentos, hospedar-se; deixar o serviço público, conservando o ordenado inteiramente ou em parte; ficar aposentado.” (FERREIRA, 1987). 1 Pesquisas relacionando aposentadoria, trabalho, tempo livre e projeto de ser, desenvolvidas pelas autoras em atividades de doutorado na UFSC e pós-doutorado na UFRGS, respectivamente, ambas em Psicologia. 3 Adolfo Morales de los Rios Filho (2000) conta que o uso da palavra faz referência à expropriação das melhores residências (com seus pertences e criados) de moradores do Rio de Janeiro no século XIX, para abrigar os nobres e protegidos que chegaram com a Família Real em 1808. A prática da “aposentadoria” era usada desde a Dinastia dos Borgonha em Portugal, passando a imposição legal a partir de 1590, sendo extinto em 1821. Antecipando-se ao deslocamento dos reis pelo país, o aposentadormor ia à frente escolhendo os aposentos que lhes serviriam de pouso. Pensando nesse horizonte de racionalidade, seria então a aposentadoria uma forma de expropriação de um tempo-lugar que deixa de pertencer ao trabalhador a partir de decisões externas a ele, podendo ocorrer de forma abrupta e inesperada? E como se experimentam os “indivíduos hipermodernos”, na concepção de Aubert (2006), com esta nova “identidade contemporânea” de “aposentado-inativo”? Descolados da significação de lugar-aposentos para ficar-repousar, ao abordarmos o assunto pensamos na retirada do mundo do trabalho e no direito ao benefício mensal pago pela previdência oficial e/ou previdência privada. O sujeito deixa determinado lugar onde vendeu a força de trabalho e deteve um papel social, saindo de uma posição profissional oficial para voltar-se ao âmbito privado (os aposentos). Ou ainda, deixa um negócio ou uma profissão para desfrutar de liberdade e lazer, especialmente depois de uma trajetória profissional e da aquisição do direito a um benefício pecuniário mensal. Beauvoir (1990) ao falar de aposentadoria faz referência direta ao envelhecimento e afirma que “ser brutalmente precipitado da categoria dos indivíduos ativos na dos inativos e classificados como velhos (...) é, na imensa maioria dos casos, um drama que acarreta graves consequências psicológicas e morais” (p. 324). Ser ativo, atributo valorizado em nossa sociedade, é sinônimo de ser alguém que está produzindo mercadorias, se quisermos utilizar a perspectiva marxiana. Ser inativo, por outro lado, é ser dependente, não produtivo e, por consequência, sem lugar social. Para Blanché e Rhéaume (2010), as palavras utilizadas para designar a ruptura com a atividade laboral remunerada em diversos idiomas europeus, em sua grande maioria privilegiam o aspecto financeiro, trazendo o significado de “uma forma específica de remuneração”, denotando uma visão “relativamente neutra”, ao contrário do observado na França, onde se relaciona com idade avançada e perda de status social. Os autores afirmam que o vocábulo francês la retraite, “mais forte que seu equivalente 4 inglês retirement, fere por sua vinculação a dois universos aparentemente separados de maneira muito forte do mundo do trabalho e completamente estranho ao mundo do dinheiro” (p. 4). O aposentado perde seu espaço social, deixa de ser sujeito, apesar da legislação lhe atribuir direitos que são, de certa forma, ignorados pela sociedade. Debert (2004) assinala que a instituição da aposentadoria ocorreu na sociedade ocidental a partir da segunda metade do século XIX. Segundo Soares e Costa (2008) o direito a este benefício sempre esteve presente nas lutas da classe trabalhadora e não há como negar que o desejo do júbilo se constitui em uma espera constante na vida laborativa. Ilustra tal expectativa o depoimento de José, 52 anos, funcionário público que ingressou no mercado de trabalho há 37 anos. Atualmente lhe faltam dois anos e meio para se aposentar: A palavra aposentadoria significa, para mim, dever cumprido de uma missão que você abraçou. Eu fiz um concurso para oficial de justiça, trabalhei já 30 anos e vai chegar meu tempo de me aposentar. Significa para mim, cumprir minha missão profissional nesta função. Agora é hora de eu me aposentar, disto que eu abracei... Aposentadoria se insere neste plano de olhar mais para mim e eu ficar no primeiro plano, estar voltado mais para mim e realizar os meus projetos. José deposita suas esperanças no futuro, quando fará de seu tempo livre um tempo para si, para realizar seus “projetos”. Após cumprir uma “missão”, mesmo que livremente escolhida, fará outra trajetória, supostamente sem agendas e controles hierárquicos. Será que esta transição será tranquila? O que acontecerá com José ao se constatar fora da instituição à qual vendeu sua força de trabalho durante 30 anos? Como serão seus dias longe da rotina e do estresse da profissão, afastado do convívio diário com o grupo de colegas? Questões difíceis de responder. É a vida de José, mas poderia ser a de Maria, a de João ou a de outro trabalhador. Pinquart, M. e Schindler, I. (2007) estudaram a mudança em relação à satisfação na vida de um grupo de 1500 alemães aposentados e encontraram posições contraditórias referentes aos efeitos da aposentadoria sobre bem-estar subjetivo. Os autores encontraram três grupos de pessoas que experimentaram a aposentadoria de forma diferente. No grupo um, a satisfação declinou, mas continuava em uma trajetória estável ou crescente posteriormente. O grupo dois demonstrou um grande aumento na satisfação na idade de aposentadoria, mas a satisfação em relação a vida em geral declinava. No grupo três, a satisfação mostrou um aumento temporário muito pequeno. Os grupos diferiam por idade, sexo, nível socioeconômico, estado civil, saúde, 5 desemprego antes de se aposentar e região onde habitavam. Ficou evidenciado que a aposentadoria não é uma transição uniforme e indivíduos com estrutura psicológica menos fragilizada estão menos propensos a alterações na satisfação de experiência de vida relacionada à ruptura com o trabalho formal. Em seu trabalho de revisão sobre "Transições para aposentadoria" na Austrália, Borland (2005) fornece um conceito para nos ajudar a pensar, e distingue entre o período no qual "carreira ou emprego" é uma atividade principal e um período posterior, chamado "aposentadoria". Esta "fase de transição" pode variar no tempo em que ela ocorre e é caracterizada por uma redução na força de trabalho com alguma combinação de uma nova atividade com menos horas de atividades laborais. Fica em aberto a questão de especificar exatamente como define este estado de aposentadoria: "em geral, parece que a aposentadoria tem sido interpretada como... não estar contratado em qualquer trabalho remunerado" (BORLAND, 2005, p. 2). Para McDaniel (1995, p. 86) no final da vida profissional, "a transição de um emprego para a aposentadoria (...) está longe de ser uma transição tranquila como muitos pensam. Em vez disso, várias transições ocorrem nas entradas e saídas do emprego e da força de trabalho". Tais considerações, segundo o autor, dificultam conceituar aposentadoria. Uma pessoa pode "se aposentar" e, em seguida, começar uma nova carreira em tempo integral ou parcial, com atividades relacionadas à carreira anterior ou fazendo algo totalmente independente. Vários conceitos têm sido apresentados por diferentes pesquisadores, e não existe consenso sobre a melhor forma para definir aposentadoria. Borland (2005, p.5) afirma que “o conceito de ‘transição à aposentadoria’ é identificado como uma fase na qual um trabalhador mais velho muda de algum padrão 'relativamente permanente' da atividade do mercado de trabalho para a aposentadoria”. Esta transição ainda não foi realizada em sua totalidade por Henrique, 77 anos de idade, bancário formalmente aposentado desde 1986. Para este sujeito, que trabalha desde criança, é impossível pensar em sua vida sem o trabalho. Afirma que gosta de assistir filmes, ter momentos de lazer, mas “tem que ter trabalho para preencher parte do meu ser”. Não fica um só dia em casa. Sua agenda está sempre com os horários tomados. Para ele aposentadoria é o prenúncio do fim da vida, comparável com a morte: Eu acho que para mim o dia que ficar doente em uma cadeira de rodas ou inválido, para mim seria aposentar, por que não poderia fazer nada. Aposentar é não fazer nada. Eu não me vejo como alguns colegas que vão para o clube de manhã e jogam uma partida de tênis e depois sentam na cadeira e ficam 6 dormindo até a hora do almoço. Isso eu não consigo fazer. Eu vou ao banco ver a bolsa de valores como está funcionando e ver se tem alguma coisa que posso fazer. Se for para ficar parado não dá certo. Henrique nos contou que sua aposentadoria foi planejada, mas mesmo assim, não conseguiu seguir sua programação. Mack, já em 1954 (p.169) afirmava que “o problema de planejamento da aposentadoria pode se resolver a partir de programas de preparação para aposentadoria”. Sugeria 12 encontros, inserindo o tema "significado do trabalho e aposentadoria", com uma discussão acerca dos significados históricos de trabalho e dos diferentes significados para diferentes pessoas. E ainda, a relação do significado do trabalho com o planejamento da aposentadoria, buscando substitutos para a satisfação obtida com o trabalho (p. 174). Nestes termos, encontramos em nosso entrevistado Henrique, estratégias adequadas ao seu perfil sociopsicológico, no que se refere à substituição de atividades, se dizendo satisfeito com sua rotina atual. Consideramos, concordando com a posição de Rhéaume (2010), que a aposentadoria é “um fenômeno social, biopsicossocial e filosófico”. Acrescentamos as dimensões política, econômica, jurídica e antropológica, dentre outras que poderíamos citar. Assim, para compreender a trajetória de cada sujeito que passa da condição de “trabalhador” para a de “aposentado” é necessário estar atento aos diversos fatores. Contradições e ambivalências Encontramos no meio acadêmico, conceituações variadas, estudos comparativos de diferentes contextos e de populações de aposentados. No imaginário popular observamos definições relacionando a aquisição do status de aposentado com a possibilidade de usufruir o tempo livre ou de construir novos projetos para o futuro. Todas estas concepções, embora diferentes, apresentam algo em comum: as contradições e ambivalências experimentadas pelos sujeitos próximos da aposentadoria ou os já desvinculados de seus empregos formais. Ora a euforia de poder usufruir a sonhada liberdade, ora o medo da perda dos vínculos sociais oportunizados no e pelo trabalho e de não saber o que fazer de si e do tempo que se descortina em seu horizonte. Para algumas pessoas, a simples menção do tema é motivo de ansiedade, remetendo de imediato a dificuldades das mais variadas ordens. Neste contexto, a decisão pela permanência ou pelo rompimento com o vínculo formal de emprego é difícil e geradora de angústia. Outras pessoas, no entanto, vivem de maneira tranquila 7 este momento de transição, realizando aos poucos o percurso que permitirá reconhecerse neste novo espaço/tempo e na nova identidade de “aposentados”. Para Beauvoir (1990), sempre haverá a ambivalência no trabalho, ao mesmo tempo fonte de sofrimento e fadiga, mas também o espaço de formação de vínculos sociais e fonte de equilíbrio, dentre outros aspectos. Nestes termos, o trabalho que faz sofrer é o mesmo que permite a inserção social, um tempo-lugar para ser. Assim, mesmo que determinado tipo de atividade tenha sido escolhida pelo sujeito e constitui espaço de realização, “renunciar a ele equivale a uma espécie de morte” (p.325). Por outro lado, quando a tarefa é árdua, destituída de sentido para aquele que a executa, se livrar dela pode ser experimentado pelo sujeito como uma libertação. Tal situação é exemplarmente exposta nas palavras de Hemingway (1899-1961), que se suicidou aos 62 anos, com problemas de saúde e perda da memória: A pior morte para um indivíduo é perder o que forma o centro de sua vida, e que faz dele o que realmente é. A aposentadoria é a palavra mais repugnante da língua. Seja escolha nossa ou imposição do destino, aposentar-se é abandonar nossas ocupações – essas ocupações que fazem de nós o que somos – equivale a descer ao túmulo. (BEAUVOIR, 1990, p. 325). É possível observar que as contradições do mundo do trabalho permanecem quando o sujeito se aposenta, mas sob outro prisma. Destinado a ser o espaço da liberdade e fruição do tempo livre, do lazer, do não compromisso com agendas e horários rígidos, fim das relações de subordinação, pode ser vivido, ao mesmo tempo, como uma espécie de marginalização e de vazio existencial, com dificuldades ligadas à construção identitária, uma vez que o coletivo de trabalho sai de cena. Na obra A entrada na aposentadoria: novo ponto de partida ou morte social? sob a direção de Dominique Thierry, pesquisadores franceses confirmam que a entrada na aposentadoria é um momento marcado pelas contradições, podendo representar uma espécie de “morte social” (2009, p. 87). “Durante a passagem à aposentadoria, encontramos esta contradição vazia: de um lado, a aposentadoria é idealizada como um meio da liberdade enfim encontrada («enfim, a verdadeira vida!») e de outro, a ruptura muitas vezes extremamente rápida dos laços sociais criados no trabalho é vivido como um luto” (p. 87-8). Assim, dizem os autores, “alguns não hesitam em falar da «religião do trabalho», e outros da «religião da aposentadoria», cada um de uma maneira idealizada ou rejeitada em uma ambivalência contraditória” (p. 88). Desta forma, se para algumas pessoas é o melhor momento de suas vidas, para outras é o pior. São inúmeros os aspectos a serem analisados, lembrando que a idade 8 cronológica nem sempre coincide com a idade biológica. Para um trabalhador em plena forma física e psicológica, o evento será vivido de forma diferente do que para outro, fatigado, adoecido e que executou ao longo da vida atividades destituídas de sentido. Assim, a compreensão da situação singular de cada sujeito deverá ser necessariamente realizada à luz de cada trajetória historicossocial, sem desconsiderar a materialidade. Gaulejac (2009, p. 10) fala de um “duplo movimento” que conduz o indivíduo a se definir conforme as normas sociais, a visão dos outros, as comparações e, ao mesmo tempo, a partir de escolhas pessoais, de uma vontade e de uma afirmação de seu próprio ser, caracterizando os dois pólos irredutíveis um ao outro: o social e o psicológico. Ana Lucia, 48 anos, é técnica de informática e servidora da Justiça Federal, com 30 anos de trabalho. Faltam-lhe ainda um ano e oito meses para se aposentar. Em seu depoimento traz, ao mesmo tempo, boas expectativas e medo: Quando eu penso mesmo na aposentadoria, eu vejo como uma coisa legal, como mais um estagio na minha vida. Eu acho que eu não vou ficar sem fazer nada não. Eu penso que eu não vá me arrepender, não é assim. Acho que é um presente também, é um direito. . . Tu estavas me perguntado sobre a aposentadoria e eu confesso que eu tenho um pouco de medo também, de como vai ser, e insegurança. Segundo Soares, Costa, Rosa e Oliveira (2007), o homem aposentado está na contramão do projeto social de sujeito trabalhador ao qual se condicionou durante a maior parte da vida profissional. Marta, 53 anos de idade, socióloga aposentada há um ano, nos mostra esta angústia: Aposentadoria é uma conquista! Conquista, sim. Logo que me aposentei em março do ano passado, fiquei meio tonta sem saber o que fazer com meus tempos e meus espaços, visto ter passado toda uma vida trabalhando. . . Não bastasse isso, o mundo inteiro me fitava com olhos inquisidores e sem constrangimento comentava "mas como? Tão jovem, ainda tens muito a dar, tens que produzir, tens que achar uma atividade, tens que fazer um trabalho voluntário, tens que... tens que... tens que....! Guria, uma mistura de constrangimento e culpa foi se instalando dentro de mim. (...). Afinal, estou aposentada, mas não inativa. A vida me chama lá fora e eu sou tão ávida da vida quanto ela de mim!” Neiva, 59 anos, há 10 anos aposentada, se sentia preparada e tinha planos para seu tempo livre. Ela nos disse: Esse era o meu grande sonho de consumo para quando me aposentasse. Eu refletia o seguinte: até então havia dedicado a maior parte da minha vida: primeiro aos estudos, depois a marido, filho e trabalho. Não sobrava tempo para muita coisa. Nada mais justo, então, que ao me aposentar pudesse dedicar um tempo maior para mim, para me autorreconhecer, para ler mais. Estudar mais. 9 Eu sentia essa lacuna. Eu sentia essa necessidade. Todos esses contingenciamentos corroboraram para eu não ter nenhuma dificuldade quanto à sensação de perda do trabalho com vinculo empregatício. Tudo andou normalmente, eu já estava mentalmente organizada para a aposentadoria. Gosto de viajar. Viajei para Buenos Aires, Rio de Janeiro, São Paulo, Europa, mais especificamente, Espanha e França.” A partir da literatura consultada e ao ouvir os sujeitos participantes de nossas pesquisas, entendemos que conceituar aposentadoria é tarefa complexa. Para Ana, 52 anos de idade, aposentada desde 2006 aos 48 anos de idade, sem necessidade financeira de continuar trabalhando, a “aposentadoria foi trocar de emprego”. Saiu de um banco público e entrou em outro, a partir de sua aprovação em um concurso. Deixou um espaço laboral no qual exercia um cargo de expressão e liderança na hierarquia organizacional, era responsável por projetos importantes e coordenava outras pessoas, e foi para outro, no qual é subordinada e não tem autonomia para tomar qualquer decisão. Ela justifica sua troca de emprego com as seguintes palavras: Havia a sobrecarga. Eu ficava dez a doze horas por dia no banco A, havia as questões políticas, tinha que ter um jogo de cintura forte. Meu trabalho era prazeroso, mas estressante. Eu amava meu trabalho, mas estava cansada. Passei a trabalhar seis horas; saio com sol, o dia lindo! Vou trabalhar com muito prazer. Então isso é a minha aposentadoria. Para esta bancária as atividades laborais remuneradas que executa atualmente não se caracterizam como trabalho e sim como sua aposentadoria. Traz em sua concepção de trabalho a ambivalência e a contradição que citamos antes: espaço de poder e realização, e ao mesmo tempo de estresse e de fadiga. Questionada se pretende parar de trabalhar, encerrar sua carreira e se dedicar somente à fruição, ao lazer, nos disse que por enquanto não pensa nisso e tampouco consegue se imaginar nesta condição. Precisa do trabalho para viver, para se sentir útil. Ana é um exemplo da regularidade encontrada por Denton & Spencer (2009). A partir de estudos de diversos autores, foi constatado que a maioria das pessoas mudam de emprego várias vezes ao longo de uma vida de trabalho, às vezes com passagens intermediárias na situação de desemprego. Considerações finais Muitas são as definições para aposentadoria, embora a maioria dos autores concorde que se refere à ruptura com o trabalho remunerado. Voluntária ou involuntária, gradual ou inesperada, temporária ou permanente, sua complexidade se faz presente neste processo, não havendo um conceito que represente todas as situações. A 10 transição se apresentará mais fácil para as pessoas que construíram laços sociais independentes da sua vida profissional, e mais difícil para as que depositaram no trabalho todo o significado de sua existência. O que é, afinal, aposentadoria? Tanto esta categoria quanto “trabalho” não são passíveis de definições fechadas ou definitivas. Tal constatação é possível a partir da revisão de literatura e dos depoimentos de nossos entrevistados, cujas referências continuam pautadas no mundo do trabalho. Assim, aposentadoria pode ser morte social (e física), culpa e constrangimento e pode também se transformar em sentimento de dever cumprido, prazer e liberdade! Referências AUBERT, N. (org.). L´individu hypermoderne. Paris: Érés, 2006. BAUMAN, Z. Modernidade e Ambivalência, Rio de Janeiro: Zahar, 1999. BEAUVOIR, S. de. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BLANCHÉ, A.; RHÉAUME, J. Les mots de la retraite. Un tour d´horizon européen. Séminaire “Retraite et histoires de vie”. 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