UNIVERSIDADE DO GRANDE RIO PROF. JOSÉ DE SOUZA HERDY UNIGRANRIO
ESCOLA DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS, LETRAS, ARTES E HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
AS REPRESENTAÇÕES IDENTITÁRIAS DO FUNK NA BAIXADA
PATRICIA LUISA NOGUEIRA RANGEL
Rio de Janeiro
2014
UNIVERSIDADE DO GRANDE RIO PROF. JOSÉ DE SOUZA HERDY UNIGRANRIO
ESCOLA DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS, LETRAS, ARTES E HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E CIÊNCIAS
HUMANAS
AS REPRESENTAÇÕES IDENTITÁRIAS DO FUNK NA BAIXADA
Dissertação apresentada à Universidade do Grande
Rio Prof. José de Souza Herdy – Unigranrio como
requisito para obtenção do título de Mestre em
Letras e Ciências Humanas.
Profº Dr. José Geraldo da Rocha
Orientador
Rio de Janeiro
2014
CATALOGAÇÃO NA FONTE/BIBLIOTECA - UNIGRANRIO
R196r
Rangel, Patricia Luisa Nogueira.
As representações identitárias do Funk na Baixada / Patricia Luisa Nogueira Rangel. – 2014.
142 f. ; 30 cm.
Dissertação (mestrado em Letras e Ciências Humanas) –
Universidade do Grande Rio “Prof. José de Souza Herdy”, Escola de
Educação, Ciências, Letras, Artes e Humanidades, 2014.
“Orientador: Profº. José Geraldo da Rocha”.
Bibliografia: f. 136-142.
1. Educação. 2. Funk (Música). 3. Identidade social. 4. Baixada
Fluminense. 5. Àfrica – Aspectos culturais. I. Rocha, José Geraldo.
II. Universidade do Grande Rio “Prof. José de Souza Herdy”. III. Título.
CDD – 370
Agradecimentos
Agradeço primeiramente a Deus Jeová por me ter dado compreensão, paciência,
sabedoria e forças para conseguir conciliar trabalho, estudos e família.
Agradeço a todos aqueles que, de diversas formas, contribuíram para a concretização de
um sonho, que me acompanha desde que terminei a faculdade de letras pela UERJ.
Fica minha gratidão à amiga Cristina da Conceição Silva, que me acolheu e incentivou
em um contexto difícil da minha vida, confiando na minha capacidade intelectual e
como pesquisadora.
Ao meu orientador, José Geraldo da Rocha, que acreditou em mim e em meu trabalho, e
permitiu que eu seguisse com minhas perspectivas, concedendo-me autonomia, mas me
guiando e conduzindo até ao término de minha investigação.
Beneficiei-me das informações e comentários dos mestres, Daniele Ribeiro Fortuna,
Marcio Luiz Corrêa Vilaça, Idemburgo Pereira Frazão Felix, falecido Robson Lacerda
Dutra, que muito me ensinaram durante esta caminhada, enriquecendo os meus
conhecimentos, e apresentando-me novos caminhos.
A minha família, por estarem sempre comigo e serem pacientes e tolerantes com a
minha ausência, em alguns momentos, para dedicar-me a minha investigação. Foram
preciosos, pois me encorajaram e apoiaram sempre.
Agradeço também aos meus amigos, Cristina Silva, Edmilson Souza, Ione Carmo,
Andreia César, Alba, Margareth Salomão, que durante o percurso deste estudo
cooperaram com suas trocas de conhecimentos e informações.
Não posso esquecer-me das pessoas que me incentivaram durante minha trajetória, pois
restabeleciam minhas energias e contribuíam para o meu sucesso, como Simone Pêssoa,
Andréa dos Santos Silva, Ana Lúcia Rosa, Célia Faria, Débora Medeiros, Adriana Silva,
Luzinete, Alda Mata e Erick Augusto. Enfim, a todos os amigos e amigas e, em
especial, aos mais presentes nos momentos críticos dessa caminhada para me
aconselhar, orientar, fornecer material, tranquilizar, ouvir, fazer sorrir e ajudar a
refrescar minhas ideias.
Agradeço a todos os entrevistados, como Mc Debby, Mc Mary May, Mc Paixão, Mc
TG10 e aos demais, que se dispuseram a conceder uma parte do tempo para permitir que
eu tivesse conhecimento do mundo deles, o funk na Baixada Fluminense,
compartilhando, assim, suas experiências.
Ao Programa de Mestrado de Letras e Ciências Humanas da UNIGRANRIO, por abrir
espaço para o desenvolvimento desta pesquisa.
Ao programa da Capes, pelo incentivo com a taxa de estudo, que colaborou com o
andamento do meu trabalho.
A todos, muito obrigada!
Dedicatória
Dedico a Deus Jeová, pois sem uma explicação clara e óbvia, senti seu espírito agir em
mim, me acolhendo e levantando sempre que precisei.
Dedico esta dissertação aos meus filhos Paulo Roberto e Miguel e ao meu esposo
Roberto, que muito contribuíram com suas compreensões e carinho nos momentos que
não pude dedicar-me totalmente aos mesmos, em virtude de meus compromissos
acadêmicos.
Também dedico a mim mesma, pois consegui superar minhas limitações e minhas
dificuldades.
Resumo
O presente trabalho visa refletir sobre as práticas culturais do funk, levando em
consideração aspectos identitários a partir do movimento cultural, bem como se
apropriar do conhecimento social e cultural deste grupo na região da Baixada
Fluminense do Estado do Rio de Janeiro. Será abordada, inicialmente, sobre a influência
da cultura africana nos ritmos e danças populares, sendo traçado a trajetória e os
movimentos de resistência pelos quais os negros passaram até se firmarem e serem
aceitos culturalmente. Este trabalho considerará, também sobre a história do movimento
do funk no Rio de Janeiro - sua chegada, trajetórias de resistências e sua aceitação como
Patrimônio Cultural do Estado do Rio de Janeiro. Por fim, o andamento deste trabalho
procurará identificar os aspectos identitários adquiridos pelos jovens na Baixada
Fluminense, a partir da cultura do funk, através de relatos de funkeiros e simpatizantes
do movimento. Nesse sentido, esta pesquisa possibilitará conhecimento a cerca do
movimento do funk, o que possibilitará desconstruir pré-conceitos.
Palavras-chaves: Funk, Africanidade, Identidade Cultural, Baixada Fluminense.
Abstract
The present work aims to reflect on the cultural practices funk, taking into consideration
aspects of identity from the cultural movement as well as appropriating the social and
cultural knowledge of this group in the Baixada Fluminense region of State of Rio de
Janeiro. Will be initially addressed the influence of African culture in the rhythms and
folk dances, and traced the trajectory and the resistance movements by which blacks
began to take hold and be accepted culturally. This work will consider also about the
history of funk movement in Rio de Janeiro - his arrival trajectories of resistance and its
acceptance as the State of Rio de Janeiro Cultural Heritage. Finally, the progress of this
work will seek to identify the identity aspects acquired by young people in the Baixada
Fluminense, from the culture of funk, through reports funkers and supporters of the
movement. In this sense, this research will enable knowledge about the movement of
funk, making it possible to deconstruct preconceptions.
Keywords: Funk, Africanness, Cultural Identity, Baixada Fluminense.
Sumário
Introdução..................................................................................................................... 10
Capítulo 1: O legado da cultura africana no Brasil.................................................. 18
1.1 Travessia do Atlântico ao solo brasileiro .................................................... 18
1.2 Quilombo - uma representação de resistência negra................................... 23
1.3 O jongo: uma forma de cantar suas crenças e lamentos............................... 25
1.4 A capoeira: expressão e arte......................................................................... 29
1.5 Manutenção da religiosidade africana......................................................... 32
1.6 Samba: voz e ritmo negro............................................................................ 38
Capítulo 2: Música, Ritmo e Dança: o Funk entra em cena na periferia carioca.. 45
2.1 A música e o ritmo negro..............................................................................46
2.2 A dança e o tratamento dado ao corpo do negro ontem e hoje..................... 54
2.3 Periferia, subúrbio e favela: espaços geográficos e espaços sociais............. 58
2.4 A história do funk......................................................................................... 63
2.5 Funk: Patrimônio Cultural............................................................................ 75
Capítulo 3: Funk na Baixada Fluminense: uma questão de identidade..................85
3.1 Identidades: uma questão a ser abordada......................................................86
3.2 Globalização e mídia.....................................................................................90
3.3 A Baixada Fluminense e os bailes funks.......................................................94
3.4 Linguagem: reflexo do contexto social........................................................101
3.5 Funk: contextualização histórica dos diferentes estilos...............................109
3.6 A mulher entra em cena: sensualidade e sexualidade..................................123
3 Considerações Finais............................................................................................... 133
4 Referências Bibliográficas.......................................................................................136
- 10 -
Introdução
O funk nasce nos EUA, a partir do rhythmand blue, encontro da música negra
rural e profana, com a música negra urbana e protestante (gospel), entre as décadas de
30 e 40. Do rhythmand blue, surgiu o soul que originou o Black.
Esse ritmo toma conta do Rio de Janeiro na década de 70, no Baile da Pesada
produzido por Big Boy e Ademir Lemos, realizado na Casa de Show Canecão, no bairro
de Botafogo, bairro de classe alta (zona sul) do Rio de Janeiro. Com o cancelamento dos
bailes, concedendo espaços para os shows de Roberto Carlos e MPB acontecessem, eles
migram para subúrbios e periferias.
O ritmo, que antes era importado, ao chegar às periferias e favelas da cidade,
passa a ser ressignificado por sua população, dando origem ao que no momento é
conhecido como Funk carioca, apresentando características próprias, incorporando
elementos da cultura afro, uma vez que estas regiões são povoadas, na sua maioria, por
negros. No entanto, não se limitou a capital, mas tomou conta também de outras
regiões, como Baixada Fluminense.
Uma das minhas motivações quanto a esse trabalho foi a obrigatoriedade do
Ensino do Estudo da História e Cultura Afro-brasileira e indígenas pelas Leis 10.639/03
e 11.645/081. O 1º parágrafo do artigo 26 da Lei 11.645 de 10 de março de 2008
determina que o currículo oficial inclua:
Diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação
da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como
o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos
povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e
onegro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as
suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil (BRASIL, 2008).
A partir da Lei, vi a necessidade de construir um diálogo entre a cultura funk
com a relação étnicorraciais e a contribuição cultural africana, pois desde o início da
carreira de magistério, vivencio na Baixada Fluminense, através dos alunos, suas
preferências pelo ritmo funk, seja nos trajes, estilo de cabelo, na liberdade ou na
1
A Lei 10.639/03 alterou a LDB, Lei 9394/96, com a inclusão no currículo oficial a obrigatoriedade do
ensino da história e cultura Afro-brasileira. A Lei 11.645/08 alterou novamente a LDB, preservando a
história e cultura afro-brasileira e incluindo a história e cultura indígena.
- 11 linguagem. De forma que se trata de um movimento relacionado à identidade de um
grupo.
Compreendi, então, que caberia um estudo sistematizado sobre a manifestação
cultural do funk, que a cada dia cresce surpreendemente, em especial, na área dos
municípios que compõe a Baixada. Assim sendo, esta investigação vêm ao encontro da
realidade cultural de certos grupos, principalmente, os que têm como protagonistas
negros e pobres, excluídos por uma sociedade elitista.
Existe discriminação à diversidade, que não é respeitada, de forma que alguns
movimentos culturais, sobretudo, referentes à classe popular, são colocados a margem.
O funk se enquadra nesse aspecto cultural, pois se trata de um movimento criticado pela
sociedade dominante, uma vez que transgride a uma ordem vigente, no entanto, referese a um grupo que apresenta uma nova visão de mundo, capaz de formar novas
identidades.
Nesse sentido, Esta dissertação objetiva investigar questões identitárias
referentes ao movimento funk na área da Baixada Fluminense, no Estado do Rio de
Janeiro, considerando descrição dos bailes, linguagem, letras de músicas e outros
aspectos que os caracterizam como funkeiros. Entretanto, focaremos nos municípios de
Nova Iguaçu, Mesquita, Nilópolis, São João de Meriti, Belford Roxo e Duque de
Caxias, apesar de também fazerem parte dessa região, os municípios de Itaguaí,
Seropédica, Paracambi, Japeri, Queimados, Magé e Guapimirim.
Para desenvolvimento deste trabalho, abordaremos a temática em questão
através de pesquisa bibliográfica, consultando livros de autores respeitados no assunto,
documentos acadêmicos como teses e dissertações por visitas constantes em bibliotecas
acadêmicas. Igualmente, buscaremos também, através no Site do Capes, Domínio
Público, artigos de revistas e periódicos, informações acerca do tema em pauta.
Utilizaremos letras de músicas, reconhecendo sua importância por traduzirem
valores e sentimentos dentro de um contexto, uma vez que constitui um meio de
expressão que reflete uma posição frente à sociedade. Também contamos com os
recursos da internet, como sites de vídeos e músicas (discografia e letra de música) e
outros, levando em consideração que se trata de recursos usados pelo movimento como
meio de divulgação e de comunicação, uma vez que a sociedade discrimina e com isso
muitos dos eventos não são divulgados pelos meios tradicionais de comunicação.
Analisaremos algumas narrativas, tanto de funkeiros como de simpatizantes do
movimento nessa área, como quatro Mcs, sendo duas femininas e dois masculinos; mãe
- 12 de mc; dançarino; organizador de bailes; dois historiadores; um frequentador, mas
simpatizante. A partir das entrevistas realizadas, mediante uma conversa informal,
compreenderemos como esse processo se dá sob vários pontos de vista, devido à
diversidade de entrevistados e, assim, veremos como é representado o movimento funk
dentro de uma região, de certa maneira, historicamente marginalizada pela sociedade,
Baixada Fluminense. Os discursos proferidos são vozes de quem está à margem dessa
sociedade e suas experiências colaboram para formação de identidade.
Acrescentamos que os nomes artísticos dos Mcs foram preservados, mas os
nomes dos entrevistados, que são simpatizantes do movimento funk, foram
modificados, garantindo-lhes o direito de sigilo de suas confidências, sendo divulgados
aspectos diretamente relacionados aos objetivos da pesquisa.
O contato com os entrevistados se deu através de pessoas de meu convívio, de
forma que foi possível uma conversação amistosa, numa atmosfera cordial, em que
permitiu maior liberdade para expressarem suas opiniões e sentimentos. Os registros das
entrevistas, dentro do possível, foram na íntegra, usando as mesmas palavras dos
entrevistados. Em outros momentos, as entrevistas foram comentadas.
No primeiro capítulo – “O legado da cultura africana no Brasil”, visa analisar
as bases históricas das manifestações culturais negras, como o jongo, capoeira, a
religiosidade. Conforme Benjamim (1986) há relação entre passado e presente, de forma
que ao apropriar-se historicamente do passado não significa simplesmente conhecê-lo,
mas tomar para si uma reminiscência, que possibilitará a remoção da tradição ao
conformismo e permitirá questionamentos sobre cada vitória dos dominadores. Nesse
sentido, a apropriação do passado histórico responde as requisições do presente e faz
compreender como se deu o processo de resistência para se manter no cenário, em que
há predomínio de uma cultura dominante eurocêntrica.
Abordaremos também aspectos relacionados aos quilombos que, no Brasil
colônia, eram os refúgios dos escravos fugitivos e nesse espaço realizavam suas
manifestações culturais com liberdade, de forma que não havia necessidade de se
preocuparem com o que os brancos determinavam ser correto. O quilombo foi, portanto,
uma das grandes contribuições para que a cultura afro se mantivesse até hoje e
interferisse nas expressões culturais do povo.
Ainda nesse capítulo, consideraremos uma manifestação que foi o resultado da
diáspora africana e hoje é uma cultura por excelência, mas fora perseguido pela elite
dominante, o samba. Como cultura do povo, em que os negros e pobres eram figuras
- 13 predominantes, precisou criar táticas de sobrevivência a fim de manter sua identidade.
Atualmente, o samba e os envolvidos nessa manifestação cultural são respeitados,
contudo, a visão que se tinha era de que os sambistas eram vagabundos, malandros e
sem credibilidade.
O capítulo I é formado por seis seções, sendo a primeira denominada “Travessia
do Atlântico ao solo brasileiro”, em que trataremos sobre a história da chegada do
negro ao Brasil e o processo de escravidão até a abolição. Para elaboração deste capítulo
analisamos as obras de Rego (1968), Moura (1995), Sodré (1998), Rebelo (2002), Silva
(2003), Souza (2006), Alencastro (2008), D’Adesky (2009) e Mattelart (2010).
Nas próximas seções, iremos considerar as manifestações e suas ressignificações
para que se mantivessem no cenário, ou seja, o processo de resistência frente à tentativa
de anulação de sua cultura, e através dessas considerações é possível refletir sobre a
influência da cultura africana, nas culturas populares.
Os autores Schumaher (2005), Souza (2006), Arcanjo (2008), Carvalho (2002),
Silva (2003), Fiabani (2005) colaboraram para a segunda seção “Quilombo - uma
representação de resistência negra”.
A terceira seção é intitulada “O jongo: uma forma de cantar suas crenças e
lamentos” e construímos à luz das obras dos autores Silva (2006), Alcântara (2008),
Ribeiro (1984), Carmo (2012), Boy (2006). Para a quarta seção “A capoeira: expressão
e arte”, contamos com os trabalhos de Abib (2004), Santos (1993), Silva (2003),
Andrade (2010).
“Manutenção da religiosidade africana” é o tema que abordaremos na quinta
seção, e para sua elaboração consultamos as obras dos autores Strieder (2000), Moura
(1995), Souza (2006), Sant’Anna (2001), Rebelo (2002), Gardel (1995), Lima (1997) e
D’Adesky (2009).
O IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, através de
suas publicações, tornou-se instrumento importante para os estudos das seções
supracitadas.
Por fim, ainda no capítulo 1, a última seção é “Samba: voz e ritmo negro”, uma
cultura popular com base na cultura africana, que através de muita luta e estratégia
conseguiu afirmar sua identidade. E na construção dessa seção examinamos os seguintes
autores: Abib (2004), Silva (2013), Cascudo (1971), Sodré (1998), Vasconcelos (1991),
Tinhorão (1974), Costa (2001), Antonancci (2009), Sandroni (2008) e Silveira (2002).
- 14 No segundo capítulo, mostraremos como a música, ritmo e dança e sua relação
com o corpo são influenciados pela diáspora africana, principalmente na cultura
popular. O som do tambor é o principal símbolo da cultura africana na música, e no
funk, o som do tambor se apresenta representado por bateria eletrônica. Nesse contexto,
a dança e o movimento do corpo têm uma ligação com a música e o ritmo, entrando
numa sintonia.
Mesmo com a abolição da escravatura, as manifestações culturais sofreram
perseguições e eram marginalizadas, no entanto, a aceitação, pela sociedade, dessas
manifestações com seu reconhecimento como patrimônio cultural se deu no século XX.
Hoje, não conseguimos imaginar nossa sociedade sem o samba, sem a capoeira, a
religiosidade, o tambor, e outras manifestações.
Foi nesse mesmo século que o funk surge e inicia-se um resgate cultural afro do
passado, adaptado a modernidade, um diálogo do passado com o presente, que caiu nas
graças da periferia, subúrbios ou favelas, local em que se predominam negros e pobres.
Dessa maneira, o funk funciona como identidade desse grupo (negros e pobres)
discriminado e um elemento importante para a valorização de quem se sente excluído.
O segundo capítulo “Música, Ritmo e Dança: o Funk em cena na periferia
carioca” objetiva identificar a origem desta cultura na sociedade carioca, bem como
traçar a sua trajetória cultural até seu reconhecimento como Patrimônio Cultural do
Estado do Rio de Janeiro.
Este capítulo está divido em cinco seções, sendo a primeira e a segunda, “A
música e o ritmo negro” e “O tratamento dado ao corpo do negro ontem e hoje”,
respectivamente. Nas duas seções trataremos sobre a influência da música e o ritmo afro
na expressão cultural do povo e a relação da dança com o corpo, que está intimamente
ligado a essa música/ritmo. A dança no funk se torna um conjunto de passos em que
apresentam em comum raiz africana, pois insere em seus movimentos passos de
capoeira, jongo, samba, e outros, ou seja, a herança negra ganha novas expressões,
sendo recriada com novos significados.
Para a seção “A música e o ritmo negro” consultamos os seguintes autores:
Sodré (1998); Rodrigues (2010); Souza (2006); Ivanovici (2010); Karasch (2000);
Cascudo (1971); Vianna (1988); Afonso (2010); Mello (2003); e Dolores (2009). Já
para a seção “A dança e o tratamento dado ao corpo do negro ontem e hoje”,
continuamos trabalhando com os autores Rodrigues (2010) e Souza (2006), além de
- 15 também utilizarmos as obras os autores Antonacci (2009), Paixão (2006), Focault
(1991) e Silva (2003).
“Periferia, subúrbio e favela: espaços geográficos e espaços sociais” é o título
da terceira seção, em que abordaremos o surgimento desses espaços, bem como se deu
as manifestações culturais de origem afro no passado e atualmente, com o movimento
funk. Nesta seção,periferias são as regiões mais afastadas das regiões centrais,
geralmente possuem infra-estruturas precárias, e formada de uma população, na sua
maioria baixa renda; subúrbio se refere aos bairros que cercam o centro urbano da
cidade; e favela será caracterizada como construções precárias e desordenada (sem
planejamento) e sem uma política pública.
Atualmente, o termo “favela” foi substituído por “comunidade”. “Favela”
apresenta uma carga negativa e, em alguns momentos, ofensivo, pois está associado a
bandidos, traficantes e favelados. Torna-se menos desagradável usar o termo
“comunidade”, pois não classifica seus moradores e nem configura desaprovação da
sociedade, uma vez que nem toda comunidade é uma favela. No entanto, nesta
investigação, constantemente será usado o termo “favela” para enfatizar um grupo que
sobre discriminação racial, cultural, social e histórico, o que não descarta o uso de
“comunidade”. Os autores colaboradores desta seção são: Rocha (1995); Carvalho
(1995); Silva (2013), Medeiros (2006); Moura (1995), D’Adesky (2009) e Lopes
(2011).
A quarta seção “A história do funk” contamos a trajetória do movimento, que
surge em 1970, e o processo de resistência do movimento com todas as dificuldades.
Analisamos as obras de Vianna (1988), Medeiros (2006), Lopes (2011), Essinger
(2005), Sodré (1998), Moura (1995), Maggie & Rezende (2002), Facina (2009), Yúdice
(2004), Garcia (2001), D’Adesky (2009) e Chauí (1980).
E por fim, na quinta e última seção, cujo título é “Funk: Patrimônio Cultural”,
trataremos do processo de legitimidade do funk, uma vez que foi tratado como
movimento marginal e, portanto, sob vigilância do poder público e militar. Nessa seção
continuaremos apreciando as obras de Vianna (1988), Medeiros (2006), Lopes (2011),
Essinger (2005), que são algumas das referências sobre o universo funk, e
acrescentaremos Baumam (2005), bem como faremos citações de leis.
Ciente de que Baixada Fluminense é um espaço cultural e que seus filhos podem
ser protagonistas de uma história é que, neste terceiro capítulo –“Funk na Baixada
Fluminense: Uma questão de identidade” – objetivaremos analisar os aspectos
- 16 identitários do movimento funk, adquirindo, portanto, conhecimento acerca dessa
expressão cultural, dentro de um contexto social.
Apesar de no primeiro e segundo capítulos constar narrativas dos entrevistados,
é, no terceiro capítulo, que suas vozes se evidenciam com mais expressão. Narraremos
os acontecimentos, de acordo com Benjamin (1986), levando em consideração que nada
pode ser perdido para a história, principalmente a dos oprimidos, pois representa uma
forma de resistência aos conceitos históricos dos opressores.
Este capítulo está subdividido em cinco seções, sendo a primeira – “Identidade:
uma questão a ser abordada” - em que trataremos da definição de identidade sob a
visão de Hall (2001), Vianna (1988), Mattelart (2010), Woodward (2000), Silva. T
(2000), Bauman (2005), D’Adesky (2009), Yúdice (2004), Ortiz (2004) e Silva (1999).
Na segunda seção, intitulado “Globalização e mídia”, reconheceremos a
importância das mídias alternativas, principalmente recursos da internet, como
divulgação dos eventos e músicas promovidos pelo movimento, uma vez que a mídia
tradicional, televisão e rádio, dominados pela elite limita a participação das culturas
ditas populares. Consideraremos as obras de Hall (2001), Woodward (2000), Kellner
(2001), Escosteguy (2013), D’Adesky (2009), Medeiros (2006) e Lopes (2011)
Na terceira seção, “A Baixada Fluminense e os bailes funks”, faremos uma
breve apreciação da Baixada Fluminense, explorando detalhes sobre os bailes funks
nessa localidade. Para desenvolvimento deste capítulo, foram utilizadas as obras de
Duarte (2010), Marinho & Martinez (2013), Santos (2008), Bauman (2005), Mattelart
(2010).
Levando em consideração que há relação entre a linguagem musical do funk e o
contexto histórico social, é que na quarta sessão, “Linguagem: reflexo do contexto
social”, versaremos sobre marcas de oralidade refletida nas letras da música, como
gírias, palavrões, uso coloquial da língua. A base teórica consiste nos trabalhos de
Bagno (1999), Silva. T (2009), Hall (2001), Cunha & Cintra (2001), Sandmann (1993),
Aulete (2004), Maior (1998), D’Adesky (2009), Preti (1984), Lúzio&Rodrigues (2011),
Freyre (1988), Mello (1981).
Trataremos sobre os diferentes estilos musicais dentro do movimento, comoo
funk consciente, o funk melody, o funk proibidão e funk ostentação e como eles estão
relacionados diretamente ao modo de vida dos elementos do grupo, na sua maioria,
moradores da periferia e comunidades, na quarta seção, cujo nome é “Funk:
contextualização dos diferentes estilos de funks”. Os autores estudados são Loureiro
- 17 (2010), Bagno (1999), Essinger (2005),Vianna (1988), Aragón (2008), Hall (2001),
D’Adesky (2009), Bauman (2004).
A sensualidade e sexualidade feminina no cenário do funk é um tema polêmico
dentro da sociedade. Muitas críticas ao movimento estão relacionadas a essa temática,
principalmente por ser um tabu, o qual se tem muitas restrições. Na última sessão do
capítulo, intitulado “Mulher entra em cena: sensualidade e sexualidade”, exploraremos
essa temática.
Ainda nessa sessão comentaremos a respeito da homossexualidade no
movimento funk. Para auxiliar na investigação, foram consideradas as obras de
Medeiros (2006), Essinger (2005), Woordward (2000), Vianna (1988), Bauman (2005),
Carvalho (1980), Silva (1999), Lopes (2011), Green (2000).
Assim sendo, este trabalho contribuirá para um melhor conhecimento da cultura
de diáspora africana, o funk, que, nos tempos modernos, vem conquistando milhares de
jovens, especialmente na Baixada Fluminense, que descobrem, nesse movimento, uma
identidade que os tornam elementos vivos dentro de um grupo, sendo respeitado pelo
local em que vivem, mesmo que a sociedade, num contexto discriminatório racial, o
exclua por ser pobre e negro.
- 18 -
CAPÍTULO 1
O LEGADO DA CULTURA AFRICANA NO BRASIL
Este capítulo abordará os diversos movimentos de resistência em relação à forte
insistência dos europeus na anulação de bagagem histórico, social e cultural dos negros
traficados, que chegaram ao Brasil. A partir desse cenário, o negro passa a criar táticas,
a ponto de conseguir manter seus costumes e tradições, bem como solidificar sua
cultura, revelando, assim, defesa de uma identidade.
Uma das táticas de resistência foram os quilombos, lugares em que os negros
eram acolhidos ao fugirem dos senhores coloniais e podiam se sentir livre, mesmo num
espaço delimitado. Através dos quilombos, os negros resgataram as lembranças de sua
terra natal e mantiveram trocas simbólicas, que antes aconteciam nas senzalas, nos
momentos de sofrimento e de diversão, com diversos grupos étnicos oriundos de vários
países africanos. Outras etnias – brancos e índios também faziam parte dessa troca,
quando se refugiavam no quilombo, onde não havia discriminação, mas ao contrário,
apoiava todos que estavam em busca de apoio e proteção.
Este capítulo ainda apreciará as inúmeras manifestações que efetivaram a cultura
africana, como o jongo, a capoeira, religiosidade e samba, considerando seus aspectos
identitárias e como conseguiram estar vivos por mais de 500 anos na história brasileira.
Através do processo de resistência, essas manifestações de expressão cultural africana
obtiveram o reconhecimento no século XX, quando passaram a ser consideradas como
patrimônio cultural.
Ciente de todo processo de resistência pelo qual o negro passou, nunca
desistindo de suas práticas, seguiremos investigando os aspectos que compreendem esse
processo, e como influenciou nas manifestações de expressão cultural do povo nos
tempos atuais, em especial, o funk.
1.7 Travessia do Atlântico ao solo brasileiro
Ao serem escravizados, os negros africanos tiveram seus laços sociais e culturais
rompidos. Souza (2006) comenta que, embora os negros viessem de um mesmo
continente, eram de povoados diferentes e possuiam línguas e habilidades distintas. Ao
- 19 serem capturados, muitas vezes, não conseguiam estar próximos de conhecidos ou
família, mesmo quando aprisionados juntos.
Chegando ao Brasil, depois de uma sofrida viagem no navio negreiro,
precisaram se organizar, buscando referências para que, numa terra nova, pudessem se
situar cultural e socialmente. Essas referências e valores motivaram estratégias de
resistência à aculturação por parte dos brancos europeus.
Aqui se torna necessário, uma vez que a cultura trazida é desprendida
das formas sociais africanas, que sejam recriados os meios de
convívio e organização da religião e fora da órbita de controle dos
escravagistas, onde é proibida. A própria sobrevivência do indivíduo
escravizado dependia de sua repersonalização, da aceitação relativa
das novas regras do jogo, mesmo para que pudesse agir no sentido de
modificá-las, ou pelo menos de criar alternativas para si e para os
seus, dentro das possibilidades existentes na vida do escravo. São
inimagináveis os choques, a perda da liberdade, a viagem no negreiro,
a exposição a uma nova sociedade onde seria escravizado, que se
somam para o indivíduo. Aqui, cada negro viveria imerso em duas
comunidades distintas, grande parte do tempo em contato com a
sociedade branca que o força a adaptar-se a sua nova condição e
funções, o que implica uma série de aprendizados sobre a nova
cultura. Homens ajuntados, vindos de diversas procedências,
irmanados pela cor da pele e pela situação comum, que redefinem suas
tradições como escravos nessa sociedade paralela do mundo ocidentalcristão (MOURA, 1995, p. 23).
Os negros africanos sentiram a necessidade de manter identidade cultural, como
religiosidade, dança, canto e alimentação dentro de um universo diferente do seu,
precisando em alguns momentos fazer adaptações para sobreviver. Todo esse processo
se reflete nos dias atuais, quando se trata de cultura de negros e pobres, como o funk,
movimento que passou e ainda passa pelo processo de resistência, a fim de manter-se
nessa sociedade.
O
termo
resistência,
empregado
por
Mattelart
(2010),
refere-se
ao
poder cultural que as classes populares podem exercer, mobilizando um repertório de
obstáculos à dominação. O autor comenta que se trata de um conflito social, ou seja, é
um processo básico de convivência entre dominantes e dominados, em que a parte
marginalizada tenta alcançar o seu reconhecimento social.
D’Adesky (2009) comenta sobre duas vertentes, que se referem ao poder do
dominador em relação aos grupos étnicos, e consequentemente a sua cultura: uma trata
como folclore as heranças culturais dos grupos étnicos dominados, enfraquecendo a
afirmação de uma identidade e evitando contestações; e a outra é a ideologia de que a
cultura dominante tem como enriquecer-se das contribuições culturais dos grupos
- 20 étnicos sem perder suas características principais, ou seja, se mantém a identidade
dominante, considerada mais forte do que das outras etnias. Independentemente das
vertentes, a cultura dominante é quem representa a história oficial e que determina
normas, padrões e valores a serem seguidos. O autor ainda acrescenta que no Brasil, as
identidades étnicas e sua herança cultural, com raízes no período colonial, confrontamse em relações desiguais com as questões identitárias da classe do poder.
Antes de se entrar nas diversos processos de resistências culturais, que os negros
tiveram que passar até o reconhecimento, faremos um breve histórico da chegada dos
africanos no Brasil.
Os negros foram arrancados de sua terra nativa e sob regime escravocrata
serviam a sociedade que os ignorava. No entanto, eles desenvolveram inúmeras táticas
de resistência cultural, o que possibilitou conseguirem garantir a sua cultura mesmo
num regime escravocrata e após a abolição. E, dessa maneira, conseguiram através da
ancestralidade manter sua identidade, que envolve uma ideologia, espiritualidade,
ritmos e danças, indo além dos traços físicos.
Os negros na África eram homens livres, mesmo com problemas inerentes de
qualquer sociedade, mas eram tratados como humanos. Com o tráfico de negros para o
Brasil, eles passaram a serem considerados como propriedade do outro. Segundo Silva
(2003), o modo como o negro era cuidado, refletia o pensamento que os consideravam
seres irracionais, precisando de tratamento rígido para que realizassem os trabalhos.
A chegada dos negros no Brasil substitui aos poucos o lugar do índio no cenário
colonial da época. Conforme Alencastro (2008), apesar de serem obrigados a estarem
num país que não era seu, é inegável que colaboraram, ao lado dos portugueses, para o
Brasil colonial. A partir de 1700, os africanos e negros superavam, em números, os
brancos e os índios.
Os africanos e negros participaram de todos os momentos históricos da formação
da sociedade brasileira, como ciclo do açúcar, ciclo do ouro, ciclo do café, construção
de igrejas, construção de ferrovias e na agricultura, conforme Rebelo (2002). Eram os
negros que cuidavam da casa dos colonos, cozinhavam, lavavam, costuravam, cuidavam
das crianças, muitas vezes sendo ama de leite. O autor ainda afirma que em tudo a
presença do negro era constante e inegável.
Mesmo sendo uma sociedade em que a maioria era negra, houve uma força
repressora por parte dos “brancos” europeus e seus descendentes, tentando anular a
cultura dos escravos, vista com preconceito, e impondo seus padrões culturais. Nesse
- 21 sentido, desde a chegada ao Brasil, no século XVI até os dias de hoje, os negros sempre
assumiram posição de invisibilidade e por séculos lutaram para afirmar sua cultura e vêla reconhecida.
Inclusive, Rui Barbosa, Ministro da Fazenda, no governo de Deodoro da
Fonseca, em 1889, mandou queimar toda documentação referente à escravidão no
Brasil, quando tomou a seguinte resolução:
Considerando que a nação brasileira, pelo mais sublime lance da sua
evolução histórica, eliminou do solo da pátria a escravidão – a
instituição funestíssima que por tantos anos paralisou o
desenvolvimento da sociedade, inficionou-lhe a atmosfera moral;
considerando que a República esta obrigada a destruir esses vestígios
por honra da pátria, e em homenagem aos nossos deveres de
fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que
pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira;
resolve:
1.º– Serão requisitados de todas as tesourarias da Fazenda
todos os papeis, livros e documentos existentes nas repartições do
Ministério da Fazenda, relativo ao elemento servil, matrícula de
escravos, dos ingénuos, filhos livres de mulher escrava e libertos
sexagenários, que deverão ser sem demora remetidos a esta capital e
reunidos em lugar apropriado na recebedoria.
2.º–Uma comissão composta dos Srs. João Fernandes Clapp,
presidente da confederação abolicionista, e do administrador da
recebedoria desta capital, dirigirá a arrecadação dos referidos livros e
papéis e procederá à queima e destruição imediata deles, o que se fará
na casa de máquina da alfândega desta capital, pelo modo que mais
conveniente parecer à comissão.
Capital Federal, 15 de dezembro de 1890. – Ruy Barbosa (apud
REGO; 1968, p. 10,11)
Os atos de resistência dos negros, menciona Souza (2006), estavam presentes em
todos os momentos da escravidão e ajudaram a definir a relação entre senhores e
escravos, garantindo para si níveis mínimos de dignidade humana. Esses atos de
resistência contribuiram para a abolição definitiva da escravidão, através da Lei Áurea,
assinada pela princesa Isabel, possuidora de postura protetora dos escravos fugitivos.
Em 1888, ocorre a abolição da escravatura e os negros passam, perante a lei,
serem iguais aos brancos, mas a igualdade é teórica e não prática. O Estado não se
preocupou com as transformações ocorridas pela libertação oficial dos africanos e
crioulos2, uma vez que iriam confrontar-se com mercado livre que privilegiava uma
concepção moderna do operário ocidental, conforme Moura (1995).
2
O termo ‘crioulo’ surgiu no período colonial e se referia aos negros que nasciam no Brasil. Era um
termo utilizado para diferenciar negros oriundos da África dos que nasciam aqui.
- 22 Com o fim do império brasileiro e a implementação de um novo modelo de
governo – República, em 1889, o quadro dos negros não sofreu muita alteração. Souza
(2006) declara que a ideia de superioridade branca tornava os negros como entrave para
o desenvolvimento do país, surgindo, assim, projetos de estímulos à imigração de
europeus e asiáticos para substituir os escravos libertos, diminuindo a possibilidade de
negros trabalharem de modo regular.
Se os negros tinham que lutar, criar táticas para sobreviverem durante a
escravidão, com a abolição, não foi muito diferente, os negros tiveram que continuar
lutando e desenvolver habilidades para serem aceitos pela sociedade com padrões
ocidentais. Sodré (1998) comenta que, diante da inviabilidade de um modo de vida rural
autossuficiente, o negro se transformou em mão de obra sem especialização, pronto para
qualquer serviço, oscilando entre o campo e a cidade, sem condições sociopolíticas para
se firmarem como homem livre. Moura (1995) complementa declarando que a
dificuldade de competir pelas vagas nas indústrias, no comércio e no funcionalismo
público, nesse período de transição, acarretou em um grupo de desocupados, que
sobreviveram de inúmeras formas de subemprego, como trabalhos domésticos,
artesanatos e vendas ambulantes, realizados pelas negras; vários ofícios em torno do
cais do porto, no Rio de Janeiro; artistas em cabarés, teatros de revista, circo e palcos a
partir de experiências nas festas populares e talento próprio.3
D’Adesky (2009) expõe que a negação racial do negro é acompanhado de uma
segunda negação, a cultural, de forma que desvaloriza a herança histórica e cultural ,
derivadas da discriminação e a dominação cultural dos brancos, que se configura como
superiores. Quanto às manifestações culturais africanas, foram muitas as dificuldades
que enfrentaram desde a sua chegada ao Brasil como escravos e, para superá-las,
criaram táticas de resistência, que além de firmarem sua raça, história, língua e arte,
conseguiram inserir-se na sociedade dominada pelos europeus.
Uma questão a ser abordada, ainda no período colonial, e que está intimamente
ligado a afirmação cultural e identitária do negro, era a construção de um território, que
possibilitou resgatar a herança de um povo, os quilombos. Através deles, foram
recriadas as estruturas políticas e sociais, bem como resgatadas as tradições dentro de
3
“Em 1890, dois anos depois da Abolição, dos 74.785 empregados domésticos da capital, 41.320 eram
negros, 21.009 brasileiros brancos, e 12.375 estrangeiros. O censo de 1890 mostra que dos 89 mil
estrangeiros economicamente ativos na cidade, mais da metade tinham posições no comércio, no
artesanato e na indústria manufatureira. Dos negros, 48% dos ativos trabalhavam nos serviços
domésticos, 17% na indústria, 9% em atividades agrícolas, extrativas e na criação do gado, enquanto16%
não declararam profissão”, conforme Moura (1995, p. 101).
- 23 um território novo, o Brasil. Esses espaços contribuíram para a elaboração de táticas de
resistências cultural e que se tornou um legado para a formação do povo brasileiro e
base para as expressões culturais, que hoje predominam a classe popular.
1.8 Quilombo - uma representação de resistência negra
Uma forte representação de movimento de resistência foram os quilombos,
símbolo de luta contra a escravidão. Dentre centenas espalhadas pelo país, o mais
conhecido foi o “Palmares” com seu líder Zumbi, que, atualmente, é ícone dos
movimentos negros.
Schumaher (2005) explica que o quilombo dos Palmares nasceu no início do
século e resistiu até 1695, com a destruição policial e a morte de Zumbi por
decapitação. A destruição de “Palmares” foi completa, todas as habitações foram
destruídas e os habitantes voltaram a serem escravizados. Não era somente habitado por
negros, mas os índios e brancos pobres faziam parte do povoamento. Localizado no
centro do atual estado de Alagoas (na época parte da capitania de Pernambuco), era bem
estruturado e organizado – territorial, militar e administrativamente.
Palmares, que se espalhava por terras cheias de palmeiras, era
composto por um conjunto de aldeias subordinadas a uma delas, onde
estava o chefe principal. Cada aldeia tinha o seu chefe, que fazia parte
do conselho, que governava todos. Tal estrutura política... era comum
na África centro-ocidental, onde confederações de aldeias formavam
províncias, que formavam reinos, para usarmos a terminologia
europeia que primeiro descreveu essas organizações políticas
(SOUZA, 2006, p. 98).
O processo de resistência estabelecido pelos negros na sociedade brasileira,
através das fugas, culmina nas criações desses modelos de comunidade quilombola.
Inclusive, conforme Souza (2006), quilombo era o nome dos acampamentos
“imbangalas”, povo africano essencialmente guerreiro que, provavelmente, quando
escravizado, não se conformou com essa situação.
Declara Arcanjo (2008), que, entre as várias modalidades de resistência, a fuga
representou um modo significativo nesse processo, uma vez que o negro buscava sua
autoafirmação na condição humana em oposição a sua condição de escravizado e ao
sistema escravista. Portanto, o processo de formação de quilombo tem uma
representatividade no que se refere à luta pela liberdade do corpo e étnica, direitos que
lhe eram negados em virtude de sua condição e cor de pele.
- 24 Diante de tanta injustiça social e humana, surgem agitações e insurreições de
escravos e o principal foco dessas rebeliões foi a formação de quilombos em espaços de
matas fechadas e de difícil acesso, mas que, conforme Silva (2003), apresentavam boas
condições de plantio para o sustento.
E assim, os negros criaram uma sociedade dentro de outra sociedade, um espaço
de resistência que se contrapôs ao cativeiro, independentemente de ser grande ou
pequena.
Muitos dos afazeres realizados nos Palmares eram feitos a partir da
necessidade de sobrevivência, não no sentido de que seriam
explorados ou castigados violentamente como nas senzalas e
engenhos, mas no sentido de exercer sua criatividade adaptando-se ao
ambiente florestal. O trabalho que exerciam agora tinha sua rigidez e,
de uma forma ou de outra, eram subordinados a ordens, porém, não de
senhores brancos, mas de outros negros que lideravam e
responsabilizavam-se pelas ordens e organização dos quilombos.
Assim, aos poucos, Palmares ia se tornando uma potência produtora
que causará descontento ao governo, ameaçado pela concorrência
(SILVA, 2003, P. 38).
Foi a modalidade de resistência que mais danos causou à economia dos
senhores, pois, além da perda dos escravos, havia o prejuízo da mão de obra e do
dinheiro despendido na captura do escravo fugido, conforme expõe Arcanjo (2008).
Entre as diversas modalidades, a fuga representou um modo significativo no
processo de resistência ao cativeiro e de autoafirmação da condição humana do escravo
em oposição ao sistema escravista. O escravo se fez desobediente, buscando resgatar
parentes, comprar carta de alforria etc., consciente dos direitos ignorados pela sociedade
e ajudaram, decididamente, a cavar a sepultura da instituição que os mantinha no
cativeiro. Os quilombos constituíram sua própria visão de liberdade, o direito de ir e vir,
o direito de não mais servir em submissão a pessoa alguma.
De acordo com Arcanjo (2008), perante a tamanha injustiça, social e humana,
surgiram agitações e insurreições de negros por toda a colônia, e o principal foco dessas
rebeliões foi a formação de quilombos, que, historicamente, trata-se de toda habitação
de negros fugidos, que formem grupos de mais de cinco, a título de exemplificação o
“Palmares”. São compostos por aqueles que, ao adentrarem as matas, conseguiam se
organizar em grupos, formando o principal foco de resistência negra ao cativeiro até o
século XIX, construindo uma sociedade na sociedade.
Espalhando-se por todo lugar onde havia negro cativo, o quilombo
representou a luta pela liberdade, e a reconstituição de sua identidade
enquanto povo. Representava, para o negro, a recuperação do vínculo
rompido quando da sua captura na África para ser transplantado para
- 25 terras desconhecidas. Como o processo de reação ao cativeiro no
Brasil passava pela reconstrução da identidade étnica, (...) esse
processo de recriação das raízes era essencial para a superação da
condição escrava Significava uma nova situação entre a submissão ao
cativeiro, a hostilidade da mata e a adaptação a um novo modo de vida
(CARVALHO, 2002, p. 219).
O negro que fugia das mãos do homem branco estava entre a liberdade natural e
a liberdade social, aquela em que ele passa a conviver em uma comunidade alternativa:
o quilombo. Arcanjo (2008) completa comentando que se tratava de um espaço em que
se construiu uma comunidade, e os reconhecimentos das relações historicamente se
constituíram
como
um
objeto
de
interpretação
das
diversas
formas
de
ocupação/formação das chamadas terras de preto, como resultado das diversas
estratégias empreendidas pelos negros e negras.
Para o negro, o quilombo representou a luta pela liberdade e a reconstituição de
sua identidade enquanto povo, além de representar a recuperação de um vínculo
rompido ao ser capturado na África para ser transplantado para terras desconhecidas.
Fiabani (2005) informa que o quilombo era organizado politicamente nos moldes dos
estados africanos, às margens da sociedade colonial, e os negros podiam vivenciar seus
ritos.
Com os quilombos, surgiu uma nova sociedade crescendo a margem do regime
escravocrata, que contribuiu para que a cultura afro se fortalecesse por restabelecer a
organização que outrora os negros viviam e se estabelecessem como símbolo de luta e
rejeição a um sistema opressor.
A seguir, serão consideradas as diversas expressões culturais afro, os processos
de sobrevivência frente à aculturação proposta pelos europeus e como esta conseguiu
seu reconhecimento na sociedade atual.
1.9 O jongo: uma forma de cantar suas crenças e lamentos
De acordo com Silva (2006) e o livro “Jongo do Sudeste” (2007), o jongo é uma
manifestação cultural africana, originário dos batuques e danças de rodas, que
sobreviveu à imposição sociocultural dos senhores das colônias, e também é conhecido
por tambu, batuque, tambor e caxambu. Silva (2006) sugere que o jongo é fruto do
trânsito cultural do processo coletivo e individual de tradição Banto, que permanece se
refazendo como signo diacrítico, resultante da urbanização, favelização e da ação do
- 26 Estado com relação à população e ao espaço. A transmissão da cultura se deu através da
oralidade dos antepassados que permaneceram por passar de geração para geração.
Atualmente, essa dança remonta à época da escravidão. Alcântara (2008) aponta
que Pesquisadores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN,
em 2004, registraram 15 comunidades e indícios de mais 20 comunidades e 25 grupos
jongueiros na região sudeste. Só no Rio de Janeiro há catalogado nove.
De acordo com Ribeiro (1984), no jongo carioca, é formada uma roda e o
jongueiro dança sozinho no centro, escolhe uma mulher para ser seu par, mas cada um
dança, fazendo torções e requebrando, solto e defronte um para o outro ao som do
batuque. A substituição do jongueiro se dá com a mão nas costas do dançarino (para
homens) ou dançarina (para mulheres), tentando superar a agilidade do antecessor (a). A
autora ainda cita outra variante, a paulista, em que na roda um par sai dançando seguido
por outros, até todos dançarem. No entanto, independente das variações, são os negros,
as pretas velhas com saias rodadas, as negrinhas que já rebolam, as mulheres com os
filhos que perpetuam essa cultura.
Conforme Carmo (2012), as rodas de jongo aconteciam à noite e os jongueiros
não permitiam a entrada de crianças nas rodas. A autora, juntamente, com Silva (2006)
dizem que, na Serrinha, em Madureira, a Vovó Maria Joana (1902 – 1986) inseriu as
crianças nas rodas de jongo e, em São José da Serra, no município de Valença, Rio de
Janeiro, Dona Zeferina que concedeu a entrada das crianças.
Ribeiro (1984) cita que é imprescindível ao jongo o uso de tambores, um grande
(tambu) e um pequeno (candongueiro), puíta e guaiá. O tambor é tocado por homens e
não por mulheres. A puíta se assemelha à cuíca, produz um som ronco surdo. E a guaía,
inguaiá ou angoiá, é um chocalho. Durante o jongo, os tambores e puíta sempre juntos,
na cabeceira da roda, e o guaiá pode percorrer todo o círculo, se assim desejar o tocador.
O jongo é uma dança que não tem data específica para acontecer. Para os negros,
é um momento de reunião divertida e ao mesmo tempo, essa manifestação, está ligada à
religiosidade:
Manifestação cultural complexa, que transita no campo do sagrado e
do profano, o Jongo é uma instituição social na medida em que o
conceito abrange, simultaneamente, a prática divinatória, dança, canto,
canções, melodia, instrumentos, o momento da confraternização e o
grupo social dos jongueiros (ALCÂNTARA, 2008, p.27)
É cantado e tocado de diversas maneiras, de acordo com o grupo, porém
apresenta características comuns que os fazem ser classificado como jongo. Trata-se de
- 27 uma forma de saudar e respeitar aos antepassados, além de consolidar e afirmar uma
identidade. Também, ele está relacionado à religiosidade, muitos praticantes são
umbandistas e algumas líderes são ou foram mães de santo, como “Maria Joana
Monteiro, na Serrinha, Mãe Zeferina, no Quilombo de São José da Serra, Dona
Aparecida Ratinho, no caxambu de Miracema”. No entanto, o Caxambu não se destina
à incorporação das entidades (JONGO DO SUDESTE, 2007, p. 38)
No período da escravidão, na região sudeste do Brasil, o jongo materializou-se
nas lavouras de café e cana-de-açúcar. Os que dançavam se comunicavam por meio de
pontos, que, segundo Carmo (2012), tratava-se de melodias de versos curtos cantadas
nas rodas, expressando sua ideologia e sentimentos, em que os jongueiros transmitiam
mensagens/enigmas com utilização de metáforas e combinação do português e
expressões africanas, resultando em canções de difíceis interpretações.
Esses pontos, melodias cantadas nas rodas de jongo, conforme Ribeiro (1984),
não eram do conhecimento dos capatazes e senhores. Como exemplo, a autora cita o
ponto de louvação, que era usado no início para glorificação; Ponto de saudação – para
saudar alguém; Ponto de despedida era usado no final do jongo; Ponto encante – para
magia.
Carmo (2012) afirma que atualmente os pontos demonstram o jongo com
aspectos de diversão, no entanto, os pontos cantados, através de sua característica de
linguagem metafórica e enigmática, apresentam uma postura religiosa como devoção a
um santo católico ou aos pretos velhos da umbanda.
O livro “Jongo do Sudeste” (2007) traz exemplos que demonstram essa
característica de expor os seus sentimentos e angústias através da música:
No dia 13 de maio/Quando o senhor me batia/Eu gritava por Nossa
Senhora, meu Deus/Quando a pancada doía.( CLAUDIONOR, DO
CAXAMBU DE SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA).
Meu cativeiro, meu cativerá (bis)/Trabalha nego, não quer trabalhar
No meu tempo de cativeiro/Negro apanhava do Senhor/Rezava à
Santa Maria/Liberdade meu pai Xangô/( jongueiro de Guaratinguetá).
Oi negro, que tá fazendo/Oi, na fazenda do senhor?/Sinhozinho
mandou embora/Pra quê que negro voltou?/Dia treze de
maio/Cativeiro acabou/E os escravos gritavam/Liberdade, senhor!
(JONGUEIROS DO QUILOMBO DE SÃO JOSÉ DA SERRA).
Podemos observar que, através das letras das cantigas dos jongueiros, o
cotidiano do negro nas senzalas, o sincretismo religioso, o poder exercido pelo branco e
o fim do regime escravocrata eram temas frequentes.
- 28 Silva (2006) comenta que o jongo, um elemento ou resultante da cultura
africana, com o tempo foi-se mesclando com os brancos e índios. No entanto, é forte a
presença de africanos e crioulos, de modo que, o jongo, deve ser identificado como raiz
negra da cultura brasileira.
Após abolição dos escravos, em 13 de maio de 1888, e reforma da cidade do Rio
de Janeiro, a partir de 1902, os negros seguiram para a periferia e consigo levaram o
jongo como manifestação cultural. Alguns estabeleceram moradia no Morro da
Serrinha, em Madureira, novo lugar em que os negros encontraram para a realização de
seu divertimento. A participação desses novos moradores na manifestação cultural
jongo estava condicionada ao uso do bonde de bitola larga e de tração animal e depois
do trem Maria Fumaça. Reuniam-se com assiduidade em torno de música e comida farta
em rodas de samba, jongo e umbanda, além de festas de casamento e aniversário. É o
que conta, segundo Boy (2006), Sebastião Molequinho, irmão de Tia Maria do Jongo.
Coitado do Zé Maria,/ naquela mata fechada,/mataram o pobre do
homem, senhora dona,/ "deixaro" a besta amarrada.
Dizem que o dinheiro vale,/Dinheiro não tem valia,/ Se o dinheiro
valesse,/ Zé Maria não morria.
Zé Maria tinha porco,/ e também tinha boiada,/ mataram o pobre do
homem, Sá moreninha,/ boi ficou na invernada (JONGO DA
SERRINHA).
A autora ainda comenta que nesta época, devido ao estreito contato com a vida
urbana, aos novos modismos e à morte dos jongueiros idosos, o jongo foi aos poucos
desaparecendo dos morros cariocas. No entanto, a Serrinha, localizada na periferia,
isolada da parte central da cidade, como se fosse uma "roça" afastada, pôde preservar
diversos patrimônios imateriais da cultura brasileira.
O jongo é reconhecido como patrimônio cultural da Serrinha, mas, conforme
Silva (2006), houve a necessidade de uma longa negociação quanto as suas
possibilidades de sobrevivência na cidade do Rio de Janeiro. De acordo com IPHAN
(2005), o registro do jongo como Patrimônio Cultural do Brasil e o reconhecimento por
parte do Estado, dessa manifestação cultural como identidade de um grupo, chamam a
atenção para necessidade de políticas públicas que promovam a pluralidade cultural.
Possibilitaram, também, condições de se afirmarem nas comunidades jongueiras,
mantendo, assim, viva a tradição do jongo com suas adaptações e transformações.
“Jongo do Sudeste” (2007) mostra as estratégias para a manutenção do jongo,
que são a formação de escolas que também atendam grupos mirins e apresentação em
lugares ligados à cultura e educação. Movimentos sociais, articulados aos jongueiros,
- 29 que basicamente atendem a população negra, são um grande veículo de preservação da
cultura e contribuem para a continuidade do jongo, como forma de expressão
contemporânea. Outra estratégia usada é apresentar novas lideranças jongueiras,
formadas por homens jovens, ao contrário do que acontecia, pois eram os idosos
respeitados.
Logo, a ligação do jongo com a africanidade e sua manutenção por meio da
resistência, passou a ser uma das bases da formação do povo brasileiro. Fato que
confirma o quanto as práticas de resistências dos afrocariocas foram e ainda são
significativas para a manutenção da identidade de um grupo excluído pelas elites da
cidade.
1.10
A capoeira: expressão e arte
Capoeira é uma manifestação cultural, formada a partir do processo de
hibridismo cultural, com grande influência da cultura africana – que envolve dança,
canto, jogos e brincadeiras. É um recurso de sobrevivência de memória, através das
lembranças dos antepassados com seus fatos históricos. Segundo Abib (2004), a
lembrança da dor e sofrimento no passado com a escravidão, as estratégias de luta,
simbologia e ritual, que exigem “iniciação” para entender, transformam a capoeira em
mais um movimento de resistência.
Santos (1993) declara que a palavra capoeira vem do tupi kapu’era e tem vários
significados. Dentre eles, o de terreno de mato roçado para cultivo da terra; nome de
uma ave brasileira semelhante à codorna; pequena perdiz de voo rasteiro, pés curtos
com uma beleza de canto; e jogo atlético, constituído por um sistema de ataque e defesa.
A capoeira brota em diversos lugares do Brasil. No Rio de Janeiro, de acordo
com Abib (2004), ela era praticada por escravos cativos, libertos ou alforriados e foram
se estabelecendo no espaço urbano, possibilitando socialização escrava, a ponto de
surgir a ‘cultura escrava de rua’. Ainda segundo o autor, por volta de 1810, a capoeira já
havia caído no gosto dos jovens escravos africanos, considerados desordeiros, o que
representava ameaça à ordem escravista brasileira, causando medo nos ‘brancos’ e
provando neles a preocupação com uma iminente rebelião.
Bauman (2005) declara que se pretendesse ter qualquer outra identidade que não
tivesse o endosso do Estado, seria uma identidade não certificada, uma fraude e seu
- 30 portador, um vigarista. E nesse contexto, contra os capoeiristas, passou a ocorrer
repressão policial violenta, pois estava indo de encontro ao sistema dominante da época.
Abib (2004) ainda acrescenta que capoeira se torna um elemento agregador e de
interação entre várias etnias africanas, promovendo a transculturação entre elas, ou seja,
os recém-chegados da África adaptavam-se às formas culturais dos antigos, provocando,
assim, alterações culturais que se refletem nos dias atuais, tratando-se, portanto, de um
fenômeno de enriquecimento cultural. Com a transculturação, houve superação étnica e
a formação de uma nova identidade Banto. O autor menciona também que não podemos
desvincular o surgimento da capoeira do contexto de outras manifestações com base
africana, como o jongo e o samba, com semelhanças muito próximas.
No passado, o berimbau ou “gunga”, instrumento usado na capoeira, servia para
estabelecer uma relação com os mortos e reverenciava a divindade e o sagrado. Essa
característica continua sendo representada e exerce função importante com a
ancestralidade – negros escravizados e com a África.
Os capoeiristas, ao se prepararem para o jogo, tocam o chão e se benzem
pedindo proteção, venerando o berimbau e com estes gestos remetem ao respeitado solo
da África.
Esta reflexão é tão rica e provável de verdade que o termo usado
‘voltar à terra mãe’... pelos africanos, transparece bem no
posicionamento dos capoeiras que compõem o círculo, ou seja,
quando se inicia a orquestra, todos os capoeiristas, sentados na ‘roda’,
se encolhem e abaixam a cabeça como se estivessem dentro de um
ventre de uma mãe. Neste momento, as capoeiras fazem como que
estivessem ouvindo vozes do além, vozes que nos ensinam e nos
orientam para uma vida que irá nascer para o mundo, o mundo da
capoeira, ou seja, chega o momento de o capoeira iniciar o jogo na
roda (mundo) da capoeira... Assim também acontece com a criança no
ventre da mãe. Ela fica ‘escondidinha’ lá dentro, ouvindo e recebendo
os sinais de como se deve reagir neste mundo que nós já
conhecemos (SILVA, 2003, p. 60).
Outro símbolo da capoeira é a roda. Trata-se de um espaço dentro do círculo de
capoeirista em que dois jogadores, ao som do berimbau e dos outros instrumentos, como
pandeiros, agogô, reco-reco e atabaque, simulam uma espécie de disputa dançada. Silva
(2003) ainda comenta que esses espaços têm intenção de conquista e superação, que
seduzem os que estão prestigiando de fora da roda, agregando pessoas de classes, raças
ou culturas diferentes. Dentro da roda, temos o gingar, movimento básico da capoeira,
que segue a mesma dinâmica do caminhar, mas um caminhar balançado e com idas e
vindas delimitados.
- 31 Outro elemento importante da capoeira é a música. Conforme Silva (2003), as
letras da música de capoeira têm conteúdo histórico, sentido investigativo,
antropológico ou filosófico. A música facilita o ritmo dos movimentos, fácil de ser
cantada, o que promove coesão do grupo.
Capoeira tem história/ Capoeira tem tradição/ Capoeira deixou na
marca/ Do povo africano na nação.
Ela foi praticada nos quilombos/ Ela foi perseguida na senzala/
Capoeira é força, é voz/ Do povo que luta a não se cala.
Zumbi um valente guerreiro/ No grito derradeiro a mensagem deixou/
Capoeira é luta, consciência/ Ela é a essência do povo lutador
Rio, Recife, Bahia falo com alegria/ Onde tudo começou/ Capoeira
luta brasileira/ Passou fronteira no mundo espalhou... (MESTRE
BARÃO, CAPOEIRA TEM HISTÓRIA).
Não se sabe ao certo quando surgiu a capoeira e onde. Somente no fim do século
XVIII e início do século XIX é que aparecem evidências dessa luta disfarçada de dança.
Abib (2004) comenta que surgiu espontaneamente e com formas diferenciadas pelo
Brasil, no entanto, materializou-se como saber coletivo, representando a memória da
ancestralidade africana.
De acordo com Andrade (2010), a arte da capoeira, em vários escritos, aparece
como de origem africana ou como produto mestiço brasileiro. O que não se pode negar
é que as tradições de danças e lutas em regiões africanas com características
semelhantes à capoeira existem nas regiões africanas.
Na história brasileira, o capoeirista, foi considerado um ser nocivo, objeto de
vigilância e punição.
No primeiro código normativo penal brasileiro, em 1830 o Código
Criminal do Império do Brasil de 1830, não há uma referência
expressa à capoeira. Ocorre que, como assevera Rêgo, havia na
sociedade de então o senso comum do capoeirista como “marginal,
um vadio e sem profissão definida”, o que dava margem a seu
enquadramento na tipologia presente no artigo 295, que tratava da
punição aos “vadios e mendigos” (REGO, 1968, APUD ANDRADE,
2010, p. 121).
A capoeira significava um instrumento de luta contra a violência que sofriam,
pois o seu corpo – perna, braço, tronco, cabeça e pé, único lugar seguro do que restou
no processo de escravidão, poderia estar a serviço de sua liberdade, conforme Abib,
(2004).
Esse misto de artes, o qual denominamos capoeira, vem a ser um
“diálogo mudo” entre dois camaradas ou um jogo entre dois
competidores. Sua evolução, digamos, sem traçar um início perfeito e
completo, partiu do negro escravo para obter como vitória sua própria
- 32 liberdade. Seu oponente seria todo o sistema em que se encontrava:
uma terra desconhecida chamada Brasil e uma sina não desejada: a
opressão e o serviço escravocrata (SANTOS, 1993, p. 18).
Com a chegada do império português, em 1808, a capoeira no Rio de Janeiro
sofreu repressão por parte da Intendência Geral de Polícia da Corte do Estado do Brasil,
tendo em vista que ela era considerada uma prática que promovia a desordem na cidade.
Nesse período, qualquer pessoa que fosse surpreendida praticando-a era repreendida
brutalmente com prisões ou punições sumárias, tais como chicotadas, de acordo com
Andrade (2010).
Santos (1993) expõe que os capoeiristas eram enquadrados como vadios sem
profissão definida e mendigos, no entanto, após várias restrições à prática da capoeira,
em 1930, o então presidente republicano Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, retirou
do rol das infrações penais manifestações de matriz africana – a capoeira, o candomblé
e outras. Com a liberdade de manifestação cultural, a capoeira aumentou o número de
simpatizantes e passou a ter uma maior visibilidade. No entanto, continuou a margem,
nos guetos por estar associada à população negra.
O que colabora para que a capoeira, bem como todas as outras culturas afro,
permaneça até os dias de hoje é o fato de ser uma vivência cultural do povo brasileiro.
Silva (2003) informa que, a capoeira pode até sofrer algumas alterações, mas sempre
está associada às festanças populares e folclóricas.
Como o jongo, a capoeira demorou décadas para ter o reconhecimento como
patrimônio cultural brasileiro, mas finalmente, em 15 de julho de 2008, este título lhe
foi dado pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico Nacional), que é composto por
vinte e dois representantes de entidades e da sociedade civil, e determina a respeito dos
registros e tombamentos do patrimônio nacional.
1.5 Manutenção da religiosidade africana
Um exemplo de processos de resistência de sua cultura e contribuição nas
culturas atuais, junto com o jongo e a capoeira, se faz no âmbito religioso. D’Adesky
(2009) comenta que a religião é um grande referencial identitário, que governa a vida
espiritual e também a ordem do particular por apresentar um conjunto de práticas e
deveres.
- 33 A chegada às terras brasileiras dos escravos significou também a chegada de
uma religiosidade, que divergia da igreja católica, que estabelecia padrões a serem
seguidos. De acordo com Strieder (2000), os vigários ao catequizar os escravos tinham
que ensinar as principais verdades da fé, o Pai-nosso, Ave-maria, mandamentos de Deus
e o que é pecado e quais as virtudes, os sacramentos e outras orações, no entanto, se
contentavam com o mínimo, uma vez que consideravam os escravos como inferiores
intelectualmente.
Ainda como comenta o autor, a igreja considerava o casamento divino, portanto,
realizavam o casamento dos africanos, que tinham liberdade de escolherem com quem
se casar. No entanto, se eram escravos de senhores diferentes, apesar do casamento,
cada um continuaria pertencendo a seu respectivo dono. Quanto aos negros que vinham
casados da África, ao chegarem ao Brasil, muitas vezes, eram separados e a igreja
permitia que, depois de convertidos, pudessem casar novamente com outra parceira.
Outro dogma que a igreja impunha era o batismo dos filhos de escravos, mesmo
contra a vontade dos pais. Segundo Strieder (2000), se os pais não se convertessem,
teriam seus filhos separados deles para não serem influenciados negativamente. Os
maiores de sete anos podiam optar pelo batismo ou não.
Moura (1995) menciona que eram enviados missionários à África, apoiados pela
soberania portuguesa, para difundir o culto de santos e virgens negras. Esses
missionários incorporavam elementos culturais africanos com o objetivo de redefini-los
de acordo com os princípios cristãos, cuidando assim da manutenção da dominação
imposta, uma vez que a igreja estava ao lado dos colonizadores. As confrarias negras,
associações religiosas, permitiram que as tradições africanas ganhassem espaço nas
terras brasileiras.
É no seio das confrarias negras que as tradições africanas ganhariam o
espaço necessário à sua perpetuação na aventura brasileira,
sincretizadas com o código religioso do branco, de maneira mais ou
menos formal, inicialmente apenas como um disfarce legitimador, mas
progressivamente absorvendo o catolicismo como uma influência
profunda que se expande nas religiões populares urbanas negras da
modernidade (MOURA, 1995, P. 46).
O catolicismo do branco serviu para formação de um catolicismo negro, que era
incentivado, tanto pela igreja como pela administração colonial, quando seus membros
eram agrupados em irmandades de devoção a um determinado santo, conforme Souza
(2006). A administração das irmandades era formada por negros forros, negros
alforriados, mas os devotos eram escravos e a criação das irmandades representou um
- 34 espaço de organização e construção de identidades. Ainda segundo a autora, através das
comunidades negras, as irmandades, aconteciam os enterros dos negros mortos,
rezavam missas para as almas e amparavam as famílias dos falecidos; cuidavam dos
doentes; e quando tinham alguma poupança, compravam a liberdade de alguns negros.
A tentativa de cristianização dos escravos, segundo Strieder (2000) e D’Adesky
(2009), foi superficial, pois os africanos não abandonaram sua religião, mas contribuiu
para o sincretismo religioso. Os autores ainda comentam que os negros vivenciavam a
prática concreta dos cultos das religiões africana, além de acreditar que os protegeria
mais e os ensinamentos da igreja católica, por serem abstratos, não diziam nada.
De acordo com Souza (2006), na sociedade africana toda vida terrena estava
ligada ao além, quase tudo tinha explicação e era resolvido por forças sobrenaturais, em
que, diante de várias situações da vida, oráculos (curandeiros, médiuns, adivinhos e
sacerdotes) eram consultados e estes pediam orientação aos espíritos, uma vez que a
religião era um elemento central na África, pois tudo era decifrado e controlado por ela.
Strieder (2000) declara que outro fator que contribuiu para o fortalecimento da religião
foi o afluxo constante de escravos, que possibilitou a manutenção das religiões,
mantendo-as vivas.
Durante o período escravocrata no Brasil, nenhuma manifestação contrária ao
cristianismo, religião oficial, poderia ser expresso, pois cultos e rituais eram encarados
como heresias a Deus. O Código Criminal do Império de 1830 determinava penas para
quem afrontasse o ideal religioso da época:
PARTE QUARTA
Dos crimes policiaes
CAPITULO I
OFFENSAS DA RELIGIÃO, DA MORAL, E BONS COSTUMES
Art. 276. Celebrar em casa, ou edificio, que tenha alguma fórma
exterior de Templo, ou publicamente em qualquer lugar, o culto de
outra Religião, que não seja a do Estado.
Penas - de serem dispersos pelo Juiz de Paz os que estiverem
reunidos para o culto; da demolição da fórma exterior; e de multa de
dous a doze mil réis, que pagará cada um.
(...)
Art. 278. Propagar por meio de papeis impressos, lithographados,
ou gravados, que se distribuirem por mais de quinze pessoas; ou por
discursos proferidos em publicas reuniões, doutrinas que directamente
destruam as verdades fundamentaes da existencia de Deus, e da
immortalidade da alma.
Penas - de prisão por quatro mezes a um anno, e de multa
correspondente á metade do tempo. (CÓDIGO CRIMINAL DO
IMPÉRIO, 1830)
- 35 -
Para que sua religiosidade conseguisse resistir, foram feitas adaptações em que
houvesse uma relação entre os santos católicos e os orixás. Conforme Sant’Anna (2001)
e D’Adesky (2009), por questões de sobrevivência das raízes religiosas africanas, foi
preciso que os negros fizessem alianças com o catolicismo e esse sincretismo é visto
hoje por certas correntes ortodoxas do candomblé.
Moura (1995) comenta que os negros bantos, na rua baiana, se apropriavam do
calendário católico para suas festanças, criando novas tradições. Os orixás deixaram de
ser homenageados em cerimônias privadas e passaram a ser venerados com toda
exuberância nas festas católicas.
Ainda no período colonial, Souza (2006) informa que um dos principais
momentos da irmandade negra (catolicismo negro) era a realização da festa do seu
orago (padroeiro) – Nossa Senhora, que acontecia todo ano. Nessas festas, acontecia a
coroação de reis e rainhas negras entre danças e cantos pelas ruas, ao som de ritmos e
instrumentos africanos. Os negros, que tinham ascendência sobre um grupo com origem
africana comum, como Angola, eram chamados “reis de nação”.
No século XIX, todos passam a ser chamados de rei do Congo (festa da
congada), pois percebiam menos as diferenças e ressaltava a origem africana, como
elemento de união.
O fato de os reis de Congo, em terras africanas, terem adotado o
catolicismo no final do século XV e de os reis portugueses por muito
tempo tê-los considerado governantes de um reino irmão teve peso na
escolha dessa designação para todos os reis negros festejados pelas
irmandades. Por meio dos reis do Congo algumas comunidades negras
afirmavam uma identidade africana que a todos unia, ao mesmo tempo
que suas formas de organização eram aceitas pelos administradores
coloniais, que viam na rememoração do reino congo cristão um sinal
da inserção pacífica dos negros da sociedade escravista brasileira
(SOUZA, 2006, p. 117).
A festa da congada era um movimento de resistência, pois o negro revivia sua
história e afirmava sua identidade, atenuando o seu sofrimento. A festa se tornou uma
manifestação cultural que perdurou até os tempos atuais e se disseminou por todo o país
e continua associado a vários rituais festivos a padroeiros católicos, com transformações
pertinentes ao local e ao contexto em que estão inseridos, como, por exemplo, as festas
em louvor a Nossa Senhora do Rosário (Serro/ MG) e São Benedito (Cuiabá/ MT).
No entanto, a essência das festas do congo está ligada à matriz africana, cujas
religiões mais conhecidas são o candomblé e a umbanda, que sempre andaram lado a
- 36 lado com a religião católica durante muito tempo. (REBELO, 2002, p. 95) comenta que
“construíram relações sincréticas como aquela em que Iemanjá, a senhora dos mares, e
Nossa Senhora da Conceição ou Nossa Senhora dos Navegantes”.
O contato com o catolicismo, desde seu país de origem, na África, facilitou o
aparecimento de ritos religiosos com elementos católicos, mas essencialmente africanos,
como, por exemplo, imagens de santos em “altares dos ancestrais ou espíritos,
representados por pedras, esculturas, de madeiras, cabaças, cestas, panelas e trouxas
com elementos diversos” (SOUZA, 2006, p. 118).
Sant’Anna (2001) afirma que, nos países de origem dos africanos, os cultos
religiosos eram dispersos, em várias localidades do continente com multiplicidade de
crenças, no entanto, no Brasil, criou-se um modelo de culto adaptado, em que havia
diversidade nas reuniões religiosas, mas num mesmo lugar. Esse novo modelo de
organização religiosa foi resultado da escravidão, em que os negros tinham a
necessidade de criar táticas de resistência. Como a escravidão se dava com negros de
várias regiões africanas, cultuando diferentes divindades, no território brasileiro, os
diversos grupos eram reunidos num mesmo espaço – senzala, de forma que acontecia
interação de matrizes religiosas entre eles. Portanto, conforme Moura (1995), a memória
dos cultos se fragmenta, e apesar de manter o sentido fundador, a cultura deixa de ser
unicultural com referências na sua origem e se transforma em pluricultural.
Aos olhos dos colonizadores, as manifestações realizadas como uma festa com
canto e dança, eram chamados de “batuques”, pois os “brancos” não associavam ao
culto religioso, organizado discretamente para preservação das crenças.
Strieder (2000) comenta sobre os fatores que contribuíram para o fortalecimento
da religiosidade africana:
A prática concreta dos cultos das religiões africanas dizia mais aos
escravos do que os ensinamentos muitas vezes abstratos da doutrina
católica; o afluxo continuado de escravos da África contribuiu para
que as suas religiões se conservassem vivas, mesmo que a sua prática
fosse castigada com severas sanções. Entre os escravos predominava a
ideia de que o culto africano os protegia mais eficientemente contra a
influência maléfica dos exus do que os sacramentos cristãos.
(STRIEDER, 2000, p.227)
Por anos, até a década de 30 do século XX, conforme Sant’Anna (2001), os
terreiros de candomblé foram perseguidos e seus cultos proibidos. A resistência se deu
pela aliança com os santos católicos e com personalidades influentes da sociedade.
D’Adesky (2009, p. 53) afirma que “é exatamente no candomblé que os negros devem
- 37 ter atravessado os séculos de escravidão sem perder todos os elementos de sua
identidade” e é praticamente impossível compreender a cultura brasileira sem passar
pelos cultos negros. De acordo com o autor, atualmente, o terreiro de candomblé, além
de um local de reunião, continua sendo uma fonte de proteção e orientação,
simbolizando a afirmação existencial, herança dos antigos escravos.
No ano de 1984, o tombamento da Casa Branca do Engenho Velho - Ilê Axé
IyáNassóOká -, em Salvador, no Estado da Bahia, como Patrimônio Cultural Brasileiro,
foi uma ação importante e inédita do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) do Ministério da Cultura. A Casa Branca foi o primeiro templo
religioso não católico a ser tombado, com inscrição no Livro Arqueológico, Etnográfico
e Paisagístico4.
Na cidade do Rio de Janeiro, os cultos de origem africana passam a ser
conhecidos como macumba, em virtude da influência religiosa dos negros de origem
muçulmanos, haussas e malês, que se misturavam ao candomblé. Sobre o assunto,
Gardel (1995) comenta que, neste contexto de religiosidade na cidade do Rio de Janeiro,
os negros malês eram os maiores feiticeiros, pois lançavam mão de práticas que
ofereciam bens materias, amores e vinganças.
Com a chegada da religiosidade afrocarioca, houve a contribuição de Mãe
Aninha de xangô, oriunda do Centro Cruz Santa do Axé de Opô Afonjá, que em 1886
chega ao Rio de Janeiro, na Campânia de Bamboxê e Obá Saniá, considerados líderes
religiosos. Na cidade o Rio de Janeiro, Mãe Aninha de xangô abriu uma casa de santo
no bairro da Saúde e em seguida no bairro de São Cristovão. Com a Reforma Pereira
Passos, a casa de santo segue para Baixada Fluminense, especificamente, para o bairro
de Coelho da Rocha.
Lima (1987) informa que o terreiro de Mãe Aninha teve Conceição de Omulu,
sua primeira filha de santo, iniciada na cidade do Rio de Janeiro. Após a morte de mãe
Aninha, sua sucessora passa a ser Agripina de Souza. E este terreiro até os dias de hoje
ministra encontros religiosos no bairro da Baixada Fluminense em Coelho da Rocha.
D’Adesky (2009) declara que, ainda hoje, a religião de matrizes africanas é um
gerador de sociabilidade e de comunidade negra, e é aberta, pois se pode frequentar
livremente aos cultos de diferentes religiões sem críticas. Atualmente, além dos negros
4
<http://racismoambiental.net.br/2011/02/ba-terreiro-de-candomble-e-reconhecido-como-patrimonio-dobrasil/>
- 38 pobres, outros grupos étnicos e de diversos níveis sociais também passaram a frequentar
espaços religiosos de origem afro em busca de proteção e solução para seus problemas.
Enfim, a crença do povo africano era tão forte e concreta, que mesmo diante da
discriminação e de aculturação forçada, conseguiu resistir a uma sociedade eurocêntrica
e elitizada, que definia qualquer expressão religiosa diferente do que acreditava como
sendo coisa do mal.
1.6 Samba: voz e ritmo negro
Samba é expressão da ancestralidade africana, que hoje se tornou um patrimônio
cultural brasileiro, mas nem sempre foi assim. Esse ritmo é o resultado de muita luta e
táticas de resistência para afirmar a identidade de um povo. De acordo com Abib
(2004), o samba está relacionado à transmissão de saberes e conhecimentos pela
memória e oralidade.
Surgiu no século XVI, na época da colonização. Segundo Silva (2013), o samba
é celebrado em todo país em inúmeros gêneros e subgêneros, reflexo do que foi
difundido ao longo dos séculos pelos negros oriundos da África e seus descendentes.
Abib (2004) confirma ao dizer que se trata de uma manifestação afro-brasileira
considerada uma das mais importantes, além de ser o maior símbolo de nossa cultura,
ao lado da capoeira.
O nome ‘samba’, comenta Silva (2013), é originário da dança da umbigada,
também conhecida como batuque, dança originária da África trazida ao Brasil pelos
navios negreiros na época da escravidão, que tinha como finalidade festejar a
fertilidade. Cascudo (1971) informa que a música da umbigada, no início, era com ritmo
lento e ia acelerando pouco a pouco e a dança era sensual e libidinosa, uma vez que se
formava uma roda com dançarino ao centro, que batia com a barriga na barriga de outro
do sexo oposto. Silva (2013) aponta que os dançarinos, um homem e uma mulher, ao
encostarem seus umbigos, gritavam semba, que evoluiu para o nome que temos agora
samba.
O “encontrão”, dado geralmente com o umbigo (semba, em dialeto
angolano), mas também com a perna serviria para caracterizar esse
rito de dança e batuque, e mais tarde dar-lhe um nome genérico:
samba. Nos quilombos, nos engenhos, nas plantações, nas cidades,
havia samba onde estava o negro, como uma inequívoca demonstração
de resistência ao imperativa social (escravagista) de redução do corpo
negro a uma máquina produtiva e como uma afirmação de
continuidade do universo cultural. (SODRÉ, 1998, P. 12).
- 39 -
Segundo Vasconcelos (1991), a forma cruel como eram tratados os escravos, de
certa forma, era atenuada pelas danças e resíduos das canções típicas africanas das
senzalas e nas festas negras. Uma dessas danças típicas denominava-se lundu, que logo
veio a se tornar o gênero musical mais famoso no Brasil, apesar da resistência que a
sociedade brasileira oferecia a qualquer manifestação artística da etnia negra. Antonacci
(2009) informa que houve restrições e proibições de danças e do som de negros
referente ao ritmo lundu, além de queima de instrumentos musicais em praça pública
que ocorreu em todo Brasil.
A comicidade e a referência à sensualidade, assuntos tratados de maneira mais
livre nas letras, eram as principais características do lundu. Conforme Sandroni (2008,
p.52), “Esta noite, oh céus, que dita,/ Com meu benzinho sonhei.../Eu passava pela rua,
ela chamou-me, eu entrei.../ Deu-me um certo guisadinho/ Que comi muito e gostei/ Do
ardor das pimentinhas/Nunca mais me esquecerei” é um trecho de uma música de lundu,
que ao invés de sentimentalismo, ocorre o duplo sentido, uma vez que comida funciona
como metáfora de sexo. Ainda de acordo com o autor, a sexualização da comida seria
uma referência ao afro, pois a mulata, elemento de desejo, encarregava-se das refeições
dos senhores. Como exemplo de lundu cômico, temos o “Lá no largo da Sé Velha” de
Cândico Inácio da Silva (1800 – 1838): “Lá no largo da Sé velha/ ‘stá vivo um longo
tatu/ Numa gaiola de ferro/ Chamado Surucucu./ Cobra feroz/ Que tudo ataca;/ ‘té
d’algibeira/ Tira pataca/ Bravo! À especulação/São progressos da nação...”
Silva (2013) comenta que estas características eram bem diferentes dos gêneros
importados da Europa e foi o diferencial para que o lundu conseguisse penetrar na
sociedade brasileira. Sandroni (2008) comenta que, para Mario de Andrade, o lundu foi
a primeira dessas ‘coisas de negros’ que se espalhou por todas as classes brasileiras e se
tornou música ‘nacional’ na época.
Até o início do século XIX, “revelando o potencial de reinvenção de culturas
orais em diáspora, o lundu era dançado até em festas de ‘bodas e batizados’, com
‘braços tipicamente erguidos’, em ‘espécie de convulsão inebriante’”, conforme
Antonacci (2009, p. 58). No final do século, o lundu começa a passar por
transformações, sendo dançado ao som de zabumba (bombo ou bumbo), instrumento de
origem negra e rabeca, de origem árabe, conhecida como sanfona em Portugal.
Moura (1995) declara que a polca, de origem européia, apresentava semelhança
na divisão rítmica com o lundu, de forma que a sua fusão desses dois ritmos possibilitou
- 40 um novo desdobramento chamado de maxixe, outro gênero musical que teve vital
importância na formação do samba carioca.
Segundo Tinhorão (1974), o maxixe teve seu o aparecimento, inicialmente,
como dança, por volta de 1870 e marca o início da primeira grande contribuição das
camadas populares do Rio de Janeiro à música do Brasil. Costa (2000) comenta que o
maxixe teve, como divulgadores, o carnaval, o teatro de revista e as Grandes
Sociedades, em que se destacam os Estudantes de Heildelberg, Fenianos e
Democráticos. As Grandes Sociedades, segundo Silva (2013), foram, por décadas, a
grande representação do carnaval e não faltava o maxixe nas suas festas.
O maxixe era uma dança, originária do bairro da Cidade Nova, no Rio de
Janeiro, que sofreu com o preconceito existente nas camadas sociais mais ricas. Em
1872, o bairro da Cidade Nova, situado no município do Rio de Janeiro, já tinha como
características o fato de ser o bairro mais populoso da cidade e o de divertimentos de má
fama, contudo, o maxixe ganhou muitos adeptos com o passar do tempo, como diz
Costa (2000).
Foi na residência da baiana tia Ciata5, Hilária Batista de Almeida, que ocorreram
as principais reuniões de sambistas, chorões e poetas do Rio de Janeiro na virada do
século XIX para o XX e esses encontros, chamados de pagodes, eram também
realizados nas casas de outras “tias” baianas da Cidade Nova, conforme Costa (2000).
Como a casa da tia Ciata sofria menos repressão policial, pela influência de seu
marido, João Baptista da Silva, quanto funcionário público e depois ligado à polícia
como burocrata, Moura (1995) declara que se tornava local ideal para as reuniões e
afirmação do negro, pois se desenvolviam atividades coletivas referentes ao trabalho, ao
candomblé, além de se brincarem, tocarem, dançarem, conversarem e se organizarem.
Ainda segundo o autor, outro fator, que contribuiu para que as festas
acontecessem com maior frequência na casa da tia Ciata, mãe de santo respeitada, foram
os favores concedidos por ela, uma vez que a alta sociedade da época passou a consultar
os ‘feitiços’ africanos, como eram chamados.
Ciata começa a manter relações com gente do outro lado da cidade, a
ponto de eventualmente contar até “com os seis soldados do coronel
Costa”, que ficam garantindo dubiamente a festa africana,
5
De acordo com Moura (1995), Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata, é relembrada em
todos os relatos do surgimento do samba carioca e dos ranchos. Ela nasceu em Salvador em 1854 no dia
de Santo Hilário e em 1876 chegou ao Rio de Janeiro. Trabalhou como doceira na Rua Sete de Setembro
e depois na Carioca com sua vestimenta de baiana.
- 41 provavelmente alguns deles negros, o que dá maior espanto à situação
(MOURA, 1995, p. 101)
Muitos dos grandes protagonistas do samba no Rio de Janeiro, como
Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, surgem ainda crianças,
quando participavam das rodas de samba que aconteciam na casa da tia Ciata, onde,
conforme Moura (1995), aprenderam as tradições musicais baianas, e depois deram uma
forma nova, carioca. Portanto, o samba carioca recebeu influência dos negros baianos,
que ao virem para o Rio de Janeiro, trouxeram uma bagagem cultural rítmica e
melódica, que passou por transformações até termos o samba de hoje, segundo Abib
(2004).
... Famílias baianas que, desde as últimas décadas do século XIX,
habitavam o bairro da Saúde, espalhando-se mais tarde pela zona
chamada Cidade Nova, com ramificações no Mata-Cavalos
(Riachuelo) e Lapa. Naquela região, famosos chefes de cultos
(ialorixás, babalorixás, babalaôs), conhecidos como tios e tias,
promoviam encontros de dança (samba), à parte dos rituais religiosos
(candomblés) (SODRÉ, 1998, P. 14).
Sabendo-se que nas festas familiares, através dos ranchos6, tocava-se e dançavase o samba, que experimentava seu contato com a sociedade elitizada. No final do
século XIX, através de táticas com recuos e avanços, de acordo com Sodré (1998), o
samba já se infiltrava na sociedade branca. Os ranchos, com organização estrutural
negra, aproveitavam da festa europeia do carnaval para retomar, dos cordões, táticas de
penetração coletiva, através da música e dança, da identidade da cultura negra.
Sodré (1998, p. 36) comenta que, inicialmente, os ranchos se apresentaram com
incursão mais selvagem, passando depois a atuar no carnaval como uma espécie de
“‘teatro lírico ambulante’: à música (com orquestra e coral), juntava-se as criações
plásticas realizadas por artistas conhecidos da época”. Dessa maneira, eles deixavam os
cordões (com maiores características da cultura negra) e passavam pelo processo de
ressignificação para integrar-se à sociedade branca. Surgindo, assim, as escolas de
samba.
Com essa base institucional e territorial, artistas negros e mestiços
(Pixinguinha, João da Baiana, Donga, Sinhô, Patrício Teixeira, Heitor
dos Prazeres e outros) começaram a atuar profissionalmente e a
penetrar gradativamente em orquestras, emissoras radiofônicas,
6
Silva (2013) declara que a música era uma espécie de lundu sapateado, e tinha acompanhamento de uma
orquestra composta por violões, violas, ganzás, pratos, castanholas e, às vezes, flautas. Além disso, as
pessoas, chamadas de pastores e pastoras, se vestiam com fantasias vistosas e diversas para participarem
dos festejos.
- 42 gravações fonográficas, aulas de violão para grã-finos, etc. (SODRÉ,
1998, p. 37).
Os
ranchos
carnavalescos
eram
formados
predominantemente
por
afrodescendentes e pobres, e através de sua presença oficial nos desfiles carnavalescos,
na cidade do Rio de Janeiro, afirmavam sua identidade cultural tranquilamente, segundo
Silva (2013). Nesse contexto, a autora ainda comenta que um grupo de sambistas do
bairro do Estácio (Ismael Silva, Nilton Bastos, Baiaco, Mano Edgar, Mano Rubem,
Osvaldo Papoula, Aurélio, Nanal, e outros) decidiu formar uma agremiação respeitosa e
admirada e denominaram ‘Escola de Samba’ esse ideal de escola carnavalesca,
surgindo, assim, a primeira Escola de Samba ‘Deixa Falar’. A novidade alastrou pela
cidade, principalmente, pelos morros e subúrbios.
Silveira (2012) expõe que o bairro Estácio surgiu, no final do século XIX,
formado pelo loteamento e arruamento de chácaras na Mata dos Porcos (atual Frei
Caneca), antigo Mangal de São Diogo (Cidade Nova), Morro Santos Rodrigues (Ru
Maia Lacerda), São Carlos e terras do Catumbi. Nesse bairro viviam negros oriundos
dos cortiços do centro, antigas plantações do sudeste e nordeste, e judeus. Ainda de
acordo com o autor, no final do século XIX e início do século XX, com a implantação
da cervejaria Brahma no Estácio, houve um crescimento no comércio frequentado por
malandros, cafetões e prostitutas, o que estigmatizou o bairro como uma área de
malandros, porque constantemente policiais estavam realizando prisões. No entanto,
esse local também era habitado por uma pequena burguesia, trabalhadores menos
qualificados, empregadas domésticas, vendedores ambulantes e trabalhadores
autônomos, retomando os antigos negros de ganho, que vendiam seus serviços sem
vínculos trabalhistas.
Um bairro com diversidade de pessoas, também apresentou sincretismo religioso
e cultural, pois, de acordo com Silveira (2012), nos terreiros religiosos, bares, cabarés
ou rodas de samba, os moradores estabeleciam relações de amizade com outros de áreas
diferentes, como Praça Onze, Salgueiro, Madureira e Oswaldo Cruz, e além disso, os
sambistas negros também tinham contato com intelectuais que frequentavam esses
pontos de encontro, como Almirante e Noel Rosa. Nesse sentido, através de tensões e
disputa, trocando experiências entre si, provocaram mudanças no ritmo do samba.
Dentro do samba, formada no início da década de 70, temos a “Velha Guarda da
Portela”, sinônimo de respeito à ancestralidade, por reunir antigos sambistas de
Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. Silva (2013) afirma que o samba significa origem, raiz e
- 43 tradição. É a essência que narra o cotidiano do homem comum através do canto e do
ritmo, dando destaques para a população pobre.
Diogo Nogueira e Inácio Rios compuseram “Samba pros poetas”, em que faz
uma homenagem aos consagrados do samba, além de mostrar que se trata de um ritmo
de diáspora africana e de caráter popular e brasileira.
O povo clamando pro samba não morrer/ Sambista de fato não deixa
esmorecer/Bate no peito com raça e dignidade/ O samba vem de
Angola/Mexe meu peito, a mais pura verdade./Dizem que o samba da
gente já morreu/ Isso é conversa fiada, o samba cresceu./ E Donga
dizia pelo telefone/ Que o samba é a alma do povo/ Raiz verdadeira,
Brasil é o seu nome./ Samba de Monarco e Ratinho/ De Noel, de
Madeirinho e do Silas de Oliveira/ Samba de Katimba e Da Vila,
Dona Ivone e Jovelina/ E também João Nogueira/ Samba pros poetas
de verdade/ Do Paulinho da Viola e pro Nelson Cavaquinho/ Olha que
o Candeia foi chegando/ E o sem Braço foi versando/ Devagar, no
miudinho (DIOGO NOGUEIRA E INÁCIO RIOS, SAMBA PROS
POETAS, 2007)
E assim, por tudo que foi considerado, chega-se à conclusão de que a cultura
africana conseguiu permanecer com transformações. Woodward (2000) comenta que,
por meio dos antecedentes históricos e a busca ao passado, reafirma as identidades e faz
surgir outras novas. D’Adesky (2009) complementa afirmando que, para a população
negra, a história revela a sua marginalização, que é escondida para que a história da
classe dominante fique em evidência por ser considerada como bela e digna de
engrandecimento. Ainda continua o autor que a história dos povos dominados, contribui
para que haja uma valorização do passado e afirmação do sentimento de existência de
uma história positiva, tornando, portanto, um alicerce para luta, através de táticas de
resistências, contra o preconceito étnico e cultural.
Assim, essa redescoberta do passado é parte do processo de
construção da identidade que está ocorrendo neste exato momento e
que, ao que parece, é caracterizado por conflito, contestação e uma
possível crise (WOODWARD, 2000, p.12)
Nesse sentido, a manutenção da cultura de um grupo se solidifica e
consequentemente, após vários processos de resistência, algumas das culturas afro
passou a ser reconhecida, como o samba que é cantado e dançado, os quilombos
protegidos legalmente, a religião é citada nos programas nas novelas e telenovelas, sua
comida é prestigiada, o jongo da Serrinha é reverenciado por autoridades nacionais.
Além as manifestações afro também serem citados em ambientes acadêmicos como
cultura e como elemento formador da identidade carioca e, em alguns casos, nacional.
- 44 A partir dessas considerações é que vamos dar continuidade a esta investigação
com mais uma prática de resistência que ganhou uma nova roupagem por parte dos
jovens afro cariocas das comunidades marginais e periféricas. E, consequentemente,
interferiu e interfere na identidade da cidade através de seu ritmo, linguagem, expressão
corporal, trajes e costumes. Trata-se do funk, movimento atraiu e ainda atrai milhares de
admiradores, principalmente negros e pobres, e que a classe dominante insiste em
discriminar.
- 45 -
Capítulo 2
Música, Ritmo e Dança: o Funk em cena na periferia carioca
Este capítulo considerará a importância da música, ritmo e dança para a cultura
afro, e como se dá a relação delas com o corpo. Para os negros, a música, o ritmo, a
dança e o corpo não são elementos dessociáveis e há uma conexão entre eles.
Ao longo da história, a música desempenhou um papel importante no
desenvolvimento social, político, religioso e moral do ser humano, contribuindo, assim,
para construção de hábitos e valores. Desse modo, os povos africanos enxergavam a
música ritmada acompanhada da dança como elemento fundamental para a manutenção
de uma ancestralidade e religiosidade.
Os negros, ao chegarem ao Brasil, através do tráfico de escravos, trouxeram
consigo seu ritmo adquirido por instrumentos de sua terra natal, como tambor,
berimbau, agogô e reco-reco e incorporaram instrumentos de origem portuguesa, como
pandeiro, viola e rabeca. No funk, surge a batida tamborzão em que a representação
eletrônica do som reproduz instrumento afro com a tecnologia dos tempos atuais.
Os negros também trouxeram suas danças e movimentos corporais, muitas
vezes, sensuais. A música e o ritmo entram em conexão com a dança e o corpo, se
completando. Nesse sentido, a cultura afro dos primórdios contribuiu para a formação
da cultura brasileira, e se reflete nos movimentos culturais dos tempos atuais, como, por
exemplo, o samba e o objeto de estudo desse trabalho, o funk.
Será considerado, brevemente, sobre a formação geográfica e social das
periferias, subúrbios e favelas, locais onde há concentração da classe pobre e negra, e
um dos redutos em que as manifestações culturais acontecem. O funk inicia-se na zona
sul do Rio de Janeiro, em meio à classe elitizada, com a importação de ritmo Black dos
EUA. No entanto, migra para a periferia, onde assume características próprias, se
tornando um ritmo carioca de negros e pobres de comunidades.
O presente capítulo abordará também o contexto histórico do funk, como surgiu
e quais táticas de resistência o movimento passou e ainda passa, uma vez que por ser
tratado como música de negro e favelado, como todas as culturas de origem ou base
africana, sofre discriminação e seus participantes são classificados como marginais e
sua cultura de nível inferior.
- 46 Hoje o funk é considerado Patrimônio Cultural do Estado do Rio de Janeiro,
através da Lei Nº 5543, de 22 de setembro de 2009, porém até a chegada do
reconhecimento como movimento cultural de caráter popular, houve leis que impediram
ou controlavam os encontros. O funk é uma expressão cultural de afirmação identitária e
também de resistência, que conseguiu alcançar algumas vitórias, contudo ainda continua
na luta, através de estratégias para conseguir espaço dentro de uma sociedade
dominante.
2.1 A música e o ritmo negro.
A música sempre fez parte da vida das pessoas e em quase todos os momentos,
de maneira que não tem como pensar em identidade sem considerar a linguagem
musical. No período colonial, no Brasil, as músicas dos brancos consistiam em hinos
religiosos, toques e marchas religiosas. Já as músicas africanas apresentavam
características próprias da sua terra natal, com alterações provocadas pelo processo de
resistência – ritmo e dança, de acordo com Sodré (1998).
O negro, dentro de suas manifestações culturais, tem o canto e a dança numa
sintonia que permite que um complete o outro. De acordo com Sodré (1998), as músicas
negras são basicamente rítmicas, diferentes da música ocidental, que conduz à arte
individualizada e solitária, se firmando como autônoma. E Rodrigues (2010)
complementa que há presença de mesmos instrumentos para as diversas manifestações
musicais, como o atabaque, marimba, maribáo, canzá, matungo e o instrumento de
excelência do negro, o tambor.
Na cultura africana, a música sempre foi carregada de sentido, associada às
danças, lendas, mitos e objetos, permitindo a interação entre o mundo visível e invisível.
Nos ritos da religiosidade, de acordo com Souza (2006), a dança em círculos e o ritmo
dos tambores são elementos imprescindíveis. Inclusive, os tambores não podiam ser
tocados por qualquer pessoa, pois se tratava de elementos intermediários com o sagrado.
Cada ritmo permitiu e permite a incorporação de uma entidade com características
próprias, como toques, cores, adereços, roupas, comidas e gestos; e os ritmos acelerados
acompanham transe dos médiuns, que assumem posturas corporais e vozes diferentes.
A autora ainda observa que ao lado do tambor e outros instrumentos de origem
africana - o berimbau, o agogô e o reco-reco, juntaram-se aos instrumentos de origem
portuguesa, como pandeiro, viola e a rabeca, para animar as danças e festas.
- 47 Hoje em dia, esse som do tambor, também está presente no ritmo funk, se
tornando figura importantíssima, pois funciona como som base. O Mc TG107, morador
de Mesquita, explica que o tamborzão funciona como uma batida base para qualquer
letra e que antes era Volt Mix, uma batida mais lenta. Complementa o Mc que o
tamborzão tem um ritmo mais acelerado, sendo, portanto, mais apropriado para dançar,
uma vez que é mais envolvente.
Não há registro oficial de quem produziu esse som, mas, dentro do movimento,
acredita-se que essa batida aconteceu na zona oeste do Rio de Janeiro no final da década
de 90, através do ex-locutor, produtor e DJ carioca, Luciano Oliveira, conforme
Ivanovici (2010). Conta ainda a autora que Luciano, na tentativa de colocar sons
percussivos nos timbres eletrônicos, descobriu um som de atabaque bem grave numa
bateria eletrônica modelo R-8, e fez um loop (repetição de som constante) do atabaque,
e este som ficou conhecido como “atabacão”.
A percussão do atabacão (tamborzão) segue as modificações inerentes no
mundo, que está em constante transformação, de forma que esse som se alia à
tecnologia, dando aspecto de discotecagem. A primeira gravação com essa batida
ocorreu em 98 com o Rap do Comari dos Mc’s Tito e Xandão e no mesmo ano, o Dj
Cabide, equipe de som A Gota, produziu a montagem “UUU a Gota”, que fez sucesso
na Rádio Imprensa carioca por ter um ritmo que estimulava a dança.
Foi no Festival de Galeras dos Coroados, em 2000, na Cidade de Deus que o
atabacão passou a ser conhecido como tamborzão, em que a batida virou hit como
Bonde do tigrão com a música “Cerol na mão”:
...Vou passar cerol na mão, assim, assim/ vou cortar você na mão/ vou
sim, vou sim/ Vou aparar pela rabiola, assim, assim/ E vou trazer você
pra mim, vou sim, vou sim/ Eu vou cortar você na mão/ Vou mostrar
que eu sou tigrão/ Vou te dar muita pressão/ Então martela, martela/
Martela o martelão/ Levante a mãozinha na palma da mão/ É o Bonde
do Tigrão (CEROL NA MÃO, BONDE DO TIGRÃO, 2000).
Essa música fez um grande sucesso, sendo lembrada até nos dias atuais. Além do
ritmo, a aparente inocência caiu no agrado da sociedade.
7
Mc TG 10: Entrevista realizada em 25 de junho de 2013. Com 27 anos, há três no mundo funk,
reconhece que entrou mais velho, pois as pessoas costumam entrar mais cedo. O que favoreceu sua
aceitação no movimento, além de cantar, foi também a criatividade e facilidade de improvisação,
característica de um Mc. “o mc que sabe rimar, tem a criatividade de fazer uma rima na hora... é um dom.
eu vinha com esse dom e a facilidade de rimar”. Começou em festinhas de amigos, até que uma amiga,
que dançava na Jaula das gostosuras, o apresentou ao empresário (San Danado), que resolveu investir
nele.
- 48 Ivanovici (2010) comenta que o produtor e Dj Sany Pitbull (Sérgio Reis Silva)
da equipe Live, disse que, com o tamborzão no funk, as raízes africanas ganham força
como os outros ritmos em que há uso de tambor, atabaques e berimbaus. A autora
também comenta que para o Dj Cabide, que produziu bases para Mr. Catra e MC Frank,
o tamborzão tornou-se indispensável para assegurar o balanço do funk.
Os ritmos utilizados no jongo, capoeira, samba e religiosidade transmitem
informações que “não são algo separado do processo vivo dos sujeitos da transmissãorecepção. O transmissor e o receptor se convertem na própria informação advinda do
som”, elemento indispensável nas culturas africana (SODRÉ, 1998, p. 20) e no funk não
é diferente. Não se trata de um ritmo unidirecional, em que o espectador permanece
inerte, olhando o espetáculo, mas ocorre a interatividade, tanto do transmissor como do
receptor.
Karasch (2000) destaca que a música para o negro sempre foi cantada na ocasião
de dor, de tristeza e de alegria. Os ritmos cantados por eles, os africanos ou crioulos,
variavam entre lamentos e saudades da terra natal até os mais alegres. A música e a
dança não são elementos desassociados, pois, nos momentos de cultos e fé a seus
ancestrais, tais aspectos de canto e movimento do corpo se fazem presente.
Para o negro, o ato de cantar sempre acontecia nos períodos de suas atividades
de trabalho ou folgas. Cascudo (1971, p. 61) observa que os negros carregavam objetos
pesados “pendurando-os por meio de um par de correias naqueles paus nos ombros de
dois deles, levando em seguida, ao seu destino”, porém quando se tratava de uma carga
pesadíssima, outros ajudavam - quatro, seis, ou mais homens, formando assim um grupo
e para que houvesse uniformidade nos passos, entoava-se uma canção africana, curta e
simples, em que um era escolhido como capitão e os outros cantavam a cantiga em alto
coro. O canto, durante o trabalho, funcionava como alívio do peso da carga, bem dava
alegria e revigorava. Conforme Vianna (1988), a reunião de pessoas com seus
movimentos, danças, cantos e gritos produz energia que é redistribuída para todos os
membros.
Após as refeições, os negros ao invés de descansarem, aproveitavam seus
momentos folgas para cantar e dançar. Cascudo (1971) comenta que as canções dos
negros davam às ruas uma alegria que de outras formas lhes faltaria. O funk para as
comunidades também exerce esse poder de aliviar as tensões do dia a dia e suportar as
dificuldades e condições que lhe faltam.
- 49 De acordo com Vianna (1988), ir ao baile se torna um divertimento em grupo,
em que o coletivo tem força, reafirmando crenças grupais e as regras de convivência,
estabelecendo e reavivando laços sociais. O divertimento ao som do ritmo funk passa a
ser uma fuga rápida das obrigações cotidianas, restabelecendo o coletivo de energia.
Ainda no passado, na passagem do século XIX para o século XX, muitos foram
os ritmos musicais e danças que aconteciam nos encontros entre negros que marcaram
uma época. Eles sofreram perseguições e foram criticados, servindo de vergonha para as
famílias da elite pelos movimentos sexuais executados pelos bailarinos negros, tanto
masculinos como femininos. A letra musical do negro também era considerada
grosseira e baixo nível, quando não imoral e desrespeitosa.
Em 1941, “Bonde de São Januário”, Composição de Wilson Batista e Ataulfo
Alves, precisou passar por adaptações, uma vez que sua versão original não agradava ao
político do momento, sendo alteradas em sua essência.
Bonde de São Januário
Versão original
Bonde São Januário
Versão permitida
Quem trabalha/É quem tem razão/Eu
digo/E não tenho medo/De errar
Quem trabalha/É quem tem razão/Eu
digo/E não tenho medo/De errar
O Bonde São Januário/Leva mais um
sócio otário/ Só eu não vou trabalhar
O Bonde São Januário/Leva mais um
operário/Sou eu que vou trabalhar
Antigamente/Eu não tinha juízo/Mas
hoje/Eu penso melhor/No futuro/Graças a
Deus/Sou feliz/Vivo muito bem/A
boemia/Não dá camisa a ninguém/Passe
bem!
Antigamente/Eu não tinha juízo/Mas
hoje/Eu penso melhor/No futuro/Graças a
Deus/Sou feliz/Vivo muito bem/A
boemia/Não dá camisa a ninguém/Passe
bem!
O governo de Getúlio Vargas (1930 -1945), no período do Estado Novo, cria o
DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), pelo decreto no. 1.915, de 27 de
dezembro de 1939, que ficou responsável em centralizar e coordenar as propagandas
nacionais; incentivar a produção, fazer censura e classificar os filmes nacionais para
- 50 concessão de prêmios e valores, bem como conceder outras vantagens sob sua
competência; aproximar e estreitar as relações entre a imprensa e os poderes públicos,
sempre visando o interesse nacional; realizar o controle de publicações estrangeiras para
que não venham ao encontro da ideologia nacional; promover, patrocinar ou auxiliar
manifestações cívicas e festas populares com intenção patrióticos; e outros mais.
O controle exercido pelo DIP, para que o projeto de cultura nacional
não fugisse às diretrizes traçadas pelo governo, permitia ao Estado
atuar como guardião da “arte popular”. A música popular, por
exemplo, era vista como elemento importante de propaganda e
doutrinação política devido seu alto “poder de sugestão” (AFONSO,
2010, p. 3)
O Estado em vigor acreditava que o trabalho e sua valorização contribuiriam
para riquezas e bem estar nacional, de forma que era necessária a sua promoção, porque
além do sustento, o trabalho também era um modo de servir à nação, conforme Afonso
(2010).
Nesse sentido, o trecho do “Bonde São Januário” – “O Bonde São Januário/Leva
mais um sócio otário/ Só eu não vou trabalhar” – iria ao encontro da ideologia do
Estado Novo, de que quem não gostava de trabalho, o malandro cantado nos sambas,
não tinham vez e deviam ser combatidos. Afonso (2010) comenta que o DIP intervinha
dando conselhos e sugestões de letras. Os autores, então, fazem adaptações –“O Bonde
São Januário/Leva mais um operário/Sou eu que vou trabalhar.”
A história se repete com o funk, quanto à necessidade de outra versão para ser
apresentada à sociedade. Existe a versão original, a que é tocada nos bailes das
comunidades, e a versão light, tocadas para a sociedade. Mc TG 10 e Jerônimo Souza8,
organizador de eventos e bailes em Mesquita, explicam que é feito uma música, em que
a sociedade considera proibida por ter palavrão e palavras obscenas, e estas são cantadas
nos bailes.
De acordo com os entrevistados, quando a mesma música vai ser tocada em
programas de rádio e de televisão, há necessidade de modificar algumas palavras, a fim
8
Jerônimo Souza: Entrevista realizada em 05 de setembro de 2013. Atualmente possui 22 anos. Há três
anos faz eventos pela equipe de som Tom & Jerry, fundada a partir da união de amigos. A equipe já
realizou diversos shows que conseguiu reunir entorno de 4 a 6 mil jovens. Trabalha, de forma geral, com
Mcs do Rio de Janeiro e São Paulo, sendo muito deles de comunidades, como Mc Max, Mc Smith, Mc
Magrinho e outros, pois, segundo o entrevistado, “90 % dos Mcs vêm da favela, a maior parte”.
- 51 de ser aceita pela mídia, logo por essa sociedade. Nem todos os funks são feitos em
duas versões. Alguns não precisam de versão light, pois suas letras são aceitáveis.
“Tem a versão light e a versão mais pesada. Quando é em casa de
show com contrato direitinho é a light. Quando faz como no estádio
do América, por exemplo, é mais pesado. Até porque o grupo jovem
gosta disso, porque falam da sacanagem e do momento. Os jovens
curtem isso”. (JERÔNIMO SOUZA, ORGANIZADOR DE BAILES)
Mc Debby9 diz que, no seu caso, a música “Vou dançar pelada” apresenta três
versões: a do Baile – “Vou dançar pelada”; a versão que é tocada nas rádios – “Vou
dançar sem nada”; e a versão da Furacão 2000 – “Vou dançar danada”. A Furacão não
gosta de palavrão e de algumas expressões mais maliciosas, pedindo que seja feita
algumas mudanças para tocar nos shows promovidos por eles.
A música da Mc “Levanta a saia” (2012) – “Depois da meia noite/ No baile
acaba a censura/ Pode fazer o que quiser/Pode fazer loucura/ O combo já acabou/ As
minas estão embrasadas/E quando é que se acaba?/ Levanta a saia/ Abaixa saia...” –
tem o seu refrão mudado para “Levanta a saia/ ajeita a saia”, quando tocado em mídia
convencional ou shows mais seletistas.
“Na Furacão, queria que “Levanta a saia” ficasse “Levanta a saia,
ajeita a saia”. Eu não vejo nada de mal na música. Naldo canta
músicas puro sexo, só que tem uma levada que passa batido. Quanto à
“pelada”, eu entendo porque a televisão pode mostrar seio, mostrar
bunda, mas não pode falar peito e nem bunda. Há uma certa
hipocrisia. O Brasil vive de bunda todos os dias, mas você não pode
falar de bunda”. (MC DEBBY)
Outro exemplo de duas versões para o mesmo funk é a do Mc GW, que canta o
funk “Tudo Piranha” na versão original e “Tudo Malandra’ na versão light.
9
Mc Debby: Entrevista realizada em 13 de maio de 2014. Foi professora de balé clássico desde 15 anos
de idade. Tinha preconceito com o funk, até que uma aluna, que gostava do ritmo, despertou-lhe a
curiosidade ao falar de James Brown. Como sempre gostou de arte, de ler e de estudar, resolveu pesquisar
sobre o artista, o qual admira até hoje. Fez amizade com Mcs Esquisito e Ricardo do Planeta Xuxa, que a
convidou, a princípio, para dançar e depois para cantar com eles “To ficando molhadinha”. Após
divergências, se separou e gravou várias outras músicas, como “Vou dançar pelada”, “Segura seu
namorado”, “Nóis incomoda”, “Hoje eu to solteira”, “Deixa eu sarrar” etc.
- 52 -
Tudo Piranha
Versão original
(2012)
Tudo Malandra
Versão light
(2012)
Essa é a hora e o momento/ Vâmo brinca
com a mulhé/ Quando eu falar ‘tudo
piranha’/ Você responde:/“Claro que é”/
Tudo piranha?/ “Claro que é”/ Ela é
piranha?/ “Claro que é”/ Sua amiga é
piranha?/ “Claro que é”/ Mas o ritmo
ousado/ Pra geral perder a linha/ Essa é a
hora e o momento/ De brincar com as
amiguinhas/ GW que tá lançando/ Olha
se liga, vê como é que é/ Quando eu falar/
‘tudo piranha’/ Você responde:/ “Claro
que é” / Ela é piranha?/ “Claro que é”/
Sua amiga é piranha?/ “Claro que é”/
GW que vai lançar/ Novinha , que não se
assanha/ Dá um grito no baile,/ Quem tem
amiga piranha.
Essa é a hora e o momento/ Vâmo brinca
com a mulhé/ Quando eu falar ‘tudo
malandra’/ Você responde:/“Claro que
é”/ Tudo malandra?/ “Claro que é”/ Ela
é malandra?/ “Claro que é”/ Sua amiga é
malandra?/ “Claro que é”/ Mas o ritmo
ousado/ Pra geral perder a linha/ Essa é a
hora e o momento/ De brincar com as
amiguinhas/ GW que tá lançando/ Olha
se liga, vê como é que é/ Quando eu falar/
‘tudo malandra’/ Você responde:/ “Claro
que é” / Ela é malandra?/ “Claro que é”/
Sua amiga é malandra?/ “Claro que é”/
GW que vai lançar/ Novinha , que não se
assanha/ Dá um grito no baile,/ Quem tem
amiga malandra.
Piranha é um tipo de peixe fluvial, carnívoro, extremamente voraz e com dentes
afiados, no entanto, assume característica ofensiva quando comparado à mulher. Referese à mulher de vida fácil, promíscua e grande apelo sexual, associando à prostituição.
Por se tratar de um termo pejorativo, ofensivo e machista foi necessário que o autor
substituísse a expressão “piranha” por “malandra”, suavizando, assim a letra, uma vez
que “malandra” está associada, nesse contexto, à esperta e astuta.
Com respeito ainda à música e à dança negra, surge uma perseguição já, na
década de 70, com o cantor e ator negro Toni Tornado ao cantar e dançar seu Soul na
BR3, no V Festival Internacional da Canção em 1970, realizado pela Rede Globo.
A gente corre na BR-3/A gente morre na BR-3/Há um
foguete/Rasgando o céu, cruzando o espaço/E um Jesus Cristo feito
em aço/Crucificado outra vez/E a gente corre na BR-3/E agente morre
na BR-3/Há um sonho/Viagem multicolorida/Às vezes ponto de
partida/E às vezes porto de um talvez/E a gente corre na BR-3/E a
gente morre na BR-3/Há um crime/No longo asfalto dessa estrada/E
uma notícia fabricada/Pro novo herói de cada mês. (BR3 - LETRA DE
ANTÔNIO ADOLFO E TIBÉRIO GASPAR -INTERPRETE TONI
TORNADO 1º LUGAR NO FESTIVAL DA CANÇÃO EM 1970)
- 53 Mello (2003) acentua que as performances de Toni Tornado representaram uma
ameaça à sociedade, um homem negro invadindo a família branca, além de vir a tornar
um líder revolucionário, como os violentos “Panteras Negras” nos EUA, grupo
revolucionário da década de 60 que lutava por seus direitos dos negros.
A letra da música BR3 foi mal interpretada pela imprensa, através do colunista
Ibraim Sued, como apologia às drogas. O intuito do colunista era de divulgar o livro
escrito por seu amigo General Jaime Graça, denominado “Tóxico”, mas implicou na
perseguição e prisão do cantor, conforme Dolores (2009) e Mello (2003). Inclusive, a
atriz Arlete Salles, branca, que estava tendo um romance com Toni Tornado na época,
sofreu restrições na emissora de TV em que trabalhava.
Afirma Mello (2003) que se Toni fosse branco, no V Festival Internacional da
Canção, talvez tudo fosse diferente. Outro fator que intensificou a perseguição e o levou
ao exílio – do seu apartamento para Praça XV, depois Brasília e, por fim, convidado a
sair do país, foi a aproximação dele com o público dos bailes Black da periferia
E nesse contexto musical de representações culturais na década de 70, segundo
Dolores (2009), a música e a dança negra são repreendidas e perseguidas por elite
branca, o que caracteriza o medo de um país ser reconhecido por uma cultura negra. E
completa Mello (2003, p. 390) que “O V FIC deixou um rastro de racismo, uma marca
de preconceito contra artistas da raça negra, aquela que contribuiu para a música
brasileira.”
Essinger (2005) aponta que, com a ascensão dos bailes Black, o movimento
negro e do subúrbio cresceu muito, a ponto do governo se preocupar. Filó, organizador
de bailes Black, comenta que apareciam pessoas infiltradas no movimento para observar
e por algumas vezes, ele próprio era levado encapuzado ao DOPS (Departamento de
Ordem Política e Social) para interrogatórios, pois acreditavam que o movimento era
financiado por dinheiro americano.
Nos dias de hoje, o ritmo e a dança reaparecem num movimento cultural que
passa pelos percalços semelhantes a todas as manifestações tradicionais da cultura
negra, o funk. As danças desse ritmo apresentam marcas que as identificam como
origem africana: “Não mais o requebro de quadris e o meneio de ombros qual a parte
superior e a parte inferior do corpo se tornam quase independentes uma da outra, o que
também é tipicamente africano” (SOUZA, 2006, p. 138).
- 54 2.2 A dança e o tratamento dado ao corpo do negro ontem e hoje
A dança sempre esteve presente nas civilizações como elemento de manifestação
cultural e associada à música, traduz identidade de um grupo. A dança com base na
africanidade, conforme Antonacci (2009), são expressões rítmicas e artísticas e podem
se tornar meios de comunicação importante para compreender os tempos de diásporas,
bem como o cotidiano de escravidão e de colonialismo.
Segundo Rodrigues (2010), a dança é uma das características da cultura negra ao
som dos tambores e das canções africanas. Nesse contexto, o autor afirma que as danças
contribuíram para o gosto artístico do brasileiro, a ponto de termos a dança do tambor,
no Maranhão; maracatus, Alagoas e Pernambuco; e candomblés, batuques na Bahia. É
possível ainda acrescentar o samba, assim como o funk no Rio de Janeiro.
Nas congadas, maracatus, capoeiras e reisados os ritmos africanos
estão na base da música tocada. Também os sambas de umbigada e de
rodas, os jongos, o frevo e muitas outras danças têm passos mais ou
menos fiéis àqueles que realizaram os primeiros africanos e afrodescendentes que dançaram em terras brasileiras (SOUZA, 2006, p.
134).
A dança africana é a busca da inserção do ser humano no cosmo. Paixão (2006)
informa que a dança solicita o corpo em sua totalidade para que os movimentos
realizados integrem os princípios básicos das danças africanas. É o físico e o emocional
interligando-se em uma trama de sentidos utilizando o movimento, gestos, espaço, o
tempo e o ritmo na tradição africana.
A dança imita a vida, isto significa dizer que seus movimentos
representam as diferentes formas de viver, no âmbito do trabalho,
lazer e religiosidade. Explica que toda arte e cultura africana refletem
a experiência de vida e arte do africano. Significa que os movimentos
presentes nas danças dos orixás são retirados da experiência espaçotemporal e simbólica em que o mito e o rito perpassam as várias
dimensões do viver e se traduzem em gestuais e movimentos presentes
nas danças. Desta forma, a dança é a expressão do labor e possui uma
função sagrada (PAIXÃO, 2006, p.54)
Falar de dança implica também falar de corpo, não sobre a questão biológica,
mas culturalmente porque o corpo e seu movimento estão inseridos na história e trata-se
da representação dela. As danças e o movimento dos negros africanos escravizados se
tornaram base para os tempos atuais, pois reinventaram e transformaram a partir do
- 55 contato com outros povos. Antonacci (2009, p.54) comenta que os gestos e ritmos dos
corpos negros contam história, outrora memorizadas e repassadas de geração a geração,
realidades que “materializaram-se em diferentes gêneros não-verbais de comunicação e
expressão no Brasil”. Funcionam como base para a cultura africana no Brasil, dessa
forma o corpo, música e memória são indissolúveis. Nesse sentido, o corpo como
elemento cultural, contribui para construção de identidade.
Focault (1991) comenta sobre ‘corpo supliciado’, ou seja, corpo de quem sofria
os tormentos da dor como forma de punição pelos crimes cometidos ou atribuídos. No
Brasil, período colonial e após a abolição da escravidão negra, o suplício dos escravos
mostrou-se ora como barbarismo arcaico, ora como característica de uma sociedade
escravocrata. Em exemplos literários do período, o corpo supliciado é tanto o espetáculo
de uma justiça privada e infame, como também o membro da sociedade mortificada pela
cultura escravista.
Esse mesmo corpo, no período escravocrata, serviu aos caprichos sexuais de
senhores brancos sobre força e não por concessão. É ele que gerava e fecundava futuras
mãos-de-obra para sustentar os caprichos e luxos do colonizador, além de amamentar e
acalentar os filhos das senhoras brancas. Este corpo também é perseguido por sua arte,
por sua dança e pela voz que emite através de seu canto. Neste contexto histórico, ele, o
corpo negro, passou por várias perseguições pelo seu jeito de vestir, andar e por suas
formas sensuais, bem como sofreu na travessia do atlântico com destino ao solo
brasileiro.
Silva (2003) comenta que esse corpo negro é um elemento que propicia a dança,
através do seu manejo. Estes corpos eram trazidos para o Brasil, como animais
enjaulados nos navios negreiros (tumbeiros), e como elemento de socialização e
descontração, entra em cena, novamente, a dança.
Já na travessia atlântica, trazidos ao convés de tumbeiros para, na
ótica de marinheiros e traficantes, respirarem, exercitarem músculos e
diminuírem índices de mortalidade nas sofridas condições das
viagens, africanos escravizados dançaram. Intercambiaram práticas
culturais, reconhecimentos mútuos, urdindo formas próprias de
compreensão da captura, das guerras e trocas, dispersões e daquelas
temidas viagens (ANTONACCI, 2009, p. 57)
Já em terra, os africanos continuavam a ser tratados como animais precisando ser
adestrados, seus corpos eram chicoteados e castigados. Outra vez, a dança, ritmos,
- 56 corpos e vozes africanas trouxeram sensibilidades e sociabilidades, que foram refeitas
nas Américas, de acordo com Antonacci (2009).
Com o passar dos séculos, este corpo resistente aos suplícios e descasos ganham
representatividade através da arte de dançar sua cultura. Silva (2003) informa que, na
capoeira, ele revela sua arte, passando a ser um instrumento-mor – no rodopiar das
pernas, nas batidas das mãos, no toque, no cantar, nas expressões faciais, na sintonia, na
agilidade e na simbologia dos gestos corpóreos, etc.
É com o decorrer do tempo este corpo passa a ser conhecido por suas agilidades,
malemolência e destreza na arte de dançar e ganha notoriedade no universo das artes,
seja no futebol ou na dança. Várias foram as artes de dançar do negro que marcaram e
ainda marcam um período cultural no cenário carioca, tendo em vista o sucesso da
dança do samba, do soul,do charme e para concretizar o objeto desta investigação a
dança do funk.
O corpo no funk também pode ser comparado ao instrumento-mor da capoeira,
porque ele realiza vários movimentos - requebra, rebola, mexe, sacode o bumbum, etc.
Mc Koringa, na sua música “Danada vem que vem” (2013), menciona a relação do
ritmo com o corpo na dança:
Quem quer curtir a vida/ Quem quer se divertir/ Vem com o
mckoringa/ E deixa o corpo sacudir
Vai danada vem que vem/ Rebola até o chão/ Requebra que hoje/ Eu
quero ver bumbum mexendo/ Vou pedir pro dj toca só pra te ver
dançar/ Vem pro meu mundo se acabar
Hoje à noite ta boa pra curtir/ Solta o corpo balança vem dançar/ Se
você gosta de se divertir/ Pega lá mais um copo e vem pra cá/ O dj vai
soltar o pancadão/ Porque essa eu fiz para você dançar/ Na batida do
funk tamborzão... (grifo meu).(MC KORINGA, DANADA VEM
QUE VEM, 2013)
A importância do corpo faz com que ele tenha valorização por parte dos
dançarinos. Mc Mary May10 diz que a preocupação em ser bem vista faz com que as
pessoas coloquem silicone nos seios, bunda e pernas, cuidem dos cabelos e pratiquem
atividades físicas, no geral, musculação, com o intuído de terem corpos bem torneados.
10
Mc Mary May: Entrevista realizada em 7 de novembro de 2013. Possui 18 anos, mas está atuando
como Mc desde seus 16 anos. Ela fez teatro e não se imaginava como cantora, principalmente de funk. Já
fez vários shows na Baixada Fluminense, mas atualmente realiza mais show na cidade do Rio de janeiro.
Primeiro show que fez foi no América, em Mesquita, com a equipe de produção de bailes Tom & Jerry.
Algumas de suas músicas são: “Me chama”, “Papo pras mandadas”, “Chegou a melhor hora” (com David
Bolado), “Tio Sukita”, “Senta no Brinquedo” (Baile do Pistão).
- 57 Outro recurso para chamar atenção para o corpo é a vestimenta, que contribui para a
sensualidade.
Mc Mary May narra que as pessoas veem os dançarinos, ambos os sexos, como
símbolo sexual, devido à sensualidade com que mexem seus corpos. Eles, por sua vez,
também se sentem assim pelo assédio que sofrem. “A gente mesmo, sai dali se achando
‘a gostosa’. As pessoas te tratam como nada fora do palco e de repente você passa a ser
a artista para aquele grupo, querendo ou não acaba se contagiando”.
O dançarino Marcos11 é um metrossexual, ou seja, é muito vaidoso, no entanto,
não perde sua masculinidade. Na verdade, ele cuida muito do seu instrumento de
trabalho, o corpo. Faz musculação, cabelo sempre cortadinho, faz sobrancelhas, cuida
das unhas das mãos e dos pés e está sempre bem vestido e perfumado. Segundo o
próprio, os dançarinos, com suas performances, seus remelexos, seus rebolados e suas
danças sensuais, fazem parte do imaginário feminino.
Marcos comenta que as mulheres apresentam novas posturas, pois se sentem
excitadas com os dançarinos, e isso vale para qualquer tipo de mulher.
“Uma vez, uma professora veio me parabenizar, porque eu dançava
muito bem. As mulheres se transformam. Esquecem quem são. É
como se elas estivem num lugar que não tem problema se soltarem. A
dança envolve as pessoas. Até o feio, quando dança fica bonito. O que
chama atenção da mulherada é o corpo, por isso que temos que cuidar
dele”. (MARCOS, DANÇARINO).
O corpo no funk se envolve com a música comandada pela batida e como uma
brincadeira vive intensamente cada movimento “proporcionando ao seu corpo apenas
reflexo que não é determinado pela razão, mas quem sabe, por uma improvisação que a
ocasião corporal lhe solicite” (SILVA, 2003, p. 63). O movimento do corpo, no funk,
apresenta conexão com o ritmo que é envolvente e estimulante, fortalecendo e firmando
os valores identitários.
A dança se une ao corpo ao longo da história e juntos ao ritmo da música
interpretam e reconstroem o mundo, recriando-o e transformando-o. No que diz respeito
ao funk, esse corpo assume um processo de resistência, quando vai de encontro com o
uso dele na concepção do discurso da sociedade dominante, que cria padrões clássicos.
11
Entrevista realizada em 19 de abril de 2013. Jovem de 25 anos, que trabalha como barbeiro e faz
freelancer como dançarino, acompanhando Mcs em seus shows. A dança é algo que lhe dá muito prazer,
primeiramente, porque ele gosta, uma vez que se trata de entretenimento, e também porque atrai muitas
mulheres, principalmente pelas danças sensuais que o funk proporciona. É um afrodescendente de corpo
bem torneado por se preocupar com o físico, instrumento de trabalho.
- 58 2.3 Periferia, subúrbio e favela: espaços geográficos e espaços sociais
Desde o século XVI, de acordo com Rocha (1995), o crescimento do Rio de
Janeiro sempre foi limitado pelos aspectos geográficos, montanha, mar e extensos
brejos e alagadiços, de forma que se desenvolveu aos redores da Praça XV.
Com a chegada da corte, em 1808, surge o interesse de expansão do território.
Com D. João VI, ocorre, assim, a criação da Cidade Nova, atual Catumbi e o Canal do
Mangue e outras áreas próximas ao centro e São Cristóvão, também começam a se
desenvolver, conforme Rocha (1995). No entanto, a povoação só aconteceu com a
expansão e modernização dos meios de transportes e com o surgimento dos ônibus12,
em 1840, que estimulou a ocupação de áreas consideradas distantes, pelo qual esse meio
de transporte passava.
Em 1868, começam a circular os bondes13 com finalidade de suprir as
deficiências dos ônibus, estabelecendo a ligação entre os bairros. Outro meio de
transporte de massa, que possibilitou a expansão territorial, foi o trem. Ele surgiu com
criação da Estrada de Ferro Central do Brasil em 1858, mas que começou a transportar
passageiros em 1861.
Do mesmo modo que o bonde efetiva a ocupação dos bairros da zona
sul e zona norte, o trem possibilita a ocupação de áreas que hoje são
chamadas de suburbanas, algumas das quais recebem seus nomes em
função da própria construção da ferrovia... No caso do trem, a cada
estação que se estabelece, surge um bairro (ROCHA, 1995, p. 37)
No final do século XIX, a imigração de estrangeiros para trabalharem nas
indústrias, migrantes de regiões como o nordeste, em busca de melhores condições de
vida e a Lei Áurea assinada (1888), em que milhares de escravos, analfabetos e
despreparados para o campo de trabalho foram libertos, torna-se um momento
importante para ocupação do centro do Rio de Janeiro.
Nessa época, a cidade já se apresentava dividida entre áreas aristocráticas e
populares, em que Copacabana e Botafogo se configuravam como bairros da elite e os
subúrbios, por exemplo, Irajá e Inhaúma, alternativas para camadas menos favorecidas,
embora “a maior parte dos trabalhadores continuassem a residir no coração da cidade,
12
“Veículo de quatro rodas, dois andares, movido por tração animal (duas ou quatro parelhas),
transportando em média vinte pessoas” (ROCHA, 1995, p.28)
13
“Os bondes eram veículos puxados por dois animais e podiam transportar comodamente trinta
passageiros. Dentre as vantagens podemos destacar a rapidez e a suavidade proporcionada pela
locomoção sobre os trilhos” (ROCHA, 1995, p. 29)
- 59 amontoada em cortiços, casas de cômodos, fundo de quintais de pequenas fábricas e
oficinas onde trabalham”, comenta Rocha (1995, p. 42).
Os cortiços eram considerados principais focos de doenças pela administração
pública municipal, de forma que era intenção desaparecer com essa forma de moradia
para que as moléstias não atingissem os bairros mais ricos e saudáveis. Em 1869, havia
642 cortiços com 9.671 quartos, em que moravam 21.929 pessoas. Comenta Carvalho
(1995) que, com a libertação dos escravos em 1888, esse número praticamente dobrou,
passando para 1.331 cortiços com 18.866 quartos e 46.680 pessoas.
Segundo Rocha (1995), com a Proclamação da República em 1889 e a instalação
do governo provisório, foi criado o Conselho de Intendência Municipal, cujo presidente
nomeado pelo governo federal foi Francisco Antônio Pessoa de Barros. Em 1892,
assume o Conselho, o Dr. Cândido Barata Ribeiro, que desenvolve um programa
sanitarista, que consistia numa operação de limpeza da cidade. Como acreditavam que
nos cortiços estavam os focos das epidemias que assolavam a cidade, o programa
promovia o fechamento dos cortiços, resolvendo, assim, o problema de saneamento e
higiene, além de solucionar também as questões de transportes, quanto ao alargamento
das ruas, conforme Rocha (1995) e Silva (2013).
Após o fechamento e demolição dessas habitações, principalmente do maior
cortiço do Rio em 1897, Cabeça-de-porco, no centro do Rio de Janeiro, e não havendo
moradias baratas e suficientes para atender a demanda, os pobres se amontoaram em
prédios da área central ou foram para subúrbios distantes. Medeiros (2006) declara que,
a partir deste contexto, surgiu à associação da periferia com a desordem urbana e social,
sendo seus moradores identificados como capoeiristas, ladrões, meretrizes e assassinos.
Em 1902, Rodrigues Alves chega à cadeira presidencial e convida o engenheiro
Francisco Pereira Passos para o cargo de prefeito. Silva (2013) comenta que Pereira
Passos iniciou grandes transformações urbanas, derrubou casas para aberturas de largas
ruas e avenidas com domicílios particulares, independentes e pequenos e com
instalações sanitárias, cozinha, água e esgoto, dando todas as casas frente para uma rua
central ou lateral.
Rocha (1995) declara que a construção dessas avenidas é influenciada pelo
modelo francês Haussmann, George-Eugène, e as construções dos prédios, também
apresentam grande influência européia estilo belle époque.
- 60 O novo estilo que justificava essa remodelação, a estética art nouveau
dos novos edifícios e mansões, e as medidas em nome da higiene e do
saneamento urbano, culminam na demolição em massa, “o bota
abaixo” dos cortiços e dos antigos casarios habitados por populares e
nas campanhas de vacina obrigatória. Se por um lado, as medidas
ajustam efetivamente a cidade às novas necessidades da estrutura
política e econômica calcada nos valores civilizatórios da burguesia,
por outro lado, as mesmas medidas, não consideravam os problemas
de moradia das classes pobres (SILVA, 2013, p. 65).
Na administração de Pereira Passos, o aumento dos preços dos imóveis e o
controle das áreas de habitações coletivas fizeram com que a população pobre, em geral
formada por negros, preferisse subir para os morros centrais a morar na periferia, devido
à distância e à dificuldade de locomoção para os empregos. Medeiros (2006, p.25)
comenta que apesar da favela ser tratada como não-cidade, ela está mais próximo do
que se imagina, “a poucos metros acima”.
No início do século XX, já existiam algumas favelas14, sendo a mais conhecida,
o Morro da Providência, “onde surgiu o Morro da Favella, que por sua vez, teria
transmitido o nome às demais ocupações com as mesmas características” de acordo com
Medeiros (2006, p. 30). Os materiais utilizados para a construção dos casebres foram os
das demolições, portanto, “a favela se constrói com material ‘marginal’ das demolições
e construções”, conforme Rocha (1995, p. 90).
As adversidades provocadas pelo deslocamento dos menos favorecidos para a
periferia e favela não são considerados pelos governantes, dessa maneira a ocupação
espacial dessas áreas foi acontecendo sem atenção do poder público. Moura (1995)
explica que a favela se tornou a resposta tanto para os moradores como também para a
cidade, pois a prefeitura estava certa de que a vacina e os planos sanitários protegeriam
a sociedade de novos focos epidêmicos e a população negra e pobre tinha sido isolada
da cidade, mesmo que as condições fossem piores que as antigas cabeças de porco, pois
não tinham luz, esgoto e garantias.
Com a abolição da escravatura, Silva (2013) declara a existência dos negros no
Rio de Janeiro e a convivência com os migrantes baianos promoveu um novo modelo de
cultura negra, pois os ex-escravos baianos trouxeram aprendizagem de ofícios urbanos,
algum dinheiro, experiência de liderança religiosa e organização de eventos festivos. De
14
“No relatório de 1906... as habitações eram feitas com estuque, pequenas janelas e portas estreitas, com
telhados de zinco ou folhas de latas, geralmente latas de querosene abertas. O tamanho dessas habitações
era maior do que os atuais barracos, e não observamos nenhuma habitação feita em madeiras. Não
observamos, também, a concentração exagerada de casebres, havendo um espaço livre para circulação
entre elas, condições gerais que nos parecem bastante superiores às das favelas atuais (ROCHA, 1995, p.
89).
- 61 acordo com Rocha (1995), um desses eventos deu origem ao samba e boa parte dos
compositores eram moradores de favelas e casas de cômodos da Praça XV, Catumbi e
Cidade Nova, que são englobados em conceitos vagos como povo, pobre e gente
humilde. Acrescenta o autor, que apesar da dificuldade enfrentada, a história da música
popular se confunde com a história da “outra cidade”.
Rocha (1995) faz uma comparação da favela com uma ‘pequena África’, em que
antes o grau de solidariedade era grande, porque as tias baianas, que moravam no Rio de
janeiro, recebiam os migrantes de diversas localidades, em especial os da Bahia, e toda
comunidade os amparava. D’Adesky (2009) comenta que a solidariedade grupal
introduz a afirmação da identidade coletiva, que possibilita, de alguma forma, um nível
seguro de existência e consciência de si próprio. Ainda conforme Rocha (1995), as tias
organizavam festas toda semana, que duravam dias e os recém-chegados se integravam
ao local e durante as festas aconteciam batuques, jogos de capoeira, saraus e práticas
religiosas, sempre com supervisão policial.
A favela, de acordo com Lopes (2011), se tornou uma área marginalizada
fundada no mito de democracia racial, em que o Brasil demonstra não ter discriminação
racial, pressupondo convivência harmoniosa entre os elementos formadores da
sociedade – negros, brancos e índios. Essa concepção dificulta a afirmação da
identidade negra e apaga possíveis conflitos de raça, pois se não há racismo não há por
que brigar ou questionar. Nesse sentido, a favela, bem como a periferia e subúrbio,
torna-se vítima de uma segregação espacial.
Essa perigosa relação velada gerou nas últimas décadas o isolamento
de uma população negra e pobre em morros e subúrbios – guetos fora
da vista da elite. E aí se delimitou uma linha tênue e invisível entre
cidade e não-cidade, entre cidadãos e não-cidadãos. Dentro do mesmo
espaço, do mesmo bairro, da mesma rua. O que continua acontecendo
em banho-maria, já que nunca houve uma postura afirmativa entre
negros e brancos, entre preconceituados e preconceituosos, entre
oprimidos e opressores (MEDEIROS, 2006, P. 27).
Segundo Lopes (2011), os bairros populares no Rio de Janeiro são o núcleo da
mestiçagem racial brasileira, e são nesses lugares, subúrbios e favelas, que a diáspora
africana é ressignificada. O movimento funk está intimamente associado a esse espaço e
é nele que tomou força e transformou-se, incorporando características próprias. É um
movimento que possibilita a convivência e a valorização da cultura, envolvendo a
comunidade periférica e marginalizada na produção de suas manifestações culturais que
permitiram um legado histórico.
- 62 Mc Júnior e Mc Leonardo escreveram e cantaram a música “Endereço dos
bailes” (1995), em que ao som do batidão destacam os melhores bailes do Rio de
Janeiro:
No Rio tem mulata e futebol,/ Cerveja, chopp gelado, muita praia e
muito sol,/ É... Tem muito samba, Fla-Flu no Maracanã,/Mas também
tem muito funk rolando até de manhã/ Vamos juntar o mulão e botar o
pé no baile Dj./Ê ê ê ah! Peço paz para agitar,/ Eu agora vou falar o
que você quer escutar/ Ê ê ê ê! Se liga que eu quero ver/ O endereço
dos bailes eu vou falar pra você/ É que de sexta a domingo na Rocinha
o morro enche de gatinha/ Que vem pro baile curtir/ Ouvindo charme,
rap, melody ou montagem/É funk em cima, é funk embaixo/ Que eu
não sei pra onde ir/ O Vidigal também não fica de fora/ fim de semana
rola um baile shock legal/ A sexta-feira lá no Galo é consagrada/ A
galera animada faz do baile um festival./Tem outro baile que a galera
toda treme/ É lá no baile do Leme lá no Morro do Chapéu/ Tem na
Tijuca um baile que é sem bagunça/ A galera fica maluca lá no Morro
do Borel/ [...] Vem Clube Íris, vem Trindade, Pavunense,/ Vasquinho
de Morro Agudo e o baile Holly Dance,/ Pan de Pillar eu sei que a
galera gosta/Signos, Nova Iguaçu, Apollo, Coelho da Rocha, é.../ Vem
Mesquitão, Pavuna, Vila Rosário, /Vem o Cassino Bangu e União de
Vigário,/ Balanço de Lucas, Creib de Padre Miguel/ Santa Cruz,
Social Clube, vamos zoar pra dedéu./ Volta Redonda, Macaé, Nova
Campina/ Que também tem muita mina que abala os corações/ Mas
me desculpa onde tem muita gatinha/ É na favela da Rocinha, lá no
Clube do Emoções/ Vem Coleginho e a quadra da Mangueira/ Chama
essa gente maneira/ Para o baile do Mauá/ O Coutry Clube fica lá
Praça Seca/ Por favor, nunca se esqueça, Fica em Jacarepaguá/[...]Eu,
Mc Junior cantei pra te convidar,/ Pros bailes funks do Rio, você não
pode faltar... (MC JÚNIOR E MC LEONARDO, ENDEREÇO DOS
BAILES, 1995).
Primeiramente, os Mcs exaltam o Rio de Janeiro, mostrando o que há de bom,
como futebol, samba, praia e inclui neste rol de diversão, também o funk. Eles também
convidam as pessoas a conhecerem os bailes e faz uma breve apresentação deles,
mostrando, assim, os aspectos positivos, instaurando uma nova imagem, uma vez que os
bailes nas comunidades eram associados à violência e marginalidade. Mostra que os
bailes são alegres, divertidos e acolhedores, integrando, portanto a favela com a cidade.
Vianna (1988) e Medeiros (2006) comentam que os bailes funk se tornaram
diversão de milhares de jovens à margem da sociedade e que o termo funkeiro passou a
significar pela mídia o mesmo que pivete, passando a ser visto como caso de polícia e a
favela, uma não-cidade, mesmo que ocupando o mesmo espaço. A entrevistada
Luciana15 comenta que quando jovens ecoam sua voz, como na música funk,
15
Entrevista realizada em 16 de abril de 2013. Quase 20 anos no magistério, atuando como Professora de
História e Geografia na rede Municipal da Prefeitura de Nova Iguaçu e Professora de Educação especial
- 63 incomodam a sociedade, que os discriminam, e para se conquistarem seus espaços,
precisam criar estratégias de sobrevivência.
“O repúdio que as pessoas têm ao funk, vem dele ser a representação
das expressões populares. Fazendo uma trajetória a nível de música...
A música para os jovens: todas as vezes que vem como manifestação
de jovens (voz), ela sempre, no primeiro momento, sofre repúdio da
sociedade. Porque é manifestação de liberdade, a voz deles se faz
representar através da dança e música... Todas as músicas que tem
como origem a raça negra, expressões negras, acabam sofrendo de um
jeito ou de outro um pouco de discriminação, até...fazer valer seus
direitos, conquistar teu espaço. Como dizem que a origem de toda
música popular é africana, ‘eles vão ter que me engolir.’” (LUCIANA,
HISTORIADORA E GEÓGRAFA)
Conforme Lopes (2011), a sociedade dominante considera a comunidade, como
produtora de bandidos, capaz de transformar comportamento de pessoas inocentes,
sendo, portanto, uma má influência. Essa ideia de que a favela polui, bem como tudo
que vem dela, é confirmado pelo processo de estigmatização e criminalização dos
sujeitos e suas práticas, de forma que o funk da favela passa a ser visto como festa de
bandidos.
2.4 A história do funk
A história do funk começa nos EUA. Vianna (1988) comenta que nos anos 30/40
o blues, música negra rural, ao chegar aos grandes centros urbanos, se eletrificou,
produzindo o rhythm and blues, associação de música profana com música protestante
negra – gospel. Esse novo ritmo seduziu os brancos, como Elvis Presley, a ponto de
passarem a copiar os estilos de música e vestimenta dos negros, surgindo o Rock.
Ainda o autor, a partir de novas experiências musicais do rhythm and blue surgiu
o soul, que teve como representante James Brown, Ray Charles e Sam Cooke, que
serviu de importante instrumento para o movimento de direitos civis e de
conscientização de negros norte-americanos.
Segundo Medeiros (2006), a palavra funk é um nome estrangeiro, oriundo dos
Estados Unidos, através de James Brown.
na rede Faetec (Fundação de Apoio à Escola Técnica) – Nova Iguaçu. Na juventude, participou
ativamente dos movimentos negros e tudo que estava relacionado à etnia, como Black, Charme e Samba.
Atualmente admiradora do movimento funk, principalmente pelo empoderamento que os atores, na
maioria negros e pobres, passam a possuir.
- 64 Tratava-se de uma gíria de negros americanos para designar o odor do
corpo durante as relações sexuais. E também significava dar uma
apimentada à base musical como acrescentar riffs (frases musicais
repetidas) ao som de uma pancada mais rápida (MEDEIROS, 2006, p.
13)
Com o tempo, o soul passou a significar Black Music, deixando o seu lado
revolucionário do início e, a partir do final dos anos 60, funky passa a ter significado.
Segundo Vianna (1988) e Medeiros (2006), a gíria americana passou significar
legal/maneiro, deixando seu significado pejorativo. Passa representar identidade de um
grupo, “uma roupa, um bairro da cidade, o jeito de andar e uma maneira de tocar
música”, enfim, “símbolo de orgulho negro” (VIANNA, 2006, p. 45).
Em 1970, o funk chega ao Brasil, conhecido também como shaft ou soul funk.
Conforme Essinger (2005), Medeiros (2006) e Yúdice (2004), os primeiros bailes foram
realizados na Zona sul, no bairro de Botafogo, no antigo Canecão, com casa lotada, ao
som de toca-discos e um bom jogo de luzes. As noites eram dançantes e animadas.
No entanto, com a valorização da música popular brasileira, MPB, o Canecão
cedeu lugar a esse tipo de show, fazendo com que os “Bailes da Pesada” – produzidos
por Big Boy (Newton Duarte) e Ademir Lemos - procurassem outros lugares. Medeiros
(2006) declara que eles, os bailes, migraram para quadras esportivas e clubes no
subúrbio do Rio de Janeiro e que conseguiam reunir entorno de 15 mil pessoas em cada
evento.
Segundo Vianna (1988), os bailes começaram acontecer cada semana em um
local diferente, se tornando, basicamente, uma diversão suburbana. Inclusive, os bailes
da Zona Sul eram próximos a favelas e tinham características de bailes que aconteciam
nos subúrbios, pois eram frequentados por jovens de baixa renda e, na sua maioria,
negros.
Ainda nos anos 70, Essinger (2005) comenta que o primeiro baile Black no Rio
de Janeiro foi na Astoria Futebol Clube, no Catumbi, que foi derrubado e atualmente é o
viaduto 31 de Março que passa ao lado da Praça da Apoteose (Sambódromo), realizado
por Mister Funky Santos16. Ainda segundo o autor, o baile era Black total não só pelos
seus frequentadores, maioria negra, como também a escuridão do local, pois a
iluminação era precária.
Em 1972, entra no cenário dos bailes, Asfilófilo de Oliveira Filho, o Dom Filó,
que vendo o baile de Mister Funky, resolveu realizar a “Noite do Shaft”, no Clube
16
Oséas Moura dos Santos – Mister funky Santos
- 65 Renascença, em Andaraí, Rio de Janeiro. Essinger (2005) aponta que os bailes
realizados por Dom Filó apresentava um diferencial, a consciência negra, pois, além da
discotecagem, acontecia a exibição do filme que deu origem ao nome do baile - Shaft17
e fotos dos frequentadores tiradas no próprio baile. Além disso, Dom Filó interrompia a
discotecagem para passar algumas mensagens sobre estudo, família, drogas e violência,
elevando a autoestima dos frequentadores. De certa forma, pode-se dizer que, conforme
Essinger (2005), ele, Filó, se tornou o pai dos Mcs no Rio de Janeiro.
Conforme Lopes (2011), os dançarinos estilos Black, apresentavam identidade
importada dos Estados Unidos, cabelos afros e sapatos plataformas e como lá aqui
também significaram símbolos do orgulho negro.
“Pensando da minha história, na minha contextualização, eu participei
do movimento Black... Ele nasce como soul no EUA e é uma
resistência, através da música proposta pelo movimento negro da
época. Esse movimento chega aqui no Brasil na década de 70 e ele faz
uma reviravolta tão legal no povo, mas ele dá uma palavra nova, que
eu incorporei no meu dicionário atual, empoderamento pra essa
garotada. Eu era parte dela, assim: neguinha, careca, com cabelo duro.
Na época nós não tínhamos proposta de alisamento e aí o povo, vai,
coloca o Black e vai. Aquilo era show! E dança! Era povo de galera da
favela que manifestava isso de uma maneira brilhante junto ao
movimento Black”. (LUCIANA, HISTORIADORA E GEÓGRAFA)
Com o tempo, o baile foi transferido para o Cascadura Tênis Clube, em
Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro, e foi fundado a equipe de som Soul Grand Prix,
que entremeava os slides Black com cenas de pilotos de Fórmula 1 para burlar a censura
da época. Novamente, A cultura negra tem necessidade de criar táticas de resistência
para se manter numa sociedade elitista.
Já no final da década de 70, além das festas Blacks promovidas pelas equipes
Soul Grand Prix, começavam surgir outras no subúrbio. Outra equipe que merece
destaque é a Black Power, que atuou com força nas áreas de Madureira, Oswaldo Cruz,
Bento Ribeiro, Marechal Hermes e Rocha Miranda.
Essinger (2005) comenta que veio, para o Brasil, a gravadora WEA,
representante dos selos americanos Warner, Elektra e Atlantic e a Soul Grand Prix
lançou um disco por ela em 1977, que serviu de referência para gerações de músicos
brasileiros e europeus no final do século XX e início do século XXI. O sucesso levou a
gravadora a investir em outros artistas que contagiavam a massa dos bailes e tomar
17
Shaft (1971): Detetive negro John Shaft, interpretado por Richard Roundtree, investiga uma guerra de
gangues, e é contratado pelo líder da máfia negra Bumpy Jonas, interpretado por Moses Gunn, para
resgatar sua filha, que fora seqüestrada pela máfia italiana, interessada no território dos negros.
- 66 conta do Brasil. No entanto, segundo o autor, com a ascensão de outros ritmos,
principalmente, a discothèque (discoteca), acarretou no enfraquecimento no Black.
Toda essa onda discothèque foi, para Filó, o que mais ajudou a matar
a Black Rio, esvaziando o seu conteúdo ideológico, domesticando o
balanço e adaptando-o ao gosto branco. “Aquilo ali não tinha nada a
ver com nós, blacks, mas dividiu as equipes”, conta. “Aqueles que não
tinham nenhuma consciência de nada, que estavam ali por comércio,
começaram a migrar para a discothèque porque diziam que o soul
estava morrendo” (FILÓ apud ESSINGER, 2005, p. 45)
Luciana, historiadora e geógrafa, diz que no final do movimento Black, surge, o
que está em ascensão hoje, o charme, que “vem também de fora e toma corpo aqui.
Tanto que nesse momento, as músicas, a predominância das letras são internacionais,
em inglês.” Ainda de acordo com a entrevistada, o charme era mais tranquilo, mais
intimista, mas também representava uma identidade do povo negro. Os participantes do
movimento Black assumiam uma postura e aparência mais esportiva e agressiva,
enquanto o charme era uma postura mais sofisticada, em que “o negro charmista ou
charmeiro usava javanesa como tecido... usava aquele cetim que dava aquele brilho. O
cabelo entra no processo de alisamento no cabelo, aí o cabelo enroladinho deixa de ser
usado”. Essinger (2005, p. 55) confirma as palavras de Luciana ao dizer que “Não valia
vir com roupa de rua, tinha que ser calça, camisa e sapato finos, às vezes um blazer,
quem sabe alguns cordões. E para as mulheres, os melhores vestidos”. O funk de Mc
Dollores e Marquinhos, Rap da diferença, apresenta características do Charme e funk:
...Qual a diferença entre o Charme e o Funk/ Um anda bonito e o outro
elegante (Refraõ)
Eu sou funkeiro ando de chapéu/ Cabelo enrolado, cordãozinho e
anel/Me visto no estilo internacional/ Reebok ou de Nike sempre
abalo geral/Bermudão da Ciclone, marca original,/ Meu cap importado
é tradicional/ Se ligue nos tecidos do funkeiro nacional/A moda RioFunk melhorou o meu astral
Refrão
Eu sou charmeiro ando social/ Camisa abotoada num tremendo visual/
Uma calça de bali e um sapato bem legal/Meu cabelo é asa delta ou
então de pica-pau/ No mundo do Charme eu sou sensual/ Charmeiro
de verdade curte baile na moral/Onde o Jack Swing são a
atração/Trazendo as morenas para o meio do salão. (RAP DA
DIFERENÇA, MC DOLLORES E MARQUINHOS)
Mais tarde, de acordo ainda com Essinger (2005), através de Dj Corello, que
seria o grande nome do charme18 no futuro, inova na discotecagem, com a mixagem19, e
que acompanha o movimento até os dias de hoje.
18
“Funks mais lentos e românticos, para dançar juntinhos, que tocam em determinada hora do baile”
(ESSINGER, 2005, p. 45)
- 67 Completa o autor que, com o enfraquecimento da discothèque, em 1984, o
subúrbio desejava um som novo. Em 1985, surge o som maimi bass, que segundo Dj
Malboro (apud ESSINGER, 2005), caiu no agrado do público devido a semelhança
com o surdo do samba.
Lopes (2011) declara que quando os bailes passaram para a periferia, foram
renovados, os dançarinos misturavam os passos de Break com movimentos de outros
ritmos negros como jongo e samba, de forma que ocorria, então, o processo de
hibridismo cultural, em que a diáspora africana se junta a novas misturas e elementos,
nascendo, assim, o funk. Apesar do intercâmbio com outras culturas, ressignificando-se
a cultura de raiz africana não abandona sua essência, que envolve pensamentos,
ideologia, tradição e valores.
Facina (2009) declara que a história do funk, vai mais além do que a importação
de tradições musicais afrodescendentes dos Estados Unidos, mas uma releitura de um
tipo de música ligado à diáspora africana. Desde o início, mesmo em inglês, de acordo
com a autora, o funk foi reconhecido como música negra, aproximando do samba e dos
batuques nacionais.
Com o surgimento da Furacão 2000 (1977) e Cashbox (1974), o funk ganha
destaque nos anos 80. Furacão 2000, que antes era conhecido como som 2000, era uma
equipe de roqueiros de Petrópolis, RJ, que, inclusive, tocava heavy metal. Rômulo
Costa, morador de Anchieta, ao trazer esta equipe para o Rio teve que transformar em
“uma equipe de negros”, como ele mesmo diz. De tanto sublocar equipamentos,
Rômulo passou a ser sócio. “Conta a lenda, depois de uma festa no Quitandinha, em
Petrópolis, o presidente Humberto Castello Branco teria dito:’Isso não é um som 2000,
é um furacão’” (ESSINGER, 2005, p. 25 e 26).
Furacão 2000 ainda hoje é uma das maiores equipes de som, tendo um papel
importante no movimento funk, pois muitos Mcs foram lançados por eles, bem como
muitos conseguiram destaques por meio de apresentações na Furacão. Mc Debby diz
que a maioria dos Mcs cantam na Furacão 2000 por meio de parceria, ou seja, a Furacão
toca a música e os Mcs fazem shows de graça.
“Por isso você vê que, no show da Furacao, o mc canta duas, três
músicas e no máximo cinco músicas e sai. Não é um show completo
de meia hora à 40 min. É tanto que colocavam minha cara direto,
tocavam minhas músicas direto até acabar a parceria. Eu não quis, não
19
Conforme Essinger (2005), o Dj prepara a entrada da música seguinte, igualando o número de batidas
por minuto, de forma que ocorre uma transição suave que não se percebe a mudança da música. A
impressão que se tem é que está tocando uma única faixa em todo baile.
- 68 fiz, até porque não tava tendo data pra eles. Eu estava fazendo show
fora do Rio. Eles falavam sempre com empresário, nunca comigo. Eu
não podia, a parceria foi enfraquecendo, enfraquecendo, até que um
dia acabou. Eles pararam de tocar minha música, eu parei de fazer o
show”. (MC DEBBY)
O Cashbox foi obra de Marcão, morador do Méier, que começou com festinhas
na região e depois passou, junto com os irmãos Clésio e Márcio, a fazer bailes
carregando o equipamento criado por eles numa Kombi. Declara Essinger (2005) que o
nome veio das chamadas de rádio que falavam das paradas de sucesso da Cashbox, em
1974. Enquanto os Djs de outras equipes de som corriam atrás de novidades em vinil, a
Cashbox não usavam nenhum disco, o seu som era gravado.
Os preços dos discos eram elevados, devido à dificuldade de conseguir discos de
funk no Brasil, pois a maioria era importada. As equipes e Djs criavam estratégias para
conseguir os discos, como comercializar com pessoas de agência de turismo, que
viajavam a preços mais baratos ou de graça, ou através de conhecidos que viajavam
para Nova Iorque. Quando comprados no Brasil, já foram revendidos várias vezes por
preços cada vez mais altos.
Ainda nos anos 70, Essinger (2005) conta que começou a se consolidar no Rio o
fenômeno dos festivais de equipes, em que havia dias que tocavam sete equipes com
seus equipamentos. O Primeiro Encontro dos Blacks aconteceu no clube Greip da
Penha, no bairro da Vila da Penha no Rio de Janeiro, com quase 15 mil pessoas num
espaço para cinco mil.
Nos anos 80, entra em cena o morador de Itaboraí Fernando Luís Mattos da
Matta com o apelido de Malboro, aquele que vem de longe (Terra de Malboro).
Conforme Essinger (2005), em 1979, Fernando ouviu pela primeira vez mixagem de
músicas através do Dj Ivan Romero, no programa Cidade Disco Club, se apaixonou por
essa arte, e realizou suas próprias mixagens juntando uma vitrolinha e toca-discos.
Quando começou a frequentar os bailes da área, conheceu o Dj Scooby Doo, que deixou
Fernando testar suas mixagens em um baile.
A habilidade de Malboro agradou ao dono da Equipe 2001, Zezinho, que o
convidou a abrir e fechar o baile em troca de discos (vinis) blacks, vindos diretamente
dos EUA. Em 1980, passou apresentar-se como profissional, porém seu pagamento em
cada baile mal dava para comprar um disco de funk. “O surgimento e a ascensão de
Malboro servem como símbolo do começo de uma nova era para os bailes no Rio”,
conforme Essinger (2005, p. 52). Representa o fim da primeira fase do movimento, em
- 69 que, de acordo com Yúdice (2004), ocorre o declínio da consciência negra das galeras e
surge, então, a segunda fase, em que assume uma ideologia própria, além de apresentar
uma diversidade cultural, também apresenta o social, refletindo suas realidades.
O funk começou a apresentar características brasileiras através de Malboro.
Essinger (2005) e Medeiros (2006) apontam que ele, em 1989, ganhou um concurso
nacional de Djs promovido pela Disco Mix Club (DMC), indo para Londres para
disputar a etapa internacional. Embora não tenha ganhado o concurso, pôde entrar em
contato com novidades em dance, eletro e Black.
De acordo com Medeiros (2006), ao retornar de Londres, iniciou o projeto de
nacionalização do funk. Malboro passou, então, a preparar seu primeiro disco “Funk
Brasil”, que seria lançado em 1989. A produção das músicas tinha como base volt mix
com letras irreverentes em português. Ele, sozinho ou com outros do cenário do funk,
começou a compor músicas que refletiam características brasileiras, abordando de modo
irreverente temas concretos dentro do universo de quem ia ao baile se divertir, ou seja,
pobres e negros, moradores da periferia, transformando o funk num ritmo de caráter
cada vez mais popular
Fizeram também parte do disco o “Rap das Aranhas”, “Melô do bêbado”, “Rap
do arrastão”, entre outros.
Medeiros (2006) conta que o “Rap das aranhas” de
Malboro e Cidinho Cambalhota, apresentador do programa Som na Caixa, na TV
Corcovado, foi destaque no disco. Trata-se do sucesso de Raul Seixas com batida
eletrônica.
Subi no muro do quintal/ E vi uma transa que não era normal/ E
ninguém vai acreditar/ Eu vi duas mulher botando a aranha pra brigar/
Duas aranha/Venha cá mulher deixa de manha/ A minha cobra quer
comer sua aranha... (RAP DAS ARANHAS, CIDINHO
CAMBALHOTA, 1989)
No “Rap do bêbado” sob a batida miami bass, Malboro com Mc Batata cita
nomes de bebidas, como licor de menta e Fogo Paulista, rabo de galo (coquetel de
cachaça com vermute tinto) e os nomes de cachaças, como 51, Velho Barreto, Pitu,
Tatuzinho, Praianinha e Pirassununga. Os compositores fazem uma brincadeira com
consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
Você foi na minha casa me chamando de safado,/ Dizendo pra minha
família que só ando embriagado,/ embriagado é minha sina, eu nasci
pra ser bebum/ Vô te dar uma boa ideia se pagar 51/ Óóóóóó,a a a,
bebo cachaça/ [...] Profissão copo na mão provador de caninha,/Isso é
um dom e não fique de gracinha,/ Quando pego a Praianinha só
confiro se é purpurina,/ Se for de primeira linha bebo até com a
- 70 tampinha,/ agora vou pra casa desfazer essa quizumba,/ Você pra fazer
fofoca é pior de que o Bussunda,/Se você ficar me olhando com essa
cara de bunda,/ Vou mandar você tomar... Pirassununga [...] (MELÔ
DO BÊBADO, MC BATATA, 1989)
Dj Malboro, Ademir Lemos e Nirto criaram o “Rap do arrastão”, que narra a
dificuldade que passam os funkeiros quando saem dos bailes e têm que pegar condução
e o perigo de serem vítimas de arrastão.
Esconde a grana, o relógio e o cordão/ Cuidado vai passar o arrastão!/
E o crioulo o que diz: ‘mas o que foi que eu fiz?/Som Grandprix, Jet
Blaxk, Furacão/ O bicho come solto no salão/ Cashbox, Superquente,
Powersom/ O Dj faz rolar o som do bom/ […]batalho todo dia/ Dando
um duro danado/ Me escaldo de problemas/ só pra arrumar um
trocado/ Mas no fim de semana/ Sempre fico na mão/Escondendo
minha grana/ Pra entrar na condução[...] (RAP DO ARRASTÃO,
ADEMIR LEMOS E NIRTO, 1989)
O disco era vetado pela sociedade, a ponto de um dos produtores pedir para que
seu nome não fosse divulgado. Essinger (2005) informa que também não tinha verba
para divulgação. No entanto, essas dificuldades não impediram que o disco batesse 250
mil cópias vendidas. Veio então o Funk Brasil 2 (1990), Funk Brasil 3 (1991), Edição
especial (1994) e Funk Brasil 5 (1996).
O funk deixa, então, de ser uma reprodução ou imitação do estilo importado dos
EUA e passa a ser transformado, associando ao contexto do local formado por negros e
pobres com suas práticas, em geral, da diáspora africana. Lopes (2011) comenta que a
fala cantada pelos rapper (Mcs) possui a energia dos puxadores de escola de samba, a
dança possui o rebolado e a sensualidade também do samba e o sampler20, se torna o
som do tambor ou atabaque eletrônico.
Mesmo sem apoio da indústria cultural, o funk como movimento de massa
conseguiu se manter no cenário musical até os dias de hoje. Lopes (2011) afirma que o
funk, como toda cultura negra, é criativo e tático, e os jovens negros das comunidades
reinventam-se com os escassos recursos disponíveis, e nesse sentido, a sociedade, em
favor do ‘bom gosto estético’, aproveita para criticar, renovando assim, mesmo que
inconscientemente, o racismo e o preconceito com essa cultura
A história mostra que manifestações oriundas da cultura africana sempre
sofreram perseguições e antipatia da classe dominante, e consequentemente, tentativa de
anulação. Conforme Sodré (1998) era natural que pessoas negras, no Rio de Janeiro do
20
Sampler é um equipamento que consegue armazenar sons de arquivos em formato WAV numa
memória digital, e reproduzí-los posteriormente, um a um ou de forma conjunta se forem grupos,
montando uma reprodução solo ou mesmo uma equivalente a uma banda completa.
- 71 século XIX, reforçassem suas formas de sociabilidade e padrões culturais, através de
festas e reuniões familiares. Esses eventos eram interétnicos por também estarem
presentes brancos e as reuniões e batuques de samba sempre sofreram perseguições
policiais, mas passaram a acontecer em lugares estratégicos. De acordo com Garcia
(2001), pela sua origem negra e popular, tal gênero musical, o samba, sempre foi
combatido por setores mais conservadores. Aceitá-lo como música nacional era
misturar-se ao povo e ver, assim, um Brasil atrasado, primitivo e inferiorizado frente
aos países desenvolvidos.
Haroldo Barbosa (1915 – 1979) e Janet de Almeida (1919 – 1946), em 1941,
compuseram um samba “Pra que discutir com Madame”, que foi gravado em 1945,
valorizando o samba diante da crítica negativa da sociedade.
Madame diz que a raça não melhora/ Que a vida piora/ Por causa do
samba/ Madame diz que o samba tem pecado/ Que o samba é coitado/
Devia acabar/ Madame diz que o samba tem cachaça/ Mistura de raça,
mistura de dor/Madame diz que o samba é democrata/ É música
barata/ Sem nenhum valor/Vamos acabar com o samba /Madame não
gosta que ninguém sambe/Vive dizendo que o samba é vexame/Pra
que discutir com Madame (HAROLDO BARBOSA & JANET DE
ALMEIDA, PRA QUE DISCUTIR COM MADAME, 1956)
A letra da música apresenta um conceito que ainda é adotado por uma sociedade
dominante com respeito à cultura popular. Pode-se dizer que com o funk acontece algo
parecido, em que a música funk é o limítrofe entre dois grupos sociais – o do povo e o
da elite. Fica bem clara essa separação, quando não puderam mais realizar os bailes no
Canecão em função da música popular brasileira (MPB), e tiveram que procurar lugares
estratégicos como táticas de resistência e ainda assim continuar mantendo essa interação
social. Segundo Moura (1995, p. 114), “paralelamente a este mundo aberto, oferecido e
anunciado de espetáculos, subsiste e dialoga um Rio de Janeiro subalterno com ritmos e
interesses próprios, que se reorganiza e redefine nesse novo movimento da sociedade
carioca”.
De acordo com Lopes (2011), Fernanda Abreu, em defesa do funk na ALERJ em
2009, substituiu o termo “samba” por “funk” na música “Pra que discutir com madame”
e esse jogo de palavras mostra que a mesma sociedade que encarava o samba como
vadiagem e malandragem, hoje faz a mesma referência ao funk. Dessa maneira, a
discriminação não está só no passado, mas no que diz respeito à cultura negra no Brasil,
- 72 ela, a discriminação, se renova, de forma que o funk passa a ser visto também como
“música barata/ Sem nenhum valor.
Nos anos 90, o funk começa a ser cantado em português e reflete o dia-a-dia das
favelas ou faz exaltação a elas. De acordo com a historiadora e geógrafa Luciana,
“agora em português, o português da favela... As músicas não estão vindo de lá e sendo
reproduzindo aqui da mesma maneira. Aqui eles vão colocando na linguagem deles e
vai mudando a batida.”
Medeiros (2006) complementa que os relatos de briga dentro dos bailes e
arrastões, veiculados pela mídia, sempre foram tratados como barbárie distante, dado ao
fato de tratar-se de um público invisibilizado. No entanto, na virada das décadas –
80/90, os jovens do asfalto passam a ter contato com a criatividade e entusiasmo dos
funkeiros e acabam subindo ao morro e se encantando com o novo ritmo, logo, a
barbárie que antes era distante, passa a ser próxima, passando assim a incomodar.
D’Adesky (2009) ressalta que podem existir entre pessoas de status diferentes
relações divergentes ou convergentes, pois a cultura, representada por um conjunto de
ordens, como normas, conceitos, símbolos e valores, podem viver em harmonia ou
conflito. Nesse sentido, esse ritmo atingiu os jovens de classe média, atraindo-os para os
bailes de comunidade, e ao mesmo tempo, provocou a ira da sociedade dominante.
Medeiros (2006) expõe que a atração dos filhos da elite pela arte do morro não é
algo novo, aconteceu nas décadas de 50 e 60, quando os capoeiristas e sambistas eram
demonizados pela imprensa e sociedade conservadora. Ainda de acordo com a autora,
em 1922, Semana da Arte Moderna, surgiu o primeiro olhar intelectual sobre as favelas,
principalmente por parte de Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral, que incorporaram às
suas obras a realidade brasileira, em que incluía as favelas e sua cultura.
Nos anos 80, o funk ocupava os cadernos de cultura e comportamento, mas nos
anos 90, o cenário muda e começa a ocupar os cadernos policiais, devido a um evento
em que jovens funkeiros de favelas invadiram uma das praias do Rio de Janeiro, Praia
do Arpoador.
Medeiros (2006) conta que outubro de 1992, facções rivais de jovens funkeiros
se encontraram na Praia do Arpoador em Ipanema, no bairro de classe alta localizado na
Zona Sul do Rio de Janeiro. Eles reproduziram, no asfalto, os rituais de luta dos bailes
de briga. Os jornais noticiaram a invasão como arrastão, em que banhistas foram
saqueados (roubados), agregando, assim, aos funkeiros uma conotação de violência. No
entanto, o próprio Vice-governador e também Secretário de Justiça e de Polícia Civil
- 73 Nilo Batista, quatorze dias depois do acontecido, reconheceu que não houve vítima de
assalto e nenhuma pessoa ferida.
Maggie & Rezende (2002) declaram que o termo “arrastão” teve origem na
década de 80 para se referir a uma parcela distinta da população vista como ameaça de
violência e desordem. Nesse sentido, havia necessidade de coibir, prevenir e impedir
aglomerações de grupos formados por pessoas que além de invadir as praias, estavam
invadindo outros espaços, como pontos de ônibus que ficavam em frente a prestigiados
restaurantes e lojas. Somente depois, “arrastão” passou significar práticas coletivas de
assaltos.
Ainda de acordo com Maggie & Rezende (2002, p. 87), a praia é “descrita como
o lugar de celebração de um jeito de ser carioca”, pois se trata de um espaço
privilegiado da imagem da cidade e que se celebra a mistura de “corpos, cores, classes e
culturas”. Quando a imagem da praia como espaço mais nobre de lazer se vê invadida
por moradores de outras regiões, conhecidas como subúrbios, os, então, farofeiros, a
cidade entra em pânico. Com os arrastões, ressuscitaram temores, vozes e olhares sobre
os habitantes, identificados muitas vezes como suburbanos e seus espaços, ou seja,
“outras cidades”, que antes eram invisíveis.
A presença dos ditos farofeiros (suburbanos) já tinha sido percebida, pois com as
linhas de ônibus que ligavam zona norte e zona sul, o trajeto até a praia se tornou mais
fácil. Maggie & Rezende (2002) comentam que esta proximidade causou indignação, a
ponto de, em 1984, 19º Batalhão da Polícia Militar realizar a Operação Verão, que
consistia em uma série de ações, a fim de monitorar a presença de pessoas de “outra
cidade” que estavam invadindo as praias e outros espaços.
As praias eram frequentadas por famílias, mesmo que suburbanos, o que ainda
era aceitável pela sociedade. No entanto, segundo Maggie & Rezende (2002), no início
dos anos 90, passou a ser frequentada por grupos de jovens, na sua maioria homens, que
entoavam gritos de guerra, refrão, promoviam correrias, além de serem freqüentadores
de bailes funk, e, na visão tradicionalista da elite, eram encarados como galeras e
gangues, o que contribuiu para um maior preconceito com relação aos moradores do
subúrbio. A mídia também começa a criminalizar o funk por ser uma cultura popular de
negros e favelados.
Lopes (2011) declara que o funkeiro deixa de ser jovem pobre e desempregado
que aprecia um ritmo desconhecido da classe dominante, e passa a ser jovens associados
ao tráfico e à criminalidade. Com as notícias negativas nos jornais, o funk passou a ser
- 74 tratado como caso de polícia, que começaram a tomar atitudes e como consequência
houve a proibição dos bailes em 1992.
Segundo D’Adesky (2009), a mídia orienta atitudes e provoca mudanças de
ideologia na sociedade, de forma que é inquestionável o papel dela na produção de
identidade, à medida que transmite informações e imagens que podem valorizar ou
manipular de acordo com os interesses. Para Chauí (1980), ideologia é um conjunto
lógico, sistemático e coerente de ideias, valores, normas ou regras de conduta, que são
recomendados aos cidadãos, ou seja, o que e como pensar, valorizar, sentir e fazer. De
acordo ainda com a autora, a sociedade é composta de várias classes e cada qual com
suas ideias, no entanto, a classe dominante faz com suas ideias sejam consideradas
como válidas e verdadeiras com relação às outras classes.
No fim dos anos 90, alguns funks começaram a ser tocado em academias, boates
e clubes das áreas nobres. A partir daí, notícias sobre o funk começam a aparecer nos
cadernos policiais e também nas colunas de cultura e comportamento, segundo Lopes
(2011). Dentro desse contexto, dependendo de onde se toca a música, a conotação ou o
sentido muda. O movimento começa a ser visto com outros olhos por alguns da
sociedade, deixando de ser somente música suburbana e passando a infiltrar em outro
universo. De forma que a autora chama atenção para o racismo silencioso, ou seja, o
preconceito não está no ritmo, mas em quem o consome.
Nos anos 2000, o funk passa a ser reconhecido como ritmo carioca, entrando
numa terceira fase. Nesse momento, o funk passa por outras transformações, incluindo a
sensualidade e erotismo feminino, bem como os proibidões e, segundo Mc TG10,
atualmente, temos uma nova geração, que interfere nas letras e nas danças. “Os funk
antigos tinham muita letra. Hoje em dia tá assim: música curta e repetida. Hoje, o funk é
um negocinho pequeno que se repete duas vezes, que dá mais ou menos 2 minutos e
meio.”
Mc Debby conta que a música de funk “é montada como um quebra-cabeça.
Chega no estúdio, grava uma música desse tamanho, mas quando chega na rua, ela
chega com pouca estrofe.” A Mc acrescenta que, como no show, mesmo com letra
pronta, no estúdio também ocorrem improvisos.
“O estúdio padrão é assim, uma sala grande, a cabine onde vc grava,
tem um escritório longe. Agora tem gente que tem estúdio em casa,
pequeninho, só aquela salinha pra você gravar. Às vezes, tem umas 11
pessoas no estúdio. A gente fala muita besteira, conta varias estórias
que aconteceram no show, nas viagens, e muitas vezes dessas
conversas, situações, surgem músicas”. (MC DEBBY)
- 75 -
O funk foi mudando gradativamente, tendo buscado forma em meio à cultura
negra na favela, passou a atrair muitos da elite. De forma que, atualmente, apesar do
preconceito, conforme o dançarino Marcos, “não tem ninguém que não se mexe quando
escuta a batida do funk.” há uma maior aceitação e integração de outras pessoas ao
movimento, no entanto, ainda há um longo caminho a percorrer.
2.5 Funk: Patrimônio Cultural
Nos anos 70, chega ao Rio de Janeiro um ritmo importados dos Estados Unidos
que contagiou milhares de pessoas, principalmente jovens, em sua maioria negra e
pobre. Dava-se então o início de um movimento que funcionaria como formação de uma
nova identidade negra, que para se consolidar, teria que passar por um processo de
resistência, como outras culturas de guetos e de diáspora africana negada pela sociedade
dominante. De acordo com Lopes (2011), o funk, considerado um ritmo maldito tanto
pela mídia como pela classe média e alta, sempre foi tratado como caso de polícia e
questão de segurança pública.
Os Djs, produtores e Mc’s passam a serem ídolos para suas comunidades e
cada baile um evento semanal que funciona como descontração para uma semana de
labuta. Conforme D’Adesky (2009), o homem sente necessidade de ter seus ídolos, de
se ver em uma história e esses desejos simbólicos mostram a importância de atribuições
positivas a respeito de sua raça.
O baile funk é uma festa de música feita pela e para a comunidade,
por MCs – os mestres-de-cerimônia, também conhecidos como
rappers ou rimadores – que são o orgulho de sua área e de muitas
outras áreas da cidade, dependendo da fama que conquistam
(ESSINGER, 2005, p. 12)
O Mc, Mestre de Cerimônia, é aquele que canta e improvisa e o Dj, DiskJockey, constrói a batida e o ritmo, que, de acordo com Vianna (1988), precisam de
inspiração e sensibilidade para agradar o público. Segundo Lopes (2011), nos anos 80,
os Djs e dançarinos adquiriram visibilidade no funk, mas os Mc’s eram poucos. Nos
anos 90, com músicas em português, os Mc’s passaram a fazer parte do universo do
funk com força total.
- 76 O funk é hoje um ritmo que já tomou conta de todo Brasil e inclusive no
exterior. É um ritmo que passou por várias fases de afirmação até ter o reconhecimento
perante a lei como patrimônio cultural do Estado do Rio de Janeiro.
Lopes (2011) reconhece que embora a importação cultural seja do interesse da
elite, a classe subalterna (negros e pobres) também não são encontram fora ou distante
desse processo. Acrescenta ainda a autora que a elite branca absorvia a cultura européia,
e paralelamente, os jovens negros absorvia a cultura marginalizada por outros negros e
pobres, cultura afro-americana, mas o funk não se trata de um ritmo de importação
estrangeira e sim de um ritmo reinventado e renovado de ritmos negros que sempre
existiu na periferia. O movimento foi criando força, passando por problemas e, através
de táticas de resistência, foi se consolidando.
Considerar o processo histórico de resistência dos movimentos da cultura
africana constitui-se importante para compreender o fenômeno funk carioca e todo
processo de luta pelo qual passa, devido a uma sociedade que define o que é bom ou
ruim. Contribui também para desfazer preconceitos de uma cultura de massa.
A história do funk se repete no tempo e espaço, pois o jongo, a capoeira, a
religiosidade e o samba, movimentos da cultura negra, também, foram vítimas de
proibição e após longa luta de resistência e afirmação, nos tempos atuais, são
reconhecidos como patrimônio cultural. Conforme Lopes (2011, p. 74), esse movimento
não surge do vazio, “mas numa arena de significados historicamente repetidos”.
Então o funk, olhando em longo prazo, é um pouco a história do
‘retorno do recalcado’. O mesmo que aconteceu com a capoeira e com
o samba acontece agora com o funk. E quem sempre tenta defender
essas manifestações culturais populares, também é criminalizado
(MEDEIROS, 2006, p. 32)
Conforme o Hino dos funkeiros, Mc Marcinho e Mc Sapão (2007) chamam a
atenção para a aceitação de outros artistas ao ritmo e afirmam que “o funk é cultura”,
apesar de vir de uma classe baixa, uma população que trabalha e tem raça, no sentido de
ser esforçada.
O nosso Funk é envolvente, diferente/ Consequência dessa massa que
trabalha, que tem raça/ Uma galera de talento, iluminada, com verdade
nas palavras/ Vem da classe que é mais baixa/ E nem por isso a gente
vai desistir/ Estamos na luta e até chegamos aqui/ É importante não
deixar de sonhar/ Com fé em Deus a vida pode mudar/O Funk é 10, é
nota 100/ Onde o Funk toca não tem pra ninguém/ Que falem mal, que
falem bem/ Nossa vitória é certa e a gente vai além/O lema é diversão,
calor e empolgação/ Geral pulando e zuando ao som do tamborzão/ O
baile é sempre bombado/ Todos caminhos dão lá/ Até artistas de TV
se rendem pro nosso lado/ E é por isso que a gente pode afirmar/ Funk
- 77 é cultura e todos podem cantar/ numa só voz, no embalo do nosso
som/ Quebrando as barreiras da discriminação (MC MARCINHO E
MC SAPÃO, HINO DOS FUNKEIRO, 2007, grifo nosso)
Artistas de outros gêneros musicais reconhecendo o valor do ritmo da camada
popular incluíram em seus shows o funk, como Roberto Carlos, o Rei, cantando “Se ela
dança, eu danço” do Mc Leozinho no especial de fim de ano em 2006.
Se ela dança, eu danço!/ Balancei no balanço/ Nesse doce encanto/
Que me faz cantar.../ Que é quando eu te vejo,/ Desperta o desejo/ Eu
lembro do seu beijo/ E não paro de sonhar.../ Ela só pensa em
beijar/Beijar!Beijar! Beijar!... (MC LEOZINHO, SE ELA DANÇA,
EU DANÇO, 2006)
O grupo de pagode Exaltasamba fez parceria com Mc Catra, na música “A gente
faz a festa” (2010).
Ela curte um funk/ Ela é da balada/ Ela gosta da night, ela é de beber/
Da um role junto com as amigas/ E só volta pra casa ao amanhecer/
Vive a vida tão intensamente/ Não vejo maldade é só curtição/Quando
a gente ama não vemos defeito... Ela é dona do meu coração...
(EXALTASAMBA & MC CATRA, A GENTE FAZ A FESTA,
2010)
A dupla sertaneja João Lucas e Marcelo cantou com Mc K9 “Louca,
louquinha” (2013) – “Louca, louquinha/ Dá uma empinadinha/ Dá uma agachadinha/
Você ta soltinha/ Que isso, gatinha?...”. Além dos citados, há outros.
Os publicitários em seus trabalhos parodiaram as letras dos funks tops, a fim de
atrair os simpatizantes do ritmo. Podemos citar o funk “Ela é top” de Mc Bola (2012) “Ela não anda, ela desfila/ Ela é top, capa de revista/ é a mais mais, ela arrasa no
look/ Tira foto no espelho pra postar no facebook”, usada na propaganda lojas C&A
Modas (2013) – “Ela não anda, ela desfila/ Ela abusa, é capa de revista/Fim de
semana, é pra abusar/ aproveite as ofertas/ Passe já na C&A”.
O episódio do arrastão, em 1992, de acordo com Essinger (2005) e Medeiros
(2006), provocou na sociedade pânico em relação ao funk, mas, em junho de 1994,
Xuxa estreou o programa Xuxa Park aos sábados, em que o Dj era o Malboro, e ele
sempre apresentava um Mc, que passou a se tornar ídolos das crianças, espectadores
assíduos do programa.
Medeiros (2006) aponta que nesse mesmo ano, 1994, também aconteceram
bailes no morro Chapéu Mangueira no Leme, área com vista privilegiada da cidade, em
que se pode ver o Pão de Açúcar, Enseada de Botafogo e a Marina da Glória, a orla do
Leme e de Copacabana. Este local passou a ter como público playboys e patricinhas, ou
- 78 seja, os filhos da classe alta. Essinger (2005) conta que, em outubro de 1995, seis
correspondentes estrangeiros visitaram o baile do Chapéu, conhecido como o mais
pacífico da cidade.
Em 1995, o funk ‘Feira de Acari’ (DJ Pirata) passou a fazer parte da trilha
sonora da novela Barriga de Aluguel, de Glória Peres e Leila Miccolis, como tema do
núcleo do subúrbio, ao lado de músicas como ‘Aguenta coração’ cantada por José
Augusto; ‘Vida real (Dejame ir)’, Djavan; ‘Eu acredito’ com Gal Costa; entre outros.
Numa loja na cidade/ eu fui comprar um fogão/ Mas me assustei com
o preço/ E fiquei sem solução.../Um amigo me indicou/ A Feira de
Acari/ Ele disse que na feira/ Pelo preço de um bujão,/ eu comprava a
geladeira/ As panelas e o fogão/ Tudo isso tu encontra/ Numa rua logo
ali/ É molinho de achar/ É lá na feira de Acari/ É sim lá em
Acari...(FEIRA DO ACARI , DJ PIRATA, 1990).
Este funk contava a história de uma feira na favela de Acari no Rio de Janeiro.
Essa feira também era conhecida pelo povo como “Robauto”, pois predominava a venda
de peças de automóveis roubados. Além disso, na feira, encontravam-se produtos de
origem duvidosa ou sem nota fiscal, e muambas vindas do Paraguai. A Feira de Acari
com característica de ‘robauto’ foi desativada em 1994 pelo poder público, no entanto,
permanece até os dias atuais com suas barracas de frutas e legumes, feirantes gritando
para atrair atenção de compradores para seus produtos, enfim, características próprias de
feira livre de bairro.
O movimento funk em evidência, principalmente pela mídia, incomodou a ponto
de, em 1995, organizarem uma CPI municipal (Resolução nº 127 de 1995) para
averiguar alegação do funk com o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, a partir de
constantes denúncias, além de se apurar a origem do dinheiro que financiava os bailes
de comunidade, conforme Medeiros (2006). O resultado foi a proibição dos bailes
dentro das comunidades, onde era o único lugar que não podia ter brigas, e foi
transferido para clubes.
Nesse sentido, Medeiros (2006, p. 56) conta que os bailes passaram para
territórios neutros, o que gerou a real violência, pois eram “locais não tão próximos dos
morros, onde ninguém era de ninguém e tudo seria permitido”. Surgem assim os bailes
de briga ou bailes de corredor, em que os frenquentadores dos bailes se dividem em
Lado A e Lado B e entre os dois lados um corredor, que um de cada lado briga.
Essinger (2005, p.192) comenta que “não sobrava mais espaço para os Mcs – não só
eles, mas a música e as mensagens perderam totalmente a importância”.
- 79 Não eram em todos os bailes que aconteciam as brigas, mas a imprensa
catalogou como se fossem e “aquilo passou a ser uma identidade [...] além de ‘bárbaros’
e ‘selvagens’, eles seriam ‘representantes do tráfico de drogas’”, de acordo com
Medeiros (2006, p. 57 e 58), de forma que os bailes legais ficaram fracos ou acabaram
por causa da perseguição dos policiais e autoridades, segundo Essinger (2005).
Os bailes de briga, a partir de 1998, vão reduzindo até terminarem. Medeiros
(2006) conta duas versões para o fim desses bailes: versão de Verônica Costa, na época
esposa de Rômulo Costa, que dizia ter promovido bailes de coreografia, em que as
mulheres dançavam e os homens aos poucos deixavam as brigas, além dos programas
Furacão 2000 na Rádio Imprensa e na TV CNT, que criticavam o comportamento de
brigas nos bailes; a outra versão é do Dj Malboro, que dava os créditos às punições que
alguns donos de equipe sofreram ao se beneficiaram com esses bailes.
Ainda em 1998, em maio, Medeiros (2006) comenta que o Ministério Público
começou uma minuciosa investigação que resultou na prisão de Zezinho ZZ Disco (13
de maio de 1998) pela apreensão de fitas de menores tirando a roupa por dinheiro e de
brigas, que ficou preso por um ano. Houve a interdição dos principais bailes de
corredor, como Coutry Clube da Praça Seca, Chaparral, Associação Comercial de
Rocha Miranda, Grêmio Recreativo de Realengo, Irajá Atlético clube, CCIP, Renascer,
Cassino Bangu, no primeiro semestre de 1999.
Em nove de junho 1999, o então, Deputado Alessandro Calazans elaborou um
projeto de lei (nº 553/99) cujo objetivo era transformá-lo em lei que regulamentaria os
bailes funk como atividade cultural de caráter popular, em que seria de responsabilidade
e organização das empresas de produção cultural e entidades ou associações da
sociedade civil, cabendo aos organizadores promover instalações necessárias dentro dos
parâmetros da legislação vigente, e quando acontecer os bailes em ambientes abertos, o
Poder Executivo garantirá serviços públicos imprescindíveis.
Calazans (1999) apresentava como justificativa o fato do movimento reunir mais
de um milhão de jovens apenas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Assim
como outros movimentos, como o rock, a capoeira, o reggae, o samba e a valsa, que
chegaram a ser motivo de escândalos, o funk enfrentam discriminação e tentativas de
desmobilização. Uma vez que surgiram de classes subalternas, foram associados à
violência sem base realística, conforme apurado numa investigação sistemática.
Comenta o deputado que o funk é uma importante fonte geradora de empregos,
pois move um grande grupo de pequenos empresários, produtores de música, discos,
- 80 equipes de som, revistas e programas de rádio e TV, ligados a esta manifestação
cultural.
Em 3 de novembro de 1999, é criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) para investigar os Bailes Funk, uma vez que havia indícios de violência, drogas e
desvio de comportamento do público infanto-juvenil, com prazo de noventas dias para
conclusão. Em 1º de dezembro de 1999, Rômulo Costa é detido por quinze dias sob a
acusação de apologia ao crime, corrupção de menores e falsidade ideológica, e depois
em 31 de outubro de 2000, por 27 dias, sob a acusação de envolvimento e associação
com o tráfico de drogas.
Após 1999, não aconteciam mais bailes de corredor, e Medeiros declara que o Dj
Malboro diz que os bailes de hoje são pacíficos como os de forró, pagode, samba ou
música eletrônica. Jerônimo Souza, organizador de bailes, diz que, hoje em dia, não
existem mais bailes de corredor, pois as pessoas vão para curtir, aproveitar o momento.
Ele diz que as pessoas não saem para brigarem e as que acontecem é como em outros
eventos, porque são pessoas diferentes em um mesmo espaço.
Após o fim da CPI dos Bailes Funk, é estabelecida a lei Nº 3410, de 29 de maio
de 2000, assinada pelo presidente da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro da época, Deputado Sérgio Cabral, que dispõe algumas regras para a realização
de bailes funk no Estado, como a instalação de detetores de metais nas portarias dos
locais fechados em que serão realizados os bailes; a presença de policiais militares do
início ao encerramento do evento, que poderão interditar o local se ocorrer violência,
erotismo, pornografia e o “corredor da morte”, e deverão fiscalizar a venda de bebidas
alcoólicas, proibidas para crianças e adolescentes; a proibição de execução de músicas e
procedimentos de apologia ao crime; e os organizadores precisam solicitar, previamente
por escrito, autorização da autoridade policial.
Essinger (2005) comenta que o ano de 2000 não foi muito bom para o
movimento funk, pois os Mcs, que estavam em ascensão na sua trajetória, começaram
um processo de declínio. Conta o autor que muitos passaram por dificuldades em se
manterem, já que a indústria de discos fechou as portas para esse tipo de gênero. Para
muitos, foi o ano em que tiveram sua carreira encerrada. Continua o autor que houve
também a redução de equipes de som, que de 400 em 1995 foi para 100 em 2001.
- 81 Ainda no ano 2000, foi eleita como vereadora a mãe loura21 do funk, Verônica
Costa, pelo Partido Liberal (PL) com 37 mil votos – assumiu a quarta posição dos
vereadores mais votados daquela eleição, segundo Essinger (2005). Pela primeira vez
foi eleito um político para defender os interesses do movimento.
Neste mesmo ano, a juventude universitária despertou interesse pelas músicas,
pois “era algo excitante, pulsante, proibido, distante do seu mundo quase sempre restrito
à Zona Sul. E era também uma música que fazia comentários sobre a realidade quase
imediata do país, da cidade e da cultura. (ESSINGER, 2005, p. 204). Com o advento da
internet, as músicas passaram para a rede, sendo mandado de amigo para amigo, e as
músicas podiam ser ouvidas em festinhas e aparelhos de som de carros, mas não podiam
ser tocadas nas rádios porque as letras não eram aceitáveis.
Por fim, após muitas batalhas, o funk, no dia 1º de setembro de 2009, foi
declarado oficialmente pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) como
patrimônio cultural, deixando de ser apenas um ritmo que retratava a vida dos
moradores de comunidade. Lopes (2011) comenta que se trata de um dia histórico, pois
Alerj estava recebendo sujeitos invisibilizados para reconhecer o tratamento desigual
que lhes eram conferidos culturalmente.
Segundo D’Adesky (2009, p. 76), o homem deseja que sua identidade seja
reconhecida pelo outro, que não tem nada haver altruísmo, mas é uma forma de ter certa
dignidade através de um respeito fundamentado, e “o desejo de reconhecimento realizase verdadeiramente na tensão, pois subverte e transforma a denegação de identidade
para engendrar... o próprio ser desse ‘eu’...”
A historiadora Andressa22 entende que o funk é um Patrimônio Cultural, porque
começou a partir do povo, mas ganhou corpo dentro da cidade.
“O poder público tem que fazer isso acontecer, como um tombamento
através da legislação... Você tomba ele (o funk) como patrimônio, tem
um lado cultural, não é só esse lado feio que existe. O lado feio quem
cria é o homem... tá cheio de gente ali... Quando o poder público entra
com esse processo, vamos tombar, vamos transformar isso num
21
22
Imagem materna construída pelos funkeiros
Entrevista realizada em 15 de abril de 2014. Atua profissionalmente na Baixada Fluminense como
professora de História para alunos do segundo segmento do ensino fundamental (6º ao 9º ano) da
Prefeitura Municipal de Nova Iguaçu e no curso de Graduação na FEBF-UERJ, Duque de Caxias, na área
de etnia e diversidade cultural. Além de ser de pertença étnica afrodescendente, a entrevistada participou
do movimento Black e participa do universo do samba.
- 82 movimento cultural é porque esse movimento tomou corpo na cidade
inteira, até na zona sul. Não só os bairros como dentro das favelas....
Você vai no afroreggae, uma instituição de negros, você vai ter
batalha de rap, dança de rua, uma série de oficinas... Em Madureira
tem a do mv Bill, a Cufa23, Essas instituições criam uma série de
programas, a partir de desses movimentos, criando uma série de
oficinas para esses jovens participarem. Aí você tem o amparo do
poder público, aquela coisa que tá legalizado. Existe documentação,
existe um decreto, existe tudo isso que ampara, logo eu consigo trazer
investimentos pra mim. Se torna muito importante”. (ANDRESSA,
HISTORIADORA)
Bauman (2005) comenta que a contemporaneidade líquida não acredita mais na
força coerção por parte do Estado, a sociedade não dá mais ordens de como se viver e
deixa de ser um árbitro severo e intransigente, mas se espera que seja justa e de
princípios. De modo que o funk passa a ser definido como movimento cultural e
musical de caráter popular.
LEI Nº 5543, DE 22 DE SETEMBRO DE 2009.
DEFINE O FUNK COMO MOVIMENTO CULTURAL E
MUSICAL DE CARÁTER POPULAR
O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Fica definido que o funk é um movimento cultural e musical de
caráter popular.
Parágrafo Único. Não se enquadram na regra prevista neste artigo
conteúdos que façam apologia ao crime.
Art. 2º Compete ao poder público assegurar a esse movimento a
realização de suas manifestações próprias, como festas, bailes,
reuniões, sem quaisquer regras discriminatórias e nem diferentes das
que regem outras manifestações da mesma natureza.
Art.3º Os assuntos relativos ao funk deverão, prioritariamente, ser
tratados pelos órgãos do Estado relacionados à cultura.
Art. 4º Fica proibido qualquer tipo de discriminação ou preconceito,
seja de natureza social, racial, cultural ou administrativa contra o
movimento funk ou seus integrantes.
Art.5º Os artistas do funk são agentes da cultura popular, e como tal,
devem ter seus direitos respeitados.
Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2009.
SERGIO CABRAL
Governador
Os deputados Marcelo Freixo (PSOL), em parceria com Paulo Melo (PMDB) e
Wagner Montes (PDT) requereram o status de patrimônio cultural e os deputados da
ALERJ já haviam acordado diminuir a discriminação contra o ritmo, derrubando as
23
Central Única das Favelas
- 83 barreiras contra o baile funk. Mc TG 10 comenta que o funk era muito discriminado,
principalmente porque se trata de um ritmo vindo da periferia e comunidade e
transformar o funk em Patrimônio Cultural do Estado do Rio de Janeiro é reconhecer o
trabalho dos Mcs da antiguidade que lutaram por esse espaço na sociedade.
Para o Mc, “O funk, independente do que é citado pela letra... é uma referência,
pra mim, nacional... Aqui é a vitrine do funk”, uma vez que as pessoas de outros estados
gostam do funk do Rio de Janeiro. Cidades, como Porto Alegre, predominantemente
branca e elitizada, abraçaram o ritmo que é da periferia e de negros; São Paulo também
realiza uma batida do funk muito legal, dando ênfase no funk ostentação; e outros
estados, enfim, o funk realmente faz parte da cultura do povo. O organizador de bailes e
eventos, Jerônimo Souza, fala que “A batida do funk é uma coisa muito tranquila e se
todo mundo curte, não tem porque não ser Patrimônio Cultural”.
“Eu particularmente acho que o funk, quer queira a elite ou não, quer
queira o sistema ou não, ele é um patrimônio cultural. Por que ele é
um patrimônio cultural? Porque ele representa toda história, toda visão
do potencial de um povo, de um grupo. É justamente esse grupo que é
excluído, que pertence à minoria... Você pode contar uma história que
é de uma época, através das letras do funk”. (LUCIANA,
HISTORIADORA E GEÓGRAFA).
Com a aprovação do projeto de lei, houve a necessidade de revogar uma lei
anterior que restringia a realização de bailes funk no estado. Em 2007, a resolução 013,
assinada pelo secretário de segurança pública José Mariano Beltrame, proibia a
realização de eventos culturais, sem autorização das responsáveis pelo policiamento de
algumas áreas. A resolução regulamentava o decreto nº. 39.355 de 24 de maio de 2006 atuação conjunta de órgãos de segurança pública na realização de eventos.
SECRETARIA DE ESTADO DE SEGURANÇA
ATO DO SECRETÁRIO
RESOLUÇÃO SESEG Nº 013
DE 23 DE JANEIRO DE 2007.
REGULAMENTA O DECRETO Nº 39.355,
DE 24 DE MAIO DE 2006, QUE DISPÕE
SOBRE A ATUAÇÃO CONJUNTA DE
ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA, NA
REALIZAÇÃO DE EVENTOS ARTÍSTICOS,
SOCIAIS E DESPORTIVOS, NO ÂMBITO
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, E DÁ
OUTRAS PROVIDÊNCIAS.
O SECRETÁRIO DE ESTADO DE SEGURANÇA PÚBLICA, no
exercício de suas atribuições legais, e consoante o que dispõe a CI nº
03/SSP/SSPIO/62/2006.
CONSIDERANDO:
- a necessidade de uniformizar a atuação conjunta dos órgãos da
administração pública estadual na manutenção e preservação da ordem
- 84 pública, na realização de eventos artísticos, sociais e desportivos no
Estado do Rio de Janeiro;
- a necessidade de os órgãos públicos serem informados, previamente,
acerca da realização de eventos em locais que demandem o emprego
de seus profissionais, seja para o exercício do policiamento ostensivo,
ou, ainda, para o exercício da polícia judiciária;
- que o conhecimento prévio de tais eventos possibilitam ações
planejadas, conjuntas ou isoladas, incluindo-se entre outros itens a
provisão de recursos humanos e materiais, bem assim o seu reforço,
com vistas a coibir eficazmente ações contrárias à segurança, à
tranquilidade e à paz públicas.
R E S O L V E:
Art. 1º - Para efeito da regulamentação do Decreto Estadual nº 39.355,
de 24 de maio de 2006, são consideradas autoridades competentes
para autorizar a realização de eventos artísticos, sociais e esportivos,
no âmbito da Secretaria de Estado de Segurança:
I - O Comandante da OPM, da Polícia Militar do Estado do Rio de
Janeiro – PMERJ, da Secretaria de Estado de Segurança – SESEG,
responsável pelo policiamento da área onde se realizará o evento;
II – O Delegado-Titular da Unidade de Polícia Judiciária da Polícia
Civil do Estado do Rio de Janeiro – PCERJ, da Secretaria de Estado
de Segurança – SESEG, da circunscrição policial onde será realizará o
evento.
[...]
Art 6º. Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação,
revogando-se às disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 2007.
JOSÉ MARIANO BENINCÁ BELTRAME
Secretário de Estado de Segurança
Tanto o decreto como a resolução eram considerados uma violação da liberdade
de expressão, do acesso à cultura e à livre associação e impediam a realização de
manifestações culturais, como funk e pagode.
Os eventos que aconteciam em
comunidades e espaços populares eram os que mais sofriam com a resolução.24
O movimento do funk é um fenômeno de cultura de massa, atividade de diversão
e cultura popular, em que o número de jovens que frequenta é impressionante. Além de
constituir, também, uma atividade econômica importante e gera novos empregos ligados
à área cultural, como produtores de música, equipes de som, compositores, cantores,
dançarinos, etc.
Transformar o movimento funk em Patrimônio Cultural do Estado do Rio de
Janeiro representa reconhecimento cultural e musical e uma tentativa de acabar com
atitudes discriminatórias como aconteceu com o samba, a capoeira e outras
manifestações culturais de origem afrobrasileira.
24
observatoriodefavelas.org.br
- 85 -
CAPÍTULO 3
Funk na Baixada Fluminense: Uma questão de identidade
A questão da identidade, atualmente, vem despertando a atenção de estudiosos
do campo social. Dessa forma, o capítulo, em questão, abordará sobre a construção da
identidade dos funkeiros, especialmente, da Baixada Fluminense, no Estado do Rio de
Janeiro, à luz do estado de liquidez do mundo moderno e globalizado, refletida na
linguagem musical.
Este capítulo considerará brevemente sobre o processo histórico da Baixada,
considerada região com más condições de sobrevivência, apresentando grandes
problemas sociais, urbanos, portanto, uma região discriminada. No entanto, apresenta
um forte movimento cultural, o funk, que apreciaremos como ele ocorre nessa área, a
partir das vivências das pessoas entrevistadas.
Será considerado também o uso dessa linguagem, que acompanha todos desde a
infância, e como ela permite aproximação entre os membros de um mesmo grupo e
outros, que se encontram externamente, mas que se simpatizam pelo gênero. Além da
integração e socialização, o movimento funk, também, exerce a função, através de seu
lado lúdico, de conhecimento de um mundo marginalizado que é exposto nas letras, de
forma que por detrás delas, letra de funk, transparecem uma ideologia. Portanto,
estaremos abordando o contexto histórico os diversos estilos musicais do funk e como a
linguagem musical se relaciona com o mundo globalizado, associado ao consumismo.
Outro tema que será considerado no capítulo é a questão de gênero, a mulher,
que apesar de minoria como Mc, tem uma participação expressiva no movimento,
principalmente porque quebra paradigmas da sociedade, em que o homem é dominante
e a mulher está a seu serviço e é objeto de prazer. As mulheres cantam sua liberdade
sexual, tendo o direito de escolha e vontade própria, de forma que assumem um papel
transformador e contribuindo para a formação de uma nova identidade.
Outra questão também abordada é a homossexualidade no funk. A
homossexualidade existe há muitos anos, mas nem sempre é aceita pela sociedade, no
entanto, no funk, eles são recebidos sem críticas, participando, na maioria das vezes,
como dançarinos.
- 86 -
3.1 Identidades: uma questão a ser abordada
Hall (2001) comenta sobre três concepções de identidade: a do sujeito do
iluminismo, em que a identidade nascia e desenvolvia com o sujeito, sendo ele o centro;
o sujeito sociológico, em que o sujeito tinha sua identidade formada e modificada a
partir da interação com o outro, ou seja, com identidades oferecidas por mundos
culturais exteriores; por fim, o sujeito pós-moderno, que não tem uma identidade fixa,
essencial ou permanente, mas fragmentadas, uma vez que o sujeito assume diferentes
identidades em momentos diferentes, não girando entorno do eu.
Ainda segundo o autor, as velhas identidades, que por muito tempo estabilizaram
o mundo social, estão em declínio nos dias atuais permitindo surgir novas identidades e
fragmentando o indivíduo, que antes era visto como um ser unificado.
Existe, em suma, na vida moderna, uma diversidade de posições que
nos estão disponíveis – posições que podemos ocupar ou não...
Algumas dessas identidades podem, na verdade, ter mudado ao longo
do tempo. As formas como representamos a nós mesmos – como
mulheres, como homens, como pais, como pessoas trabalhadoras –
têm mudado radicalmente nos últimos anos. Como indivíduos,
podemos passar por experiências de fragmentação nas nossas relações
pessoais e no nosso trabalho. Essas experiências são vividas no
contexto de mudanças sociais e históricas, tais como mudanças no
mercado de trabalho e nos padrões de emprego. As identidades e as
lealdades políticas também têm sofrido mudanças: lealdades
tradicionais, baseadas na classe social, cedem lugar à concepção de
escolha de “estilos de vida” e à emergência da “política de
identidade”. A etnia e a “raça”, o gênero, a sexualidade, a idade, a
incapacidade física, a justiça social e as preocupações ecológicas... As
identidades sexuais também estão mudando, tornando-se mais
questionadas e ambíguas, sugerindo mudanças e fragmentações que
podem ser descritas em termos de uma crise de identidade.
(WOODWARD, 2000, p. 31)
Nos tempos atuais, as pessoas passam por várias experiências, a fim de se
adequar às mudanças, assumem diferentes papéis ou identidades, que muitas vezes
geram conflitos. Hall (2001, p.13) comenta que o “sujeito assume identidades diferentes
em momentos diferentes, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’
coerente”, diante da complexidade da sociedade moderna. Para Ortiz (2004), nós não
devíamos ter carteira de identidade, mas uma carteira de diferenças, pois esta é rica,
complexa e indefinida, revelando a diversidade pela qual as passam ao longo da vida.
Nesse sentido, Vianna (1988) afirma que o Rio de Janeiro é uma cidade que coexistem
inúmeros grupos que têm estilos de vida e concepções diferentes e essas diferenças
- 87 promovem conflitos ou acordos momentâneos, no entanto, nunca estabilidades que
poderiam definir uma Cultura Dominante Carioca.
Para Mattelart (2010), a hegemonia é vista como relevante pela elite para
construir o poder e aceitação dos dominados aos valores e produção que devem ser
consideradas vontade geral, no entanto, o movimento funk transgride essa hegemonia,
pois apresenta a cultura com outros significados, deixando de ser domínio da tradição e
passa a ser contemplado os gostos do povo, fugindo dos padrões estéticos e definidos
pela classe dominante. D’Adesky (2009) comenta que as incompatibilidades
(diferenças), provocadas pelas disparidades econômicas e distorções políticas, geram
em comunidades marginalizadas consciências favoráveis às reivindicações étnicas e
culturais, de forma que funciona como instrumento que interpreta a situação, se
posiciona e age sobre ela, denunciando a intenção de uniformização dos Estadosnações, representados pelos pensamentos da elite.
Woodward (2000) comenta que para lidar com a fragmentação dos tempos
atuais, alguns buscam retornar ao passado perdido para reconstruir identidades atuais,
mesmo que apenas imaginado, proporciona clima de mudança, fluidez e crescente
incerteza, e são esses conflitos que possibilitam mudanças sociais, política e
econômicas. Nesse sentido, se torna coerente aproveitar-se da herança afro para compor
o movimento funk. Vianna (1988) aponta que não se pode desconsiderar que o baile
funk, além de ser suburbano, também é frequentado em sua maioria por pessoas negras,
portanto, vindo a ser uma questão identitária étnica. Continua o autor dizendo que o
funk nos Estados Unidos, sempre esteve ligado a história da música norte-americana
negra e o processo de formação de identidade étnica dos negros.
Para Woodward (2000), a identidade está vinculada as condições sociais e
materiais, de forma que, quando um grupo é simbolicamente discriminado, passa a ter
efeitos reais e o grupo acaba sendo socialmente excluído e com desvantagens materiais.
O social e simbólico são dois processos diferentes, no entanto, são necessários para a
construção e manutenção da identidade, sendo o simbólico relacionado à prática e o
social definindo quem é ou não excluído, experiência vividas nas relações.
A identidade é marcada pela diferença, mas parece que algumas
diferenças – neste caso entre grupos étnicos – são vistas como mais
importantes que outras, especialmente em lugares particulares e em
momentos particulares (WOODWARD, 2000, p.11).
Ainda sobre a identidade marcada pela diferença, Silva. T (2000) declara que
através dela é que ocorre a separação de uma identidade de outra, estabelecendo
- 88 distinções, de forma que as identidades marcadas pela diferença, não são com relação de
oposição, mas de dependência. O autor ainda expõe que tanto a identidade e a diferença
não são elementos naturais, mas fabricados a partir das relações sociais e culturais, pois
a identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente, homogênea, definitiva
e idêntica, mas uma construção, de forma que se torna instável, contraditória, inacabada,
logo, fragmentada.
Hall (2001) e Woodward (2000) argumentam que a crise de identidade é
característica dos tempos atuais e faz parte de um processo de mudança que desequilibra
as velhas estruturas dos estados, que antes dava segurança no mundo social. Woodward
(2000, p.25) continua declarando que as mudanças e transformações no mundo
contemporâneo, tanto política como econômica e social, colocam em evidência as
questões identitárias e as lutas para afirmação e manutenção delas, mas “as identidades
que são construídas pela cultura são contestadas sob formas particulares no mundo
contemporâneo – num mundo que se pode chamar de pós-colonial”. Nesse sentido,
surge o declínio das “velhas certezas” e produz assim novas formas de posicionamento.
A identidade era visto como projeto de vida que ia sendo construído pouco a
pouco no presente para que o futuro fosse organizado, seguro e sólido. Mas, atualmente,
vivemos num mundo instável, que conforme Bauman (2001), as identidades se tornam
fluidas, peculiar de uma modernidade líquida em oposição à solidez, que invadiu todos
os setores da sociedade, inclusive no universo musical.
As diferentes identidades são possíveis, levando em consideração o sentimento
de pertencimento ao grupo social. Bauman (2005) comenta que a ideia de identidade
surgiu da crise do pertencimento e do esforço em transpor a brecha entre o deve e o é, e,
assim, recriar a realidade a partir dos padrões estabelecidos pela ideia, ou seja, a questão
da identidade funkeira surge com a ligação de ideias dos membros de uma comunidade,
a partir daí, justifica-se a representação dessa identidade pelo uso de uma determinada
vestimenta, linguajar, comportamento etc. Yúdice (2004) confirma ao dizer que o funk
vai mais além do que música de comunidade, mas representa um grupo social e esse
movimento cultural entra no mercado, criando novas modas, gerando novas estrelas da
música, enfim, buscando um espaço que seja seu.
De acordo com Vianna (1988), os jovens funkeiros tentam se vestir como a elite
da zona sul. Antigamente, tentavam vertir-se como os surfistas, mas com estilos
próprios e exóticos, característicos do grupo que frequentavam, com excesso de cores,
- 89 camisas abertas e colares de pratas. Atualmente, a entrevistada Márcia 25, frequentadora
de bailes, conta que os jovens ainda continuam seguindo o padrão dos jovens da elite,
mas dessa vez, parecendo com os mauricinhos, jovens da elite – Roupas de marca e
perfumes importados, mesmo que falsificados. O cordão ainda é uma referência para os
Mcs, tanto na cor prata como na cor de ouro. De acordo com Mc Paixão, os adornos
como cordões, anéis funcionam como símbolo dentro do local para indicar poder.
Quanto às mulheres, suas roupas são curtas e expõe o corpo. Márcia diz que se
usam vestidos colantes e justas, marcando as curvas, ou shorts e blusas curtos, também
expondo a maior parte do corpo. Silva (1999, p. 207) comenta que, nos tempos atuais,
“esconder o corpo é suprimir as imagens que ele emite; cobri-lo equivale a dizer que ele
não existe como algo que fala e se movimenta, como foco de erotismo. É reduzir o
corpo, mesmo na gravidez, a algo pecaminoso e/ou ameaçador”.
Comenta Lopes (2011) que a Lei nº 5543/2009, que estabelece “o Funk como
movimento cultural e musical de caráter popular do Estado do Rio de Janeiro”,
representa o reconhecimento do movimento como identidade cultural de um grupo,
negros e pobres, que desafia a noção etnocêntrica de cultura de uma elite branca e
letrada, de maneira que a definição de cultura passa a ser questionada.
Bauman (2005, p. 19) expõe que as identidades flutuam no ar, algumas são de
nossa própria escolha, mas outras são adquiridas a partir do contato com outros. O
autor, também, salienta da necessidade de se estar alerta “para defender as primeiras em
relação às ultimas. Há uma ampla probabilidade de desentendimento, e o resultado da
negociação permanece eternamente pendente”.
Um exemplo de processo de resistência, logo de defesa de uma identidade, foi a
dos negros africanos, no período colonial, que trouxeram uma cultura, ideias e
princípios de sua terra natal, e após várias tentativas de anulação por parte dos brancos
conseguiram, através de desentendimento e negociação, manter a sua essência
identitária, quanto à religiosidade, danças, ritmos etc., conforme vimos no início desse
trabalho.
Quando se trata de preferências e escolhas culturais, talvez haja mais
desavenças e antagonismos do que unidade. Os conflitos são
numerosos e tendem a ser amargos e violentos. Essa é uma ameaça
constante à integração social – e também ao sentimento de segurança
e auto afirmação individual. Isso por sua vez, cria e mantém um
25
Márcia: Entrevista realizada em 20 de janeiro de 2014. 36 anos. Quando mais jovem frequentava
assiduamente os bailes funk e o universo do samba. Atualmente, continua frequentando, no entanto, com
menos frequência devido às responsabilidades adquiridas, como família.
- 90 estado de alta ansiedade... A tarefa de construir uma identidade
própria, torná-la coerente e submetê-la à aprovação pública exige
atenção vitalícia, vigilância constante, um enorme e crescente volume
de recursos e um esforço incessante sem esperança de descanso
(BAUMAN, 2005, p. 88).
O reconhecimento do funk, como Patrimônio Cultural do Estado do Rio de
Janeiro, foi uma conquista após táticas de lutas, através de ressignificações do
movimento. Lopes (2011, p. 76) declara que a defesa da cultura funkeira era uma “luta
política contra a criminalização das favelas, seus sujeitos e suas práticas – uma batalha
cultural com efeitos simbólicos e materiais”, e nesse sentido, o movimento além de
constituir a realidade para seus membros, também coloca em evidência, para a
sociedade, como os jovens negros e pobres, de periferias, subúrbios ou comunidades,
significam suas próprias identidades e práticas.
A identidade se torna um processo contínuo e inacabado, pois não tem destino
certo, uma vez que os objetivos se transformam a partir das experiências e durante o
processo.
3.2 Globalização e mídia
Segundo Hall (2001), as identidades tradicionais têm veneração pelo passado e
perpetuam as experiências de gerações e as modernas são reformuladas a partir das
informações recebidas, visto serem consideradas com mudanças constantes e rápidas, ou
seja, a ideia de tradicional deixa de existir, enquanto que as identidades modernas, a
partir do passado, reinventam, principalmente quando em contato com outros universos,
através da globalização, um dos fatores que colaboram para esse dinamismo e que é
definida como processos que atravessam fronteiras nacionais.
Ainda conforme o autor, a globalização tornou-se peça chave para integração de
comunidades, enfraquecendo a identidade nacional, fragmentando-as e reforçando
outros laços culturais, tornando o mundo interconectado, de forma que interferiu sobre a
identidade cultural do funk no Brasil. O que vai de encontro com o pensamento de
Woodward (2000), que comenta como a globalização promove a interação entre fatores
econômicos e culturais, provocando mudanças nos padrões de produção e consumo, o
que possibilita a formação de novas identidades.
Conforme Kellner (2001), nos anos 80, com a globalização, discursava-se sobre
comunicação além-fronteiras, surgindo novas teorias críticas sobre feminismo,
- 91 marxismo, psicanálise, etc. Escosteguy (2013) declara que, nessa mesma década, a
mídia e a tecnologia entram no contexto da vida cotidiana fazendo com que a cultura
popular fosse entendida como autônoma e resistente ao campo hegemônico.
A mídia é considerada um fenômeno recente. Kellner (2001) informa que nos
anos 40, ela se torna, nos EUA e em outros países capitalistas, o centro do sistema, tanto
de cultura como comunicação, servindo como lazer. Era constituída por cinema, rádio,
revistas, história em quadrinhos, propagandas e imprensa.
Até o final da II Guerra Mundial, 1945, a mídia em evidência era o rádio. Com a
expansão da televisão, no pós-guerra, é que a mídia tornou-se força dominante de
cultura, socialização, política e vida social, segundo Kellner (2001). A televisão
provocou uma revolução, tornando-se uma realidade cotidiana para uma grande camada
da população. D’Adesky (2009) completa que, nos últimos 20 anos, houve velocidade e
diversificação nos meios de comunicação com aparecimento de novas tecnologias e o
advento da informática, reforçando a capacidade de informação. Portanto, a evolução da
mídia favorece e se torna um grande instrumento para a globalização.
Atualmente, jornais podem ser impressos simultaneamente na Europa
e na América do Norte, em São Paulo e no Rio de Janeiro, sendo
possível assistir a programas ao vivo nos cinco continentes, graças à
transmissão, por satélite, de qualquer reportagem televisiva, como já
acontece com os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo de futebol
(D’ADESKY, 2009, p. 87).
Nos tempos atuais, surgiram TV a cabo e por satélite, reprodutores de DVD’s
em substituição aos videocassetes, computador pessoal, e outras tecnologias, que
Kellner (2001, p. 26) diz acelerar a “disseminação e o aumento do poder da cultura
veiculada pela mídia”. Essa rede de meios de comunicação mexe com o emocional,
sentimentos e idéias. As pessoas convivem constantemente com os meios midiáticos, de
forma que passaram a dominar a vida cotidiana das pessoas.
Os Mcs entrevistados narram que trabalham com empresários (produtores) que
organizam tudo e que, geralmente, trabalham somente com funkeiros e são eles que
cuidam também da divulgação do trabalho e para tal fim, os meios tecnológicos são
ótimos recursos. Mc Paixão declara que as músicas dos Mcs, na maioria das vezes, são
divulgadas por meio de CDs produzidos pela equipe de produção para qual trabalham
ou pelo próprio e distribuídos nos shows; e algumas rádios que trabalham com esse
ritmo, mas com os que estão em evidência, como 107.1 Fm – a rádio da Furacão 2000,
Beat 98 Fm e FM O Dia 100.5. Acrescenta o Mc que existem sites que divulgam
- 92 trabalhos e, nesse caso, trabalham com todos os estilos sem discriminação, como
funkmp3.net, funkneurotico.net, pesadão.com e outros. Além disso, também existe o
Youtube, um site em que vídeos diversificados, criados pelos próprios usuários, são
compartilhados com qualquer pessoa, que podem comentar a respeito e vídeos caseiros
que são publicados em redes sociais e compartilhados. Enfim, apesar da mídia
tradicional não fazer divulgação dos trabalhos dos Mcs sem distinção, o movimento cria
recursos, como táticas, de se afirmarem como cultura, disseminando-a entre seus
adeptos.
TG10 lembra do fato que aconteceu com mc Federados e Leleques, de Coronel
Leôncio, Niterói com a música Passinho do Volante (Ah Lelek Lek Lek Lek). Eles foram
agraciados pelo jogador de futebol Neymar, que, por ter cantado e dançado após uma
goleada, ficaram em evidência. Eles já apresentaram no DVD do Furacão 2000, mas
ninguém só alguns os conheciam. Mas esses casos são raros.
Na Baixada, nenhum mc conseguiu gravar um CD próprio. Mc Debby comenta
que “quando tem um CD de funk, tem vários Mcs cantando”. Só grava CD quem tem
uma gravadora por trás, dando todo um aparato, como Mc koringa com a gravadora
Kondzila (2011 – The Best of Mc Koringa e 2013 – Koringa) e Buchecha com Sony
Music (2012 – 15 anos de sucesso ao vivo). A mc não acredita que cantores de funk
consigam vender muitos CDs no Rio, talvez fora do estado, e ainda completa que “ainda
mais com internet. É pior ainda, porque você pode baixar. É complicado. Eu mesmo
tenho músicas que poderia lançar um CD, mas eu não vou ter o trabalho de ter esse
gasto financeiro, porque sei que não vai ter retorno.”
D’Adesky (2009) comenta que para atender esse segmento excluído e de quase
invisibilidade perante a sociedade elitista, que mantém relação de força junto ao poder
decisório das grandes gravadoras, surgiram nos últimos anos várias gravadoras
pequenas que se dedicam a esses ritmos. Muitas nasceram de equipes de som que
animam os bailes, como Furacão 2000 no Rio de Janeiro.
Mc Paixão diz que o vídeo colabora muito para ‘vender’ o artista, funciona
como propaganda, mesmo que não vá para a mídia televisiva, mas é compartilhado
através das redes sociais, podendo ser acessado por qualquer pessoa e a qualquer hora.
Um bom vídeo possibilita um maior interesse na música, pois os elementos visuais
contribuem para agradar a quem está assistindo, principalmente para as pessoas de hoje
em dia que estão sempre conectados e não saem do computador. É o que aconteceu com
seu último clipe, em 2013 – Merthiolate (o mete, o mete, o mete, o late):
- 93 Estava na porta da farmácia / Quando tudo começou/ Eu olhei pra ela/
E pra completar/ Caiu no chão/ Se machucou/ Eu fui falar com ela/
Ela ainda roncou/ Mas comigo, o papo é reto/ Sem Neurose, sem kaô/
Novinha presta atenção/ Essa é a nova sensação/ o mete, o mete, o
mete, o late (MC PAIXÃO, MERTHIOLATE)
Nos Estados Unidos e alguns países capitalistas, a transformação da cultura
como mercadoria fez com que visando lucros voltassem atenção para assuntos
populares para que atraíssem um público capaz de elevar a audiência e no Brasil, não foi
diferente, de acordo com Kellner (2001). A rede midiática, na tentativa de lucrar, passou
abordar temas que atendem um número maior de pessoas, ou seja, o povo, de forma
que, atualmente, o funk está relacionado ao aumento da audiência em programas
destinada à massa popular, como “Casos de Família”, “Ratinho” e “Domingo Legal”, no
SBT; “Melhor do Brasil” e “Domingo da gente” na TV Record; “Caldeirão do Huck”,
“Esquenta” na TV Globo; e outros programas televisivos. No entanto, apesar da mídia
televisiva evidenciar as músicas em alguns momentos para alavancar a audiência, o
reconhecimento do funk como cultura está longe de existir, pois o número de
apresentações permanece inexpressivo, e geralmente, são os que estão em evidência,
lembrando que são poucos Mcs reconhecidos por essa mídia.
D’Adesky (2009) argumenta que a ação da mídia, em questão de autoestima, é
prejudicial para a classe dos menos favorecidos, formada por negros e pobres,
geralmente, pois são evidenciados em momentos carnavalescos e quando transgride a
ordem pública, como os arrastões e bailes funk, de forma que reforça os preconceitos,
perpetuando, assim, o monopólio dos dominantes.
Lopes (2011) destaca que o funk é tratado pela mídia como exótico, e ela, ao
mesmo tempo, glamoriza o ritmo, principalmente quando essa prática é consumida pela
elite, também o associa ao perigo e a criminalidade. Nesse sentido, a autora enfatiza que
a aceitação do funk está vinculada à discriminação racial, uma vez que se trata de “som
de preto e favelado”
26
, o que, de certa forma no imaginário da classe dominante,
significa perigo à ordem social, como eram tratados os capoeristas e sambistas no
passado. Logo, a discriminação não é expressa explicitamente, mas silenciosa.
Enquanto no Brasil se preocupa com a questão do funk ser ou não cultura, no
exterior, o ritmo já é reconhecido como música eletrônica brasileira. Medeiros (2006)
compartilha que em 2004, Tati Quebra Barraco provocou polêmica no Brasil quando
26
“Som de Preto” de Amilcka e Chocolate
- 94 representou o país na Alemanha, financiada pelo Ministério da Cultura, no entanto, não
foi a primeira vez, pois ela já fazia turnê no exterior; Mc Catra tem público fiel em
Israel e Japão, fora a Europa; Dj Malboro fez várias apresentações no exterior e ele
acredita que o batidão demorou a ser aceito no exterior por conta do preconceito no
país, que obstrui a carreira dos Mcs lá fora, de acordo com Medeiros (2006).
Reconhecimento internacional é uma coisa que ajuda muito a quebrar
o preconceito. Principalmente com aqueles que são muito apegados a
coisas internacionais e que acham o gringo melhor. São aqueles que
sempre falaram mal do funk, aí veem o gringo reverenciar e falam
‘meu Deus, não é que o negócio é bom mesmo e eu não tinha visto?
(DJ MALBORO apud MEDEIROS, 2006, p. 112)
No Brasil, ainda não se admite que o funk seja música popular brasileira, mas
Medeiros (2006) provoca a reflexão sobre o assunto ao dizer que não há nada mais
popular que um ritmo que mistura electro com ritmos afro-brasileiros, produzidos por
pobres e favelados, que narram a sua realidade. Enquanto marginalizados aqui, no
exterior são venerados, a ponto do badalado Dj inglês Fatboy Slim remixar o batidão;
inspirar o produtor de estrelas da música mundial, Mr. Bongo; Dj Diplo sampleou ‘Feira
do Acari’ do Dj Malboro, em 2004 e ‘Injeção’ da Deize Tigrona em Bucky Done Gun,
primeira música do cd de estréia da rapper M.I.A, que virou hit no mundo inteiro 27; e
outros.
3.3 A Baixada Fluminense e os bailes funks
De acordo com Duarte (2010, p. 69), pela etimologia refere-se a municípios que
apresentam terras baixas cortadas por rios, como, por exemplo, Meriti, Sarapuí, Pilar e o
rio Iguaçu, porque “baixada significa planície entre montanhas ou área baixa em
relação a outras, já fluminense surge da palavra latina flúmen, ou seja, rio”.
Atualmente, a Baixada Fluminense é formada pelos municípios de Itaguaí,
Seropédica, Paracambi, Japeri, Queimados, Nova Iguaçu, Mesquita, Belford Roxo,
Nilópolis, São João de Meriti, Duque de Caxias, Magé e Guapimirim.
De acordo com Marinho & Martinez (2013), muitos dos municípios que compõe
a Baixada são oriundos do município de Nova Iguaçu, que foi fundado em 1833, e a
partir de 1943 foi marcado por diversos desmembramentos. Em 1943, foram
27
Quando a rapper veio fazer um show no TIM Festival em 2005, convidou Deize para dividir o palco
com ela. Diplo gravou duas músicas cm Deize para uma coletânea lançada somente na Alemanha.
(MEDEIROS, 2006)
- 95 desmembrados os municípios de Duque de Caxias (464,6 km²), que, em 1947,
desvincula de seu território o município de São João de Meriti (34,8 km²); em 1947,
também emancipa-se o município de Nilópolis (19,2 km²); em 1990, surgem os
municípios de Belford Roxo (79,8 km²) e Queimados (76,9 km²); em 1991, o município
de Japeri (82,8 km²) foi emancipado; e por fim, em 1999, acontece a emancipação de
Mesquita (34,8 km²).
Santos (2008) comenta que em toda a Baixada Fluminense, nos anos 60,
resultado da crise da citricultura e da conversão das chácaras em loteamentos, deixa a
imagem bucólica e acontece um elevado crescimento populacional com a chegada de
uma população de baixa renda e de migrantes nordestinos.
No entanto, os poderes públicos e privados não investiram na infraestrutura, de
forma que o abandono e falta de investimento em bairros da periferia, que dura até os
dias de hoje, estigmatiza a região como desvalorizada e ocupada por uma população de
baixa renda, que sem recursos econômicos e com a valorização das terras no Rio de
Janeiro, encontrou a oportunidade de adquirir lotes baratos ou invadirem terrenos
particulares para fixar moradias.
A identificação é também um fator poderoso na estratificação, uma de
suas dimensões mais divisivas e fortemente diferenciadoras. Num dos
pólos da hierarquia global emergente estão aqueles que constituem e
desarticulam as suas identidades mais ou menos à própria vontade,
escolhendo-as num leque de ofertas extraordinariamente amplo, de
abrangência planetária. No outro polo se abarrotam aqueles que
tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que não tem direito
de manifestar suas preferências e que no final se veem oprimidos por
identidades aplicadas e impostas por outros – identidades de que eles
próprios se ressentem, mas não têm permissão de abandonar nem das
quais conseguem se livrar. Identidades que estereotipam, humilham,
desumanizam, estigmatizam... (BAUMAN, 2005, p. 44).
A partir dos anos 80, segundo Santos (2008), a atenção para a Baixada
Fluminense vem trazendo investimentos que modificaram e modificam a sua
fisionomia, principalmente nos centros dos municípios, como a construção da Linha
Vermelha e da Via Light; a construção de um grande número de condomínios fechados
destinados à classe média local e construções de shopping centers - Shopping Grande
Rio, em São João de Meriti; os Shopping UNIGRANRIO e Caxias Shopping, em
Duque de Caxias; Nilópolis Square em Nilópolis; e o Top Shopping em Nova Iguaçu e
outros. Todavia, ao redor desses centros dos municípios da Baixada, ainda há área de
- 96 pobreza com carências urbanas e exclusão social, marcadas negativamente como
regiões de índice elevado de criminalidade e violência.
A Baixada é uma região que faz fronteira com a capital, todas e quaisquer
mudanças e movimentos sociais, políticos e culturais que aconteçam na cidade reflete
nela, que, por sua vez, se apropria e transforma com adaptações que atendam as suas
necessidades. Com a chegada, na capital, do movimento cultural que atendia aos anseios
de diversão de negros e pobres, o funk, não demoraria muito para chegar à Baixada e
cair no agrado da população, que majoritariamente é formada de negros e pobres.
Em entrevista com uma Historiadora que mora e trabalha na Baixada, ela narra
que:
O funk cria corpo na baixada, apesar de nascer com o soul na zona sul.
Vai para periferia, mas na baixada também. Acho que ele toma muito
corpo na baixada, até por falta de acesso do pessoal. Eles vivem mais
intensamente esse tipo de cultura, do que outros jovens da zona sul.
Os jovens da zona sul tem praia, tem teatro, tem tudo. O que vai
acontecer com nossos jovens? Aquilo pra ele, os bailes, é tudo de
bom. Eles dividem tudo, até a roupa. Aquilo vira o acontecimento da
cidade. A roupa eu vou emprestar, o cabelo cada colega faz, porque
não tem dinheiro. Pra sair da baixada para ir a praia é complicado. ‘Pô
tem o baile no seu Manoel da esquina, é pra lá mesmo que eu vou.
Vou beijar. Tudo baratinho, a roupa eu troco com o colega, o cabelo
faço até com uso de camisinha’28. Que evento? Que situação é essa?
Aí esse movimento ganha força. No rádio não tem jeito, vai ter que
tocar, vai pra internet, vai pra redes de relacionamentos, vai tocar e
eles vão ganhando espaço deles assim. Antigamente as pessoas que
faziam música tinham gravadoras boas, com advento da internet, é o
que o pessoal da baixada, e da periferia estão fazendo para divulgação
do trabalho... (ANDRESSA, HISTORIADORA)
Na Baixada, os protagonistas desse movimento tem alcançado repercussão a
ponto de afirmarem sua identidade. Jerônimo Souza, organizador de bailes, narra que
antes, o interesse pelos moradores da Baixada era pelo pagode, charme e hip hop, no
entanto, “de uns cinco anos pra cá, só o funk mesmo”.
Mattelart (2010) comenta que as atividades culturais de âmbito popular mesmo
aparentemente inocente, refletem um processo de resistência ou de se firmar como
identidade, servindo para questionar a classe dominante.
Pensar os conteúdos ideológicos de uma cultura nada mais é que
perceber, em um contexto dado, em que os sistemas de valores, as
representações que eles encerram levam a estimular processos de
resistência e aceitação do status quo, em que discursos e símbolos dão
28
Situação que a entrevistada contou sobre um rapaz de comunidade que por não ter touca para luzes
usou uma camisinha.
- 97 aos grupos populares uma consciência de sua identidade e de sua
força, ou participam do registro “alienante” da aquiescência às idéias
dominantes (MATTERLART, 2010, p.73).
Em uma conversa com Mc Mary May, ela comenta que a Baixada é uma fábrica
de Mcs consagrados e de Mcs do local, ou seja, pessoas que são Mcs de uma
determinada área. TG 10 cita alguns nomes de Mcs na Baixada, como Mc MG e Mc
Mary May em Mesquita; David Bolado e Mc Tock, São João de Meriti; e Mc Rouba
Cena, Pocahontas, Mc Beyonce, Mc Gibi, Mc Luan em Duque de Caxias.
Baixada é a concentração que tem mais mcs estourado. Vou botar
Duque de Caxias. São 18 ou 19 mcs – Rouba Cena, Pocahontas, mc
Beyonce, Gibi, Luan. Luan está em evidência “passaram cola no meu
corpo”. Duque de Caxias é a maior concentração de mcs estourados
no Rio de Janeiro. Não sei o que Duque de Caxias tem. Nova Iguaçu
também é grande, mas só Duduzinho que estorou na mídia. Nova
Iguaçu tem alguns, mas são mcs que estão começando. Estourado na
mídia, que todos conhecem, a nível Brasil, em nova Iguaçu, só
Duduzinho. Duque de Caxias tem muito, muito , muito mc’s. (MC
TG10)
Embora muitos Mcs sejam oriundos da Baixada Fluminense, em especial, Duque
de Caxias, muitos acabam fazendo sucesso fora, “o sucesso acaba não sendo na
Baixada”, conforme Mc Mary May. Ana Maria29, mãe de Mc, declara que muitos Mcs
da Baixada são conhecidos na Barra e na Zona Sul do que no próprio local. É o caso da
Mc Mary May, que embora tenha iniciado sua carreira na Baixada, fazendo show em
Mesquita, Nova Iguaçu, Magé, e em outros municípios, é mais conhecida na cidade do
Rio de Janeiro.
A Mc Debby, apesar de ser moradora da Baixada, conseguiu sua consagração
em outros Estados, como Rio Grande do Sul e Bahia, embora tenha sua música tocada
no local em que mora e em todo Estado do Rio de Janeiro. Segundo a própria, isso
acontece porque a Baixada tem vários Mcs e com muita oferta, os cachês são baixos e
surge a necessidade de explorar outros territórios. Além disso, o funk é um ritmo surgiu
no Rio de Janeiro, mas que contagiou todo o Brasil.
Fora do rio, é outra situação. Parece que você está em outro planeta.
Você é tratado como artista, sim! Você tem fã clube. As pessoas te
recebem no aeroporto, já com camisa, celular. Tenho vários fãs que
tatuaram meu nome nos braços, nas costas. Vão no camarim tirar foto
comigo, se tremem todo, desmaia, e pra eu entrar no show tem que ser
29
Ana Maria: Entrevista realizada em 12 de junho de 2013. Mãe de Mc. Acompanha o Mc nos shows e
até gosta de conviver com os artistas. É a maior incentivadora do profissional.
- 98 escoltada de segurança, um na frente, um atrás. Dependendo da
quantidade de gente, tem que ficar uns 4 ou 5 (seguranças), se não a
pessoa puxa seu cabelo, tira sua roupa. O carinho deles é tão
desesperador que chega a machucar. Já saí arranhada, machucada do
show. Em Nova Iguaçu, quem conseguiu sair pro mundo, porque já
viajei muito, fui eu. Já viajei do Rio Grande do Sul a Cuiabá. Vivo
com mala pronta (MC DEBBY).
A carreira dos Mcs, quando não consagrados, é momentânea. Comenta Mc Mary
May que não gostaria que isso acontecesse com ela, por isso é que prefere ir crescendo
aos poucos para sempre estar em evidência. “Eu não quero estourar de repente, mas
quero vir aos poucos, aos pouquinhos... para não vir, pá e depois sumir e nem mais
ouvirem falar de mim”. Alguns dos Mcs que tem seu nome reconhecido no movimento,
mesmo sem ter sucesso estourado consegue fazer shows, vivendo assim de nome.
Mc Debby diz que é muito difícil o Mc se manter, “ter a sorte de lançar uma,
lançar outra, lançar outra e estourar toda a vida. Hoje ele está assim, amanhã pode cair”.
Passa rápido, muito rápido e a concorrência tá crescendo muito. É
muitos bondes, é muito mc’s, que vem vindo e quando vem... Vem
derrubando mesmo e é rápido. Então, tem que ser pé firme. Conheço
uns mc’s por aí que só tem carro e não tem casa. Tem alguns do
passado que você nem ouve mais. A música é assim mesmo.
O funk é muito rápido, canta um agora e de repente... Passa e depois
vai passando. O mc tem que vir com uma música legal, que venha de
novo entrar na boca do povo. Porque se não entrar na boca do povo...
tchau, tchau...
Tem amigos meu que a música, na época, veio estourando e tentou
lançar outra e o povo não abraçou a ideia. E quando não abraça a
ideia, Deus nos acuda... Tem um colega que está vendendo quentinha.
Está tentando de qualquer jeito estourar outra música, mas não
consegue. Cada dia mais tá crescendo, muitos mcs... Amanhã pode vir
um mc com uma música e estourar (MC TG 10)
Os bailes da Baixada seguem os padrões dos que acontecem na cidade do Rio de
Janeiro. Os homens pagam a entrada e as mulheres até meia noite não pagam. Jerônimo
Souza fala que nos eventos promovidos pela equipe que trabalha costuma reunir entorno
de quatro a seis mil jovens e escolha das atrações é feita a partir do que está em
evidência, através dos empresários ou assessores.
Na verdade, quem estoura não são os mc’s, mas as músicas. Tem uma
hora que a música abaixa poeira... o funk é mais dinâmico e de
momento, principalmente pra nós que produzimos eventos... Tem
música que dá certo, tem música que não dá. A escolha dos mc’s é
pelo que tá na mídia, que tá mais tocando e o que vai dar lucro pra
gente (JERÔNIMO SOUZA, ORGANIZADOR DE BAILES).
- 99 Mc Mary May explica que os Mcs cantam músicas próprias, mas, em geral
cantam músicas que estão com maior sucesso no momento, principalmente em Casas de
Show ou Boates, que possuem o Ecad30. Já nas comunidades, os Mcs tendem a cantar
suas próprias músicas. O tipo de show também é diferente.
Os Mcs realizam vários shows em uma noite. A quantidade vai depender da
distância das localidades, por exemplo, Mc Mary May já fez show em Angra dos Reis e
outro em Três Rios, ambos no Estado do Rio de Janeiro, mas em posições opostas,
nesse caso não tinha como fazer mais outra apresentação. Mc Debby disse que já
chegou a fazer 7 a 8 shows numa noite, sendo o último show às vezes 8 h da manhã.
Segundo a mc Mary, os shows podem ser compartilhados, quando o Mc se
apresenta com a atração principal, ou de uma atração, quando é só o mc se apresenta.
Mc Debby comenta que o início de carreira para um Mc é muito difícil. Como há
muitos Mcs, as Casas de Show e contratantes de eventos não valorizam. Há ainda muito
preconceito com o funk e a sociedade não encara os Mcs como artistas, e sim como
pessoas que falam coisas loucas e engraçadas e que tem grande apelo sexual.
Quando um mc começa, começa cantando de graça, muitos imploram
para cantar e o cara coloca só no finalzinho, isso em casa de show de
pequeno porte. Uma casa de show de grande porte como rio Sampa,
via show, jamais vai deixar o cara que não é mc conhecido cantar (MC
DEBBY).
Um show tem a duração de 20 minutos e quando há é completo, com Dj,
abertura e dançarinos, esse tempo aumenta para 30 – 35 minutos, conforme Mc TG10.
Em alguns casos, o tempo no palco é cronometrado e de acordo com Mc Debby,
principalmente quando você está no início de carreira, e se ultrapassar esse tempo
desligam o microfone.
Jerônimo Souza, organizador de bailes, diz que a faixa etária dos frequentadores
dos bailes varia entre 13 a 25 anos e que costumam andar em grupos de amigos. Márcia,
frequentadora de bailes funks, conta que muitos vão a pé para os eventos, quando no
mesmo bairro ou em bairros vizinhos, chegando às vezes andar 20 a 30 minutos, no
entanto, alguns vão de moto ou carro, e quando os bailes acontecem mais longe,
utilizam o ônibus, porque muitos que andam de moto ou carro não possuem carteiras ou
são menores.
30
O Ecad (Escritório Central de Arrecadação) é um órgão particular, que tem a função de arrecadar os
direitos autorais das músicas tocadas nas rádios, televisão, em Casas de Show e Boates.
- 100 Mc Mary May comenta que os bailes não podem ser frequentados por menores,
mas em alguns Bailes em locais fechados, não tem como controlar e como muitos
adolescentes aparentam ser maiores de idade pelo físico, vestimenta e maquiagem,
acabam entrando. Já nos bailes de rua e quadras, não existe esse controle.
O organizador Jerônimo Souza explana que apesar de ter pessoas com qualquer
idade frequentando os bailes, começa a ter uma diminuição do público acima de 25
anos, pois, a partir dessa idade, adquirem mais responsabilidades e inclusive família.
“No geral, as pessoas mudam de pensamento. O funk é mais para jovens”.
Na Baixada, existem as equipes que realizam os bailes em lugares fechados,
como boates, salões, quadras de clubes e cada grupo é referência em seu município. Em
Nova Iguaçu, as equipes mais conhecidas são ‘Fura olho’, ‘Dente de aço’, ‘Pit Bull’,
Pink e Cérebro’, ‘Atrás amiguinhas’ e outras; Em São João de Meriti tem ‘Vem quem
pode’; em Mesquita, ‘Tom e Jerry’; e em Duque de Caxias, algumas das equipes são
‘Pantanal sons’, ‘Pedrinha do Sapo’ e ‘Pica Pau’.
Márcia, frequentadora de bailes funks, diz que na Baixada há dois tipos de
bailes. O baile social, que equivale a uma festa. Equipes ou amigos se reúnem, alugam
um espaço, como salão de festa ou clubes pequenos, contratam algum Mc e organizam
um show. É cobrada a entrada por um pequeno valor. Em Mesquita, tem o Clube do
Rocha e, em Nova Iguaçu, acontece o Baile da Piscina.
Márcia continua dizendo que os bailes, propriamente ditos, são realizados em
Casas de show ou em ruas, numa proporção maior – aparelhagem melhor, Mcs com
maior destaque no bairro ou em evidência na mídia e maior público. Em Mesquita, tinha
o baile da Coréia, que por força policial teve que parar, a partir de maio de 2014; Em
Belford Roxo, temos o Baile do Castelar, que, até final do ano de 2013, era na rua e
agora é realizado em uma Quadra, tem o Baile do São Vicente, Palmeira, Caixa D’água,
que ainda acontecem na rua. Duque de Caxias é um município que ocorrem muitos
bailes dentro de comunidades, como Baile Beira Mar, Baile do Bananal, Baile do Sapo,
Baile do Pantanal.
Os bailes são divulgados por meio do facebook, cartazes e carros de som. Os
bailes sociais acontecem mais cedo, por volta das 21 h e terminam meia noite. Alguns
começam mais cedo ainda, por volta de 5h. Já os Bailes de rua e de Casas de show
acontecem, geralmente, no sábado e costumam começar a partir de 22h e terminar às 5 h
do dia seguinte (domingo), conforme Márcia.
- 101 Mc TG 10 e frequentadora de bailes, Márcia, comentam que, em Mesquita, os
bailes de clube ou casas de show mais conhecidos são o Tênis Clube de Mesquita; em
Nova Iguaçu, tem o Rio Sampa e Gregos e Troianos; Via Show, em São João de Meriti;
em Nilópolis, acontecem bailes na Quadra da Beija-Flor.
Quanto às danças, um começa e os outros vão fazendo o mesmo passo, sendo
que colocam o seu estilo, conforme Mc Mary May.
3.4 Linguagem: reflexo do contexto social
Uma das grandes polêmicas no mundo funk é a linguagem usada nas músicas.
Muitos não consideram o funk como música, pois acreditam que a linguagem usada é
simplória e de baixo nível por possuir erros de português, gírias e palavrões. Outra
questão que interfere na não aceitação do movimento tem haver com os temas
abordados nas músicas, como sexo e violência.
O preconceito linguístico contra as letras de música funk faz parte de um sistema
de ideologia, em que a sociedade elitista defende o português padrão, como mecanismo
de exclusão e discriminação, além de classificar o falante como elementos inferiores,
que, em geral, são negros e pobres. A imposição de uma única norma linguística comum
a todos os brasileiros, segundo Bagno (1999), é um desrespeito à diversidade existente
no nível social, etário, econômico, geográfico, escolar, uma vez que o Brasil é possuidor
de uma grande extensão territorial e, com isso, esse português apresenta alto grau de
diversidade e variabilidade, e, consequentemente, apresenta diferenças regionais e
sociais bem marcadas.
Além disso, Bagno (1999, p. 16) ainda comenta que “assim da mesma forma
como existem milhões de brasileiros sem terra, sem escola, sem trabalho, sem saúde,
também existem milhões de brasileiros sem língua.” Nesse contexto, eles, os milhões de
‘sem-língua’, falam o português, no entanto numa variedade não padrão, desprestigiada
e muitas vezes ridicularizada pelos falantes ou simpatizantes do português culto, mas
que atende às necessidades comunicativas da comunidade em que estão inseridos,
sofrendo transformações para adequação de novas necessidades e possibilita uma
relação interpessoal entre as pessoas que falam. Afinal, a variação linguística, também
como a cultura, é resultado de um processo histórico e social e, como comenta Silva. T
(2009) está associado à formação de uma identidade, uma vez que está ligada a
estruturas discursivas e narrativas.
- 102 -
Qualquer manifestação linguística que escape desse triângulo escolagramática-dicionário é considerada, sob a ótica do preconceito
linguístico, “errada, feia, estropiada, rudimentar, deficiente”, e não é
raro a gente ouvir que “isso não é português”. (BAGNO, 1999, p. 40).
Diante do preconceito linguístico, que abarca a sociedade dominante,
privilegiando um tipo de falar com base na norma culta. Bagno (2002) propõe
considerar a língua viva e sujeita a processos de mudanças e variedades e, portanto,
encará-la nas suas múltiplas manifestações. Hall (2001) comenta que a língua é um
sistema social, de forma que falar uma língua não constitui somente acionar significados
que ela possui, mas também sistemas culturais.
Cunha & Cintra (2001) explica que a língua padrão é sempre a mais prestigiosa,
funciona como modelo e ideal linguístico de uma comunidade. Ao lado da força
inovadora, a força conservadora (norma culta) age contra-regrando, a fim de garantir a
unidade linguística do país. Os autores também compreendem que a variação está
condicionada de forma consistente dentro de cada grupo social, faz parte da
competência linguística de seus membros e ocorre em todos os níveis, como fonético,
fonológico, morfológico, sintático, etc.
Estudos atuais, principalmente da sociolinguística, têm visto a língua como
fenômeno sociocultural, complexo e podem assumir diversas formas:
É, pois, recente a concepção de língua como instrumento de
comunicação social, maleável e diversificado em todos os aspectos,
meio de expressão de indivíduos que vivem em sociedades também
diversificadas social, cultural e geograficamente. Nesse sentido, uma
língua histórica não é um sistema linguístico unitário, mas um
conjunto de sistemas linguísticos, isto é, um diassistema, no qual se
inter-relacionam diversos sistemas e subsistemas. Daí o estudo de uma
língua revestir-se de extrema complexibilidade...( CUNHA &
CINTRA, 2001, p. 3)
Atualmente, o número de adeptos ao movimento funk é muito grande e a cada
dia cresce mais. A mídia passou a divulgar as músicas funk e em suas programações de
rádio e televisão e os Mcs passaram a ter vez. No entanto, não são só flores, pois a
sociedade dominante ainda critica toda cultura funkeira, bem como as letras das
músicas, por considerarem de nível inferior. O preconceito linguístico ainda é muito
forte pelas marcas linguísticas apresentadas, reproduzindo a oralidade.
- 103 As letras de funk são escritas, em geral, por moradores de comunidades, em que
a maioria apresenta baixo nível de escolaridade. Nesse sentido, é evidente a presença de
marcas de oralidade nas composições das músicas que reproduz a linguagem popular do
local. São elas os palavrões, as gírias, simplificação e redução de palavras e
inadequações do uso da escrita, além de outros. No funk, a letra se aproxima da fala
coloquial, deixando em evidência a voz de quem está cantando.
Uma das marcas linguísticas presentes na linguagem musical do funk são gírias
e palavrões ou palavras de baixo calão. Esse uso faz parte de determinado campo
semântico que pode ser interpretado de acordo com o contexto social em que está
inserido, levando em consideração a interação comunicativa, que possibilita a
compreensão dos elementos envolvidos - emissores e receptores.
De acordo com Sandmann (1993), a reação diante dos palavrões não é
emocionalmente neutra – sentimento de sagrado, de proibido ou desagrado. As pessoas
reagem de formas diferentes diante de vários palavrões, levando em consideração o
sexo, as idades e os níveis sociais. Ainda o autor, atualmente, o palavrão, que acaba
sendo pronunciado com frequência, é dito, mas não é levado ao pé da letra. Faz parte do
cotidiano das pessoas, principalmente entre jovens.
Palavrão (pa.la.vrão) sm. Palavra que é considerada ofensiva, de mau
gosto, cujo uso é considerado falta de educação;...
ENCICL.: Certas palavras podem, ou não, ser consideradas ofensivas,
segundo lugar, a época, o contexto, e também segundo o sentido e até
mesmo a entonação com que são usadas. Neste dicionário, as palavras
ger. consideradas como palavrões veem identificadas por Tabu
(AULETE, 2004, P. 586).
Como o funk é um movimento que atrai muitos jovens, o uso de palavrões passa
a incorporar nas letras de música e não é visto como algo estranho, mas compõe a
variante linguística daquele grupo, porém para a sociedade dominante, que preza como
referencial o uso da língua à base da norma culta, os palavrões são discriminados, são
verdadeiros tabus linguísticos. Mc Mary May diz que independente de como a pessoa
seja, como cantora, no palco, a música deixa a pessoa tão solta que o palavrão saí
normalmente.
Não olha pro lado, quem tá passando é o bonde/ Se ficar de caozada, a
porrada come/ Não olha pro lado, quem tá/ passando é o bonde/Se
ficar de caozada, a porrada come/As mina aqui da área, no baile se
revela/Não importa o que eu faça, vira moda entre elas/Fala mal do
meu cabelo e da minha maquiagem/Ô coisa escrota, pode falar a
vontade... (Mc BEYONCE, FALA MAL DE MIM, 2012)
- 104 -
Na música “Fala mal de mim” aparece a palavra “porrada”, que não é visto como
palavrão, mas soa num tom agressivo, de forma que virou uso constante na linguagem
informal para relacionar a violência, propriamente dita, ou indignação verbal. O
palavrão “escrota” está relacionado ao órgão genital - escroto, bolsa que contém os
testículos, mas acaba sendo usada com significado de chamar outra pessoa de vulgar,
desprezível e insignificante.
Eu Mc Saed, fui da um rolé com um amigo na comunidade/Chegando
lá ele me apresentou uma novinha, e me deu logo o papo reto,/Falou
assim ó: essa novinha fode pra caralho ein,/Eu falei mentira, ele
falou verdade,/Eu tirei a novinha de cima em baixo e falei: ele ta de
caô,/ Papo vai papo vem, consegui arrastar a novinha pra dentro do
carro, tá ligado...(Mc SAED, QUE ISSO NOVINHA?, 2012)
O Mc Saed, no seu funk “Que isso novinha?”, usa o palavrão “fode” e o “pra
caralho”. Na música, “fode” significa transar, fazer sexo, contudo, em alguns
momentos refere-se a prejudicar alguém, destruir. O palavrão “caralho” significa que
sentimos um grande espanto por algo e quando antecedido de “pra” representa algo
excessivo, tão absurda que não há palavras para definir.
A classificação de linguagem grosseira ou obscena, para Preti (1984), seria
difícil, uma vez que a definição é variável no tempo e espaço. Não é a definição em si
que irá classificá-la, mas o contexto e a situação comunicativa.
Maior (1998) afirma que alguns que são contra o palavrão, admitem o uso em
determinadas ocasiões, e comenta que Cacilda Becker (1921 – 1969), atriz brasileira,
protagonista de vários espetáculos do Teatro Brasileiro de Comédia, defendeu o uso de
palavrões no teatro, porque atende as necessidades de esclarecimento do público num
país normalmente culto e quando usado dentro da arte é absolutamente justificado. Por
essa lógica, o funk, por ser uma manifestação cultural, ter na sua linguagem musical
palavrões teria justificativa, porque o palavrão nunca teve uso tão generalizado como o
dia de hoje, atendendo, assim, ao seu público.
O funk trata-se de uma linguagem popular, muitas vezes, vítima do preconceito
linguístico e é encarado como um tabu. Preti (1984) declara que o linguajar vulgar está
relacionado às classes mais baixas da sociedade e que o uso de palavrões funciona como
uma válvula de escape diante do inconformismo social, visto que é revestido de humor
trágico, agressividade e metáforas amargas.
- 105 Outra marca linguística presente na linguagem musical funk é o excessivo uso
de gírias e termos específicos que compõem o universo discursivo dos moradores de
comunidades, que são construídos a partir de suas experiências e relações
comunicativas. As gírias representam as realidades com significados reais para a cultura
do grupo. Gíria, de acordo com Aulete (2004, p. 403), é uma “linguagem peculiar que
se origina de um grupo social restrito e alcança, pelo uso, outros grupos, tornando-se de
uso corrente”. Caracteriza um grupo social, funcionando como identidade. Trata-se de
um código linguístico que diferencia determinado grupo de outros.
A gíria, segundo Preti (1984), se divide em duas categorias, uma é específica de
um grupo e só é aberto aos iniciados naquele grupo e a outra é comum, pois surge como
código linguístico de um grupo e torna-se comum, sendo incorporada a todos falantes
da língua social popular.
Maior (1998) comenta que para o povo usar a língua dos gramáticos é como ir à
praia de fraque, cartola e calçado. O povo usa uma linguagem espontânea, criam
palavras e dão outros sentidos às já existentes. A história mostra que a gíria foi
construída sob o preconceito, considerada língua marginal, de negros e pobres, ou seja,
excluídos da sociedade. Nesse contexto, não havia interesse nessa modalidade oral,
tendo em vista que, a tradição era valorizar a língua portuguesa nos moldes da norma
culta. O uso frequente dessas palavras, com o tempo, vai alcançando à elite, que passa a
reconhecê-las oficialmente, vitória natural sobre a resistência da norma oficial. Uma
prova disso é o registro de gírias e palavrões criados pelo povo em dicionários como o
de Aurélio Buarque de Holanda, Silveira Bueno e Raimundo Girão.
Como a gíria está presente no dia a dia da sociedade, principalmente, nas
comunidades, onde o funk tem força, não é de estranhar que nessa linguagem musical
apareça essa marca linguística, bem como, a criação de novas palavras e expressões que
provoque maior interação entre os interlocutores.
Não olha pro lado, quem tá passando é o bonde/ Se ficar de caozada,
a porrada come/ Não olha pro lado, quem tá/ passando é o bonde/Se
ficar de caozada, a porrada come/As mina aqui da área, no baile se
revela/Não importa o que eu faça, vira moda entre elas/Fala mal do
meu cabelo e da minha maquiagem/Ô coisa escrota, pode falar a
vontade/Essa mina recalcada não arruma um namorado/Não mexe
com o meu, não sou de mandar recado/Fala mal de mim na roda dos
amigos/Que coisa garota, eu nunca fiz nada contigo/Se entrar no meu
caminho, vai ficar perdida/Oh rata molhada, se mete na tua vida/Não
adianta, não tem vergonha na cara/Fala mal de mim mas é minha fã
encubada (Mc BEYONCE, FALA MAL DE MIM, 2012)
- 106 “Bonde”, como gíria, refere-se a grupos de amigos que estão sempre juntos.
“Caozada” é o mesmo que mentira com intuito de enganar. Já a gíria “mina” significa
mulher ou jovens do sexo feminino. “Recalcada” é empregada para designar pessoas
invejosas que se revoltam com a vitória das outras e quer ter o que os outros têm. A
gíria “encubada” ou “incubada” significa que a pessoa reprime seus sentimentos.
Outro exemplo do uso de gírias na linguagem musical funk é a música Quer
saber da minha vida vai na macumba, do Mc TG 10 (2013) de Mesquita, que faz uma
crítica aos fofoqueiros. Ele utiliza as gírias “bolação” e “caozada”. “Bolação” no funk
vem de “bolado” que, na música, refere-se à pessoa que está muito chateada ou irritada
com algum acontecimento ou com alguém.
Detesto gente fofoqueira/ Isso dá bolação profunda/ Quer saber da
minha vida/ Vai na macumba/ Isso dá maior caozada/ Isso dá bolação
profunda/ Da minha vida cuido eu/ E você cuida da sua/ É TG 10 que
tá falando/ Quer saber da minha vida/ Vai na macumba.
Além dessas apresentadas, algumas gírias ou expressões já estão incorporadas à
sociedade, como:
GÍRIAS
SIGNIFICADOS
Bombado
Lugar animado e agitado
Cachorra
Mulher sem compostura
Demorô
Sim, afirmação
Falô
Tchau, até mais
Já é
Concordar
Ninguém merece
Chatear
Poposuda
Mulher de bunda grande
Responsa
Confiável ou divertido
Rolé
Passear
Tá dominado
Está tudo sob controle
Tá ligado?
Entendeu?
X9
Informante
Zoar
Agitar
- 107 D’Adesky (2009) afirma que a língua é um elemento cultural, logo, se constitui
uma questão identitária, e no que se refere aos negros escravizados na época colonial, a
adoção da língua portuguesa representava uma profunda ruptura com os elementos
culturais da sociedade africana. Acrescenta o autor que devido à contribuição africana e
indígena a língua portuguesa falada foi enriquecida com palavras e expressões
idiomática, com ritmos e cadências.
Grandes exemplos de mantenedora das marcas linguísticas africana foram as
mucamas e as mães-pretas que criavam e ensinavam os “sinhozinhos”. Freyre (1988)
declara que as duras palavras com que os portugueses dirigiram às crianças foram
adocicadas pelas amas; o vocabulário infantil passou a ter encantos como “dodói”,
palavra dengosa substituindo “dói” dos adultos; uso de palavras meigas – Cacá, pipi,
papá, bumbum, nenen, au-au, bambanho, etc.; e tirando a solenidade dos nomes
próprios, como Domdons,Toninhas, Totonhas para Antônias e Nezinho, Mandus,
Manés para Manuéis, e outros.
Também as canções de berço portuguesas, modificou-as a boca da
ama negra, alterando nelas palavras; adaptando-as às condições
regionais; ligando-as às crenças dos índios e às suas. Assim, a velha
canção “escuta, escuta, menino” aqui amoleceu-se em portuguesa em
“durma, durma, meu filhinho”, passando Belém de “fonte”
portuguesa, a “riacho” brasileiro. (FREYRE, 1988, p. 327)
Outra forma que colaborou para que a língua africana contribuísse para a língua
portuguesa foi a contação de história. Freyre (1988) comenta que as velhas negras
modificavam as histórias portuguesas acrescentando elementos das histórias africanas.
Dessa forma, as contadoras de histórias puderam conservar seu patrimônio cultural e
linguístico, além de ressignificar sua identidade, ou seja, os negros usaram táticas de
resistência de modo pacífico para preservação da linguagem como forma de preservar
sua cultura, possibilitando a união e fortalecimento do grupo, preservando uma
identidade.
Nesse contexto, Melo (1981) acrescenta que os filhos e netos dos escravos
africanos dominavam melhor a língua padrão da época, no entanto, a influência do
contato com os negros mais velhos fez com que houvesse um retardamento linguístico,
de forma que se constituiu processo de resistência à língua portuguesa nas camadas
populares, apresentando uma linguagem descuidada. De maneira que a linguagem
popular de antes e de hoje apresenta reflexos da influência africana, principalmente nas
classes mais baixa.
- 108 No Brasil, a língua, como meio de comunicação, representa a memória das
comunidades negras, em que a oralidade sobrepõe à escrita, uma vez que apresenta uma
elevada taxa de analfabetismo, muitas vezes, devido à evasão escolar, e uma baixa
inserção de estudantes negros em universidades, de forma que “comprova uma fraca
penetração da cultura escrita entre as famílias negras”, conforme D’Adesky (2009, p.
50). O funk, como movimento cultural oriundo das comunidades, em que há
predominância de negros e pobres, apresenta marcas da linguagem popular, modalidade
oral, que aparecem frequentemente na elaboração das músicas, pois a escrita trata-se da
representação gráfica dessa mesma fala.
A fala é diferente da escrita sob muitos aspectos; cada uma dessas
modalidades têm características próprias, mas uma influência a outra,
especialmente a fala na escrita. Segundo os gramáticos, a oralidade é
mais fácil, mais usada em nosso dia-a-dia e permite alguns “erros”;
enquanto a escrita é mais complexa, rígida, rebuscada. A oralidade,
talvez por ser mais usada, deixa muitas vezes, suas marcas em textos
escritos (LÚZIO &RODRIGUES, 2011, p. 8).
Mello (1981) que uma das características da linguagem popular é a simplificação
e redução das flexões. As desinências de plural tornam-se raros e somente o primeiro
determinante da frase é flexionado – “As mina aqui da área, no baile se revela/Não
importa o que eu faça, vira moda entre elas/Fala mal do meu cabelo e da minha
maquiagem” (Mc BEYONCE, FALA MAL DE MIM, 2012).
Ainda o autor, os verbos também sofrem com a simplificação das flexões, como
o seguinte exemplo, “Nós incomoda/ O nosso bonde é foda/ Ninguém segura se tô de
raia curta/ As amigas na pista/Tamos de role...” (Mc DEBBY, NÓS INCOMODA,
2012). Só há flexão de pessoa e não de verbo.
Outro exemplo de marcas de oralidade é do Mc Duduzinho com o funk
“Normal, mamãe passou açúcar em mim” – “Elas para tudo onde chega , ela chama
atenção/Porque aqui no baile funk ela é a sensação/Chamei ela de gostosa e ela
respondeu assim/Normal, mamãe passou açúcar em mim...”. Além da falta de
concordância verbal entre pessoa e verbo (Elas para X Elas param), também há o
emprego inadequado do pronome relativo “onde”. Onde indica lugar físico (= lugar em
que), enquanto que “aonde”, palavra de deveria ser empregada, indica movimento (=o
lugar a que), mas, de acordo com Cunha &Cintra (2001), na linguagem coloquial esta
distinção é praticamente nula.
Bagno (2002, p. 38) ratifica ao informar que o pronome relativo “onde” possui
“caráter plurissemântico... desde a fase mais remota da língua portuguesa até os dias de
- 109 hoje, sempre foi usada com referência a muito mais coisa do que ao ‘lugar concreto,
espaço físico’...”.
A subjetividade é um elemento comum nas marcas de oralidade, de acordo com
Lúzio & Rodrigues (2011) e está presente em quase todos os funks. Os Mcs cantam
como eles se veem, o que eles pensam e não seguem um padrão, pois é influenciado
pelo social, cultura, nível de escolarização e experiências vividas.
É que eu tava passando/ Abriu meu coração/Quando eu olhei pro lado/
Vi aquele belo mulherão/ Ao som do tamborzão/Ela me enfeitiçou/
Nesse placar deu um gol pro nosso amor/ Rebola pra mim/ Menina,
dança pra mim...(MC PAIXÃO, REBOLA PRA MIM, 2012).
Não vou parar não/Ele me olha toda vez que eu to descendo/ Tô
dançando/ Dando pala de calcinha/ Todos eles estão olhando/ Quanto
mais eles me olham/ Eu continuo descendo/Eles continuam
olhando/Eu não to nem aí / Se tua mina não tá gostando... (MC
DEBBY, SEGURA TEU NAMORADO, 2012).
Lúzio & Rodrigues (2011) também comenta que outra característica da marca
de oralidade é a escrita fonética. Em vários momentos aparecem “tamos”, “tá”, “tô”,
“pra”, no lugar de “estamos”, “está”, “estou” e “para”, respectivamente.
Bagno (2002) informa que na prática deve-se olhar para língua dentro de um
contexto histórico e cultural e considerá-la também como uma atividade social, como
um trabalho realizado conjuntamente pelos falantes que interagem através da fala ou da
escrita. O discurso proferido por meio das letras de funk está diretamente relacionado à
identidade de um grupo.
Em fim, a língua oral reproduzida na escrita é reflexo do contexto situacional e
comunicacional, e a relação entre os falantes e ouvintes.
3.5 Funk: contextualização histórica dos diferentes estilos
A língua como atividade social, conforme Bagno (2002), é o processo e o
produto, pois não é uma ferramenta pronta, mas criada à medida que vai sendo usada, de
forma que, a língua é uso e também resultado do uso. As experiências, seu saber
linguístico e as práticas linguísticas de seu ambiente são reconhecidos como válidas,
porém, para a sociedade elitizada, assumem formas estereotipadas com base na
linguagem popular do Brasil sofrer grandes influências dos negros, elementos
inferiorizados social e culturalmente.
- 110 Rocha & Fazenda (2011) declara que na letra de uma música, além das
experiências vividas pelo compositor, são considerados também o contexto e sua visão
de mundo, revelando, muitas vezes, o pensamento de um grupo social. Nesse sentido,
conforme os autores, as músicas transmitem mensagens, que provocam intenções e
surgem conteúdos relacionados a sentimentos. Completa Yúdice (2004) que o funk,
como música que foge aos parâmetros da sociedade, procura evidenciar novas formas
de identidades, que muitas vezes, entra em conflito com o tradicionalismo da classe
dominante.
A linguagem musical do funk da capital do Estado do Rio de Janeiro era
construída com base na ideologia resultante do meio social, político e cultural, de modo
que essa linguagem musical era contextualizada. Ao chegar à Baixada, o funkeiro
reafirma sua identidade através de seus Mcs, refletindo a sua realidade, no entanto,
associada ao mundo líquido da contemporaneidade, reforçando ideias sobre
globalização e consumismo.
A música como qualquer conhecimento, entendida como uma
linguagem artística, organizada e fundamentada culturalmente, é uma
prática social, pois nela estão inseridos valores e significados
atribuídos aos indivíduos e à sociedade que a constrói e que dela se
ocupam (LOUREIRO, 2010, P. 114).
O repertório musical e simples do funk transmite, em alguns momentos, ideias,
valores e comportamentos. Conforme Lopes (2011), esse ritmo, acompanhado da dança,
embora pareça rude, incivilizadas e agressivas para determinada classe, constituem uma
realidade social invisibilizada, e revela vozes de sujeitos silenciados ao longo da
história.
Possibilita também a integração dos membros da comunidade por abordar nas
composições o dia a dia de seus moradores. A música Quer saber da minha vida vai na
macumba, do Mc TG 10 de Mesquita realiza uma crítica sobre os fofoqueiros.
Detesto gente fofoqueira/ Isso dá bolação profunda/ Quer saber da
minha vida/ Vai na macumba/ Isso dá maior caozada/ Isso dá bolação
profunda/ Da minha vida cuido eu/ E você cuida da sua/ É TG 10 que
tá falando/ Quer saber da minha vida/ Vai na macumba.( QUER
SABER DA MINHA VIDA VAI NA MACUMBA, MC TG 10, 2013)
Um dos primeiros estilos de funk foi o funk consciente ou funk de raiz, que, de
acordo com Lopes (2011), grupo de funkeiros da antiga se organizaram e enunciaram o
funk carioca como movimento cultural e político, em que os Mcs cantavam as letras de
- 111 músicas que contextualizavam a vivência dos residentes desse local, como violência e a
pobreza.
Um exemplo é o “Rap do Silva”, do Mc Marcinho:
Todo mundo devia nesta história se ligar/ Porque tem muito amigo
que vai para o baile dançar/ Esquecer os atritos, deixar a briga pra lá/
E entender o sentido quando o Dj detonar/
Era só mais um silva/ Que a estrela não brilha/ Ele era funkeiro, mas
era pai de família (Refrão)
Era um domingo de sol, ele saiu de manhã/Pra jogar seu futebol, deu
uma rosa pra irmã/ Deu um beijo nas crianças, prometeu não demorar/
Falou para sua esposa que ia vim para almoçar
(Refrão)
Era trabalhador, pegava um trem lotado/ Tinha boa vizinhança, era
considerado/ E todo mundo dizia que era um cara maneiro/ Outros o
criticavam, porque ele era funkeiro/ O funk não é modismo, é uma
necessidade/ E pra calar os gemidos que existem nesta cidade/ Todo
mundo devia nesta história se ligar/ Porque tem muito amigo que vai
para o baile dançar/ Esquecer os atritos, deixar a briga pra lá/ E
entender o sentido quando o Dj detonar/
(Refrão)
E anoitecia, ele se preparava/ E pra curtir o seu baile que em suas
veias rolavam/ foi com a melhor camisa, tênis que comprou suado/ E
bem antes da hora, ele já estava arrumado/ Se reuniu com a galera,
pegou o bonde lotado/ Os seus olhos brilhavam, ele estava animado/
Sua alegria era tanta ao ver que tinha chegado/foi o primeiro a descer
e por alguns foi saudado/ Mas naquela triste esquina um sujeito
apareceu/ com a cara amarrada, sua alma estava um breu/ Carregava
um ferro em uma de suas mãos/ Apertou o gatilho sem dar qualquer
explicão/ E o pobre do nosso amigo que foi pro baile curtir/ Hoje com
sua família ele não irá dormir/Porque...
(RAP DO SILVA, MC MARCINHO)
Essa música apresenta uma mensagem, uma ideiologia, além de mostrar a
identidade de um grupo que sofre com violência e descaso da sociedade e quer que a
situação mude. A música narra a tragédia de um respeitado cidadão, que gostava de
funk, e uma noite, quando ia para o baile todo arrumado, sem explicação é morto.
Essinger (2005) afirma essa música não reforça o preconceito contra o funk, mas faz
uma crítica ao preconceito que a sociedade demonstrava.
A entrevistada Luciana comenta sobre o caráter histórico dos funks:
Era só mais um Silva... mas era pai de família.” Ele é o resgate que o
funk nos dá, ele conta a história do povo. Que interessante isso! Como
isso emociona! O que é legal, trabalhando história... Houve momento,
na análise histórica, que você exige que o povo conte sua própria
história. Chega do acadêmico contando a história dele, do povo, chega
do cara lá, contando a história de quem está na favela. É legal ouvir o
próprio povo da favela contando sua história. A mais recente que
estorou... Era um dos meus funks preferidos. É esse “Tanta coisa pra
comprar ela comprou uma peruca...” Mas é sempre caso real, é o povo
- 112 contando sua história. A grande verdade é essa...! (LUCIANA,
HISTORIADORA E GEÓGRAFA)
Através do funk, a voz de quem não podia falar é representada, ou seja, uma
forma de ver o mundo por parte dos residentes da comunidade fica em evidência e se
torna uma forma de táticas de resistência diante da sociedade, pois “se não posso falar, a
música falará por mim”, e assim, tenta-se mudar a realidade, definindo novos caminhos.
E através do funk, essas pessoas passam a ver a si mesmo como sujeito dentro de um
grupo que sofre dos mesmos problemas. Além do Rap do Silva, surgem também o ‘Rap
do Festival’ de Danda e Taffarel, que fala contra a violência nos bailes; ‘Rap do curral’
de Mc’s Marcelo e Padilha, que homenageia Herbert de Souza, o Betinho; ‘Rap das
armas’ de Júnior e Leonardo, que trata da visão negativa sobre as favelas e a violência;
e outros.
Nesse sentido, o ritmo em questão, vai além de simples música, mas refere-se a
representação de um contexto social. Conforme Essinger (2005), os funks buscavam a
afirmação da comunidade, além de ajudar a explicar o Brasil para a classe média. De
acordo com o organizador de bailes e eventos, Jerônimo Souza, “antigamente, o funk
era mais um alerta. Era um rap que falava o que acontecia.” Mc TG10 comenta que não
há na Baixada cantor de funk consciente.
Com o tempo, as letras de funk recriaram-se e transformaram-se gradativamente,
a ponto de passar a ter uma maior aceitação e integração de outras pessoas ao
movimento. Ainda na década de 90, o funk melody invadiu o Rio de janeiro, uma
vertente promissora com o grupo Cashmere, “Vem amor” de Dj Marlboro e Humberto
Mello, conforme Essinger (2005).
Vem meu amor/ Vem correndo me abraçar/ Amor e dor/ Não tem
como separar/ Eu pensei/ Que a vida não tem fim/ Te ter sempre só
pra mim/ Essa paixão vai um dia acabar/ Meu coração/ De saudade vai
parar/ Eu pensei/ Que a vida não tem fim/ Te ter sempre só pra mim/
Me dê sua mão/ E espere o amanhã chegar/ Se existe o amor/ E fere, o
tempo vai curar/ Vem amor... (VEM AMOR, DJ MARLBORO E
HUMBERTO MELLO, 1991).
Nessa mesma linha, surge também Roberto de Souza Rocha, o Latino, que
regravou a música “Vem amor” e “Me leva” em 1993, “Só você” e “Não adianta
chorar” em 1995. Em 1997, Latino lança um disco “Aventureiro” com 13 faixas (Diana,
Aventureiro, Meu sonho é você, Vem me beijar, e outras), conforme Essinger (2005).
- 113 Em 1993, também entra em cena a dupla Claudinho31 e Buchecha com funk melody,
como “Nosso sonho”, “Conquista”, e outras mais.
Os Mcs da Baixada cantam funk melody, músicas mais românticas, pois há uma
receptividade. Márcia, frequentadora de bailes, comenta que em alguns bailes começam
com os funks melody e só depois que seguem para o batidão propriamente dito.
Nessa linha de funk melody, O Mc Paixão canta “Rebola pra mim” de 2008:
É que eu tava passando/Abriu meu coração/ Quando eu olhei pro lado/
Vi aquele belo mulherão/ ao som do tamborzão/ ela me enfeitiçou/
Nesse placar /Deu um gol pro nosso amor/ Rebola pra mim/ Menina,
dança pra mim/ A festa está bombando/ Meu Deus! Que coisa louca/
Menina linda/ Eu vou beijar a tua boca/ Ao som do Funk/ Vem
rebolando, vem mexendo/ Vem dançando só pra mim (MC PAIXÃO,
REBOLA PRA MIM. 2008)
Das Mc’s entrevistadas, Mary May é adepta do funk melody. A música “Me
chama” é a que está em evidência:
Me chama/ Me chama/ Me chama/ Me ganha/ Me leva pra cama/ Que
hoje sou sua/ me chama,/ pra cama,/ mas só se eu deixar.../ Adoro te
provocar/Chamou pra desenrola/ Eu vou/ ... Me beija, que eu vou
/Mas se eu deixar... (MC MARY MAY, ME CHAMA, 2013)
Na década de 90, surge uma vertente do funk que se tornou polêmica dentro da
sociedade – os proibidões32, que virou caso policial e, como consequência, o movimento
funk teve seus bailes reduzidos e, os que sobreviveram, ficaram sob supervisão. Lopes
(2011) enuncia que o funkeiro não é só visto como jovem desempregado e baixo poder
aquisitivo que gosta de um ritmo desconhecido da classe dominante, mas está associado
a quem gosta de terror e violência.
Proibidão é definido como:
Nome dado aos funks que contam, de forma realista e por vezes até
entusiástica (ou até mesmo apologética), histórias em que os
traficantes impuseram seu poder contra os oponentes (a polícia ou as
facções criminosas rivais e fizeram valer sua lei (ESSINGER, 2005, p.
229).
31
Em 13 de julho de 2002, Claudinho morre em um acidente de carro na Via Dutra, altura de Seropédica,
quando voltava de um show em Lorena, São Paulo. O carro em que estava como carona, derrapou e bateu
contra uma árvore. Buchecha continuou carreira solo, de acordo com Essinger (2005).
32
De acordo com Lopes (2011), existem outras terminologia para o funk proibidão, como funk de facção,
funk neurótico ou funk de contexto. Este último, nomeia a localidade, exaltando a um determinado
contexto, o certo local.
- 114 Nesse estilo de funk, a letra da música retratava a violência, o tráfico e a
repressão policial dentro das favelas cariocas. Essinger (2005) comenta que a
divulgação das músicas é feita por meio de CDs piratas, vendidos em camelôs ou
distribuídos pelos traficantes locais, gravadas precariamente nos bailes ou em estúdios,
com inclusão do som de rajadas de balas.
O primeiro funk proibidão que se tem conhecimento é o ‘Rap do Comando
Vermelho’, paródia do ‘Carro Velho’ de Ivete Sangalo.
Carro Velho
Rap do Comando Vermelho
Ivete Sangalo
Mc Cidinho e Doca
Cheiro de pneu queimado/Carburador
Cheiro de pneu queimado/ Carburador
furado/ Coração dilacerado/ Quero meu
furado/
negão do lado/ Cabelo penteado/ No meu
contenção do lado/ Tem tira no miolo/ E o
carro envenenado...
meu fuzil está destravado.
Eu vou, eu vou, então venha/ Pois eu sei/
Eu vou, que venha/E se bater de frente
Que amar a pé, amor /É lenha...
com nós/ É lenha...
Eu vou pra lá dançar/ Seja noite ou seja
Mas o vapor vai traficar/ Seja noite ou
dia / E seu beber alguma, amor / me guia
seja dia/ E se faltar na carga então se
O
X9
foi
torrado/
Quero
vira...
Ainda em 1999, surgem o“Rap da fazendinha” cantada por Mc Sapão, em que o
refrão é entoado por crianças – “Fé em Deus/ Fazendinha é CV33/... o bonde tá demais
na boca da fazendinha/ A bala come de noite/ Agora também reina de dia...”; “Rap do
X-9 (Fogo no X-9)” de Cidinho e Doca, em que aborda o tema de delação:
Fogo no X9/ Da cabeça ao pé/ Pega o álcool e o isqueiro/ E taca fogo
no mané.../O mudo tem a boca grande/ E o dedo de seta/ Ele vai ficar
de bigode/ Sem dedo e de boca aberta... (RAP DO X-9, CIDINHO E
DOCA)
Outro que também ficou em evidência foi o “Rap do complexo do Alemão”, cujo
autor e cantor não foram identificados:
33
Comando Vermelho – Sigla de facção criminosa
- 115 Alemão tu passa mal porque o comando é vermelho/ É o bonde só de
cria que só tem destruidor/ O comando é o comando/ se liga sangue
bom, para você formar no bonde tem que ter disposição/ Porque de dia
e de noite, pode crer a chapa é quente (RAP DO COMPLEXO DO
ALEMÃO34).
O funk proibidão surge em uma nova e perigosa era no país e no mundo, e não
só no Rio de Janeiro. Conforme Essinger (2005), no fim dos anos 80, o traficante Pablo
Escobar do cartel de Medellín, na Colômbia, morto numa emboscada policial em 1993,
era o maior exportador de cocaína para o EUA. O Brasil, com posição privilegiada na
América do sul, virou importante local de escoamento de produção da droga, não só
para os americanos como também para a Europa e logo também se tornou mercado
consumidor.
O autor continua a explicar que os traficantes internacionais encontraram no Rio
de Janeiro uma bandidagem organizada, Comando Vermelho35, que, entre guerras nos
morros cariocas, conseguiu o monopólio da distribuição de drogas. Em 1982, o
Governador Leonel Brizola proibiu os policiais de subirem nos morros sem motivos
justificáveis, o que resultou no crescimento da liderança do CV sobre as comunidades, e
os traficantes, se instalaram como poder, prestando assistencialismo, uma vez que
faltavam ações efetivas dos poderes públicos. Além do Comando Vermelho (CV),
surgiram também o Terceiro Comando (TC), Comando Vermelho Jovem e Amigos dos
amigos (ADA).
É nesse contexto de demonstrações de poder paralelo, no Rio, das organizações
criminosas, através de guerras de facções, enfrentamento com o poder público, que
surgem o funk proibidão.
O proibidão é feito para ser cantado no baile. Não é apologia ao crime,
mas um relato da minha comunidade. O funk nasceu na favela e
infelizmente o tráfico também faz parte dela. A sociedade não está
preparada para entender o proibidão, porque quem não sofre não dá
valor ao sofrimento. Quem não vive no morro não sabe o que acontece
lá. (MC CATRA apud ESSINGER, 2005, p. 235)
34
Não foi identificado o nome do Mc que canta.
“Uma associação surgida nos anos 1970, no presídio fluminense de Ilha Grande, onde foram postos em
contato com os ditos presos comuns – de classes mais pobres, que escolheram ou foram levados ao crime
como forma de sobrevivência – e os presos políticos, que pretendiam livrar o Brasil da ditadura através de
ações terroristas, levadas a cabo por organizações paramilitares esquerdistas. Os livros com táticas de
guerra, as noções de cooperação e um vago conteúdo político fornecido por militantes revolucionários
fertilizaram as mentes de criminosos como Willian da Silva, o Professor, e Rogério Lengruber, o
Bagulhão, que ajudaram a fundar e estruturar o Comando Vermelho” (ESSINGER, 2005, p. 231)
35
- 116 Lopes (2011) profere que os moradores de comunidades ou periferia veem como
heróis os artistas e traficantes da área, de forma que a Baixada Fluminense, por ser uma
área pobre, que vive a margem da capital e, por sua vez, discriminada, sofre com a
ausência de ações públicas e, consequentemente, faz com que as facções, em especial
CV, dominem essa área, de forma que passa haver uma predominância de funks
proibidões. Afinal, como reconhece Vianna (1988), os bailes são, para seu público,
como uma das únicas fontes de diversão barata e acessível, geralmente as mulheres não
pagam, e funciona refúgio para as frustrações de uma semana de trabalho e sem
perspectiva.
Como diz a entrevistada Luciana, Historiadora e Geógrafa, o funk é uma
expressão cultural que dá empoderamento ao povo, e a escolha dessa linha de funk é um
grito para a sociedade, de quem cuida deles merece respeito. Lopes (2011) comenta que
os funks proibidões, ao serem combatidos pela mídia como ilegais, ajudaram a
popularizá-los, o que permitiu que as comunidades saíssem da invisibilidade perante a
sociedade, no entanto, também corroborou com o preconceito, associando, de modo
generalizado, funkeiro com bandidagem.
Mc Mascote, cujas músicas são “Rap da Daniela”, “Tem que ter uma amante”,
“Paga pau”, “Rap do Valão” e outras, diz que não há interesse, de quem tem poder da
comunicação, em funks consciente. O Mc Galo, da Rocinha, que canta as músicas “O
Comando é Vermelho”, “História do funk”, “Vidigal e Rocinha”, “Rap do Peru” e
outras, complementa dizendo que os Mcs escrevem músicas legais, mas não encontra
espaço na mídia para divulgação e não conseguem shows. D’Adesky (2009) reconhece
que a música é um instrumento privilegiado de expressão da cultura afro-brasileira, mas
possui acesso restrito na mídia, que cria entraves, dificultando a divulgação dessas
músicas no cenário da indústria cultural.
Nesse sentido, os Mcs acabam se submetendo aos funks proibidões para se
manterem em evidência e financeiramente, até porque, nas comunidades, muitas
pessoas gostam desse tipo de música, conforme Essinger (2005). No entanto, para a
sociedade dominante, qualquer pessoa envolvida com o movimento, público e artistas,
passa a ser definido como inimigos públicos, de forma que, Lopes (2011) comenta que
o baile funk sempre estará associado a alguma associação criminosa.
Os Mcs entrevistados cantam em favelas, no entanto, não cantam funk Proibidão
por opção e são respeitados. Eles são atrações principais ou convidadas, entram, cantam
- 117 e vão embora para outros shows. Mas não negam a presença de Mcs que cantam esse
estilo de música.
Nos tempos atuais, além dos temas das letras dos proibidões serem a violência e
o tráfico, que estão presentes no cotidiano dos moradores das comunidades, também
surgem os funks que falam de sexo explícito. Lopes (2011) declara que os proibidões da
década de 90 forneciam visibilidade à temática crime local, nos anos 2000, os funks
proibidões passaram a incluir em seu repertório o tema sexo, evidenciando para as
mulheres como transgressora dos paradigmas sociais.
No funk, o sexo é escancarado. Se fala de sexo sem pudor. O homem
não tem vergonha de falar besteiras e as mulheres não se ofendem e
também falam. Todo mundo fala abertamente sobre isso. Quem fica
preocupado com isso são as pessoas de fora (MÁRCIA,
FREQUENTADORA DE BAILES).
Com os proibidões, surgem também gírias e expressões que atendam a
necessidade comunicativa dos elementos envolvidos. Segue algumas das gírias e
significados:
Gírias e expressões
Significado
Alemão
Inimigo
Bater uma bronha
Se masturbar
Gratinar na batata
Sexo
Lafado
Safado
Marolar
Curtir
Nós que tá
Comando Vermelho
Picotar
Matar
Postura pra nós é lixo
Fotos no facebook com pose, se
achando.
Sucessagem à vera
Sexo, transar
Trabalho pro rato ou pro foca
Trabalho para o gerente da boca
Traz um boldo
Maconha
Tudo dois
Comando Vermelho
Tudo três
Terceiro comando
- 118 Na história do funk, no início do século XXI, surge o funk ostentação, que
representa uma fase nova, em que as letras de música refletem o consumismo global, em
que qualquer um pode adquirir algum produto. Para Aragón (2008, p. 32), vivemos
“numa época em que as empresas fabricam não apenas bens úteis, mas também atitudes,
estilos de vida e aparências pessoais, as marcas globalizadas vinculam milhões de
consumidores”. A linguagem musical dos funkeiros reflete essa liquidez dos tempos
atuais, à medida que a informação é dinâmica nesse mundo global e há um fluxo
cultural muito grande. Hall (2001) comenta que somos consumidores, clientes e público
entre pessoas distantes tanto no espaço como no tempo.
Outro fator que interfere na produção de funk ostentação é o que Renato
Meirelles, sócio-diretor do Datapopular, instituto de pesquisas especializado nas classes
C, D e E comenta no documentário “Funk ostentação: O filme” dos diretores Barreiros
& Dantas (2012):
Quando você vinha a viver numa sociedade que era ruim, classe C e
D. Você não arranjava emprego se você mora na favela... As
produções culturais tinha o interesse no protesto, reivindicação, que
na verdade, refletia a indignação pela sociedade desigual que estavam
vivendo. Quando a vida das pessoas começa a melhorar, o discurso da
denúncia perde forças para o discurso da celebração. Não que há
coisas que tenham que ser denunciadas, muitas vezes são. Mas o
sentimento de melhora de vida é muito maior do que eram 10 anos
atrás. Portanto, o protestar por protestar perde força nas manifestações
culturais dessa nova classe média brasileira. Nos últimos 10 anos, o
aumento real do salário mínimo, a expansão da classe C tornou fato
irreversível, que veio pra ficar. 2007 e 2008 pra cá, cresceu muito,
fortemente impactado pela expansão do crédito... Quando essas
pessoas passam a ter direito de consumir ela fica feliz. Ela fica feliz
porque ela sente que todo o esforço dela está valendo à pena. Está
valendo a pena pra ela se vestir melhor, está valendo a pena pra se
apresentar pra sociedade de uma forma mais bacana, isso tem um
impacto direto na sua autoestima e também tem impacto direto no
próprio mercado de trabalho. Afinal de contas quem foi que disse que
classe C e D que só tem que tomar pinga, não pode tomar whisky.
Quem acha isso é a elite, não é a classe C. A classe C consegue ter
acesso a esses produtos, consegue ter acesso a esses serviços e começa
a cantar isso nas suas músicas, no funk. Cantar isso em todas as suas
manifestações culturais. Não tem nada de errado com isso. É um mito
de fato de celebração dessa melhora que o país teve nos últimos anos.
E o brasileiro gosta de celebrar cantando... (ROBERTO MEIRELLES,
DOCUMENTÁRIO FUNK OSTENTAÇÃO, 2012)
As palavras de Roberto Meirelles apresentam o reflexo da sociedade atual, em
que os moradores de periferia e comunidades utilizam desse tipo de funk para gritar a
possibilidade de ter acesso ao que as classes sociais mais altas, como carros, marcas de
- 119 roupa, perfumes, uma vez que a estabilidade econômica do país possibilita esse desejo
de ascensão social, ou equilibrada. Mesmo que todos saibam que muitos produtos são
falsificados, a simbologia sobrepõe ao original, de forma que vale a ideia e o que ela
representa perante o grupo que está inserido, conforme Márcia.
De acordo com D’Adesky (2009, p. 106), a lógica do mercado contribui, para
acentuar os contrastes entre a classe dominante e a dos dominados, quando produz
imagens que sobressaem as diferenças sociais, em que a elite se encontra na posição
central. Ainda conforme o autor, humilhação diária que o negro sofre, afeta tanto sua
autoestima material como a dignidade, de forma que a luta pelo reconhecimento
envolve as questões econômicas. Alguns bens têm um valor diferencial devido ao
prestígio que lhe é conferido, como ter uma Ferrari, que demonstra um poder aquisitivo
superior e o pertencimento de uma classe com privilégios e vantagens.
Quando os funkeiros usam relógios, perfumes e roupas de marca,
mesmo que falsificados, estão tentando se igualar aos riquinhos da
zona sul. É uma forma de mostrar pra eles que, aqui na Baixada, as
pessoas também podem se vestir bem e ter uma boa apresentação.
(MÁRCIA, FREQUENTADORA)
Mc Debby comenta que, hoje em dia, a moda é ostentar. Ela conta que a
ostentação, muitas vezes, é ilusão, pois as pessoas nem sempre tem muito dinheiro, mas
alguns amigos juntam o pouco que tem e, nos bailes, acabam comprando combos de
bebidas, que vem com uísque, vodka, Red Bull (energético) em uma balde com gelo,
que geralmente vem enfeitado com pisca-pisca ou em uma bandeja de acrílico com
espaço para encaixar as bebidas e no fundo tem o gelo que fica mudando de cor, o que
fica muito interessante e, de certa maneira, demonstra certo status. Ainda de acordo com
a Mc, são muitos os cantores dessa vertente, no entanto, a maioria não tem nem 50
reais, somente alguns que conseguem realmente mudança na sua conta bancária.
Os funkeiros utilizam-se do funk de ostentação, uma linguagem musical para
enfatizar o consumismo. A música Toda hora tem, do Mc Paixão de Nova Iguaçu,
revela essa peculiaridade.
Toda hora tem,/ Toda hora tem/ Quando o bonde cai pra pista/ É só de
galo
e
de
cem/
Toda hora tem,/ Toda hora tem/ De Pajero, R1, Hornet e
Citroen/Porque é final de semana/ E eu vou zoar de novo/ Com o
malote no bolso/ E o meu batidão de ouro/ Tem Bacardi, Red Label,
- 120 Red Bul e Absolut/ As novinhas quando ver/ Não quer mas sair
daqui/ Quando eu vou meter o pé/ A mais gostosa vem que vem...
O galo, nota de 50 reais, e as notas de 100 reais indicam que o Mc tem dinheiro
para gastar à vontade, que é reforçado na expressão “toda hora tem”. No funk
ostentação, o cantor possui vários carros e motos luxuosos, como Pajero da Mitsubishi
Motors, avaliado em quase 70 mil reais, R1(motocicleta) da Yamaha Motor do Brasil,
avaliado entre 23 mil reais e 50 mil reais, Honda Hornet, motocicleta, avaliado em 20
mil reais a 40 mil reais e Citroen, marca de automóveis.
Além de exposição de dinheiro, carros e motos de marcas respeitadas, outra
característica desta vertente do funk são as bebidas, as jóias (cordãos, relógios,
pulseiras). Mc Paixão comenta que outra forma de mostrar ostentação são os acessórios
usados, como pesado cordão, anéis e pulseiras de ouro ou prata, que geralmente possui a
inicial do nome. É claro que nem todos Mcs tem condição de ter esses acessórios de
ouro ou prata, mas o uso deles, com essa característica, simbolizam poder perante
aquele grupo ou comunidade. O visual impõe respeito, fazendo a diferença no meio que
vive.
A música da Mc Debby de Nova Iguaçu, Nós incomoda, também enfatiza o ter,
quando ela canta que usa marca famosa Christian (marca de perfumes, roupas e
calçados), usa Camaro, carro esportivo avaliado em 230 mil reais, e ao chegar à balada,
como os ricos, o carro é entregue ao manobrista:
...Quem é de fechar/ Já pode chegar/ Que o camarote/ Eu é que vou
pagar/ Porque sou MC Debby/ Tô aqui pra incomodar/ Bem vestida/
Eu tô de Christian/ Perfumada e produzida/ De Camaro na
balada/ E a chave com manobrista/ E as amigas são as top/ Não
querendo esculachar/ Ha,ha, fazer o quê/ Temos para incomodar.
No mundo contemporâneo, os conceitos deixam de ser eternos e o consumismo
torna qualquer coisa em valor de mercadoria, logo os sentimentos também passam a se
tornar mercadoria, afetando a vida cotidiana. Nos funks dessa vertente, em que há
predomínio de Mcs masculinos, a figura feminina é símbolo de ostentação, de forma
que os Mcs demonstram as mulheres que conseguem como mercadorias, prêmios. O
homem é representado como o que tem poder e a mulher simbolizada como objeto de
prazer masculino, que a coloca numa posição de inferioridade numa relação
homem/mulher.
- 121 A Mc Pocahontas, em 2013, gravou o funk ostentação “Mulher no poder”,
mostrando que as mulheres também podem ostentar, e que elas não são prêmios, mas
gostam do que é bom.
Ostentação, palavra que eu gosto de ouvir/ Se me quer do seu lado,
tem que me fazer rir/ Vem me buscar de Hornet, R1, RR/ Me dá
condição/ Deixa eu totalmente louca, chapadona de Chandon/ Gosto
de gastar, isso não é novidade/ Hoje eu já torrei mais de dez mil com a
minha vaidade/ É salão de beleza, roupa de marca, sandália de grife
no pé/ Bolsa de Louis Vuitton, sonho de toda mulher/ Tudo que eu
faço tá virando comentário,/ Postaram no face que agora eu tô de
Camaro/ E quem tá comigo sabe/ aonde chego eu dou sacode/ Sou a
Mc Pocahontas, tamo junto e a firma é forte/ Bota o dedo pro alto,
deixa os homens loucos/ Esse é o bonde das minas que andam no
ouro/ Gosto de ostentar e essa é a minha vida/ Mulher no poder, é
assim que eu sou conhecida (MULHER NO PODER, MC
POCAHONTAS, 2013)
A Mc Pocahontas ao cantar “Mulher no poder”, reflete toda simbologia de
poderio que a pessoa demonstra ao ostentar dentro do seu espaço, seja na periferia ou na
comunidade – “Tudo que eu faço tá virando comentário,/ Postaram no face que agora eu
tô de Camaro/ E quem tá comigo sabe/ aonde chego eu dou sacode”.
Bauman (2004) observa que no relacionamento humano, em que a
individualização predomina nos dias de hoje, oscilam entre sonho e pesadelo, e não há
como definir quando um se transforma no outro, devido à liquidez em que estão
inseridos. Nesse sentido, essa característica do mundo líquido é refletida na linguagem
musical do funk da Baixada, como, por exemplo, Papo das brabas, da Mc Debby. A
música fala sobre as casadas que quando saem para os bailes agem como solteiras. A
solidez do relacionamento de antigamente é substituída pela liquidez da atualidade.
Já dei o papo na balada/ Tô na pista pra negócio/Na noite ninguém é
de ninguém/ Todo mundo vira sócio/ Eu dançando rebolo gostoso/ Me
exibo com minhas amigas/ Mas depois que a casa caí/ Boto a culpa na
bebida/ Esse é o papo das brabas/ Na rua eu tô solteira/Em casa eu tô
casada/ Dá um grito no baile/ Quem deixou marido em casa.
Bauman (2004) afirma que o medo de sofrer ronda a humanidade, e a relação
instável a livra desse sofrimento. Nesse sentido, trocar de amigos, cônjuge, namorados,
colegas, e qualquer outro ser que se aproxime, permite que não haja apego. A sociedade
líquida em que vivemos na contemporaneidade enxerga que quanto mais dinheiro se
- 122 tem melhor se vive, e nessa concepção de consumismo, quanto mais relacionamentos,
melhor, pois sempre que precisar, eu troco.
Ninguém vai na casa noturna fazer amizade, vai procurar alguém pra
relacionamento sério ou não. A maioria não. Vai mesmo para procurar
alguém para se satisfazer fisicamente, as necessidades que o corpo
tem. Geralmente vai procurar uma mulher de corpão, um cara bonito.
Um cara que tenha carro, de boa condição. E os homens procuram
mulheres que tenham um belo corpo... Minha mãe diz que a noite no
tempo dela não era assim, tinha as paqueras, mas não era assim. Antes
era mais romântica, hj em dia parte pro vamos ver e acabou (Mc
DEBBY)
No mundo líquido, a lealdade se torna motivo de vergonha. Segundo Bauman
(2007, p. 17), ninguém quer ser deixado para trás ou de ficar preso com o que ninguém
mais quer ser visto, perdendo, assim, o trem do progresso. “É natural das coisas exigir
vigilância, não lealdade”.
Mais recentemente, surge um novo estilo, o funk pop. De acordo com Márcia,
frequentadora de bailes, são músicas com maior estrutura tecnológica, sons eletrônicos,
e o tamborzão cede lugar para bases de outros instrumentos, como teclado. É mais
melódico que o funk e os shows são mais dançantes e coreografados, e apresentam um
cenário todo estruturado. Parece um espetáculo. Os shows são bem parecidos com os de
Beyoncé, Ricky Martin, Shakira e Madonna.
Em 2012, essa vertente cria força com Naldo Benny, quando estourou a música
“Amor de Chocolate” na mídia e, em 2013, surge Anitta com “Show das poderosas”. A
partir daí, tanto Naldo Benny como Anitta assumiram esta vertente como ritmo de
trabalho. Em 2014, Valesca Popozuda lançou a música “Beijinho no ombro”.
No funk, esta vertente sofre com algumas polêmicas dentro do movimento, pois,
como argumenta a Mc Debby, este ritmo pop não tem nada a ver com o funk, pois foge
da batida característica do funk. Os cantores desse estilo são criticados por muitos
profissionais do funk, porque “são pessoas que usam o funk pra se lançar e depois
abandonam”. No entanto, conforme Márcia, frequentadora de bailes, foram
frequentadores de bailes funks que batizaram esse estilo como funk pop, uma vez que a
origem dos cantores aconteceu no movimento. Acreditam que é uma nova roupagem
para este ritmo.
O funk pop é um estilo mais comercial, alcançam mais pessoas, logo, tem uma
aceitação maior, caindo no agrado do povo e da elite. Essinger (2005) expõe que como
em todos os movimentos musicais, acontecem situações que tem o poder de transformar
artistas afins em uma tendência, um pacote a ser consumido pelo mundo.
- 123 D’Adesky (2009, p. 102) comenta sobre a aceitação da música negra pela elite,
que quanto maior o grau de aceitação, maior é o interesse das gravadoras em produzi-la,
no entanto, dentro do possível, a imagem do artista é associada a um artista branco. O
oportunismo comercial apropria-se de um ritmo musical potencialmente rentável e a
estratégia de markenting impõe, dentro do possível, o nome de um artista branco, que
possa ter grande credibilidade junto ao público consumidor. Quando não é possível,
espera-se que o artista branqueie-se culturalmente, que é o caso do funk pop.
Enfim, os diferentes estilos de funk acompanham os momentos históricos pelo
qual a periferia e comunidades passam, refletindo o modo de vida dos moradores dessa
localidade.
3.6 A mulher entra em cena: sensualidade e sexualidade
O erotismo, que remonta a sensualidade das negras e mulatas do período
colonial, até os dias de hoje encarna as fantasias sexuais dos homens. No funk, as
músicas são geralmente cantadas por homens, que mencionam as mulheres como objeto
de prazer, mostrando uma identidade feminina submissa, reforçando a relação
homem/mulher dentro da ideologia histórica machista.
Mc Paixão, com a música Bota essa porra pra rolo (2012) mostra como o
erotismo está forte nos tempos modernos: “Ó novinha danadinha/ Desse jeito eu não
aturo/ Sua dança sensual/ estigando vagabundo/ Tu deixou bonde maluco/ Tu não vai
fugir de novo/ Vem cá então/ Sente a pegada...”
O corpo, enfatizando o lado sexual, conforme Bauman (2005), está à disposição
de todo tipo de propósito e o desafio é esticar ao máximo a geração de prazer provocada
pela sexualidade. No entanto, conforme Bauman (2005, p. 80), “seu gozo e satisfação
potenciais são mais bem saboreados e consumidos imediatamente, na hora, antes de
começarem a esmaecer, como decerto ocorrerá”.
Lopes (2011) expõe que, nos dez primeiros anos, eram os homens que
predominavam o universo funk. De acordo com Medeiros (2006), embora, no funk,
sempre houve espaço tanto para homens como para mulheres com uma convivência
harmônica, reflexos da sociedade machista, que tinham os homens como protagonistas
principais, deixaram as mulheres em segundo plano, com aparições esporádicas.
Luciana, historiadora e geógrafa, conta que a ideologia machista da sociedade fez com
que, no primeiro momento, os homens dominassem o movimento.
- 124 Ainda segundo Medeiros (2006), a reviravolta se deu no palco do Coroado, local
de baile funk na Cidade de Deus. No ano de 1996, auge dos bailes de briga, muitos
funkeiros da Cidade de Deus passaram a frequentar o Country Clube da Praça Seca, Rio
de Janeiro, deixando, assim, o Coroado vazio. O Dj Duda que atuava nesse baile, diante
da grande evasão, anunciou que produziria quem levasse uma letra no palco. Eis que
surge Deize Maria Gonçalves, empregada doméstica em São Conrado com dezesseis
anos, que se apresentou com a música “Hilda furacão”, inspirada na série da TV Globo
com o mesmo nome: Não somos Hilda furacão, mas seu macho vamos comer/ Esse é o
Bonde do Fervo lá na Praça do Apê/ Se tu tem disposição, demorou de encarar/ Tem
que saber que é fervo, a chapa vai esquentar.
Deize se uniu a um grupo de quinze meninas da área, “apartamentos” da Cidade
de Deus, e formou o Bonde do Fervo. Surgiu, então, um grupo de meninas rivais de
outra área da mesma localidade, “das casinhas”, com o nome de Bonde das Bad Girls
para provocá-las. Essa competição deu origem a duelo de rimas, em que os dois bondes
competiam com letras criativas durante os bailes no fim de semana.
A fama da disputa se espalhou e acabou influenciando a formação de outros
bondes, tanto de homens como de crianças. Surgiram bondes que perduraram até o
tempo de hoje, como Bonde do Tigrão (antes bonde do Plutão), Bonde do Vinho e
Bonde dos Carrascos, conforme Medeiros (2006, p. 77)
Junto com o Bonde do Fervo e Bonde das Bad Girls, entrou também no cenário
o Bonde das Putanas, que pedem a Deize, referência para as funkeiras, que escrevesse
uma música em resposta ao Bonde do Plutão (Bonde do Tigrão). Deize escreveu “Eu
esculacho”, que mais tarde foi gravada na voz de Tati Quebra-Barraco - “Não adianta
de qualquer forma eu esculacho/ fama de putona só porque como seu macho”. Antes, na
música, se cantava “putana”, por causa do Bonde da Putana, mas depois mudou para
putona na voz da Tati, e a música passou a ser “Fama de putona”.
A partir daí, a ascensão das letras de funk provocativa e sensuais foram
ultrapassando barreiras, com o surgimento de Vanessinha Pikachu e os Bondes das
Tchutchucas da vila Cruzeiro e Gaiola das Popozudas de Acari. A Gaiola das
Popozudas se intitularam como o “melhor show feminino de funk no Brasil”, e foi quem
mais conquistou com o discurso “neofeminista”, com letras escancaradas, como “Vai
mamada”, resposta ao sucesso de Serginho e Lacraia “Vai Serginho”, e visual das
roupas justérrima da vocalista Valesca e quatro dançarinas – três morenas calipígias,
com belas nádegas, e uma anã Amélia.
- 125 -
Vai Serginho
Vai mamada (Siririca)
Mc Serginho
A gaiola das popozudas
Que delícia/ Só pras gatinhas frenéticas/ Eu vou tocar uma siririca/ E vou gozar na
Eu vou beijar você na boca/ Vou morder o sua cara!/ ‘Vombora’ embora pardal!!/ Eu
seu
queixinho/
Vai
Serginho/
Vai vou chupar sua piroca/ Eu vou tomar vara
Serginho/ Eu vou lamber a sua orelha/ de guarda!/ Vai mamada! Vai mamada!/...
Vou
morder
seu
pescocinho/
Vai
Eu
vou
dar
minha
buceta
bem
Serginho/ Vai Serginho/ Vou descer mais devagarinho/ Mas o que eu quero mesmo
um pouquinho/ Eu vou morder o seu é piroca no cuzinho/ Abre as pernas! Não
peitinho/ Vai Serginho/ Vai Serginho/ Eu se
espanta!/
Vem
gozar
na
minha
vou lamber sua barriga/ Te fazer muito garganta!/ Vai potrancal! Vai potrancal!/...
carinho/ Mas o que quero mesm/ É Eu vou dar o meu cuzinho! Eu vou dar
morder seu grelinho/ Abre as pernas, faz minha xoxota,/ Mas o que eu quero
beicinho/ Vou morder o seu grelinho/ Vai mesmo/ É chupar sua piroca/ Tá meloso
Serginho/ Vai Serginho/ Não se espanta/ pra mamada?/Vai rolar só cachorrada,/
Eu vou gozar na sua garganta/ Vai Mas o que eu quero mesmo,/ É tomar uma
Serginho/ Vai Serginho/ Eu vou lamber a pirocada...
sua orelha/ Vou morder seu pescocinho/
Vai Serginho/ Vai Serginho/ Vou descer
mais um pouquinho/ Eu vou morder o seu
peitinho/ Vai Serginho/ Vai Serginho/ As
gatinhas
bonitinhas/
Todas
elas
preparadas/ Na melo do ‘Vai Serginho’/
Elas vão dar várias gozadas/ Abre as
pernas, faz beicinho/ Vou morder o seu
grelinho/ Vai Serginho/ Vai Serginho/
Abre a boca/ Não se espanta/ Eu vou
gozar na sua garganta/ Vai Serginho/ Vai
Serginho/ Demorou/ Goza na Boca/ Goza
na cara/ Goza onde quiser
A música ‘Vai mamada” retrata uma mulher liberada sexualmente e atrevida, em
que ela pode inverter os papéis quando se trata de uma relação entre homem e mulher.
- 126 O funk também apresenta a nova identidade da mulher dos subúrbios e comunidades,
em que não segue padrões impostos pela sociedade, mas que demonstra ser livre para
tomar iniciativas, demonstrando autoconfiança. Segundo Lopes (2011), as músicas
cantadas pelas Mcs femininas são pequenas narrativas em primeira pessoa, em que se
apresentam como mulheres independentes, com vida sexualmente ativa e sem pudor.
No caso do funk carioca, deve-se destacar o contexto social em que
vivem as MCs. Além de viverem num gueto invisível (ou hiper
invisível) para a sociedade do asfalto, sem acesso à educação e
condições básicas de sobrevivência, elas sempre foram à luta. Nos
morros, as mulheres trabalham desde a infância ou adolescência – seja
para complementar a renda familiar ou, até, para sustentar a casa.
(MEDEIROS, 2006, p. 89)
A visão da mulher doméstica e submissa cantada nos sambas, como Ai, que
saudade de Amélia36, de Mario Lago e Ataulfo Alves e Emília37 de Haroldo Lobo e
Wilson Batista, ambas em 1942, de acordo com Carvalho (1980), correspondiam a uma
ordem social que segue padrões institucionalizados, em que o homem era ‘o rei do
mundo’ que tem direito de fazer boemia, enquanto a mulher, em casa, está pronta a
servi-lo. Rocha & Fazenda (2011) explica que a mulher, representada como frágil e
submissa, era cantada e a posição assumida por elas, nas letras de músicas, ganhavam
respaldo no contexto social, como um costume social aceito.
A história da mulher, segundo ainda os autores, é marcada pela exclusão social,
pela busca de espaço e expectativas de mudança do quadro condicionado pela
sociedade. Nesse contexto, é compreensível o preconceito que surge em relação às
mulheres, pois o perfil de mulher do lar deixa de ser cantada no funk e surge uma nova
imagem, a que controla e desorganiza as relações sociais entre os dois sexos. Como
consequência, esse rompimento com o que a sociedade chama de ordem social provoca
críticas e aversão.
Silva (1999) comenta que o corpo feminino é, atualmente, referência de
conquistas sociais do gênero, permitindo transformações éticas, pois, nas mudanças
36
...Ai, meu Deus, que saudade da Amélia/ Aquilo sim é que era mulher/ Às vezes passava fome
ao meu lado/ E achava bonito não ter o que comer/ E quando me via contrariado/ Dizia: Meu
filho, que se há de fazer/ Amélia não tinha a menor vaidade/ Amélia é que era mulher de
verdade...
37
Eu quero uma mulher, que saiba lavar e cozinhar/ Que de manhã cedo, me acorde na hora de
trabalhar/ Só existe uma e sem ela eu não vivo em paz/ Emília, Emília, Emília, eu não posso
mais/ Ninguém sabe igual a ela/ Preparar o meu café/ Não desfazendo das outras/ Emília é
mulher/ Papai do céu é quem sabe/ A falta que ela me faz/ Emília, Emília, Emília, eu não posso
mais.
- 127 atuais, as mulheres se inserem no mercado de trabalho e ao mesmo tempo cuidam da
família, em dupla jornada de labuta, e passam a tomar decisões sobre sua sexualidade,
perdendo o tabu da virgindade e adquirindo o direito de tomar decisões sobre seu corpo.
De acordo com Medeiros (2006), nas comunidades, muitos homens morrem cedo por
causa do tráfico, são presos ou largam as famílias, de forma que as mulheres são as que
seguraram a casa, sendo, assim, feminista antes mesmo que as da classe média e alta.
Dessa maneira, com os novos comportamentos, vem uma nova identidade feminina, que
ao provocar um conflito, transgride uma norma social.
Segundo Medeiros (2006) e Essinger (2005), para o grande público, foi Tati,
Tatiana dos Santos Lourenço, uma das primeiras mulheres a fazer sucesso na mídia com
uma música. Com seu jeito desbocado e mal encarado, ela mandava recado de que os
tempos são outros. Em pouco tempo passou ser querida das boates GLS e público da
Zona Sul do Rio de Janeiro e de São Paulo. Foi convidada para participar do prestigiado
Tim Festival e até da semana de moda São Paulo Fashion Week.
Você percebe as mulheres entrando no campo no sentido apelativo.
Elas precisavam de qualquer maneira do espaço. Era uma maneira de
ganhar dinheiro. E assim com expressão, não é a primeira, mas que eu
me lembro hoje, é Tati Quebra Barraco... Como ela tinha essa
expressão bizarra, ela era extremamente... Como diria, ela era
escrachada. Então, a graça dela, o surgimento dela, foi justamente
falando muito palavrão e muita imoralidade. Ela se autodepreciava,
enquanto mulher pra chamar atenção. Deu certo! Ela acabou atraindo.
Mas ela sofreu muito. Ela tentou sair da favela... Ela foi morar num
condomínio chique em Inhaúma e ela sofreu retaliação da sociedade.
Renegaram ela. E ela volta de novo pro apartamento que ela tem na
Cidade de Deus e ela diz assim, na entrevista que eu li, “aqui eu sou
Tati, lá eu era só mais uma e mais uma discriminada”, porque
ninguém falava com ela... Eu acompanho eles, assim... porque eu
tinha essa visão da autodepreciação e eu sempre me perguntei como é
esse povo fora da favela, porque você tem Zeca Pagodinho, que vai
morar na Barra e não tem problema nenhum, porque a elite já assumiu
o samba. Mas o funk... É uma outra situação...
Quando ela volta pro espaço dela e aí você tem essa noção de
mobilidade social ligada a terra, ligada ao local. Quando ela volta pro
lugar dela, ela volta a fazer sucesso, a se considerar... Ela foi uma das
primeiras que eu conheci, e aí mais tarde você tem outras mc’s que
vão surgindo. “Ela conseguiu, eu consigo também.” E aí vão tentando.
Eu não consigo lembrar o nome de muitas agora... (LUCIANA,
HISTORIADORA E GEÓGRAFA)
Até 2001, de acordo com Essinger (2005), as figuras femininas no funk eram
poucas. A mc Debby, moradora da Baixada Fluminense, conta que hoje em dia, “tem
muito mc feminino, só que ainda é um mundo machista. Aí é muito difícil pra mulher
estourar música... No meu caso que não era porra nenhuma tive sorte”. Para a mc
- 128 Debby, algumas mc’s tem sorte de encontrar um bom empresário que invista nelas, mas
“geralmente, ela é casada com o cara lá que é DJ, produtor, o manda chuva de alguma
coisa ou tem um marido que tem dinheiro para investir na carreira”.
Na visão da Mc Mary May, a aceitação por parte dos homens está aumentando.
Os homens estão elogiando cada vez mais o trabalho das Mcs feminino e, inclusive,
outras mulheres. Mas mesmo assim, sofreu preconceito no local onde mora em
Mesquita por parte dos vizinhos mais conservadores e por parte dos evangélicos, uma
vez que fora frequentadora de igreja.
Ainda de acordo com a Mc, para o homem sempre foi e ainda é mais fácil.
O homem vai ali, pronto, já é o gostoso. Mulher tem todo um preparo.
A mulher vai ali, faz qualquer coisa, já saem falando. Homem vai ali,
levanta a blusa já é gostoso. A mulher tem que saber cantar e tem que
fazer direito. Homem não. (MC MARY MAY)
A Mc Mary May comenta que mulher se quiser mostrar seu talento, seu trabalho,
não pode fazer qualquer coisa. Mc Debby diz que:
Para as mulheres, a música tem que ser boa. A mulher pode ser feia,
horrorosa. Já viu mc Dandara? É uma senhora, 50 e poucos anos, e
tem várias músicas dela estouradas: ‘Pode me chamar de puta a noite
inteira...’ Ela deu uma parada. Ela é maranhense, tinha música muito
louca... A mc pode ser a mais gostosa, mas se a música dela não for
boa, não vai estourar (MC DEBBY).
Porém, a Mc Mary May reconhece que dentro do movimento funk
existem mulheres que trabalham com o corpo, estão mais para dança do que para
o canto, como, por exemplo, as mulheres frutas.
Mulheres frutas trabalham com a dança. Não trabalham com a voz,
trabalham com corpo. Então é diferente. Quando se trabalha com o
corpo, a voz é o que menos interessa porque os homens vão olhar para
bunda, pra isso, pr’aquilo. Nada contra. Tenho amigas que dançam e
tudo. Hoje ainda tem bastante. Tem a mulher uva, por exemplo... O
publico é diferente. Para as frutas, são os homens. Homens e mulheres
gostam muito de quem canta. (MC MARY MAY)
Há um maior preconceito por parte das mulheres com as Mcs que exploram o
corpo, devido ao erotismo exagerado, no entanto, conforme Mc Mary May, cada um
tem que respeitar o trabalho do outro, até porque tem espaço para todos.
- 129 Mc Mary May e Mc Debby dizem que nos shows não tem como cantar e dançar
ao mesmo tempo, o que acontece são alguns passinhos. Geralmente, são acompanhadas
por dançarinos de ambos os sexos que apresentam uma coreografia. O número de
dançarinos homossexuais está aumentando muito e são comumente chamados de
‘manas’.
A maior polêmica que envolve as Mcs é o conteúdo erótico de suas letras. No
entanto, Mc Mary May explica que, no geral, o que se canta, nem sempre é o que se faz.
Canta-se para distrair e agradar ao público. Ana Maria, mãe de Mc, completa dizendo
que é o que as pessoas gostam e Jerônimo Souza, organizador de eventos, diz que as
mulheres dançam sem se preocupar e não tem interesse em acabar com isso.
A mulher é a cachorra. Ela é, porque ela quer. Ela mesma se
classifica: ‘Tô cachorrona, tô bandida’. A menina funkeira fala isso na
boa. Isso não é uma ofensa não. ‘Quanto mais cachorra eu sou, mais
eu pego. Pego os bofinhos. Quanto cachorra eu sou, mas sou
cobiçada’. Ela, mulher, se permitiu. Não vejo como xingamento. Até
porque elas não estão nem aí. Nos trajes, Também é uma forma da
sexualidade delas virem à tona e elas se sentirem maravilhosas.
Aquelas roupas justas, aquele saltão alto, elas criam marcas. Até
indústrias criam roupas pra funkeiras, estilo periguete. Essas lojas são
caríssimas, elas juntam dinheiro, mais tem a roupa da marca x, que
vende especificamente para esse grupo. E trocam de roupa. Com
relação a ela, a letra, elas não enxergam como maldade, não enxergam
que estão com sacanagem com ela. ‘Sou cachorra sim, sou mais
cachorra, sou mais bonita. Não quero nem saber, sou cachorra
mesmo.’É um grupo que conquistou seu espaço desse jeito, dessa
forma, num ambiente masculino (ANDRESSA,HISTORIADORA).
Woordward (2000, p.32) comenta que as identidades sexuais “é mediada por
significados culturais sobre sexualidade que são produzidas por meio de sistemas
dominantes de representação”. Nesse sentido, para o Mc Paixão, as mulheres quando
estão nos bailes sentem uma liberdade, ao qual fora dele não tem, porque precisam
seguir o padrão social em casa e na rua e no bailes é como não tivesse nada prendendo,
não há tabus. Ao sair do baile, é como se nada tivesse acontecido e a vida volta ao
normal.
Um das características dos funks cantados por Mcs são os funks que respondem
aos Mcs masculinos quando denigrem as mulheres. Mc G7 fez a música “Tô chupando
tudo” e a Mc Debby fez a versão feminina “Vou chupando tudo”, que segundo ela, era
uma resposta.
- 130 -
Tô chupando tudo
Vou chupando tudo (versão original)
Mc G7
Mc Debby
Ai que delícia / Essa mina é um abuso/ Ai
ai ui que maravilha/ Ai ui mas
que gostoso/ Passa a língua na cabeça/ E
ainda lambe o meu ovo
Ai que delícia / Ai que maravilha / Ai que
homem gostoso/ Passo a língua na cabeça
/ Vou chupando o seu ovo
Rainha do suck, suck/ Essa mina é um
abuso/ Tá chupando/ Ela é profissional/
Ela me deixa maluco/ tá chupando tudo
É a Debby Mc/ Olha, eu sou um
absurdo/Vou chupando tudo/ Vou
chupando tudo/ Sou profissional do sexo/
Quando começo eu abuso/ Vou chupando
tudo 38
Segundo Medeiros (2006), as Mcs defendem-se dizendo que se trata de uma
forma de alertar as mulheres mais novas a colocarem os homens nos seus lugares. Mc
TG 10 confirma por dizer que muitas Mcs defendem a classe feminina dando respostas
aos Mcs homens, que falam mal das mulheres. Conforme Mc Mary may, “uma coisa
boa no funk é que as letras incentivam as mulheres serem fortes” diante do universo
masculino.
Os tipos comuns de funk cantados por mulheres são os de provocação. Luciana,
Historiadora e geógrafa, expõe que o trabalho de estigar e afrontar é o propósito, pois o
funk ganha força para se empoderar perante a sociedade, ou seja, as mulheres trazem à
tona uma nova visão de poder, em que elas passam a ser agente ativo na relação social,
tomando decisões no que diz respeito a sua sexualidade, ao seu corpo, e tem o direito de
ir e vir. Essa postura de empoderamento também desafia a relação patriarcal, em que o
homem domina e, logo, assume posição de superior. Enfim, trata-se de uma mudança
social quanto ao gênero.
Andressa, Historiadora, comenta que atualmente, e é o que ela observa nas
jovens da Baixada, é a liberdade sexual.
Discutem isso na boa como se estivessem falando da novela de ontem.
Compartilham a vida sexual deles com outros na boa. Eu sai com
fulano, assim e assado, pode sair com ele, que eu não to mais.
38
Na versão light: Ai que delícia / Ai que maravilha / Ai que homem gostoso/ Passo a língua na cabeça /
Vou chupando bem gostoso /É a Debby Mc/ Olha, eu sou um absurdo/Vou chupando tudo/ Vou
chupando tudo/ Sou profissional , sou sex/ Quando começo eu abuso/ Vou chupando tudo
- 131 Banalizam e como banalizam tanto isso, que vai pra música. Eles
reproduzem o que vivem. A música é o que eles vivem.(ANDRESSA,
HISTORIADORA)
Mc Debby canta uma música sexualmente provocante. Ela conta que “via muito
nos bailes, as garotas irem com roupas muito curtas, muito coladas e quando elas
dançavam apareciam tudo. Só faltam dançar pelada”, daí surgiu o funk “Vou dançar
pelada” (versão original) ou “Vou dançar sem nada” (versão light):
Dancei no baile a noite inteira/ Eu já to toda suada/ O calor comendo
solto/ E pro bonde da laje/ Vou dançar pelada/ Vou tirando tudo/ Vou
tirando tudo/ porque eu já tô toda suada/ Vou dançar pelada/ Sou a
Debby Mc/ Vou lançar essa parada/ Já que tu tá suadinha/ Vem dançar
pelada/ Vem dançar pelada (MC DEBBY)39
Outro gênero que existe no movimento funk, são os homossexuais. De acordo
com Green (2000), Não há preconceito contra eles, que na sua maioria são dançarinos.
As duas figuras destacadas, no universo funk, foram Lacraia (2001) e Bonde das
Bonecas (2013).
Em 2001, Serginho desperta na mídia com seu parceiro e dançarino Lacraia,
Marcos Aurélio Silva da rocha, como as novas atrações do universo funk, conforme
Essinger (2005). Suas músicas eram lúbridas, explícitas ou de duplo sentido, além de
bem-humoradas, o que serviu de inspiração para outros Mcs no futuro por surgir um
novo tipo de funk. Seus principais sucessos são “Vai Lacraia”, “Eguinha Pocotó”,
“Cafetão de puta pobre”, “Cavalo com pata quebrada”.
Lacraia era “homossexual assumido e defendido em sua opção e
integridade pelo Mc e amigo...De pouco a pouco, Lacraia virou um
legítimo integrante do mundo funk – e sem precisar mudar o seu jeito
de ser... Capaz de despertar fascínio sobre homens, mulheres e
crianças, o dançarino é o que se pode chamar de uma unanimidade
positiva do funk (ESSINGER, 2005, p. 247, 251).
Em 2009, a dupla se separou e Lacraia resolveu ser Dj de música eletrônica,
realizando um sonho. No dia 10 de maio de 2011, a dançarina morreu de tuberculose.
Em 2013, aparece na história do funk o Bonde das bonecas. Mc TG10 comenta
que o Bonde das Bonecas estourou com a sua música “Faz o quadradão”, que surgiu a
39
Versão light: Dancei no baile a noite inteira/ Eu já to toda suada/ O calor comendo solto/ E pro bonde
da laje/ Vou dançar sem nada/ Vou tirando tudo/ Vou tirando tudo/ porque eu já tô toda suada/ Vou
dançar sem nada/ Sou a Debby Mc/ Vou lançar essa parada/ Já que tu tá suadinha/ Vem dançar sem nada/
Vem dançar sem nada (MC DEBBY).
- 132 partir da dança do quadradinho, que o Bonde das Maravilhas inventou e foi um sucesso.
Eles, o Bonde das Bonecas pegou essa ideia e reformulou, tentando aperfeiçoar.
Esse é o Bonde das Bonecas/ Trazendo a nova sensação/ Com elas
você aprende/ A fazer o quadradão/ solta o ponto/ Passa, passa a visão
pra ela/ Pra aula continuar/ Elas vem na habilidade/ Vem Carlos, vem
Leoni na elasticidade/ Elas são a sensação/ De fazer o espetáculo/
Vem Nilton e Rafael/ Bate com a perna no alto/Vai até o chão/ Sobe,
sobe rebolando/ E vai dando o rajadão/ Quando vem o Renan/ Não
acredito no que vejo/ Só ele faz carão com o pé no queixo (MC TG10
E O BONDE DAS BONECAS)
Ainda de acordo com Mc TG 10, no movimento funk não há cantores
homossexuais em evidência, geralmente são dançarinos. O grupo caiu no agrado das
pessoas, aparecendo em programas de TV, como o Esquenta da Rede Globo; Eliana,
SBT; Balanço Geral, Record, e noticiados em rádios e jornais, como Jornal Meia Hora e
O povo e junto com o grupo, o Mc teve uma ascensão no mundo do funk.
A vida séria com regras e hierarquias, principalmente as determinadas pela
sociedade, não deixam as pessoas expressarem sua individualidade, mas é na festa,
conforme Vianna (1988), que o indivíduo descobre que pode ser senhor de si e o baile
funk proporciona isso.
- 133 -
Considerações finais
Concluímos que o funk, como manifestação cultural, tem suas raízes no passado,
de forma que foi de extrema importância considerar o processo histórico da cultura
africana e sua grande influência na expressão cultural do povo para compreender a
formação identitária do movimento.
A investigação das expressões culturais afro permitiu também conhecimento
acerca do motivo de tanta rejeição da sociedade elitizada e dominante às expressões
populares, uma vez que as diversas manifestações culturais, como jongo, capoeira,
religiosidade e o samba, tiveram que passar pelo processo de resistência até se
afirmarem como cultura. Essas manifestações culturais afro-brasileiras, se não todas,
sofreram algum processo de criminalização e proibição até serem reconhecidos frente à
sociedade. Nesse sentido, a história do passado se repete no presente, nesse caso, com o
objeto de estudo em questão, o funk.
Constatamos como o processo histórico e social do movimento funk dentro da
cidade do Rio de Janeiro é marcado por muita pressão de anulação e muita luta por parte
dos integrantes do movimento, tendo de ser criativo e estratégico, a fim de se manter,
ser respeitado e ter o reconhecimento, que veio em 2009, quando passou a ser
considerado Patrimônio Cultural do Estado do Rio de Janeiro.
O funk, um ritmo musical inventado por negros norte-americanos, desde início
da década de 70, promoveu um grande número de festas frequentadas por jovens na
cidade do Rio de Janeiro, em geral, pertencentes às camadas mais pobres da população,
que têm no encontro um modelo barato de divertimento. Nesse movimento, os jovens
absorveram a dança, a música e o jeito de vestir dessa nova cultura, dando uma nova
identidade.
Verificamos que, no funk, essa juventude negra e pobre reinventou-se e
reinventa-se de modo criativo, de forma que, nos aproximadamente 40 anos de
existência, esse movimento passou por diversas modificações e estilos, sempre de modo
contextualizado e refletindo sua vivência social e cultural.
Não demorou muito para esse movimento cultural sair da cidade do Rio de
Janeiro e se expandir para outras áreas, como a Baixada Fluminense, em especial Nova
Iguaçu e seus filhos, Duque de Caxias, São João de Meriti, Nilópolis e Mesquita. Os
bailes dessa região representam o encontro de pessoas que gostam de um ritmo, e
- 134 consequentemente de toda característica identitária que o faz ser reconhecido como
membro de um grupo.
Através desta investigação, estudar a construção de uma identidade,
principalmente, a funkeira da Baixada Fluminense, se tornou importante para
compreensão da importância desse movimento para os seus membros, uma vez que
significa reconhecimento individual e coletivo de pessoas que tiveram suas vozes
caladas e foram colocadas à margem, de modo invisível.
Concluímos que esse movimento, na Baixada, é uma diversão de jovens e meios
de ganho para muitos profissionais, como renda extra ou trabalho regular, uma vez que
no movimento há diversas funções, como Djs, operadores de som, produtores musicais,
Mcs, dançarinos, seguranças etc.
Além dos recursos bibliográficos, as entrevistas com funkeiros e simpatizantes
do movimento na Baixada Fluminense forneceram valiosa riqueza ao trabalho, uma vez
que forneceram informações relevantes e significativas, ou seja, a história será contada
pelo outro lado da moeda, de quem é discriminado por ser pobre e negro. Através desse
diálogo, os sujeitos envolvidos contribuíram para identificar a identidade dos
participantes do movimento, tendo em vista que a narrativa deles reflete um ambiente
histórico e social, que muitas vezes coincidem com a realidade da metrópole, sendo
influenciado pela globalização e mídia.
A diversidade de mídia, como rádio de bairro, internet, redes sociais, programas
de produção independente, se tornou a via mais rápida para a divulgação de bailes,
músicas e promoção de Mcs. Essas mídias não tradicionais são simples, mas permite um
alcance amplo, atendendo as necessidades do grupo.
São várias polêmicas em torno do funk, violência e criminalidade, sexualidade e
erotismo, imagem da mulher denegrida, que promovem o preconceito. Com esta
investigação foi possível ver como os jovens da Baixada vivem, suas pretensões e seu
papel social, verificando, portanto, que as letras dos funks estão relacionadas à realidade
dos negros e pobres de periferia, em alguns momentos como querem ser vistos, outros
momentos como realmente vivem e como se divertem, o que possibilita a construção de
identidade dos participantes do movimento funk.
Quanto à questão de gênero, mulheres e homossexuais, no movimento funk, não
existe preconceitos e há lugar para todos, no entanto, com respeito às mulheres,
constatamos que esse universo, como a sociedade, é machista, uma vez que há mais
Mcs masculinos do que femininos. Contudo, há uma aceitação maior tanto da parte da
- 135 produção de shows como do público pelas cantoras de funk e quanto aos homossexuais,
geralmente, se apresentam como dançarinos.
Quanto às letras de funk, a mulher é sempre citada, mas associada à
sexualidade, acompanhando um discurso com visão machista, em que a mulher é objeto
de prazer, por outro lado, essa mesma mulher canta que ela, em resposta, tem liberdade
de escolha e é ela quem decide o que quer, principalmente, no que se trata de sexo. A
mulher, portanto, se empodera, indo de encontro com uma sociedade que determina
valores e padrões de conduta para a mesma.
O preconceito existe com relação à diversidade e dessa maneira, alguns
movimentos sociais como culturais, são colocados à margem, principalmente por
refletir padrões e valores que fogem os determinados pela sociedade dominante. Nesse
sentido, essa investigação trouxe reflexões importantes sobre o processo cultural do
movimento funk dentro da Baixada Fluminense, contribuindo, portanto, para a
elucidação acerca dessa expressão cultural frequentada, principalmente, por jovens.
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universidade do grande rio prof. josé de souza herdy