A COMPLACÊNCIA DOS CONCEITOS
Waldemar Zusman *
Há quem não se interesse pelo funcionamento da vida mental, como
se a saúde dos órgãos fosse mais importante que tudo. É mais fácil
fazer um check up, onde tudo é mensurável, do que lidar com
conceitos, que não se pode medir, nem pesar e nem contar. Há quem
queira passar pela vida mental sem descer a mínimas profundidades
pelo temor à loucura. Todos concordam com o risco da alienação
social, mas a alienação pessoal pode acometer até mesmo os que se
propõem estuda-la. Há quem busque a psicanálise para melhor fugir
dela, como ha delegados e fiscais que escolhem a carreira que melhor
lhes garanta a impunidade de seus próprios crimes.
Afinal, o que é um conceito?
Conceitos são palavras, são abstrações de experiências, dotadas de
notáveis
propriedades
abarcativas,
que
se
alicerçam
na
universalidade e na constância de suas conjunções. Por exemplo,
quem fala de feijoada (um conceito), não precisa enumerar seus
componentes, que é suposto estarem ali, e sempre, numa conjunção
constante.
Para entender conceito, nenhuma experiência é mais convincente
que a de
Helen Keller,
que nasceu cega, surda e muda. Dos
sentidos, só lhe restavam o tato o gosto e o olfato. Ainda assim, era
inteligente. Há quem disponha dos cinco sentidos, sem o ser. Helen
tinha uma professora. Para ela, água era algo que lhe servia de
complemento necessário à extinção da sede. Era uma demanda que
não tinha nome Ela não conhecia a palavra. Um dia a preceptora
levou-a à fonte e enquanto Helen matava a sede, a preceptora, na
outra mão, tamborilava
em Braile, as letras da palavra a-g-u-a.
Helen, de repente, percebeu, e, num deslumbramento, descobriu o
conceito de água. E, mais ainda, descobriu que as coisas tinham
nome, que. tudo podia ser nomeado. Descobriu a linguagem ! Ela
tinha agora um conceito universal, que designava aquela água e todas
as águas do mundo, a que lhe matara a sede e todas as demais a que
ela podia se referir mesmo que não estivesse com sede Ela sabia,
agora, de todas as águas, internas e externas.
Esse é o milagre do conceito, que define o salto do sígnico ao
simbólico, do singular ao universal, do animal ao humano, do
individual ao genérico.
O conceito é tudo isso: singular e genérico, abstrato, mas referido à
experiência de que deriva, local e universal a um só tempo. O conceito
tem também, movimentos de retração e expansão, uma sístole e uma
diástole.
Ainda assim os conceitos têm fronteiras. Eles se expandem nas
metáforas e dão fundamento à retórica, mas não se desligam tanto de
suas propriedades originárias., nem da experiência que lhes deu
origem. Helen Keller, por exemplo, não poderia chamar de água tudo
o que não fosse sólido. O conceito tem suas complacências, mas isto
não o torna passível de todas as complacências, ou perde suas
conotações.
Ninguém se sente violentando a natureza das arvores quando diz que
as tábuas do assoalho tem uma junção macho-fêmea.
Em muitas línguas as palavras são masculinas ou femininas. O sexo
preside a nomeação das coisas nomeadas. Isso não parece estranho,
ainda que pudesse ,ou devesse ser. Ninguém espera, por exemplo,
que o macho e a fêmea de um assoalho procriem, nem acha imoral ter
um assoalho assim. Simplesmente não confunde a metáfora com o
que ela representa.
Mas quando se fala em casamento de homossexuais a maioria sente
que o conceito de casamento passou por uma transgressão que
excede o limite da complacência, eqüivale a chamar adultério de
terceirização, ou apropriação índébita de dinheiros públicos de
privatização.
Quem é a favor do casamento de homossexuais logo acusa de
preconceito o argumento antagônico. Mas nem sempre se trata de
preconceito.
Cada ser humano tem o direito de viver só ou com alguém. Ninguém é
obrigado a se casar e nem a ser solteiro. Mas a experiência da solidão
é tão avassaladora, tão insuportável que
todas as atividades
gregárias, homo ou heterossexuais, lúdicas ou hostis, promiscuas ou
discriminativas, valem pelo que contem de convívio. O abandono a
que se sentem condenados os pacientes terminais e os velhos
asilados é muito pior que a doença que os condena à morte.
A onda de casamentos homossexuais, a que agora assistimos, quer a
consagração jurídica desta união e pretende extinguir o preconceito
que cerca este amor. A rigor, nem se pode nega-lo. As estatísticas da
AIDS estão aí para provar que os seres humanos são mais bissexuais
que heterossexuais, como não se pensava antes. Ocorre, agora, no
entanto, que as religiões e os partidos políticos querem faturar estas
evidências, já que uma maior tolerância cultural, refletida ma mídia,
lhes acirra o apetite paroquial.
O problema das homossexualidades , nem assim vai ficar melhor
compreendido nem solucionado. A homossexualidade é muito mais
um problema de identificação que de sexualidade. Quando a evolução
emocional de um ser humano segue caminhos tortuosos que o levam
a identificar-se com um outro ser humano de sexo contrário ao seu,
instala-se aí uma um conflito que não tem fim, tanto para os que se
assumem como para os que não se assumem. É uma pena que as
estruturas jurídicas adiantem normas de aparência revolucionária,
democrática e humanitária, mas de fraco entendimento vivêncial.
A complacência dos conceitos é um risco mais temível do que o que
se imagina. Quando uma cidade inteira decide matar o corcunda ou a
”velha feiticeira”, e todos se unem para esta execução, a unanimidade
da decisão nada tem a ver com a democracia. A unanimidade
tranqüiliza,
mas
não
garante
o
acerto
Os
tormentos
da
homossexualidade não se extinguem com a homologação jurídica
porque lhes falta é a homologação biológica e emocional.
*Psicanalista Didata.
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