ARÁAYÉ A JE NBO: Um Estudo sobre a Comensalidade em um Terreiro Keto
da Bahia.
Rafael Camaratta Santos1
Resumo
Este trabalho de pesquisa teve como objetivo estudar o ajeun, especificamente o rito de
comensalidade e partilha em um terreiro de Candomblé, juntamente com o conjunto das
expressões simbólicas que o envolve e compõe. A ênfase recairá sobre os significados e
sentidos que envolvem o ato de cozinhar para os orixás. Buscando contribuir nas
reflexões sobre a comida e a sua importância para a religião dos Orixás. Compartilhar
do mesmo alimento em grupo é um ato socializante, um exemplo é a comida distribuída
no intervalo das grandes festas públicas no candomblé. Desta forma, este trabalho parte
da noção de comensalidade, ato de comer junto ou partilhar o alimento, tomando como
base as práticas rituais para a elaboração da comida dos orixás, a qual terá seu repasto
dividido com os convidados e a família de santo, durante os festejos. A cozinha afrobrasileira é objeto de muitos estudos, desde a época em que Manuel Querino (18511923) escreveu a Arte Culinária na Bahia,em 1928, incluindo os livros de Sodré
Vianna, Cadernos de Xangô, Arthur Ramos, Edison Carneiro, Donald Pierson,
Deóscoredes dos Santos, Roger Bastide também falaram sobre a comida de santo sem,
contudo, tratar especificamente da comensalidade e das expressões simbólicas
relacionadas à comida de santo.
Palavras Chaves: Candomblé, Alimentação, Comensalidade.
O pioneiro nos estudos afro-brasileiros foi o médico maranhense, e professor de
medicina legal da faculdade de medicina da Bahia Nina Rodrigues (1862-1906). O
qual em 1900 publica, em Paris, L’animisme fétichiste des nègres de Bahia, reunindo
artigos publicados ao longo do ano de 1896 na Revista Brazileira. Publicação, esta, que
fez “o antropólogo francês Marcel Mauss escrever uma pequena resenha da ‘elegante
monografia’ de Rodrigues na revista L’ Année Sociologique’”. (MAGGIE, Y; FRY, P,
in: RODRIGUES, 2006). Em 1935, Artur Ramos publicou uma edição anotada dos
1
Mestrando no PPGSA/IFCS da UFRJ.
artigos da Revista Brazileira, para a qual redigiu um prefácio abordando a importância
da obra.Rodrigues, no capítulo IV – Cerimônias do Culto Fetichista: Candomblés,
Sacrifícios, Ritos Funerários – nos informa que “chamam-se candomblés as grandes
festas públicas do culto yorubano, qualquer que seja a sua causa”, e que “são chamadas
de dar de comer ao santo”, consistindo essencialmente em práticas de sacrifícios.
(RODRIGUES, 2006 p.343) Sobre o sacrifício Rodrigues apresenta uma relevante
interpretação:
Entre os negros bahianos, como entre os seus ascendentes de Guiné, o
sacrificio chegou a essa phase do seu aperfeiçoamento ou evolução em
que, instigado pelo desejo de fazer economias, o crente substitui o
todo péla parte. Isto é, destina-se ao santo o sangue ou uma parte das
visceras dos animaes, sendo o corpo servido aos donos da festa e seus
convidados. (RODRIGUES, 2006 p.343)
O sacrifício varia conforme os recursos e as exigências do ritual, podendo ser um boi,
uma cabra, um carneiro até uma galinha ou um pombo. Na citação a seguir, surge a
comida de santo advinda dos sacrifícios:
Vem por sua vez o pai ou mãi do terreiro e de cada parte do animal ou
de certas visceras separa um pequeno pedaço, destinado aos alimentos
especiaes do santo. Com estas partes de escolha, fazem-se bifes,
moquecas ou guizados, vatapás ou carurús, que são collocados em
pratos ou outros vazos junto ao altar do santo, ou próximo da arvore
onde foi feito o sacrifício. Assim em torno ou em frente do altar dos
fetiches alinham-se vazos contendo sangue, pratos de comida, tigelas
com acaçás batidos e quartinhas com agua. (RODRIGUES, 2006,
p.344)
Parece ter sido, mesmo, Manuel Querino (1851-1923) o primeiro a falar sobre a
comida de santo com propriedade e um pouco mais de profundidade. Como nessa
passagem de Costumes Africanos no Brasil em que descreve o peji: “Num dos dias da
semana varre-se o santuário, substitui-se as águas das quartinhas, renova-se as comidas
dos pratos. Cada invocação tem sua comida especial: Omolu alimenta-se de orobó e
pipocas; Xangô de caruru, e assim por diante”. (QUERINO, 1988, p.38). É interessante
a observação que Querino trás de que tais cultos:
[...] ficaram entranhados em nossos costumes, de forma que os
descendentes mais diretos da raça negra ainda conservam as práticas
desse rito, sem que, de todo, pessoas de outras classes os abominem,
antes as observam, quanto possível, clara ou veladamente.
(QUERINO, 1988, p.34)
No parágrafo seguinte, discorre acerca do ritual que denominou Inhame Novo relatando
o tributo de homenagem a Oxalá, santo principal do Gontois: “logo em seguida
sacrificam um caprino, que é cozido juntamente com o inhame, não sendo permitido o
azeite-de-dendê, que é substituído por limo-da-costa. Retirada do fogo a refeição é
distribuída pelas pessoas presentes, que depois se retiram”. (QUERINO, 1988, p.39)
Ainda na mesma página nos apresenta o que chamou de dar comida à cabeça:
Preparada a comida, a que se ajuntam acaçás, angu de inhame com
azeite-de-dendê, acarajé e efó, retira-se a comida da cabeça em
primeiro lugar, e coloca-se em um vaso especial. Em seguida, a parte
pertencente a quem a quem está dando comida à cabeça, sendo a parte
restante distribuída entre os assistentes. Das bebidas alcoólicas só o
vinho é permitido. (QUERINO, 1988, p.39)
Na edição que tive acesso, além das notas de Artur Ramos, possui notas de Raul Lody.
Dentre elas, a nota de número 56 complementa a descrição de Querino:
Bori – cerimônia que integra o período de iniciação do candomblé e
xangô, sendo também obrigação isolada para iniciados e não
iniciados. Obori ou ebori – cerimônia que alimenta a cabeça, o mesmo
que dar comida à cabeça – é a prática secreta de oferecimento de tudo
o que a boca come2 conforme dizem os adeptos do xangô. O bori
visa o fortalecimento do ori (cabeça) da pessoa que está se iniciando
no ritual dos orixás. Após o oferecimento dos muitos alimentos à
cabeça – ritual de bater o prato, todos os participantes vão comer os
quitutes à base de azeite-de-dendê, camarões, quiabos, milho, feijões,
entre outros. (QUERINO, 1988, p.94)
É importante salientar que nesta edição as notas organizadas por Lody podem levar o
leitor ao equívoco, pois reuniu as notas de Querino junto às suas, fazendo com que se
tenha dúvida sobre a autoria da nota algumas vezes. Segundo Vivaldo da Costa Lima:
“Manuel Querino é um autor que merece, senão necessita de uma avaliação crítica
sistemática, pela diversidade dos temas de que tratou em sua obra admirável” (LIMA,
2010, p.87). Lima atuou no resgate da importância de Manuel Querino, através de
conferências e palestras no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO/UFBA), ao lado
de Cid Teixeira, Thales de Azevedo e Waldir Oliveira, nas décadas de 1970 e 1990. A
Arte Culinária na Bahia escrito em 1922 e com publicação póstuma em 1928 é
indiscutivelmente o primeiro trabalho sobre o tema até então ignorado ou relegado à
categoria de exótico. Nele Querino anunciava a cozinha como alimentação
culturalmente postulada de um povo. (LIMA, 2010.)
Em A Arte Culinária na Bahia Manuel Querino afirmou que a Bahia notoriamente
possuía superioridade, excelência e primazia na arte culinária do país. Justificou isso
2
Grifo do autor
através do elemento africano. O qual alterou profundamente as iguarias portuguesas
“com a sua condimentação requintada de exóticos adubos [...], resultando dali um
produto todo nacional, saboroso, agradável ao paladar mais exigente, o que excele a
justificativa fama que procede a cozinha baiana” (QUERINO, 2006, p.21). Pois fora o
africano, segundo o autor, que introduziu o azeite de cheiro (dendê), o camarão seco, a
pimenta malagueta, o leite de coco na culinária da Bahia. Querino registra uma bebida
que no passado parece ter sido bastante famosa: “do dendezeiro era extraído um vinho
conhecido como vinho de palma ou vinho de dendê, através de uma incisão na parte
superior do tronco, que possibilitava o escoamento da seiva por um pedaço de bambu
para o interior de uma cabaça ali amarrada”. (QUERINO, 2006, p.32)
Após os trabalhos de Nina Rodrigues e Manuel Querino, houve um espaço vazio, de
mais de uma década, nos estudos “para a compreensão da importância e da participação
do elemento negro na sociedade brasileira” (OLIVEIRA, W; LIMA, V, 19-- p.23). E
por suposto, tampouco, estudos sobre comida de santo. Até que o médico alagoano,
radicado na Bahia, Artur Ramos (1903-1949) publica pela Companhia Editora
Civilização Brasileira O Negro Brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise em 1934.
Abordando, entre outros temas ligados ao candomblé, a comida de santo e o ebó. Em
obra posterior intitulada As Culturas Negras no Novo Mundo, publicada no ano de
1937, Ramos afirma que “a culinária baiana recebeu grande contingente da cozinha
nagô [...]. O complexo culinário do inhame que veio das cerimônias sagradas da costa
dos escravos é aqui notório. E do azeite de dendê” (RAMOS, 1979, p. 197). E reproduz
a relação da comida de origem nagô, o que Manuel Querino havia publicado em A Arte
Culinária da Bahia. As quais são em grande parte originárias das comidas votivas do
candomblé. Na condição de editor da Biblioteca de Ciências Humanas da editora
Civilização Brasileira publica os anais do II Congresso Afro-Brasileiro, realizado no em
Salvador no ano de 1937. Mas foi em Notas sobre a Culinária Negro-Brasileira a qual
integra o livro A Aculturação Negra no Brasil, publicado em 1942, que Ramos realizou
análise etnográfica e interpretações sociológicas sobre o assunto.
Edison Carneiro (1912-1972) em sua obra Candomblés da Bahia, aborda a comida de
santo nas seguintes passagens: na descrição do ritual em uma festa de candomblé, que
geralmente inicia-se com a matança, sacrifício de animais, galos, bode, pombos.
(CARNEIRO, 1987, p.51); na descrição de padê de Exu “Então, uma das filhas mais
velhas, dagã ou sidagã, especialmente designada para esse fim, dançando em torno da
comida sagrada, tira ora uma pouco de azeite, ora um pouco de farofa, ora um pouco de
água, e vai jogá-los fora, à entrada da casa, para que o homem da rua possa recebê-los”.
(CARNEIRO, 1987, p.51) Carneiro relata, no capítulo que denominou Como se
Desenrola uma Festa de Candomblé que oxalá come cabra, pombo, conquém, milho
branco e igbin. No capítulo O caruru de Cosme e Damião (CARNEIRO, 1987, p.68-72),
Carneiro aborda o preparo da comida aos santos gêmeos. Porém esse ritual, denominado
caruru dos meninos, transpõe o âmbito dos terreiros de candomblé e a tradição religiosa
para as casas e para a tradição popular. E, por fim, a comidas de santo também são
mencionada na descrição do panã ou quitanda de iyaô:
No chão da sala, alinham-se panelas de munguzá e de vatapá, latas de
aluá, pratos de acarajé, abará, pipocas, amendoim, acaçá, cocada,
queijadas, feijão de azeite, cestos de roletes de cana, gamelas de fubá,
caxixis, bananas, laranjas, pinhas (frutas-do-conde), pedaços de coco,
etc. Uma pequena feira livre. (CARNEIRO, 1987, p.88)
Edson Carneiro por ocasião da realização do Segundo Congresso Afro-brasileiro,
idealizado e organizado por ele no ano de 1937, conseguiu encomendar de Mãe Aninha
do Afonjá uma lista de pratos africanos praticados em seu terreiro. O exemplo do
Primeiro Congresso Afro-brasileiro que ocorrera anos antes no Recife – tendo como
figura ilustre Gilberto Freyre – e que também contou com relatos de comidas
relacionadas ao culto aos orixás provavelmente inspirou Carneiro. Segue a lista enviada
por Eugênia Ana dos Santos3 (Mãe Aninha) e que depois foi publicada como anexo
dos anais do congresso, com o título O Negro no Brasil pela editora Civilização
Brasileira:
Amalá – Caruru preparado com quiabos.
Agbê-ewê – Caruru de folhas.
Éfó – Caruru de verduras.
Alapá – Caruru de cebolinhas.
Efú – Carurú de hervas africanas.
Alapatá – Acarajé.
Acará – Acarajé simples.
Abalá – Abalá.
Olelê –
3
Fundadora do terreiro Ilê Axé Opo Afonjá. (Salvador, 1869 / Salvador, 1938)
Maimane –
Ébé xirĩ – Carurú de mostarda.
Pété ou bóbó (gbógbó) – Bôlo feito com inhame.
Bóbó (gbógbó) de cheiro – Bôlo preparado com feijão fradinho.
Angú – Preparado com arrôz, com milho, com inhame ou com fructa.
Farofa – Preparada com azeite africano.
Ôxinxin – Preparado com qualquer qualidade de carne.
Furá – Refresco preparado com frutas africanas.
Aluá (aluwá) – Refresco preparado com rapadura.
Émún – Bebida africana feita com dendê.
Dengué – Mingau preparado com milho branco.
Écó – Mingau preparado com rapadura e milho vermelho.
Abérém – Preparado com milho vermelho.
Acaçá – Preparado com milho vermelho.
Ibêguirí (iygbêguiri) – Outro carurú preparado com quiabo.
Donald Pierson (1900-1995), da Universidade de Chicago, após realizar pesquisas por
vinte e dois meses na Bahia, publica o Negroes in Brazil: A Study of Race Contact at
Bahia em 1942. Que foi publicado no Brasil após dois anos com o título Brancos e
Prêtos na Bahia: estudo de contato racial. No capítulo XI denominado O Candomblé, a
comida de santo é mencionada ao referir-se ao ciclo de festas de uma seita de origem
gêge-nagô, cujo pai de santo era dedicado a Ogum: “No último domingo era oferecida
uma feijoada a Ogum, com um complexo ritual” (PIERSON, 1971, p.307-8). Conta que
o pai de santo Procópio de Ogunjá certa vez se indispôs com um de seus filhos e por
estar irritado negou-lhe um prato de comida. Porém quando “ocupou-se” de seu orixá,
este ordenou que o pai Procópio fizesse uma grande panela de feijoada e convidasse o
filho ofendido. E assim surgiu a tradição da feijoada de Ogum naquele terreiro. Pierson
também apresenta um quadro com o nome e o alimento sagrado – além do sexo,
personificação, fetiche, insígnia, cor das vestimentas e contas, dia sagrado – de quatorze
orixás. (PIERSON, 1971, p.310-311) Além disso, menciona “dar comida” a Cosme e
Damião em meio à explicação da pesquisa que realizou com estudantes da Escola
Normal e da Faculdade de Direito. (PIERSON, 1971, p.334) A religião foi abordada por
Pierson, contudo sua análise não esteve centrada neste ponto. Explorou as relações
raciais no Brasil, percebia o Brasil especialmente Salvador como paraíso racial, visão
comum entre pesquisadores estadunidenses que vieram realizar pesquisa no Brasil
naquele momento. Antes de deixar os Estados Unidos, Pierson seguiu o conselho de seu
orientador Robert Park para passar uma temporada na conceituada universidade afroamericana Fisk – onde passou a lecionar após a aposentadoria na Universidade de
Chicago – para que ele se acostumasse a conviver entre os negros.
Deoscóredes dos Santos, ou Mestre Didi (1917-2013) – como era conhecido por toda
a gente da Bahia – publica em 1962 uma monografia com o título Axé Opô Afonjá:
Notícias Históricas de um Terreiro de Santo da Bahia. Que marca uma separação com
as produções literária até aquele momento sobre o candomblé, como afirmou Pierre
Verger no prefácio da referida obra: “mas nenhum dêles é, como Deoscóredes dos
Santos, nascido na ‘seita’, nem é como êle membro de direito, indiscutível e
indiscutido”. (DIDI, 1962, p.11)
Filho consanguíneo de Mãe Senhora, afamada iyalorixá da Bahia, e iniciado na infância
por Mãe Aninha, fundadora deste terreiro. Mestre Didi descreve o padê de Exu e as
festas do calendário litúrgico do terreiro. Relata, com a reserva ética de falar somente
sobre o que era possível de tornar público. Desta forma, com o devido cuidado,
informou sem prejudicar o caráter secreto das coisas ligadas aos “fundamentos” do
terreiro de candomblé – essa reserva tinha bastante importância para o povo de santo na
década de 1960. Assim, comunica ao leitor, os animais utilizados nos sacrifícios e os
pratos servidos nos intervalos da festa. Em 1988, publica uma segunda edição, revista e
ampliada, na qual dá continuidade a narrativa histórica do terreiro.
Roger Bastide (1898-1974) no artigo A Cozinha dos Deuses: Candomblés e
Alimentação de 1950 – incluso à edição de 2001 do, então já clássico, Candomblé da
Bahia – aborda as predileções “gastronômicas” dos orixás. Versando exclusivamente
sobre a cozinha do candomblé da Bahia, xangôs de Pernambuco e Alagoas e dos
batuques do Rio Grande do Sul. Utilizando a comparação com estudos realizados em
Cuba e Haiti a fim de interpretá-los:
Os deuses são grandes comilões. Os mitos que relatam suas vidas
estão cheios de comezainas pantagruélicas, de voracidade homéricas.
Portanto não há nada de espantoso, quando penetramos no peji dos
orixás, em ver ali a abundância de pratos, de cores ou de formas
diversas, segundo os deuses e contendo iguarias saborosas [...]. Os
deuses não são apenas comilões, mas também finos gourmets. Sabem
apreciar o que é bom e, como o comum dos mortais, não comem de
tudo (BASTIDE, 2001, p.331-32)
Vivaldo da Costa Lima (1925-2010), professor emérito de Antropologia da
Universidade Federal da Bahia, no inicio década de 1970, escreveu, o hoje clássico, A
família de santo nos candomblés jêje-nagô: um estudo das relações intra-grupais.
Resultado de sua pesquisa de mestrado em Ciências Sociais pela UFBA. Posteriormente
o publicou, em brochura datilografada no ano de 1977, e nesse formato continuou por
décadas até que a editora Corrupio conseguiu convencê-lo a lançar uma nova edição.
Nesta ocasião, Costa Lima optou por manter a obra original, evitando uma edição
revisada e ampliada, assim surgiu a segunda edição em 2003. Arlete Soares e Cida
Nóbrega tiveram grande responsabilidade na publicação dos livros de, os quais foram
lançados pouco tempo depois do professor Vivaldo da Costa Lima despedir-se.
Trabalharam juntos por dois anos para que saíssem A Comida de Santo numa Casa
Queto da Bahia (2010a), A Anatomia do Acarajé e Outros Escritos (2010b) e Lesse
Orixá – Nos pés do Santo (2010c). Um pouco antes já haviam publicado Cosme e
Damião: o culto dos Santos Gêmeos no Brasil e na África (2005). Os livros são
reuniões de artigos, aulas, seminários, palestras e conferências. Há outro fator a ser
levado em conta, Vivaldo era um dos Obás de Xangô do Ilê Axé Opo Afonjá,
empossado ainda na época que a venerável Mãe Senhora de Oxum estava à frente do
terreiro.
É merecido destaque ao recente livro, com lançamento póstumo, A Comida de Santo
Numa Casa de Queto da Bahia, resultado de uma relação de amizade de mais de trinta
anos com a Iyalorixá Olga do Alaqueto. No qual afirma que a comida sacrificial dos
candomblés fora abordada de uma maneira quase que puramente classificatória,
contendo listas de animais e comidas próprias de cada divindade, ou descrições breves
de receitas da culinária ritual. Porém, nesta obra, apresenta uma pesquisa realizada em
1965 num terreiro nagô da Bahia, o Ilê Maroialaji conhecido como Alaqueto, sendo a
autora do texto áureo Olga Francisca Régis, Oiá Funmi, Ialu Ifá, Iatobilê, Iyalorixá do
Alaqueto (REGIS, 2010). A pesquisa ocorreu no ano de 1965 no terreiro Ilê – Aleketu,
no bairro de Brotas, Salvador. O tema da comida sacrificial feita naquele terreiro é
analisado nos aspectos simbólicos, mitológicos, da tradição religiosa, da etnolinguística
e etno-história. Vivaldo da Costa Lima, através de gesto de gentileza e respeito, atribui a
autoria do texto régio do livro à memória da iyalorixá Olga Francisca Régis.
A mãe-de-santo (ou Iyalorixá) Olga do Alaketu fornece informações que outrora seriam
consideradas como limitadas às categorias iniciáticas, contudo como ela afirmou: “essas
coisas podem ser ditas e sabidas porque o que tem força mesmo é o fundamento”
(COSTA LIMA, 2010, p.8-9). Esta afirmação é complementada por Vivaldo da Costa
Lima: “Fundamento que é o conceito último do conhecimento teológico do candomblé,
associado às complexas cadências dos rituais ‘de santo’, da tradição ancestral revivida
no cotidiano dos terreiros”. (COSTA LIMA, 2010, p.9)
Crédito e legenda da Foto4
Costa Lima ao abordar ebó que de modo geral é determinado pelo jogo de búzios, o tipo
de sacrifício que deve ser feito, a comida que deve ser preparada e o animal que se deve
imolar. Divide o sacrifício em duas amplas categorias: a que constitui ou provocam
festas e a dos sacrifícios propiciatórios, nas situações de crise. Na primeira categoria, a
comida é partilhada, primeiro pelos santos e depois pela comunidade de fiéis e
visitantes presentes à festa. Na segunda categoria, o sacrifício e a comida servem para
purificar, pagar promessas ou redimir ofensas. O autor publicou, ainda, uma série de
artigos relacionados à antropologia da alimentação e à comida de Santo. (LIMA, 1999;
LIMA, 2010a; LIMA, 2010b).
4
Antônio Milena/ABr - Agência Brasil. Mãe Olga, Gilberto Gil (Ministro da Cultura na Época) e Mãe Stella no Ilê Axé
Opo Afonjá.
Os sacerdotes africanos, conhecedores dos mitos e dos ritos
de seu povo, ali restabeleciam, reconstituíam, por assim dizer,
suas igrejas - os templos, os santuários que congregavam a
comunidade de fiéis iniciados. E com o culto e tudo o mais que
envolve uma religião grandemente ritualizada - vieram os
sacrifícios e as oferendas, na forma do que Bastide viria a
chamar a cozinha dos deuses. (LIMA, 1999, p.322)
Recriaram dessa maneira, os negros urbanos, os seus espaços
simbólicos, suas religiões até então limitadas no exercício
pleno de sua ritualística - a dança, a música, os cânticos, a
iniciação conventual e os sacrifícios e oferendas. Nesse tempo
foram recriadas muitas das comidas cotidianas dos homens e
dos santos. Pois que os santos comem o que os homens
comem. (LIMA, 1999, p. 322)
Essa comida ritual dos candomblés da Bahia [...] é sempre
reproduzida, segundo estritas prescrições rituais de cada
nação-de-santo, por ocasião das festas de seus calendários e
nas festas ocasionais, motivadas pelas crises individuais ou de
grupo, que implicam, necessariamente, sacrifício e oferendas,
portanto em comida (LIMA, 1999, p. 323)
Certo, nem todas as comidas sacrificais - e elas são mais
de oitenta pratos! - se acomodaram a comida cotidiana ou
episódica do povo. Mas o processo está ai. Os santos africanos
comiam a comida dos homens. Hoje, os homens comem a
comida estilizada. (LIMA, 1999, p.329)
No artigo A Cozinha Bahiana: uma abordagem Antropológica I, autor discorre sobre a
questão conceitual do tema – a cozinha baiana e sobre a atualidade da antropologia da
alimentação ou etnoculinária. Realizando uma revisão crítica das principais fontes
escritas sobre cozinha da Bahia, de Manuel Querino a Hildegardes Vianna (LIMA,
2010, p.33). Para tanto, estabelece uma divisão entre a cozinha da Bahia e a “cozinha
baiana”.
Esse artigo foi originalmente preparado para uma das quatro aulas proferida por Costa
Lima na Fundação Casa de Jorge Amado em setembro de 19885.
Desse amplo quadro, destaquei um seguimento: a comida também
chamada ‘de azeite’ a comida festiva e episódica das comemorações e
5
Obs.: Na terceira aula, tratarei dos aspectos simbólicos da cozinha ritual dos candomblés e das
mudanças e criações que vem naturalmente ocorrendo na dieta sacrifical dos terreiros. (p.33)
do consumo promocional do turismo, mas sobretudo, a comida ritual
dos sacrifícios e oferendas do candomblé.
Vamos estudar aqui esse modo de comer, de fazer, de servir; o
processo das transformações simbólicas e das apropriações dos
sistemas de produção; a cozinha que saiu, em grande parte, da dieta
sacrificial dos orixás, dos ebós, para a mesa secular, para a rua das
cidades, para as festas, para a praia. (p.34).
Os Antropólogos consideram atualmente sacrifício para além da expressão formal do
rito. Um ato pessoal ou uma dádiva do próprio ser ou parte dele. Mas sim,
fundamentalmente é um ato simbólico (LIMA, 2010). Destaco a seguinte afirmação:
“Ao discutir os numerosos aportes que as diversas cozinhas africanas trouxeram à
‘cozinha afro-brasileira’ ressalta-se, indiscutível, o padrão iorubá-nagô, que se mantém
cristalizado mas dinâmico, e não há contradição ai”. (COSTA LIMA, 2010, p.)
Raul Lody (1952-) apresenta no livro Santo também come: estudo sócio-cultural da
alimentação cerimonial em terreiros afro-brasileiros uma relação de 150 alimentos dos
terreiros de religião de matriz afro-brasileira (LODY, 1979). Nesta obra, apresenta
brevemente as características de cada um. Contudo, não menciona o contexto em que
essas comidas são empregadas, para quais orixás, voduns, inquices ou encantados são
ofertadas. Em diversos momentos do texto indica o local de onde recolheu a informação
– Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Alagoas.
Contemporaneamente, o antropólogo Vilson Caetano Souza Jr, publicou em 2009 o
livro O Banquete Sagrado: notas sobre os “de comer” em terreiros de candomblé, no
qual aprofunda o tema, da comida de santo, de que trabalhou na sua dissertação de
mestrado. Souza Jr realiza levantamento bibliográfico partindo dos estudos de Nina
Rodrigues até os trabalhos recentemente publicados sobre a temática. E analisa o papel
das iabassês, que define como guardiã da comida, um cargo ou “posto” distribuído no
terreiro pela iyalorixá ou babalorixá e recebido por uma das ebômis, ou seja, filhas de
santos que já completaram as obrigações de sete anos. Para Souza Junior: “Por trás de
cada prato ofertado, há uma visão de mundo, um porque, que faz com que o comer
instaure um sistema de prestações e de contraprestações, como diria Mauss, que
englobam a totalidade da vida. Comida é sempre um contrapresente”. (SOUZA JUNIOR,
2009, p.201)
No terreiro, a chamada comida de orixá obedece a prescrições
complexas construídas ao longo do tempo e redefinidas a cada
momento de acordo com uma função que deva desempenhar ou à
‘realidade’ que deseje instaurar ou dialogar. Tudo isso é expresso nas
múltiplas formas, maneiras diferentes, modos de preparar, fazer ou de
‘tratar’ os ingredientes. (SOUZA JUNIOR, 2009, p.200)
Fábio Lima publicou, em 2010, uma segunda versão do seu livro Quartas de Xangô, na
qual inclui um novo capítulo sobre a comida de santo.
O processo de socialização de um filho de santo no terreiro de
candomblé se dá em maior tempo na cozinha, espaços de doces
intimidades, da visibilidade do poder e determinação das egmonis,
entre sorrisos e ensinamentos, chás, melados, unguentos, bálsamos,
bolos e requintadas das dietas dos deuses. (LIMA, 2010, p.76)
Lima refere-se à antropóloga Maria Eunice Maciel (2001) ao dizer que “a cozinha é, por
excelência, o local da passagem do estado de natureza para a cultura, na domesticação
do fogo” (LIMA, 2010, p.76). Para em seguida remeter-se ao triângulo culinário de
Lévi-Strauss (1965): “a cozinha, o simbolismo da cozinha e das maneiras à mesa é uma
linguagem, um meio de comunicação, um código complexo das estruturas inconscientes
que permitem compreender cada sociedade”. Afirma que “a cozinha do candomblé é o
local da abundância, da fartura”. (LIMA, 2010, p.77). Segundo Lima, a cozinha (Ilé
Idana) está sobe responsabilidade da iyabassé e de outras egbomi agbá – aquelas com
mais de trinta anos de iniciação, nas palavras do autor: “Nos terreiros de candomblé a
cozinha é considerada como a casa da vida, do fogo, o Ilé Idana, estando sob os
domínios de Xangô e Exu, por ser o espaço do movimento, da dinâmica e da
transformação”. (LIMA, 2010, p.77).
A festa do Olubajé
No dia 27 de outubro de 2014 foi realizada a festa do Olubajé no terreiro Ilê Axé Opo
Afonjá. A seguir, apresento trechos de entrevista realizada com ebômi6 Cida, a Otun
Dagã do terreiro, posto, ou cargo que ela própria define como: “A dagã é para organizar
tudo, de iaô ao ajeum [...] e todos os títulos tem otum e ossi, lado direito e lado
esquerdo”. Neste caso, ebômi Cida é a otun dagã do terreiro.
Então vai estar ela ali dizendo: - você botou muito azeite, muito
camarão. Porque tem também o toque, nada é exagerado, na
quantidade. E ela tem essa experiência da quantidade: - não bote mais
senão vai ficar mais vermelho. Então isso ai já é profissão da iabassê
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Filha de santo com mais de sete anos de feitura, confirmados.
mesmo. Todo mundo sabe cozinhar, na cozinha, mas imagina uma
cozinha, todo mundo mandando. (ebômi Cida, entrevista realizada em
13/06/2014)
O ato de ingerir os alimentos preparados pelas yabassés reforça a união das pessoas que
tem o mesmo objetivo e as mesmas crenças religiosas (LODY, 1999), é possível
relacionar está ideia à afirmação feita por ebômi Cida:
De dia nós entregamos pros orixás, não é isso? Faz os sacrifícios. De
tarde preparamos pros orixás, entregamos lá. E de noite
compartilhamos com ele. O do orixá tá lá o dele. E todos os irmãos,
porque todos que estão no terreiro são irmãos, não é isso? Mesmo os
visitantes, ele é de outra casa. Então, é um modo de estar
compartilhando com o orixá. Cada orixá tem suas comidas. Então
cada festa tem uma comida diferente. Só o frango que tem em todas as
festas, mas os grãos, as secas são diferentes. (ebômi Cida,entrevista
realizada em 13/06/2014)
Ainda nas palavras de Cida: “Então, cada festa é uma comida diferente. A única que
tem certo mesmo é o amalá, que se coloca por ser Xangô o dono da casa. Então, em
todas as festas a gente coloca o quiabo”. Contudo a festa do Olubajé apresenta uma
particularidade em relação a esta regra acima descrita: “menos no Olubajé. Porque o
olubajé já é servido na folha. Então o quiabo ali na folha vai melar tudo. E só serve
mesmo as comidas de Omulu, Nana, Oxumarê e Ewá”.
O olubajé, das festas todas que se realizam no terreiro, é uma das mais concorridas,
muita gente da comunidade do entorno vem participar:
É porque o olubajé já é bom, você compartilha com... tem gente que
vem que não tem nem comida. A gente, graças a deus, todo mundo
trabalha, tem. Mas aqui temos uma invasão, aqui em baixo, que o
povo sobe a fim mesmo de comer. E ainda leva sacola plástica, coloca
dentro da sacola e leva pra alimentar outros irmãos que não vieram.
Então o motivo é esse: se alimentar e alimentar o próximo, entendeu?
(ebômi Cida, entrevista realizada em 13/06/2014)
Na noite da festa eu fiquei auxiliando na montagem dos pratos, na verdade, não eram
pratos e sim folhas grandes de mamona dentro das quais estavam os diversos pratos
oferecidos aos presentes na festa. Nesta ocasião pude perceber que as filhas de santo
mais velhas, as ebômis, preocupavam-se em saber se os visitantes haviam comido.
Mesmo que ficassem elas próprias sem alguma das comidas ou viessem a comer
somente no final. Neste banquete foram partilhadas diversas comidas:
Todos os grãos ali. Porque o Olubajé é de Nanã, Omolu, Oxumare e
Ewá, esses orixás são orixás de terra. Nanã é da terra, Omolu também
– pipoca, feijão preto – ai junta todos: Nanã, Omolu, Oxumare e Ewá
e vira aquele banquete. Então quando junta-se todos aqueles pratos e
serve-se na folha, tem o sentido de todos os orixás. Tem o omolocum,
feijão fradinho refogado, de Oxum, para o olubajé não se coloca os
ovos, só mesmo os grãos. Banana da terra e batata doce de Oxumare,
tinha farofa. Feijão preto que é de Omolu. Feijão fradinho que Nanã
come, o prato de Nanã são esses cinco grãos: feijão preto, feijão
fradinho, milho branco, pipoca e o milho do axoxó. (ebômi Cida,
entrevista realizada em 01/12/2014)
Por fim, título deste trabalho – ARÁAYÉ A JE NBO – vem da música cantada na festa
do Olubajé, cuja tradução significa: Povo da terra, vamos comer! “O Olubajé chama o
povo, os vizinhos pra comer, o cheiro vai longe! Alimenta toda a terra. Tanto que
quando se acaba de comer, se coloca aquelas folhas todas num balaio e é despachado no
mato no outro dia.” (ebômi Cida,entrevista realizada em 01/12/2014)
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Um Estudo sobre a Comensalidade em um Terreiro Keto da Bahia.