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Tentativa de suicídio: um desafio à práxis do psicólogo
Vânia Maria Rocha de Oliveira Tatagiba1
Ao longo dos tempos o tema do suicídio interroga a humanidade fazendo aparecer o
pathos em sua dimensão enigmática. À luz de uma vinheta clínica discutiremos um caso de
tentativa de suicídio, no qual o sujeito atendido em um hospital de emergência expressa sua
angústia, seu mal estar diante da vida e sua impossibilidade de simbolizar o real que o
acomete.
Na atualidade um número considerável de casos de tentativas de suicídios chega
diariamente aos hospitais de emergência e exigem ações imediatas. O paciente precisa ser
acolhido pela equipe multidisciplinar, garantindo assim a sua assistência.
É fundamental levar em consideração, nos casos de internação, os aspectos físicos como
a gravidade da lesão, a estabilidade emocional, a família e as relações sociais. No caso
específico de tentativas de suicídio, alguns desses aspectos, não são apreciados. É como se o
fracasso do paciente em sua tentativa de morrer incomodasse o profissional da saúde, que
considera inadmissível o fato de um sujeito “ocupar o lugar” de pessoas que lutam pela vida.
Portanto, pouco se tem a fazer e, assim, solicitam imediatamente um atendimento do
psicólogo. Dessa forma, cabe-nos destacar que a solicitação feita ao psicólogo para o
atendimento vem imputada de condutas rápidas, que demandadas pela instituição sugerem o
incômodo que tal assunto provoca.
Uma das questões que nos chama a atenção diz respeito ao profissional da saúde que
ainda se posiciona diante das tentativas de suicídio de forma preconceituosa. Esse
posicionamento dificulta a relação terapêutica, pois “qualquer perturbação psíquica aparece
não para ser tratada, compreendida, e sim para ser eliminada, pois constitui um fator
ameaçador” (Moretto, 2013, p. 150). O psicólogo deve ter clareza dessas normas que se
concretizam nas condutas ditas institucionais, permitindo que esses sujeitos declarem seu
sofrimento, seu incômodo e não que os sufoquem.
A nossa proposta nesse trabalho consiste em à luz de um caso clínico, discutir questões
que concernem à atuação do psicólogo junto aos pacientes que realizaram uma tentativa de
suicídio. Mostrar como esse tema envolve uma teia enigmática que em tempos atuais ainda é
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Mestre em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Professora
titular de cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Estácio de Sá (Campos dos Goytacazes/RJ).
Psicóloga do Hospital Ferreira Machado, Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes.
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considerado um assunto tabu. Para elucidar tais inferências faremos algumas considerações a
cerca de um recorte clinico.
O mal estar e(m)cena
A paciente, que chamo de Helen, deu entrada no hospital de emergência com histórico
de tentativa de suicídio por intoxicação exógena, causada por ingestão de acido carbonato.
Trata-se de paciente de pouco mais de quarenta anos, casada, mãe de dois filhos do sexo
masculino com idade acima de vinte e dois anos. O período de hospitalização da paciente foi
de vinte e três dias, marcados pela dificuldade de Helen em se comunicar.
Na Clínica Médica, o caso de Helen, despertou o interesse da equipe que interrogava ser
um caso de paciente psiquiátrica. No prontuário, os registros revelaram um distúrbio
psiquiátrico relacionado ao comportamento depressivo (relatado pelo esposo) com uso de
medicamentos.
Na entrevista inicial, Helen demonstrou com linguagem gestual que entendia o que lhe
era dito, mas não tinha condições de falar. Ela fez algumas tentativas de se comunicar, mas o
esforço causou-lhe tosse e dor. Quando começou a falar Helen mostrou-se queixosa em
relação aos filhos, ao marido, apontando para intenso sentimento de abandono. O marido foi
descrito por Helen como um homem com “problemas de nervos, tenso e agressivo”. Relatou
que sempre se preocupou mais com o marido do que com ela, assim como vivia para cuidar
dos filhos, colocando-os em posição de dependência de seus cuidados.
Durante as entrevistas (totalizaram quatro) Helen insistia em falar do outro, seja marido,
seja filhos, nunca dela. Diante de pontuações sobre a sua posição ela ignorava e retomava as
questões que envolviam os filhos e o marido. Só próximo a sua alta que Helen pôde começar
a falar sobe si. Helen surge na cena trazendo a tona os problemas de saúde, relatando
alterações de humor “falo alto fico agressiva [se refere à fala com tom agressivo] e não
consigo me controlar”. Ao falar sobre isso sua expressão é de angustia, a mão fechada vai
para o peito e no rosto havia expressão de dor, só o tom da voz não muda, existia uma
constância na tonalidade (baixa e lenta). “Eu não tenho controle sobre isso, assim como
manter a família como era antes dos meus filhos saírem de casa”.
Ao dar voz a si própria, ao escutar sua própria mensagem pela via da pontuação do
psicólogo que Helen surge como sujeito. Foi nesse momento que se torna possível para ela
abordar o que lhe aconteceu, a saber, a tentativa de suicídio: “eu quis morrer porque uma voz
disse: ela vai morrer, ela não vai ver mais os filhos”. Esse foi o único momento em que foi
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observada uma mudança no tom de sua voz. Ao falar da “voz” que escutara, ela se aproximou
e em tom, bem baixo, falou sobre o ocorrido.
Ao relatar sobre a tentativa de suicídio Helen estabeleceu um laço com a vida,
afirmando que não queria mais morrer, queria ver os netos, queria seguir em frente. A
internação hospitalar e a escuta psicológica foram dois elementos apontados por Helen como
cruciais no que se refere à retomada de sua vida. Após a alta Helen foi encaminhada para
tratamento psicológico ambulatorial.
A voz que embaraça
O sintoma como linguagem refere-se à expressão simbólica de um determinado conflito
expresso tanto na neurose histérica como em outras neuroses (Freud, 1926-25/1996). Diante
do adoecimento, o sujeito pode transformar seu sintoma em um ganho secundário, um
representante simbólico de seu sofrimento. O adoecer revela sinais, organizados como
patologias como, por exemplo, é o caso da histérica que tem determinada parte do corpo
erotizada como polo de sofrimento.
É importante observar que as tentativas de suicídio são muitas vezes taxadas
pejorativamente de atos histéricos, todavia a pessoa que tenta o suicídio, como mostra Kovács
(1992, p. 192) “tem alto risco de repetir o ato, se não receber a ajuda de que necessita,
procurando formas mais letais e eficazes”.
Macedo e Werlang (2007, p. 10) realizaram pesquisa com casos de tentativa de suicídio
e concluíram que:
A tentativa de suicídio, como ato de buscar a própria morte, é um ato-dor do
qual resulta do predomínio do irrepresentável que faz com que a dor psíquica
tenda a ser evacuada via ato. O ato-dor é um ato decorrente da dor que o
traumático provoca, é um ato de descarga de intensidades. Entender a
tentativa de suicídio como um ato-dor é reafirmar a dor psíquica como força
geradora de ato.
É interessante notar que as autoras citadas anteriormente indicam que o comportamento
suicida implica em uma ruptura radical do sujeito, que busca se livrar de uma dor psíquica
insuportável. Algo do impossível do irrepresentável, que tem como consequência o ato em si.
Dai a palavra “ato-dor”. Uma dor psíquica precisa ser escutada.
Suicídio eis aí uma urgência que faz aparecer um sujeito como resto, dejeto. Tratar o
suicídio pela perspectiva de uma urgência subjetiva pressupõe que haja um sofrimento
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insuportável para o sujeito e que este é “impossível de ser colocado em palavras e imagens”
(Moura, 2000, p. 14).
A tentativa de suicídio deve ser considerada como um sintoma, ele revela uma
linguagem, uma expressão simbólica de um determinado conflito expresso tanto na neurose
histérica como em outras neuroses como o demonstrou Freud (1926-25/1996). No caso de
Helen o sentimento de abandono apareceu em vários momentos diferentes nas entrevistas,
traduzido no seu incômodo diante da indiferença dos filhos, afastamento do marido,
incompreensão da mãe.
O abandono do qual Helen se refere e que não consegue lidar, traduz-se como uma
experiência de desamparo. O desamparo inicial é inerente à constituição do sujeito e define a
condição do bebê humano ao nascer. Nessas condições, as tensões experimentadas pelo
organismo são maiores e o psiquismo não pode ainda dominá-las, necessitando de uma
intervenção externa. Esse pressuposto apresentado por Freud foi expresso no “Projeto para
uma psicologia científica” (1950-1895/1996), dando a entender que a condição do desamparo
retorna em momentos de fragilidade na vida do sujeito, cujo correlato é a angustia.
A angústia, por conseguinte, é, por um lado, uma expectativa de um trauma
e, por outo, uma repetição dele em forma atenuada. Assim os dois traços de
ansiedade que notamos tem uma origem diferente. Sua vinculação com a
expectativa pertence à situação de perigo, ao passo que sua indefinição e
falta de objeto pertencem à situação traumática de desamparo – a situação
que é prevista na situação de perigo (Freud, 1926-25, p. 161-162).
Cabe destacar que nem sempre o abandono é real, mas mesmo assim, é encarado como
uma perda definitiva, portanto, aterrorizadora. No caso de Helen, a tentativa de suicídio se
deu sob o comando de uma voz que soa como um aviso de que ela vai morrer e não mais verá
os filhos. O sentido dado por Helen à voz que ela escuta é de afirmação. A entoação se dá pela
modulação do som. No caso de Helen a frase foi dita de forma suave e num tom baixo (como
falava normalmente) sem expressão de surpresa, medo ou qualquer desconforto, assim como
obediente e dócil à ordem recebida.
Nota-se que a voz é imperativa, uma modalidade de comunicação, uma ordem a ser
cumprida, sem possibilidade de recusa. Como um ato que deve ser realizado, uma posição de
submissão a uma terceira pessoa. Quando na frase aparece o sujeito “ela” na terceira pessoa
do singular, ou seja, uma pessoa qualquer, de quem ou do que falou Helen? Lacan partindo do
que fora elucidado por Freud sobre o inconsciente, traz sua contribuição ao designar o lugar
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ocupado pelo significante na linguagem, e fundamenta que o Inconsciente é estruturado como
linguagem.
Qual seja, a maneira certa de responder à pergunta “Quem esta falando?”,
quando se trata do sujeito do inconsciente. Pois essa resposta não poderia
provir dele, se ele não sabe o que diz e nem sequer que está falando
[...](Lacan, 1960/1998, p. 815).
Freud (1912/1996, p.280) afirma que “a mente do paciente histérico acha-se cheia de
ideias ativas, porém inconscientes; todos os seus sintomas procedem de tais ideias. É, na
verdade, a característica mais marcante da mente histérica ser governada por elas”. Em sua
tentativa de morrer através da ingestão de acido muriático, Helen fez um ato invasivo onde o
corpo é tomado como algoz. Aqui o corpo é sintoma e realização de desejo e o sintoma
histérico o denuncia.
Uma pessoa em sofrimento diz Freud (1914/1996), tem pouco interesse pelo mundo
externo, concentrando-se em seu sofrimento, ela “retira o interesse libidinal de seus objetos
amorosos: enquanto sofre, deixa de amar” (Idem, p. 89). O interesse que é desviado dos
objetos volta-se para seu próprio eu, enquanto a crise não for superada.
Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas, num último
recurso, devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos
destinados a cair doentes se, em consequência da frustração, formos
incapazes de amar (Idem, p. 97).
Uma atitude narcísica pode ser necessária para garantir ao sujeito a vida. A crise recolhimento e reunificação – provoca um investimento no eu. A dor de uma perda remete
como já apontamos ao desamparo, ao abatimento, à tristeza, à infelicidade, à depressão.Freud
(1917-15/1996)orienta-nos acerca da existência de características similares às citadas acima,
tanto no luto como na melancolia.
Considerações Finais
Casos como o de Helen mostram as encruzilhadas enigmáticas que envolvem as
tentativas de suicídio. O que pudemos aprender com Helen, foi que as tentativas de suicídio
evidenciam uma urgência subjetiva que faz surgir no ato um sujeito e a estrutura que o
suporta, seja ela neurose ou psicose.
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Consideramos que a intervenção do psicólogo nesse contexto hospitalar, mesmo que
breve, é de fundamental importância pela escuta provocadora, sua disponibilidade e a
possibilidades de inserir esse sujeito no movimento associativo da elaboração simbólica.
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Referências Bibliográficas
FREUD, S. (1912/1996) Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago
Editora, vol. XII.
_________ (1914/1996) Sobre o narcisismo uma introdução. Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, vol. XIV.
_________
(1917
-1951/1996)Luto
e
melancolia.Edição
standard
brasileira
das
obraspsicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, vol. XIV.
_________(1926-25/1996)Inibições, sintomas e ansiedade. Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, vol. XX.
_________(1950-1895/1996) Projeto para uma psicologia científica. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago
Editora, vol. I.
LACAN, J. (1998 /1960) Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano. In: Escritos. Rio Janeiro: Jorge Zahar.
MACEDO, M. M. K.; WERLANG, B. S. G. (2007) Tentativa de suicídio: o traumático via
ato-dor. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília, v.23, n.2, p.1-12.
MORETTO, M.L.T. (2013) O que pode um analista no hospital? São Paulo: Casa do
Psicólogo.
MOURA, Marisa Decat de. (2000) Psicanálise e Urgência Subjetiva. In: MOURA, Marisa
Decat de (Org.). Psicanálise e Hospital. 2 ed. Rio de Janeiro: Revinter Ltda.
KOVÁCS, M. J. (1992) Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo.
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