A ESCRAVIDÃO AFRICANA TRÁFICO NEGREIRO Povos africanos desterrados e escravizados Na Idade Moderna, Portugal foi o primeiro país da Europa a realizar o comércio de escravos africanos. Isso foi possível porque os portugueses, ao longo dos séculos XV e XVI, dominaram muitas regiões no litoral da África, onde fundaram feitorias. Os conquistadores portugueses estabeleceram alianças com comerciantes e soberanos africanos e passaram a fazer tráfico de escravos através do Atlântico. Os primeiros escravos africanos destinaram-se às terras portuguesas na Europa e nas ilhas do oceano Atlântico que pertenciam ao governo português onde já havia sido iniciada a produção de açúcar. O tráfico negreiro era um comércio que unia interesses na África, Europa e América. Os navios dos europeus levavam mercadorias para a costa africana — como tecidos grosseiros, aguardente, tabaco e armas —, que eram trocadas por escravos. Posteriormente, esses escravos eram vendidos para os colonos americanos. Devido ao tráfico negreiro, milhões de africanos foram violentamente arrancados da África e transformados em escravos. Segundo o historiador Patrick Manning, em função do tráfico e de outras condições (epidemias, secas, fome), a população africana não apresentou crescimento até o século XX, pois o número dos que nasciam era praticamente igual ao dos que eram vendidos como escravos para fora do continente. Números da escravidão As estimativas sobre o total de escravos trazidos para a América e, especialmente, para o Brasil variam muito. Para toda a América, entre os séculos XVI e XIX, os cálculos vão de 10 a 20 milhões de escravos. Em relação ao Brasil, as estimativas elaboradas pelo historiador Herbert Klein apontam o desembarque de cerca de 4 milhões de africanos entre 1531 e 1855. Veja a tabela a seguir. Estimativas de desembarque de Africanos no Brasil 1531-1855 Período 1531-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1855 Total Nº de escravos 50 000 560 000 1 680 100 1 719 300 4 009 400 Como você pode observar pelos dados da tabela, a cada século o número de escravos importados aumentava. No século XVI, o primeiro da colonização, o número foi pequeno, quando comparado aos séculos seguintes, pois as atividades econômicas ainda eram relativamente reduzidas e grande parte da mão-de-obra era indígena. No século XVII, com a retomada da produção de açúcar e dos territórios que estavam em poder dos holandeses, a importação aumentou. No século XVIII, a diversificação da economia brasileira e, principalmente, a descoberta das jazidas de ouro no interior do Brasil fizeram crescer a necessidade de mão-de-obra. O tráfico negreiro foi legalmente extinto no Brasil em 1831, mas continuou como uma atividade ilegal até por volta de 1855. No século XIX, embora o período da atividade tenha sido menor, o tráfico foi ainda mais intenso do que nos séculos anteriores, e se destinava a abastecer principalmente a lavoura de café, que se expandia pelo sudeste do Brasil. O lucrativo tráfico negreiro As primeiras regiões do Brasil que receberam escravos africanos foram Bahia e Pernambuco, locais onde a produção de açúcar mais prosperou. Ao longo do século XVII, o tráfico de escravos chegou a dar mais lucro para a metrópole portuguesa do que o próprio negócio do açúcar. O trabalho dos cativos africanos foi de tal modo assimilado na produção açucareira que, em 1711, o jesuíta italiano André João Antonil (1650-1716), que viveu muito tempo na Bahia, escreveu: Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda. Viagem e mortes nos navios Depois de aprisionados em guerras entre os diversos povos na África, os africanos eram acorrentados e marcados com ferro em brasa para identificação. Eram então vendidos aos comerciantes europeus, americanos ou africanos que se estabeleciam no litoral da África e mandados para a América nos chamados navios negreiros. Segundo o historiador Charles R. Boxer, os navios negreiros saíam da África, em média, com 600 escravos. Já para o historiador brasileiro Manolo Florentino, entre 1810 e 1820 os navios negreiros transportavam em média 442 escravos, embora esse número variasse de acordo com o tipo e o tamanho das embarcações. Receando as possíveis revoltas dos africanos durante a viagem, os traficantes trancavam-nos nos porões dos navios. A viagem de Luanda (África) até o Recife (Brasil) durava geralmente trinta e cinco dias; até a Bahia, quarenta dias; até o Rio de Janeiro, cerca de dois meses. Nos escuros porões dos navios, o espaço era reduzido e o calor, quase insuportável. Além disso, a água era suja e o alimento, insuficiente para todos. Devido aos maus-tratos e às péssimas condições do transporte, calcula-se que entre 5% e 25% dos africanos morriam durante a viagem. Por isso, os navios negreiros eram chamados de "tumbeiros" (palavra referente a tumba) ou "túmulos flutuantes". Distinções entre escravos Era cruel o destino dos africanos que sobreviviam à viagem no navio negreiro. Chegando ao Brasil, eram vendidos geralmente no próprio porto, em leilões. Pouco tempo depois, já estavam trabalhando para seus novos proprietários nos engenhos de açúcar, nas plantações de algodão, na mineração. Trabalhavam também nos serviços domésticos, no artesanato ou nas cidades como "escravos de ganho", realizando trabalhos temporários em troca de pagamento, que era revertido, parcial ou totalmente, para o proprietário do escravo. Devido às maiores possibilidades de circulação e de ganho, a vida nas cidades era preferível para os escravos. Ali, eles podiam juntar algum dinheiro com suas tarefas e, eventualmente, conseguir comprar sua liberdade. A venda de um escravo urbano para uma fazenda no interior muitas vezes era uma forma de castigo usada pelos senhores. Os escravos que trabalhavam no campo eram chamados de "negros do eito", isto é, da lavoura. Os vários tipos de trabalho executados conferiam distinções entre os cativos. Os que trabalhavam no campo e na mineração viviam sob a fiscalização do feitor. Trabalhavam em média 15 horas por dia. Quando desobedeciam às ordens, podiam sofrer vários tipos de castigos: chicotadas, queimaduras, prisões etc. Esses castigos geralmente eram aplicados em público, para que os outros escravos também se intimidassem — o chamado "castigo exemplar". O excesso de trabalho, a má alimentação, as péssimas condições de higiene e os castigos deterioravam rapidamente a saúde do escravo. A maioria morria depois de cinco a dez anos de trabalho. Já os escravos domésticos, escolhidos entre aqueles que os senhores consideravam mais bonitos, "dóceis" e confiáveis, muitas vezes recebiam roupas melhores, alimentação mais adequada e melhores cuidados. Muitos outros fatores distinguiam os escravos, como, por exemplo, a aculturação (processo de adaptação cultural). Tinha menos valor o escravo chamado "boçal", recém-chegado da África, que desconhecia a língua portuguesa e o trabalho na colônia. Valia mais o "ladino", isto é, o escravo que entendia a língua portuguesa e já havia aprendido a rotina do trabalho. O jesuíta Antonil mostrou essas distinções entre escravos do ponto de vista dos senhores: Uns chegam ao Brasil muito rudes e muito fechados e assim continuam por toda a vida. Outros, em poucos anos saem ladinos e espertos, assim para aprenderem a doutrina cristã, como para buscarem modo de passar a vida. (...) Os que nasceram no Brasil, ou se criaram desde pequenos em casa dos brancos, afeiçoando-se a seus senhores, dão boa conta de si, e levando bom cativeiro, qualquer deles vale por quatro boçais. Mesmo entre os africanos "boçais", havia diferenças relativas às preferências e à experiência dos senhores em lidar com os escravos. Nos séculos XVII e XVIII, os africanos de origem sudanesa (interior da Guiné, na África ocidental) eram comprados por um preço maior, pois muitos senhores no Brasil os consideravam mais fortes e inteligentes. Entretanto, esses escravos também foram os líderes de muitas revoltas, especialmente nos séculos XVIII e XIX. Em função disso e de outras limitações impostas aos traficantes no século XIX, os africanos bantos (habitantes da África central, nas regiões de Angola e Congo) passaram a ser mais procurados. Os senhores os consideravam mais pacíficos e adaptados ao trabalho. A LUTA DOS ESCRAVOS Estratégias de resistência Os escravos reagiam contra a escravidão de diversas maneiras. Algumas mulheres, por exemplo, provocavam abortos para evitar o sofrimento futuro do filho. Outros cativos chegaram a praticar o suicídio, enforcando-se ou envenenando-se. As fugas individuais e coletivas eram constantes. Alguns desses escravos fugidos procuravam a proteção de negros livres que habitavam as cidades. Outros formavam comunidades com organização social própria e uma rede de alianças com diversos grupos da sociedade. Essas comunidades eram chamadas de quilombos. Além da fuga, rebelião ou violência contra senhores ou feitores, os escravos criaram outras estratégias de resistência à escravidão. Faziam corpo mole no trabalho, isto é, reduziam ou paralisavam suas atividades. Muitas vezes, sabotavam a produção quebrando ferramentas ou incendiando plantações. Na produção do açúcar, por exemplo, a sabotagem dos escravos era uma ameaça constante. Fagulhas de madeira lançadas nos canaviais provocavam incêndios, dentes quebrados jogados na moenda do engenho podiam inutilizar o maquinário e arruinar a safra ou comprometer a produção. Negociação e conflitos As "negociações" entre senhores e escravos também faziam parte do cotidiano escravista. Assim, segundo os historiadores João José Reis e Eduardo Silva, muitos escravos cumpriam as exigências de obediência e trabalho em troca de um melhor padrão de sobrevivência (alimentos, vestuários, tratamento) e da conquista de espaço para a expressão de sua cultura, organização de festas etc. Um exemplo de negociação e conflito aparece claramente no documento transcrito a seguir, que contém trechos de um tratado proposto por um grupo de escravos rebeldes ao senhor de engenho de Santana de Ilhéus, Bahia, em 1789: Meu senhor, nós queremos paz e não queremos guerra: se meu senhor também quiser nossa paz há de ser nessa conformidade, se quiser estar pelo que nós quisermos, a saber: Em cada semana nos há de dar os dias de sexta-feira e de sábado para trabalharmos para nós não tirando um destes dias por causa de dia santo. Para podermos viver nos há de dar rede, tarrafas e canoas. Os atuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com a nossa aprovação. Poderemos plantar nosso arroz onde quisermos e em qualquer brejo, sem que para isso peçamos licença, e poderemos cada um tirar jacarandás ou qualquer pau sem darmos parte para isso. A estar por todos os artigos acima, e conceder-nos estar sempre de posse da ferramenta, estamos prontos para o servirmos como dantes, porque não queremos seguir os maus costumes dos mais engenhos. Poderemos brincar, folgar, e cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos impeça e nem seja preciso licença. Estudando essas várias formas de resistência, autores de obras mais recentes mostram que os escravos, na medida de suas possibilidades, transformaram o seu tempo, ora promovendo uma luta aberta contra a escravidão, ora até mesmo adaptando-se ao sistema, para reduzir seus aspectos mais perversos. Essas constatações, entretanto, não atenuam a violência que era própria da escravidão: Durante as caminhadas nos sertões africanos, nos barracões das feitorias, a bordo dos navios tumbeiros ou nas cidades e plantações, o cativo lutou, como pôde, contra a escravidão. Trabalhava mal, fugia, aquilombava-se, roubava, assassinava senhores e feitores, organizava revoltas e insurreições. Quilombo dos Palmares Entre os tipos de resistência à escravidão, a formação de grupos de escravos fugidos era freqüente na América. No Brasil, esses grupos recebiam o nome de quilombos ou mocambos, e seus membros eram chamados de quilombolas, calhambolas ou mocambeiros. A palavra quilombo é de origem africana e significa população, união. A resistência quilombola foi uma forma de luta escrava freqüente em vários períodos e regiões do Brasil. Desde o século XVII até os anos finais da escravidão, muitos africanos e seus descendentes continuaram fugindo e se reunindo em quilombos, construindo histórias de luta pela liberdade. Há vários estudos sobre quilombos em São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco. Embora a população dos quilombos fosse composta principalmente de africanos e seus descendentes, havia também entre eles indígenas ameaçados pelo avanço europeu, soldados desertores, gente perseguida pela justiça ou simples aventureiros e vendedores. A vida socioeconômica dos quilombos estava ligada a uma série de atividades: agricultura, caça, coleta, mineração e comércio. Seus integrantes sustentavam-se por meio de alianças "clandestinas" com escravos de ganho, libertos e homens livres, principalmente comerciantes. O Quilombo dos Palmares foi um dos maiores do Brasil colonial. Recebeu esse nome porque ocupava uma extensa região de palmeiras, situada no atual estado de Alagoas. Na época, a região de Palmares pertencia à capitania de Pernambuco. Várias expedições militares foram organizadas para destruir Palmares. Apesar disso, o quilombo resistiu por 65 anos (1629-1694), chegando a ter, segundo o governador de Pernambuco na época, aproximadamente 20 mil habitantes. Esse número provavelmente foi aumentado pelo governador, que, assim, pretendia justificar o fracasso das primeiras expedições militares enviadas contra Palmares. Em Palmares, os quilombolas criavam gado e cultivavam milho, feijão, cana-de-açúcar e mandioca. Realizavam um razoável comércio com os povoados próximos. Para os senhores de engenho, o Quilombo dos Palmares representava um desafio permanente. Era um sinal concreto de que havia outro modo de vida possível para o escravo fugitivo, como mostra a carta do governador de Pernambuco, Fernão de Souza Coutinho, ao rei de Portugal, em 1671: Senhor, há alguns anos que negros fugidos ao rigor do cativeiro e engenhos desta capitania formaram povoações numerosas pelo interior entre os Palmares e matos. Crescendo cada dia em número se adiantam tanto no atrevimento com contínuos roubos e assaltos que afastam moradores desta capitania vizinhos aos seus mocambos. Este exemplo vai convidando os demais a fugirem por se livrar do rigoroso cativeiro que padecem. Teme-se que cresçam em poder e número. Creia V.A. não está menos perigoso este estado com o atrevimento destes negros (...) porque os moradores nas suas mesmas casas, e engenhos,têm os inimigos que os podem conquistar se resolvem a seguir tão pernicioso exemplo (...). Este sertão é tão fértil de metais, e salitre, que tudo lhes oferece para sua defesa pois muitos que fogem já são práticos em todos os ofícios. Quererá Deus ajudar-me para que consiga deixar esta capitania livre desta perturbação, que será para mim o maior prêmio de todos os serviços que a V.A. desejo fazer. Olinda, 1º de junho de 1671. Fernão de Souza Coutinho. O primeiro líder que se destacou em Palmares foi Ganga Zumba ("grande senhor"), governando o quilombo de 1656 a 1678. Pressionado pelos ataques dos colonos, Zumba fez um acordo de paz com o governador de Pernambuco. O acordo previa liberdade para os negros nascidos em Palmares com a condição de serem devolvidos aos colonos os escravos recém-chegados ao quilombo. O sobrinho de Ganga Zumba, Zumbi, liderou o grupo que não aceitava esse acordo. Zumba foi destituído e assassinado, e Zumbi passou a liderar Palmares, comandando a luta contra vários ataques ao Quilombo. Em 1687, o governo e os senhores de engenho contrataram o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho e seus comandados para atacar Palmares. Em 1692, o ataque se realizou. O plano de Jorge Velho era cercar o quilombo e matar todos os seus membros. Liderados por Zumbi, os quilombolas defenderam bravamente sua liberdade. Milhares de pessoas morreram nessa luta em que os bandeirantes foram derrotados. Houve, entretanto, novo ataque comandado por Jorge Velho ao Quilombo dos Palmares. Dessa vez, o governo enviou ajuda aos bandeirantes: cerca de 6 mil homens, todos bem armados. Os quilombolas não tinham armas e munições suficientes, mas ainda assim resistiram durante cerca de um mês. Ao final do longo combate, o quilombo foi destruído e sua população, massacrada. Zumbi conseguiu escapar ao cerco, fugindo pela mata com um pequeno grupo de companheiros. Dois anos depois, após muitas perseguições, foi preso e morto, em 20 de novembro de 1695. Cortaram-lhe a cabeça, que foi exposta em praça pública, na cidade do Recife. Matando Zumbi, os senhores de escravos pretendiam intimidá-los. Entretanto, a memória de Zumbi permaneceu viva como símbolo da resistência negra à violência da escravidão. O dia de sua morte (20 de novembro) é lembrado atualmente como o Dia da Consciência Negra. Do passado ao presente, a luta contínua dos movimentos negros tem propiciado algumas conquistas sociais aos afro-descedentes. Entre elas, o reconhecimento, na atual Constituição brasileira, do direito dos descendentes de quilombolas às terras dos quilombos. Essas terras estão sendo gradativamente demarcadas e entregues legalmente aos membros dessas comunidades, espalhadas por todo o país. Outra conquista obtida, e que consta da Constituição, foi a definição do racismo como crime. CULTURA Principais grupos africanos O tráfico negreiro importou escravos das mais diversas regiões da África. Entre os principais grupos africanos trazidos para o Brasil, destacam-se os bantos e os sudaneses. Os bantos eram originários da África central, geralmente de Angola e Congo. Foram levados principalmente para Pernambuco, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Sua influência cultural espalhou-se por várias regiões do Brasil. Os sudaneses provinham das regiões africanas de Daomé (Benin), Nigéria e Guiné, na África ocidental. Foram levados principalmente para a Bahia. Apesar de os africanos terem chegado ao Brasil sob as mais penosas condições e de terem sofrido, aqui, vários tipos de violência (física, cultural, religiosa), diversos aspectos e características da cultura africana estão presentes nas vivências culturais brasileiras. Essa presença cultural é marcante em diversos campos, como, por exemplo, a literatura, o vocabulário, a música, a alimentação, a religião, o vestuário e a ciência. Espalhada por todas as regiões do país, a cultura africana integra o modo de ser, pensar e viver da população brasileira, assim como o trabalho do africano e de seus descendentes marca a economia brasileira ao longo de sua história, no passado e no presente.