Comunicação
MOVIMENTO FUNK CARIOCA - ESTÉTICAS ANTROPOFÁGICAS
ALVES, Pablo Oliveira dos Santos
LIMA, Pedro Moreira1
Palavras-chave: Periferia, Estética, Educação
INTRODUÇÃO
De pronto, é necessário ressaltar a nossa leitura despretensiosa sobre o
objeto de estudo, sem heroísmo, calcada numa conduta relativista que dissolva
engessamentos
do
preconceito
étnico-social:
enquanto
produção
estética
emancipatória em difíceis cotidianos cariocas. Estudamos aqui O pancadão?
inevitavelmente como resultante das reações a um contexto em que se insere, e que
muitas vezes usa como influência a violência da cidade.
É destacável que o funk se chega próximo com uma das formas que J. Jota
de Moraes coloca quando trata das maneiras de ouvir música: a maneira de ouvir
com o corpo: “é o momento em que a música se plasma com o corpo(...) é um estar
em sintonia com as vibrações (...) a música ouvida é transformada em movimento
que pode ser visto, em ritmo visual, criação de espaço tridimensional” (1989, p. 6364) fazendo também parte de um dizer gestual, através da dança o ritmo se
tornando plástico.
A territorialidade funk, em sua dinâmica configuração - como qualquer
territorialidade cultural - carrega histórias do desfavorecimento, opositores fortes e
violentos, rotinas de riscos de toda ordem. Contudo, não é apenas o campo dos
vencidos. Sua estética afronta ‘bom gostos’, bons sensos, não apenas os das
classes médias e elites, mas também alguns presentes em seus circuitos locais.
Tomam o poder de falar de si e de seus espaçostempos ?, avançando lugares de
fala. Diferenciando da narrativa oficial em mídias de massa, que usualmente o
desqualifica, segrega e tenta estereotipar suas imagens. Um jogo político que coloca
em pauta uma construção imagética social e de sociabilidade avessos à
fenomenologia funk.
As gravações, em sua maioria, são caminhos para o baile ou o que ficou dele,
altamente circulantes, elas narram a vida cotidiana de seus praticantes em seus
devires em acentuado dionisismo (Maffesoli, 2005). No livro ‘Escola, galeras e
narcotráfico’, Elizabeth Guimarães (1998) demonstra que para os estudantes da
escola na qual efetuou sua pesquisa, freqüentadores de bailes funk, a
apreciação/envolvimento do funk em casa, muitas vezes, se dava para conhecer
previamente algumas músicas e treinar coreografias e movimentos para o baile. Os
encontros nos bailes com as galeras definiriam sua apresentação/ socialização
nesse importante evento comunitário. Por outro lado, sublinhando a centralidade
desse enredamento cultural, dançar bem, saber sobre as principais tendências e os
modos e freqüência da participação nos bailes configuram fatores de encontro e
pertencimento tribal (idem, 2000) dos alunos da escola. O que acontecia nos bailes
era assunto para toda a semana, em outros termos, a narrativa da vida vivida.
Diversão, prazer e beleza. Vida e obra que se amalgamam desenhando
formas de se relacionar com o mundo e de construir a si mesmo em contexto de
normas e sociabilidades hostis.
“Tornar a si mesmo objeto de auto declaração de auto elaboração
exige criatividade, abertura para o novo, tentativas, acertos e também
erros. Esta prática implica aprender, transformar-se e, principalmente,
construir formas de resistência ao enquadramento em formas de vida
socialmente prescritas. O cuidado de si repousa em uma estética da
inconformidade, da rebeldia, a rejeição à normatização, daí apelar à
plasticidade, ao fazer diferenças e, dissociar-se, portanto, de utopias
assimilacionistas que mal encobrem (...) Focault desde os anos
sessenta, a das heterotopias, a possibilidade de criar diferenças com
relação aos padrões sociais e construir espaços de resistência em
que estas diferenças tenham lugar”. (MISKOLCI 2006, p. 12)
Expressões que reavaliam normas e a própria moral dominante. Assim,
(re)vêem a vida diferente do objetivismo cristão e capitalista hegemônico, no nosso
entendimento trata-se de “uma vida que não deveria ser de experiência acumulada,
o que dela resultaria, mas sim a fruição da própria experiência” . Dessa perspectiva
associamos a vida presentificada no que Miskolci (2006, p.5) citava, referindo-se aos
helenistas e seus dizeres da necessidade de liberdade durante a época Vitoriana,
uma tentativa de fundar uma Renascença Inglesa. De certo modo, a mesma tensão
emancipação versus regulação.
1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
O universo Funk, paraleliza, transpassa, adere e descola-se das camadas
sociais legitimadas e visíveis. Opera na tática (Certeau) acontece nas ausências das
políticas públicas, nos afastamentos simbólicos, nas lacunas quilométricas entre os
blocos das muralhas protetoras da cidade (Pelbart). Aparece como uma rede de
fazeres, cujos praticantes se aproveitam dos espaços/tempos abandonados,
desprotegidos e os ocupam, sejam nos centros geográficos e/ou nas franjas das
cidades. E a despeito das leis, normas e etiquetações, fulgura, indicia-se, mas nem
sempre se dá a conhecer. Não por resistência, mas por estar em outra órbita de
sentido estético, de acontecimento social, tessituras culturais marcadas por certo
ineditismo a contra-pelo da moralidade ou de outra regulação que o pretenda coibir.
A vida como prática existencial em que se coloca o indivíduo como criador,
obra, sujeito, realidade, virtualidade e fruidor. Um fazer-ser, poder-ser (NIETZCHE)
que faz revelar em suas narrativas no/do/com o espaço para o florescimento de suas
inquietações, valores em desacordo com contextos. Um presente bem vivido.
“(...) aquela turma do funk buscava tão-somente a alegria de viver
em bando. Nas vidas daqueles garotos, não havia passado nem
futuro, apenas presente. Não existia, por parte deles, uma
identificação racial social, ou mesmo reconhecimento como ‘funkeiro’
- na verdade uma identidade descartável (assim como as músicas),
que só era adotada na hora do baile, mas todo fim de semana, sem
falta.” (ESSINGER, 2005, p. 78).
Entretanto, convém pensar na força do que Essinger apontaria como um
despertencimento, pois se não existe adesão organizada na perspectiva das
matrizes citadas (raça, condição social, etc.), não poderíamos afirmar a partir da
constatação dessa ‘inexistência’ ou lacuna, que em suas criações de outras formas
de ação coletiva, estaria descartada a possibilidade de uma outra maneira de
pertencimento coletivo e uma outra maneira de durar o tempo, e nessa invenção
espaçotemporal estivesse descartada o acontecimento de uma outra forma de ação
emancipadora. Defendemos, portanto, que a potência cultural juvenil indiciada pelo
funk possui todas as energias que a visão convencional só reconhece nas lutas
organizadas segundo a lógica da filiação ou movimentação partidária e civil. Contudo,
a despeito dessa não organização, há uma conjunção, um encontro e uma ordem
mesmo que seja impossível apontar seus limites, enquadrar sua estrutura ou
cadastrar sua estética.
Uma fruição de vida que traz consigo diferentes modos de existir, diferentes
possibilidades de existir, diferente espaçotempo, em que apontamos aqui uma
prática que muito se aproxima com a estética da existência foucaltiana:
“a estética da existência deveria ser pensada de forma a não
reproduzir o homem senhor de si representativo da Antiguidade,
antes uma subjetivação coletiva (...) práticas de si não-normalizadas
tem como conceito-chave a experiência. Segundo Ortega: ‘A
experiência constitui algo do que se sai transformando. A experiência
constitui uma práxis espiritual
ou ascética, ou seja, as
transformações que deve experimentar o sujeito para alcançar outra
forma de ser.’
A estética da existência consistiria na elaboração de uma relação
não-normativa consigo mesmo, a formação de si mesmo como
decisão estético-estética. É uma atitude política fundada na
resistência às formas impostas de subjetividade (...)” (MISKOLCI
2006, p. 12)
Nesse contexto a dissolução da autoria no tocante ao entendimento de
“autoridade” (já que não se presume uma relação patrimonial das músicas pelos
Mc`s; a formulação dos chamados “bondes” e demais autores que mascaram a
identidade; o livre fluxo da apropriação através das múltiplas colagens (uma colcha
de retalhos de diversos estilos coexistentes); o sublinhar do poder emanado no
coletivo (também provindo inegavelmente do poderio das trocas nas redes interlocais das favelas).
“Contemporaneamente a partilha do sensível estabelece tensões em
um mundo em que algumas falas, alguns lugares de fala, têm maior
peso que outros. O que não impede que aquelas que, num dado
momento, está em desvantagem articularem formas de resistir.
Formas que se desdobram em uma multiplicidade enorme de lugares
de fala que nem sempre, apesar de comungarem do fato de resistir,
estão em sintonia”. (SALLES , 2003)
O Dionisismo que envolve o acontecimento funk estaria, provavelmente, além
da estética da repetição suscitada desde a forte afluência dos festejos rituais afrodescendentes, como no terreiro de candomblé, na audição orgânica que envolve
inevitavelmente os ouvintes através do poderoso impacto rítmico (o que instiga a
drástica investigação da corporalidade) e a re-significação do estar no mundo
contemporâneo pela estetização da existência, conforme aproximamos acima.
Tratamos aqui de uma perspectiva para além das reduções maniqueístas/
moralizantes, por meio da qual possamos contemplar o gozo da criação poética sob
os escombros do mito da inclusão social. Trata-se da impetuosidade antropofágica
(num sentido mais amplo do que uma tendência construtiva) na reivenção das
práticas cotidianas que abarcam, inevitavelmente, as relações humanas presentes
no cotidiano escolar e urgentes de serem vistas pelos arte educadores, ou por
qualquer professor dedicado à arte de educar.
A estética faz política, vivida no cotidiano como forma potência de fruir e
existir com originalidade nas formas antropofágicas, transformadoras e sempre
criativas de lidar com antagonismos e contrastes sociais e culturais, violências
simbólicas e adversidades materiais, assim como encontros que superam e
ultrapassam as barreiras geradas pelas diferenças, sejam estas sociais, culturais ou
de outras ordens. “Entendendo que não são nem ‘passivos’, nem ‘alienados’ pois,
permanentemente, criam valores e articulam práticas éticas e estéticas, ao mesmo
tempo, em que usam técnicas e tecnologias (FELDMAN, 1994), em redes cotidianas,
dentro de processos múltiplos de mediação e hibridização” (Nilda Alves, 2005),
esses sujeitos criadores produzem poéticas e narrativas e por meio destas vai
colonizando a cidade.
Observamos que opera na tática (Certeau) que acontece nas ausências das
políticas públicas, nos afastamentos simbólicos, nas lacunas quilométricas entre os
blocos das muralhas protetoras da cidade (Pelbart). O que no seio do funcionamento
das escolas não deveria existir.
O Funk pode ser compreendido como formas de interpretação e interlocução
com a rede de eventos que constituem a contemporaneidade e a cidade onde vivem
seus autores e praticantes. Jogo de buscas e resultados concretos da produção de
saberes que emergem do cotidiano. Cotidianos recheados de maneiras de ser, de
agir e de produzir estéticas e manhas: formas que se transformam reeditando e
digerindo os atravessamentos culturais aos quais não são refratários. Incorpora
visualidades, radicaliza a transgressão nas suas poéticas. Mistura de experiências
das quais advém a radicalização de sua estética. A contrapelo da ação maquínica do
capitalismo tardio - mecânica que reduz a imagética dos sujeitos e de seus coletivos,
a simulacros de modelos seriados de acontecimento social – o funk desafia sua
leitura por meio de obras francamente coletivas, cuja força vigora em outra
espetacularização da vida, irredutível às superfícies imagéticas, potentes que são de
corpos, belezas e existências, ou seja, da densidade das vidas juvenis.
Aparece como uma rede de fazeres, cujos praticantes se aproveitam dos
espaços/ tempos (Barbosa) abandonados, desprotegidos e os ocupam, sejam nos
centros geográficos e/ ou nas franjas das cidades. Na perspectiva de pesquisa e
estudo de cotidiano necessita que:
“(...) compreender a afetividade das condições lógico estruturais nos
diferentes espaçostempos seria condição necessária para se
desenhar modos alternativos de diálogos e pensar qualquer
intervanção sobre eles. Em lugar de tentar ensinar a realidade o que
ela deveria ser, esse tipo de reflexão político-epstemológica e
metodológica se volta para a compreensão de sua complexidade,
das redes de saberes, poderes e fazeres que nela se tecem e que a
habitam e das possibilidades de novas tessituras escritas naquilo que
já existe. [...] por entender a revalorização da vida cotidiana como
espaçotempo de criaçãode conhecimantos válidos e necessárioa
passa por esse redefinição, trago porntanto, alguns dos principais
aspectos desse debate para esta reflexão. (OLIVEIRA, p. 3)
É preciso destacar que a narrativa é diferente de descrição, que se pretende a
uma aproximação fiel a realidade. Narrativa é diferente de Informação, que é
descritiva, explica. A narrativa apenas segue, sem porquês precisos. Os funks fazem
narrativas, não se explicam. Esse fato não implica na invalidação da formação do
conhecimento.
Conhecimento é diferente de informação. Narra pode ser uma forma de
conhecer. Daí, permitindo a narratividade em seu meio, suas particularidades,
conhecimento que se forma em espaçotempo diferenciado. Lugar, escrituristica
deixada de lado pela modernidade, mas que emerge com grandes valores e
potências.
“Tornar a si mesmo objeto de auto declaração de eutoelaboração
exige criatividade, abertura para o novo, tentativas, acertos e também
erros. Esta prática implica aprender, transformar-se e, principalmente,
construir formas de resistência ao enquadramento em formas de vida
socialmente prescritas. O cuidado de si repousa em uma estética da
incorformidade, da rebeldia, a rejeição à normatização, daí apelar à
plasticidade, ao fazer diferenças e, dissociar-se, portanto, de utopias
assimilacionistas que mal encobrem [...] Focault desde os anos
sessenta, a das heterotopias, a possibilidade de criar dferenças com
relação aos padrões sociais e construir espaços de resistência em
que estas diferenças tenham lugar”. (MISKOLCI, 2006, p. 14)
Esse embate se encontra diretamente relacionado aos encontros de arteeducação e necessário. Respeito à diversidade, diferentes formas de existir e de
rompimento de uma hegemonia, poderes e controles. Interferências na formação das
subjetividades ali em formação.
“Os críticos que definem a idéia da vida como obra de arte como
elitista apóiam-se em um argumento majoritário como supostamente
democrático. É como se replicassem: mas e nós, como ficamos?
Questão que mal encobre o medo da perda da hegemonia e,
especialmente, do poder de controle sobre aqueles que escapam de
seus espaços e normas. A estética da existência é incômoda porque
se funda, explicitamente, em uma perspectiva e em um objetivo
minoritário: um outro modo de vida, não aprisionado na sexualidade
ou em uma identidade, antes fundado no potencial criativo que reside
nas relações entre homens”. (MISKOLCI, 2006. p. 14)
O que tratamos aqui, não uma aceitação social plena sem questionamentos,
distante, mas respeito e diálogo com formas diferentes de tempoespaço e o cuidado
da adesão cega a normas, referências, assujeitamentos psíquicos de um cabedal de
valores naturalizados acerca da discussão de estética em sala, e mais
especificamente, do belo. É assumindo aqui e questionando sobre do conceito de
beleza e o colocando como culturalemente constituído, não natural ao homem. Para
além dos ideais do “homem [ou mulher] ‘branco’, cristão, de classe média ou alta,
‘ocidental’, jovem, com boa relação pesoaltura. Sexualmente ativo e com sucesso
recente nos esportes” (MISKOLCI, 2006. p. 5).
Tratar da estética a sério, colocando a escola como campo de reflexão e
avaliação dos regimes de verdades divulgados comumente pela mídia. Espaço que
pode servir a uma resistência ou a uma visibilidade dos modelos difundidos, como
naturalizados. Diálogo possível e necessário a ser feito com o grupo que muito tem
chamado a atenção nesse século, a juventude. Onde afloram explicitamente novos
modos de viver o mundo e são suprimidos.
Tratamos aqui de um espaço que entra em jogo questões identitárias, que
tem como ponto de partida o rompimento normativo (destaque aos proibidões)
daqueles que não estão e em muitos casos não têm perspectiva de se adequarem
às normas e padrões socialmente constituídos via o belo e o bom. Não por uma
construção apenas de modos de ser ou espaçostempos contra-hegemônico, mas
transgressores que fundam modos diferenciados de eticamente existirem e
autonomamente, na rede coletiva, tecerem seus modos de operarem no mundo
(tática e estraégias certonianas) em redes de conviêcias.
Modos de existir que apenas na transgressão dos dispositivos de sexualidade
vigente aponta para a construção de algo diverso. Muito além de oposições ou inter
dependências. Opor-se significa ter algo como referência, transgredir (sem perder a
ética) tecer novos modos.
“A constituição de novas relações para consigo e para com os outros
é uma forma de resistência que exige um esforço de
desenraizamento, descorporificação, ou seja, de rejeição das
oposições aprisionantes [...] Para finalizar, evoco a arte ou a sua
força, como define Gilles Deleuze: “A arte é o que resiste: ela resiste
à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha”.24 Recorro à poesia,
definida por Thomas Mann como uma doce vingança contra a
realidade. Mais do que vingança, poesia também pode ser
resistência ao quadro sombrio de nossos dias” (MISKOLCI, 2006. p.
5)
Não damos aqui a arte, à escola, ao professor o dever de revolucionar com
tudo, mas de não coibir potências e nem coloniza-las. Acreditamos que abrir
diálogos, respeitar e conviver com a diferença será o caminho viável. É preciso
reconhecê-las, incentivar e viabilizar os diálogos entre elas, perceber-lhes os
enredamentos possíveis e necessários, aprofundar a reflexão. Questionar aquilo que
aparentemente parece óbvio e inquestionável, estranhar o familiar, mergulhar na
realidade e ampliar capacidade de intervenção (Oliveira ,2005).
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ALVES, Pablo Oliveira dos Santos