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O ESTADO DE S. PAULO
DOMINGO, 26 DE FEVEREIRO DE 2012
Reportagem Especial ✽
● No
Declínio da pesca
de toneladas, foi a produção total
de pesca do mundo em 2009
mundo
89 milhões
CADÊ O
PEIXE QUE
ESTAVA
AQUI?
Estatísticas oficiais confirmam o que
dizem os caiçaras: 2011 foi o pior ano
da pesca no Estado de São Paulo
Herton Escobar / TEXTOS
JF Diório / FOTOS
● Recurso
finito
ENVIADOS ESPECIAIS A UBATUBA
S
imãoCruz,de48anos,pescador, filho de pescador,
nascido e criado na vila de
pescadores de Camburi, a
praiamais aonortedo litoral paulista, entre Ubatuba e Paraty.
Um autêntico caiçara. Passou quase
a vida toda no mar, pescando com
sua canoa de madeira, Kelly, e servindoo que trazia do mar no restaurante
que seu pai lhe deixou, o Bar do Simão, a poucos passos da praia. Peixe
mais fresco que isso, impossível.
De uns tempos para cá, porém, o
peixe que abastece ageladeira dorestaurantenão étrazido mais das águas
da baía à sua frente, à bordo da canoa
Kelly. Chega de carro, pela estrada,
encomendado de uma peixaria em
Paraty, a 30 quilômetros de distância. As redes de pesca de Simão não
vão para o mar faz tempo. Estão acumulando poeira do lado de fora do
restaurante,emboladas sobreumbote de alumínio.
“Faz dois meses que não largo rede
nomar”,contaSimão,entreumcliente e outro. “O peixe é tão pouco que
não vale a pena. É perda de tempo.”
O mar de São Paulo não está para
peixe. Literalmente. E não é só em
Camburi. Nem só para o Simão. Nem
é só há dois meses que o problema
começou. Segundo pescadores artesanais da região ouvidos pelo Estado, a quantidade de peixe no litoral
paulista vem caindo há pelo menos
uma década.
“Cada ano fica pior”, diz o jovem
caiçara Fabio Oliveira da Conceição,
de 28 anos, filho do “seu Inglês”, um
dospescadoresmais antigosdeCamburi. “Ainda dá para sobreviver, mas
não tá fácil. Não é mais como antigamente, quando eu era moleque e nadava no meio dos peixes aqui na
praia”,lamentaele, aindadeterminado a não abandonar a profissão.
Estatísticas oficiais confirmam a
história dos pescadores. Segundo o
Instituto de Pesca de São Paulo, o volume de pescado desembarcado no
Estado em 2011 foi o menor dos últimos45 anos:cerca de 20,5 mil toneladas, 20% menos que há 10 anos e 60%
menos que há 20 anos.
O cerco flutuante na praia de Camburi,deondeConceiçãodizjátertirado8 toneladas depeixe, hoje não rende “nem uma caixa” de pescado por
dia, segundo ele.
Na vila vizinha de Picinguaba, um
pouco mais ao sul, a situação é a mesma. “Se fosse depender da pesca, hoje meus netos estavam passando fome”, diz o pescador Claudeci Castro
de Paula, o Zico, de 55 anos. Todas as
manhãs, bem cedinho, ele sai sozinho num barco a motor para recolher a rede de 200 metros que larga
esticada no mar durante a noite, com
as pontas marcadas por boias de isopor com bandeirinhas do Brasil. Numa dessas saídas, acompanhadas pelo Estado, Zico puxa metro após metrode rede vazia. Só aqui e ali aparece
um peixe. No final, 10 corvinas e 3
vermelhos,somando 14quilosdepescado – média de 700 gramas de peixe
para cada 10 metros de rede.
“Melhor pouco do que nada, né?”,
avalia Zico, tentando manter o bom
humor. “Se fosse tudo vermelho, até
que tava bom”, completa o caiçara,
referindo-se ao peixe de maior valor,
MARCUS CARNEIRO
PESQUISADOR CIENTÍFICO DO INSTITUTO
DE PESCA DO ESTADO DE SÃO PAULO
“Se estamos vendo esse declínio com
os dados que temos, imagine se
tivéssemos todos os outros dados de
que precisamos. O valor real da queda
é provavelmente muito maior que o
que podemos enxergar.”
MARIA CRISTINA CERGOLE
CHEFE DO ESCRITÓRIO DO IBAMA PARA O
VALE DO PARAÍBA E LITORAL NORTE
“Os pescadores acham que o peixe é
um recurso interminável, mas não é. Os
recursos pesqueiros são renováveis,
mas se você não deixar que eles se
renovem, acaba mesmo.”
que ele vende por R$ 15 o quilo – o dobro
do preço da corvina.
Segundo Zico, faz uns cinco anos que
apescacomeçoua“fracassar”emPicinguaba. “Antigamente eu não dava conta
de sair assim sozinho, não. Tinha de trazer gente pra ajudar, de tanto peixe que
pegava.” Todas as espécies diminuíram
de quantidade e de tamanho, diz ele. Algumas praticamente desapareceram
das redes. “Tem garoto aqui na vila que
nem sabe o que é um xaréu.”
A culpa, segundo os caiçaras, é dos
“barcos grandes” que pescam em mar
aberto, longe da costa, onde os barcos
menores da pesca artesanal não conseguem chegar. “Como é que a gente vai
matar alguma coisa aqui se eles já matam tudo lá fora, antes de o peixe encostar?”, pergunta Zico. “O peixe nem chega mais pra nós.”
“Cadê a cavala? Cadê a sororoca? Não
veio”, reclama Benedito Correia da Silva, o “Seu Pu”, de 78 anos, pescador
maisvelhode Picinguaba, umadascolônias caiçaras mais tradicionais de São
Paulo. “Do ano passado pra cá não tá
dando mais nada, só mixaria”, diz ele,
hoje aposentado, com a pele manchada
de sol e os olhos nebulosos de catarata.
Tecnologia. Alguns barcos industriais,
dizem os caiçaras, têm redes de até 40
quilômetrosdeextensão,suficientespara“fechar”omar dePicinguabaaté Ubatuba. Some a isso as tecnologias modernas de sonar, que permitem detectar
cardumes a grandes distâncias e com
grandeprecisão, eas chances deumpeixe escapar das redes é mínima.
“É muita aparelhagem, muita rede.
Como é que o peixe vai escapar? Não
tem como!”, esbraveja Pu. “Antes a gente achava o cardume no olho, debruçado na proa. Agora os caras ficam só
olhando pro computador, não precisa
nem olhar pra água.”
A sardinha, por exemplo, costumava
ser pescada somente à noite, de preferêncianaLua nova(quando émais escuro), porque os “olheiros” ou “espias”
das embarcações – mesmo dos barcos
grandes – localizavam os cardumes visualmente, guiados pela luminescência
do plâncton marinho que era “excitado” pela movimentação dos peixes, formando uma “mancha luminosa” no
mar. “Hoje se pesca sardinha de dia, de
noite, com qualquer Lua, a qualquer hora”, diz a analista ambiental Maria Cristina Cergole, chefe do escritório regionaldoIbama,comsedeemCaraguatatuba. “É claro que isso faz diferença.”
No caso da tainha, estudos mostram
que uma única traineira comercial captura mais peixes que todos os pescado-
Revolta. Benedito Correia
da Silva, o Seu Pu, reclama
dos barcos grandes que
não deixam os peixes
chegarem perto da costa
res artesanais do Estado de São Paulo
juntos. Até o fim da década de 1990, a
tainhaeraumaespécieexploradaprincipalmente pela pesca artesanal. A partir
de2000, diante deum colapso nos estoques de sardinha, muitas traineiras começaram a lançar suas redes também
sobre a tainha, para cobrir o prejuízo. A
quantidadedetainhasaoalcancedapesca artesanal, portanto, diminuiu.
“Opescadorartesanaltemumamobilidade limitada. Assim, qualquer coisa
que afeta sua área de atividade tem um
impacto direto sobre ele”, diz o pesquisador Marcus Henrique Carneiro, coordenadordoPrograma deMonitoramen-
to da Atividade Pesqueira, do Instituto
de Pesca de São Paulo.
“Eles (os barcos industriais) prejudicam os outros e eles mesmos”, avalia
Simão.Assim comováriosoutrospescadoresartesanais, eleacredita queasolução seria “parar de pescar por um tempo” para dar “uma trégua” ao peixes.
Como foi feito com a sardinha.
Em defeso. A sardinha-verdadeira
(Sardinella brasiliensis), um dos principais recursos pesqueiros das Regiões e
Sul e Sudeste, sofreu dois colapsos marcantes nos últimos 20 anos,provocados
pela sobrepesca. No década de 1970, em
Escasso. Em 200 metros de rede, Zico só pegou 14 quilos de peixe
seu auge, a produção chegou a ultrapassar 200 mil toneladas. Em 1990, caiu
para 32 mil. E em 2000, despencou para
17 mil toneladas.
Em resposta, dois períodos anuais de
defeso foram instituídos para proteger
a reprodução da espécie. Os estoques
escaparam do colapso e a produção voltouacrescer,masnuncavoltouaospatamaresde antigamente. Hoje, está na faixa de 80 mil toneladas.
Váriasoutrasespéciespossuemperíodos de defeso, em que a pesca é proibida. Comoaanchova, atainha, alagosta e
várias espécies de camarão. “O problema não é a legislação, é a falta de respeito a ela e a falta de fiscalização efetiva
para fazer cumpri-la”, diz Maria Cristina, do Ibama, reconhecendo as limitaçõesde seupróprioórgão. “Émuitodesrespeito. Muita denúncia.”
Fiscalizar os barcos grandes em altomar é extremamente difícil, o que deixa
os pescadores artesanais com a impressão de que “o pessoal do meio ambiente
só bate nos pequenos”, como diz Seu
Pu. Maria Cristina e Carneiro reconhecem que o impacto da pesca industrial é
muito maior, mas rejeitam a tese do
“bom selvagem”, que vive em perfeita
harmonia com o ambiente.
“Toda atividade tem o seu impacto”,
diz Maria Cristina.
As estatísticas estaduais deixam claro que a queda de produção afeta tanto
os barcos grandes quanto os pequenos.
Cerca de 30% da produção de pesca marinha do Estado vêm da pesca artesanal
e 70%, da industrial.
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CADÊ O PEIXE QUE ESTAVA AQUI?