DEZ ANOS SE PASSARAM DESDE A TRÁGICA NOITE QUE MUDARA AS VIDAS DE AUSTIN, HUNTER E ALEX. AGORA, CADA QUAL DEVE CUMPRIR COM SUA PARTE NA VINGANÇA CONTRA O HOMEM QUE ARRUINOU TUDO. Hunter Talbot Grant III, celebridade esportiva de reputação duvidosa e podre de rico, acredita que os escândalos que cultiva podem esconder as sombras de seu passado. Quando surge a oportunidade de arruinar financeiramente o império de Jason Treffen, ele não pensa duas vezes. Mas antes deverá se livrar da mulher enviada para controlar seus passos. A relaçõespúblicas Zoe Brook sempre consegue devolver a luz para estrelas que perderam o brilho. E Hunter não é exceção. O trabalho seria perfeito caso Zoe não fosse uma armadilha. Apesar de tomados pela febre da paixão, ela esconde um segredo: também havia se envolvido com Jason. E agora, assim como Hunter, tem sede de vingança! O segundo passo para a vingança. Hunter dispõe do dinheiro… Caitlin Crews QUERO QUE VOCÊ ME USE Tradução Leila Kommers 2014 CAPÍTULO 1 ZOE BROOK entrou determinada na boate de striptease, que ficava camuflada sob uma placa discreta em uma ruela do luxuoso bairro de Manhattan. Ela parecia um anjo vingador pronto para a guerra. Passaram-se quase sete anos, mas sua vingança estava prestes a ser realizada. Finalmente! Ignorou os seguranças inexpressivos que a deixaram entrar, bem como o sorriso forçado da hostess ao passar pela recepção. Havia pouquíssimos clientes a essa hora da manhã – eram 10h17 na última vez em que consultou o relógio. E isso tornou fácil encontrar quem ela procurava naquele lugar barulhento e quase sem luz, cheio de barras de pole dance espalhadas e um punhado de dançarinas entediadas com performances apáticas, sem um pingo de entusiasmo naquela penumbra vermelhoescura. Não que sua presa estivesse tentando se esconder. Hunter Talbot Grant III, outrora um atleta prodígio e extraordinário, hoje um incompetente profissional, se esparramava em um luxuoso camarote no canto da boate quase vazia, profundamente envolvido com mulheres seminuas. Os lábios de Zoe se contraíram ao ver a cena, que era mais repulsiva do que esperava. As mulheres davam risadinhas, uma de cada lado, rebolavam na frente dele, contorciam-se como se a mesa dele fosse um palco. E Zoe, em seu elegante e habitual vestido tubinho e casaco sob medida para enfrentar o frio do inverno, estava mais vestida do que todas elas juntas. – Bom dia, sr. Grant – ela cumprimentou, seca, observando o homem em toda a sua sórdida glória. – Parece que se esqueceu da nossa reunião de hoje às nove e meia. Não era bem uma surpresa que alguém que atualmente fosse considerado a Celebridade Mais Odiada dos Estados Unidos fosse um boçal. Na verdade, Zoe já contava com isso. Hunter Grant era a vergonha dos esportes. Rico demais e desacreditado por opção, tinha as boates de striptease como seu hábitat natural. Boçal era redundante. – E você parece estar usando muita roupa. A voz dele era um rosnado, profundamente masculina, e saía com uma arrogância aveludada e crua, combinando com seu corpo grande e impressionante, todo à vontade naquele camarote cheio de strippers. Mas seus olhares se encontraram como se estivessem sozinhos, e ele, completamente sóbrio. Houve certa hesitação no ar, um tipo de carga elétrica que fez a pele de Zoe vibrar. Ela ignorou essa sensação estranha, mantendo o olhar sobre ele como se o choque de sua intensa corporalidade não parecesse sugar todo o ar ao redor, como um aspirador. Ou como se ela não percebesse, porque não deveria. Porque não podia. – É um hábito horrível que tenho. Zoe ergueu as sobrancelhas em desafio. Hunter era um homem que jogava para viver, e gente assim buscava desafios de todo tipo, não podia evitar. O que significava que ela poderia usar isso contra ele. – Pelo jeito, não consigo evitar. – Recomendo parar imediatamente – disse ele com um brilho sombrio naqueles famosos olhos azuis, sobre os quais as princesas do pop vinham cantando nos últimos anos. Zoe baixara todas as músicas nas últimas semanas como parte de sua pesquisa exaustiva sobre a vida e as atitudes asquerosas de Hunter Grant, o quarterback de pior comportamento da história da liga nacional de futebol americano. Ela precisava saber de cada detalhe sobre ele, já que ia usá-lo como sua arma pessoal. E iria usá-lo. Hunter apenas não sabia disso ainda. – E do que você desistiu para se tornar um especialista no assunto? – perguntou ela. – Além do futebol, é claro. – Não larguei o futebol. Fui demitido. Com muito preconceito. Pode ler nos jornais. – Estou achando que talvez você não seja a melhor pessoa no mundo com quem falar sobre desistir. Hunter arqueou os lábios. – Não dou a mínima para aquilo de que você desiste ou não, benzinho. Mas gostaria mais de sua pessoa se estivesse nua. Era uma pena ele ser ainda mais atraente ao vivo, pensou Zoe. Efeito daquele cabelo loiro escuro displicente que parecia nunca se ajeitar, por mais curto que o usasse. Seu belo rosto com olhos que deveriam ser lindos e maçãs que deveriam parecer esquisitas, mas que combinavam com seu maxilar truculento, o tornava assustadoramente masculino, apesar das coisas repulsivas que ele dizia. Zoe conhecia cada centímetro daquele rosto famoso, daquele sorriso forçado, e boa parte daquele corpo muito fotografado que hoje, ou mais provavelmente na noite anterior, entrara em um jeans desbotado e uma camisa Henley que envolvia sua forma esguia. Hunter teria sido o queridinho dos jornais de qualquer maneira, devido à fortuna de sua família, sua beleza americana e suas insípidas, porém lindas, atrizes. Mas foi seu comportamento meio patife, meio bandido no campo de futebol que o manteve estampado em toda revista de papel brilhante durante a década complicada que fora sua carreira no futebol. Ele não passa de um playboy, pensou ela, sorrindo como se gostasse dele. Bonito, malicioso e convencido, como todos da raça. Zoe conhecia bem. Estava ali dez anos atrás quando Hunter mostrou quem de fato era. Não esperava que ele se recordasse disso, mas tampouco queria que ele a lembrasse. Ainda não. Não até que Hunter fizesse o que ela precisava que fosse feito e a ajudasse a acabar com Jason Treffen. – Satisfeita? A voz dele não soou amigável nem educada, e Hunter não esboçou aquele sorriso cheio de charme que Zoe vira em todas as desculpas que proferiu depois de cada um de seus muitos escândalos, quando era um astro do futebol. Ele apenas a observava com uma curiosidade que a fez perder o fôlego. – Não estou admirando você – Zoe afirmou com frieza. E não estava mesmo. É claro que não estava. – Não acha que deveria? A fala estava mais lenta do que nunca, mas ainda parecia desafiadora. Desafio lançado, porque, como era de se esperar, ele não resistiria. – Geralmente sou objeto de intensa admiração, do tipo que traz mudanças. É um dos meus muitos fardos a carregar. Zoe ficou surpresa por uma parte sua querer rir da maneira como Hunter disse isso, com um sarcasmo mordaz que sugeria que ele era muito mais autoconsciente do que ela imaginava. Mas como não sabia o que fazer com isso, em vez de explorar um pouco mais, partiu para os negócios. Mexeu na bolsa, abriu a carteira e entregou à dançarina mais próxima seu cartão de crédito, sem desviar o olhar de Hunter, até que a outra mulher o apanhasse. – Tome. Leve-as. E não deixe ninguém voltar até que eu dê permissão – Zoe ordenou, e ficou encarando a dançarina até que a mulher a obedecesse, após lançar um olhar de relance para Hunter, e tirasse o grupo de strippers dali com um aceno de cabeça. – É como se você fosse minha fada madrinha – Hunter comentou, com a voz arrastada, quando ficaram sozinhos, lembrando-a de que ele passara a última década no Texas. A fala parecia ainda mais lenta do que antes, agora que estava sozinho no camarote. E, de certa maneira, mais alta. – Porém, estou bem crescidinho. Posso pagar por minhas strippers. Zoe sentou-se em uma cadeira ao lado dele para que pudesse ficar de frente e impedi-lo de sair dali. O brilho nos olhos de Hunter indicava que ele sabia muito bem o que ela estava fazendo. E que permitiria. Ela ignorou-o. – Parabéns, sr. Grant, hoje é seu dia de sorte. – Parecia melhor cinco minutos atrás, antes de você espantar todas as mulheres seminuas daqui. – Marquei horário por intermédio de seu agente, mas parece que você prefere canais mais casuais, hoje em dia. – Se esse é um modo complicado de dizer que mandei Harvey se danar, acertou. Zoe sorriu. Harvey Speer era um temível agente esportivo, conhecido por criar barreiras intransponíveis entre seus clientes e o mundo externo. Assim, ela quase chegara às lágrimas pelo fato de ele não estar mais envolvido na vida de Hunter. Isso facilitaria as coisas para ela. – Sou Zoe Brook. Você já deveria saber disso. Sou a melhor relaçõespúblicas da cidade de Nova York, se não do mundo, e vou restaurar sua imagem... que, acho que podemos concordar, anda um tanto manchada. Hunter a fitou por um momento, e Zoe poderia jurar que detectara algo em seu olhar vazio... algo desolado e quase doloroso. Nada a ver com o homem superficial e degenerado que ela sabia que ele era. No entanto, sua boca ensaiou um sorriso, seus olhos azuis brilharam, e ela acreditou que imaginara aquilo tudo. – Nem pensar, benzinho. Zoe teve a estranha sensação de que Hunter ficara de repente perigoso, o que era um absurdo. Mas ele não desviava o olhar inquietante do dela. – Mande as strippers de volta quando sair, ok? Zoe sorriu. – Você não me entendeu. Não estou pedindo que me deixe fazer isso. Estou dizendo que farei. – É um desejo de fã? – perguntou ele, a voz ainda macia, mas com o olhar decidido. – Fantasia de perseguidor? Saia daqui. Vá para a reabilitação. Mas não espere que eu faça algo. Gosto da minha notoriedade do jeito que está. Zoe riu. – Não sou sua fã. – Tudo bem admitir. Tenho muitos fãs, mesmo hoje em dia. Alguns gostam de inventar histórias complicadas para se aproximar de mim, e eu não me importo. Não me importa quem seja. No entanto, mais uma vez, tampouco me importo com quem eu sou. – Sejamos honestos, sr. Grant. – Certamente. Toda essa bajulação está me deixando zonzo. Só pode, estou bêbado. Porém, ela não achava isso. O olhar dele estava penetrante demais, não havia garrafas na mesa, e Zoe estava tão perto dele que, se houvesse cheiro de álcool em seu hálito, teria sentido. Por que Hunter queira que ela achasse que estava bêbado quando não estava? Ela deixou o pensamento de lado e inclinouse para a frente, sorrindo. – Você tem o tipo de lançamento que faz qualquer homem chorar de alegria, mesmo que o tenha negligenciado e tratado sem o menor respeito por toda a sua carreira – disse ela, com frieza. – Seu mau comportamento é lendário, e você perdeu seu time no Super Bowl este ano. Além disso, pelo que dizem por aí, você nasceu com uma colher de prata na boca; afinal, é o herdeiro da fortuna do grande Grant. Realmente, acho que ninguém simpatizaria com você. Em nada. – Os boatos não são verdadeiros. – O sorriso dele era imperturbável. – A menos que esteja falando da colher de prata que usamos para cheirar grandes quantidades de cocaína. Daquelas que passamos adiante em nossos estranhos rituais da puberdade, de um menino mimado para outro. A primeira troca aconteceu no Mayflower, creio eu. É um imperativo genético nesse ponto. Zoe ficou surpresa por querer sorrir com aquele absurdo. Até mesmo rir. Mas isso seria com certeza uma fraqueza, e ela não permitiria nada disso. Nunca mais. Não com alguém como ele, que não se encontrava drogado nem bêbado, mas queria que ela achasse isso. Todavia, Zoe não estava ali para ser compreensiva; só para usá-lo. – Você poderia ter ido direto para um banco de investimentos quando saiu de Harvard, e brincado com seu dinheiro do banco imobiliário pelo resto da vida. Como seu pai e seu avô fizeram. Porém, optou por jogar profissionalmente, para o eterno horror de seus parentes burgueses esnobes. Todos esperavam que não se saísse bem, mas você virou um astro. Você deveria ser uma das grandes histórias de sucesso desta era, um atleta com uma mente treinada. Um exemplo para nossa época. – Zoe o encarou sem o menor esforço para esconder o desdém. – Um herói entre os homens. Embora Hunter continuasse sorrindo, Zoe estava certa de ter vislumbrado algo sombrio passar em seu rosto mais uma vez, antes de ele conseguir esconder. – Infelizmente, sou apenas eu. Embora meu potencial desperdiçado me assombre, pode ter certeza. Isso não era escuridão, disse Zoe a si mesma com seriedade. Era vazio. Hunter não era nada além de uma concha fechada, sem nada dentro. E esse era exatamente o motivo pelo qual ela o escolhera para colocar Jason Treffen em seu devido lugar. Zoe passara anos infernais sob o controle dele, e lembrava-se dos três homens naquela noite de um dezembro distante que a convenceram de que devia se salvar, ou morreria. O próprio filho de Jason, Austin, que hoje era advogado como o pai. Alex Diaz, agora repórter investigativo. E Hunter, o jogador de futebol rico e bonito, que obviamente não era o cérebro do trio. Ela decidira que enfim estava pronta para fazer o que fosse preciso, e Hunter seria o mais fácil de manipular. Isso era evidente. – Duvido muito – disse ela, a voz suave, embora seu olhar não o fosse, e ficou surpresa por ele a encarar de modo tão firme. De não ter se esquivado. – Você é um completo vazio para sua alma ignorante. Uma sombra antissocial, se eu tivesse que definir. A boa notícia é que isso o torna o candidato perfeito para uma posição corporativa de alto escalão, que deduzo seja sua próxima etapa. Ou melhor, deveria ser, e eu posso ajudá-lo a conseguir isso. Zoe achou o sorriso dele penetrante, sem mais mau humor nele, apenas por trás daqueles olhos azuis, enquanto Hunter se inclinava em sua direção como se estivessem partilhando segredos. – Vou confessar, sr. Grant… essa é uma abordagem única. Era uma antiga rotina de incentivos e punições, e Hunter não deveria estar tão consciente disso e ao mesmo tempo imperturbável. Zoe se aproximou. – É a transição da fúria no campo de futebol para o domínio corporativo que precisa ser refinado – continuou ela, ainda soando animada e tranquila, apesar de as coisas não estarem indo do jeito que imaginara. – O que você precisa aprender é como esconder melhor sua verdadeira face. – Não escondo minha verdadeira face, de modo algum – ele contrapôs. E havia algo de devastador na maneira como Hunter disse isso, que atingiu Zoe como um golpe, baixo e firme; e ela não fazia ideia do motivo. – Por que me daria a esse trabalho, afinal? Todos já conhecem. Zoe cruzou as pernas, recostando-se como se também estivesse completamente relaxada, ali naquele lugar horrendo, na companhia de um homem por quem deveria sentir aversão. Por quem sentia aversão, desde antes de começar a conversa. Zoe ignorou aquela pontada estranha dentro de si diante do olhar sombrio dele, resquícios daquela sensação esquisita. – Acho melhor tomar cuidado com homens ricos e poderosos que também são conhecidos por sua beleza, porque tendem a acreditar em suas próprias fantasias e, em geral, nem mesmo sabem que estão mentindo. E sempre mentem, principalmente quando afirmam que estão dizendo a verdade. Ele colocou a mão no peito, cobrindo o lugar onde o coração deveria estar, caso tivesse um. Zoe estava incrédula. A boca dele se ergueu no canto, zombando dos dois. – É como se você me conhecesse... – Hunter se mexeu no sofá, e ela achou que ele estava se sentindo desconfortável, embora sua expressão não sugerisse isso. Apenas aquela masculinidade feroz que era unicamente dele e uma intensidade estranha que ela não conseguia enquadrar. Um tremor a atingiu, suave e profundo, como o eco de um terremoto bem distante, mexendo com as memórias de sua infância poeirenta e ensolarada na Califórnia. – Você está me encarando – argumentou Hunter. – Tem certeza de que não é minha fã? Pergunto porque costuma ser exatamente isso que os fãs fazem. Zoe sorriu e percebeu sua língua afiada, como uma faca. Esperava que ele também percebesse. – Estou calculando o tamanho de sua devassidão sr. Grant. Há tantos milagres que posso realizar, sabe? Alguns clientes em potencial precisam de algumas semanas, ou meses, no que chamamos de spa antes mesmo de podermos ter uma conversa sensata sobre reestruturar uma imagem pública já manchada. E a sua… – Ela deixou que seu sorriso falasse por si e moveu a mão, indicando o lugar onde se encontravam. – Bem... Você está mais enferrujado do que a maioria, não é? – Gosto de pensar que não há danos estruturais. A boca dele curvou-se de novo, embora seu olhar estivesse na altura do dela, e Zoe sabia de tudo muito bem para poder acreditar nele. – Imagino que dependerá de como era a estrutura original. Ou de como era antes de todos esses anos de devassidão e decadência. Havia um lampejo de algo inquietante naqueles olhos muito azuis, ainda concentrados nos dela. – E considerando que você fosse a melhor relações-públicas que o dinheiro pode comprar, de acordo com sua estratégia de vendas, menos de cinco minutos atrás, deve ser capaz de transformar qualquer coisa enferrujada em um pilar muito limpo e resplandecente da comunidade, caso queira. Não havia falsa modéstia nela quando respondeu com um simples “Sim”. – É muito difícil de acreditar, se essa for a maneira como conversa com seus clientes em potencial. Que provavelmente não são descontraídos e joviais como eu. – Você ainda não concordou em ser meu cliente, sr. Grant. – Zoe deixou que ele visse a dureza por trás de seu sorriso e seu olhar. – Mas devo alertá-lo de que não estou falando sobre milagres. Ninguém vai confundi-lo com o Dalai Lama, por mais brilhante que seja nossa campanha. Sou uma relações-públicas de renome, não um santo de causas perdidas. – Esse seria São Judas. – Como? – São Judas. Martirizado com um machado muito tempo atrás; o que deve ter doído, ou não seria um martírio, não é? E, desde então, ele é o santo das causas perdidas. – Eu nunca o imaginaria como do tipo religioso. Mais do tipo que blasfema e profana, se sua história pessoal e lista de processos de paternidade servir como guia. – Processos de paternidade descartados – corrigiu ele, com uma nota de desaprovação. – E o fato de saber o nome de alguns santos não me torna um crente. Algo sombrio passou no semblante dele, mas quando Zoe piscou, já tinha sumido, e Hunter estava do mesmo jeito que ela achava que sempre fora. Vagamente desafiador. Zombeteiro. Arrogante e dolente, como se ela tivesse apenas imaginado que ele pudesse ser diferente, embora Zoe não tivesse a menor ideia de por que ela poderia querer isso. – Não? – Zoe indagou. Mas quanto mais ele a olhava, mais Zoe perdia o rumo da conversa, como se ela fosse comestível e ele estivesse faminto. – Isso só diz que leio muito. – Hunter deu de ombros. – Quanto mais intocáveis eu descubro, mais divertido fica derrubá-los. Um após o outro. – E por “leio muito”, deduzo que queira dizer revista Playboy? Odeio informar, mas não acho que alguém acreditaria que você se interessa pelas matérias. – Faço mais do que ler, admito. – A expressão dele se transformou em uma alegria sombria. – Quer ver? Algo acendeu-se, uma espécie de lampejo rápido de consciência, e Zoe lembrou a si mesma que não estava ali para desafiar esse homem. Tinha um motivo específico, um plano, e Hunter era a ferramenta perfeita para executálo. Não havia espaço para mais nada. Não fazia diferença que ele fosse mais inteligente e menos bêbado do que imaginara. Além disso, ela sabia muito bem o que ele era. Sabia o que tinha feito. Por que estava tão difícil manter o foco, agora que se achava tão próxima dele? – Acha que sou assim tão fácil de seduzir? – perguntou ela, tentando manter a entonação mais maliciosa do que acusadora. – É assim que funciona? Você dá uma indireta sexual, assim, meio indiferente, e elas caem aos seus pés? – Eu não tinha pensado em nada assim. – Hunter estava zombando dela, com aqueles olhos claros e irritantes. – Mas agora sim. – Você não faz meu tipo – disse ela com firmeza e suavidade. – Prefiro cérebros a músculos, para começar. – Como? Mas Zoe percebeu que ele nem mesmo parecia ofendido. Talvez estivesse se divertindo. O que fazia seu belo rosto acender; deixava aqueles olhos muito brilhantes. – Estudei em Harvard. – Como todo parente e ancestral seu, sr. Grant, desde 1600 em Massachusetts Bay Colony. É bem menos impressionante ser um herdeiro. Seria mais notável se você não tivesse estudado em Harvard. – Eu não entrei simplesmente em Harvard – salientou ele, aquele brilho no olhar que nunca se apagava. Pelo contrário, intensificava-se, como se realmente estivesse pensando nela aos seus pés. – Também me formei. Isso é difícil, mesmo para alguém com sangue azul correndo nas veias. – Sorriu, malicioso. – Cérebros e músculos. Ela deu de ombros. – Também não gosto de esportes. Principalmente futebol americano. Joguinhos de guerra sem noção e brutais com roupas idiotas e fingindo ser importante. – Ela sorriu. Com doçura. – Sem ofensa, é claro. Apenas minha opinião. – Eu me orgulho de nunca ficar ofendido com as opiniões que não pedi, vindas de estranhos – afirmou Hunter. Ele se mexeu no sofá de novo, movendo suas pernas para debaixo da mesa, deixando Zoe ciente de sua proximidade. Como pareciam íntimos assim, quase aconchegados, em um camarote privativo com esse homem. Esse homem horrendo. Zoe usou de todo seu esforço para não se distanciar dele, mas esse era o jogo. Era o que precisava para sair vitoriosa. E ela venceria. – Fui despedido dos jogos de guerra – Hunter confidenciou por um instante. – Se isso ajuda. – E também não gosto dos Filhos da Revolução dos brancos burgueses – disse ela que com pesar. – Com um sangue tão azul que praticamente sai pelos poros, ainda achando que o mundo é seu feudo pessoal. É um defeito estranho, eu sei. Isso fez com que ele sorrisse mais largo. – Com toda essa pesquisa que você fez, já deve saber que sou a ovelha negra da minha família de Filhos e Filhas Burgueses da Revolução. Eles suspiram pesado sempre que me veem, o que não é frequente. Sou terrivelmente escandaloso. – Ou talvez seja só você, sr. Grant. Não posso dizer que gosto de sua pessoa. – E mesmo assim aqui está você – disse Hunter, e algo no seu tom de voz deixava claro que ela era uma tola por subestimá-lo, embora ele ainda estivesse rindo com aquela aparência de belo e despreocupado. – Vir com essa conversa de vendedor em uma boate de striptease em uma manhã de terça... Sabe quem faz isso, srta. Brook? Seu nome na boca dele, naquela boca conhecidamente devassa, mexeu com ela, fazendo-a se sentir mais relaxada do que deveria, como se Hunter conseguisse derreter facilmente todo o gelo e aço de dentro dela. Zoe disse a si mesma que estava horrorizada com o pensamento. – Fãs e perseguidores. – Asseguro que não sou nenhum dos dois, sr. Grant. – Então por que diabos assumiria a tarefa hercúlea de tentar restaurar meu bom nome? – Ele deu risada. – Não tem como ser feito. – Tenho meus motivos. Tudo o que precisa fazer é se beneficiar com eles. – Deixe-me adivinhar... Seu coração bondoso? – Não tenho coração, sr. Grant. Tenho um plano. E você é parte integrante dele. É isso. A energia que bloqueava o ar em torno dele ficou ainda mais tensa, como um punho implacável. Então Hunter sorriu, acionando algo sedoso e ameaçador que descia pela espinha de Zoe. Ela percebeu que não conseguia compreendê-lo. Sua pesquisa não a preparara para isso, fosse lá o que isso fosse. Nem para ele. – Desculpe desapontá-la – disse ele num sussurro aveludado, da maneira como outro homem falaria de sexo e desejo, que atingiu Zoe como um toque –, mas estou comprometido com minha espiral descendente, e isso não deixa espaço para mais nada. Certamente não para uma mulher misteriosa e seu “plano”. Hunter se levantou de uma maneira sinuosa que a fez lembrar que ele se sustentara a maior parte de sua vida com aquele corpo talhado em aço. Zoe não sabia por que isso deixava sua garganta seca, mas deixava. Era quase um tormento. O que estava acontecendo com ela? – Sinta-se à vontade para ficar e aproveitar o show. – Hunter arqueou a sobrancelha, com um sorriso afetado. – As dançarinas daqui são talentosas. Não se esqueça da gorjeta. Ele começou a passar por ela em direção à porta, dispensando-a com facilidade. – Espere. – Zoe levantou-se e tentou pegá-lo, mas ele a viu e virou-se, levando uma de suas notáveis mãos, consideradas milagrosas, ou algo assim, como diziam, para agarrar a dela no ar. Como se tivessem coreografado. E uma sensação a assolou, um calor selvagem, transformando-a em uma pedra, ali mesmo onde estava. Virando seu corpo contra ela própria. Zoe sentiu o peso daquele simples toque. Isso a aturdiu, e, antes que pudesse pensar melhor, antes que pudesse sequer pensar, ela levou o olhar de suas mãos para o rosto dele… E tudo ardeu. Brilhante. Quente. Doloroso. Impossível. O olhar de Hunter se estreitou. Ficou sombrio. Faminto. Zoe precisou de todo o orgulho duramente adquirido, de toda a determinação para não puxar sua mão da dele, muito maior que a sua, para recuperá-la, para acabar com essa coisa louca que a aqueceu nos piores lugares possíveis, do orifício em sua barriga até os locais mais secretos abaixo. Por trás dos joelhos. Na curva da nuca. Os cumes dos seios de repente rijos e doloridos, felizmente escondidos por trás da lã espessa de seu vestido. Mas ela não se deixava enganar. Ele sabia disso. E Zoe odiava reagir assim a um homem como Hunter Grant. Que seu corpo não se importasse com o que sabia sobre ele. Que não tivesse aprendido nada nesses longos e difíceis anos. Que simplesmente queimasse por dentro. – Prefiro não ser tratada com grosseria, obrigada – disse Zoe, a voz equilibrada e precisa, fria como os ventos invernais nos cânions da cidade, e ele nunca saberia o que isso significava para ela. – Ainda mais por homens estranhos famosos por seus longos anos de promiscuidade compulsiva e comportamento geralmente rude. Hunter deixou a mão pender, mas aquela nova luz permanecia em seus olhos, intensa e incerta, concentrada nela, como se ele enxergasse todas as coisas que Zoe escondia; seus segredos e suas cicatrizes. Como se ele soubesse que ela usava uma máscara. Como se ele pudesse enxergá-la de fato, quando ninguém mais conseguia. Isso mexeu muito com Zoe, mas ela lutou para não revelar em seu semblante. Em seus olhos. Em seu corpo rijo, que desejava as coisas que nunca desejara antes, que ela não sabia como desejar. – Sou famoso por outras coisas também – salientou ele, quase gentil. E Zoe já lera sobre isso, é claro. Seu suposto talento sexual. E ela odiava o fato de que Hunter pudesse imaginar isso de forma tão vívida. Insistente. Como se ela fosse como as outras mulheres e pudesse se sentir atraída… Chega! Zoe emitiu um som que era muito ridículo para ser uma risada. – Homens ricos e entediados são muito previsíveis, sr. Grant. Posso garantir que já vi todo tipo de transformação da perversidade humana e aquilo que deve ser o último “calabouço” na ilha de Manhattan. Chicotes, correntes, bancos de palmadas, é tudo tão cansativo... – Ela deu um sorriso largo e falso. – E, embora esteja certa de que suas excentricidades particulares são fascinantes, vou ficar só com sua palavra. Ele riu de forma brusca. E ela não entendia por que imaginou ter ouvido algo que mostrava um Hunter Grant melhor e mais profundo do que a lenda entediante e de mau gosto, do que o profissional imbecil. Algo que sugeria que ele era mais do que o que Zoe conhecera, quando sabia que não era. Hunter era a chave para sua vingança. Só isso. E nada mais tinha importância. Ela não permitiria. – Só existe uma maneira de você aprender sobre minhas excentricidades – Hunter falou, a entonação ficando mais macia, mais sombria, conectando-se diretamente com aquela coisa ainda brilhante demais e perigosa demais dentro dela, deixando-a dolorosamente consciente de que era sua própria fome. Uma fome impossível e alarmante pelas coisas que se recusava a desejar. Que não queria. Hunter esperou até que Zoe tornasse a olhá-lo. – Mas vai precisar pedir com delicadeza. Zoe garantiu a si mesma que não sentia nada. Nenhuma chama. Nenhuma necessidade. Nada, maldição. Não por um homem desses. – Não há a menor chance de isso acontecer – Zoe afirmou com toda a frieza que conseguiu reunir. Ele sacudiu a cabeça, embora seus olhos azuis brilhassem, e era como uma chuva de fagulhas dentro dela, que a deixaria assustada caso ficasse pensando nisso. – Se você diz, srta. Brook... – Mas ele sorriu, confiante e seguro, apesar da escuridão que ela causava nele. Ou, talvez, devido à escuridão. – De repente fiquei muito mais interessado nos seus… serviços. Estava na hora de lembrar quem ela era, quem se tornara. O que tinha passado. Zoe arqueou uma sobrancelha. – Não faço pedidos com gentileza, sr. Grant. Na verdade, não costumo sequer pedir. E, para ser honesta, prefiro que me implorem. – Ela sorriu, como ele. – Pode começar ficando de joelhos. Desta vez, ele gargalhou, e ainda continuava parecendo faminto, ao encará-la bem de perto, como um lobo raivoso. Zoe não se lembrava da última vez em que se sentira assim. Atrevida, fora de equilíbrio. Sem o menor controle. Quando compreendeu isso, jurou para si mesma que preferiria morrer a deixar que acontecesse de novo. Nunca mais. – Não preciso de uma relaçõespúblicas – Hunter afirmou, com suavidade, como se fosse uma carícia. – Caso seja isso o que esteja realmente oferecendo. Ela não sabia por que não conseguia respirar direito, por que os olhos dele estavam tão brilhantes, por que a maneira como Hunter a olhava a fazia se sentir como se tivesse sido virada do avesso. Exposta e vulnerável. Como era possível? – É. – Que pena... Hunter era tão grande e lindo, e ela nunca tivera essa consciência a respeito de outro homem como tinha dele, de todo ele, sobretudo da maneira ardente como Hunter a fitava. – Porque se quisesse ver por si mesma o motivo desse estardalhaço todo com relação às minhas extravagâncias pessoais e previsíveis de homem rico… Isso eu provavelmente poderia fazer. Não era a primeira vez que um homem lhe propunha esse tipo de coisa. Mas era a primeira vez que Zoe sentia o corpo arder com a proposta, e ela ficou apavorada com a possibilidade de ele saber disso, também. Que Hunter sentisse o mesmo calor. Ela não poderia deixar isso acontecer; era impossível, portanto, descartou. – Esse é o código das cavernas para “durma comigo para que eu possa colocá-la no seu devido lugar”? – perguntou Zoe, fria e desafiadora, de volta ao seu terreno conhecido, porque conhecia essa rotina. Ela conseguia lidar com isso, pois Jason Treffen a ensinara muito bem. Uma lição dolorosa de cada vez. – Porque você deve saber, antes de tentar me arrastar pelo cabelo para algum lugar, que não vai terminar do jeito que você quer. Isso eu garanto. Hunter parecia intrigado, e sua cabeça pendeu ligeiramente para o lado. Mas o olhar devorador dele não oscilava – continuava brilhante, ardente e consciente. Atingindo-a fundo, penetrando-lhe os ossos, como uma dor. Era essa última parte que a fazia imaginar exatamente o quanto de controle ela estava usando. – Não quero arrastá-la pelo cabelo para algum lugar e me divertir com você, srta. Brook. O sorriso nos lábios dela se transformou em escárnio, mas Zoe estava mais preocupada com o bater lento e pesado de seu coração, e com o calor em seu ventre. – Porque você não é do tipo? Havia algo além da predação nos olhos dele, agora duros e ardentes. Um saber sombrio na curva de sua boca que se relacionava com o rufar dentro dela, disparando sua pulsação, sua respiração, tornado realidade seu pior medo. – Sou exatamente esse tipo de cara. Mas já disse: vai precisar pedir com delicadeza. – Ele sorriu como se estivesse no controle. E ela não podia permitir isso. – Não. – Zoe se zangou, porque a negativa saiu como um sussurro, fraco e incerto. O sorriso dele se alargou, como uma promessa. – É você quem está perdendo – murmurou ele, e o fogo dentro dela aumentou, quase em combustão. E Hunter tornou a rir, dispensando-a com facilidade, e virou-se para ir embora. De novo. Para sempre desta vez, Zoe percebeu, e não podia deixar isso acontecer. Zoe não tinha escolha. – Eu não faria isso sr. Grant. Ela não sabia por que a secura em sua boca parecia se traduzir em algo como tremor por todo resto. Afinal, tinha consciência, antes mesmo de abordá-lo, que provavelmente chegaria a esse ponto. Esperou que Hunter se voltasse e a olhasse, e fingiu que o brilho em seus olhos não a afetava, como todo aquele desgaste, como se ele pudesse ver através dela, quando sabia – e ela sabia – que Hunter não era capaz. Ninguém era. Zoe forçou um sorriso. – Eu sei o que houve com Sarah. CAPÍTULO 2 SARAH. Esse nome pareceu ecoar por todo o clube, abafando a música, eliminando todo o resto da sua mente. Atravessou o corpo de Hunter, como um relâmpago, só que mais sombrio. Muito pior. Muito mais danoso. Ele deveria ter percebido. Se não estivesse tão desconcertado com a aparência de Zoe Brook, como um choque de cafeína, vestida com cores escuras que salientavam o poder de seus olhos azul-acinzentados e dos lábios pintados de vermelho-escuro, ele teria previsto isso. Zoe usava roupas muito caras para iniciantes, o que significava que ela não deixava o corpo à mostra. Não se jogou para cima dele em vez de cumprimentar. Não havia nenhum motivo para se aproximar dele, muito menos fazer desaparecer um clube inteiro cheio de mulheres de beleza convencional e acessíveis. E, mesmo assim, ela era a única coisa que Hunter conseguia ver, desde o momento em que seus olhares se cruzaram. Mas mulheres como Zoe não se aproximavam dele hoje em dia, menos ainda em lugares como esse. Não o procuravam. Achavam que sabiam tudo o que precisavam saber sobre Hunter, e ele, por sua vez, fazia o possível para confirmar as ideias vulgares a seu respeito. Elas o condenavam a uma distância segura, com sua superioridade moral, e Hunter gostava assim. Não queria estar perto de alguém a quem pudesse arruinar; não faria isso de novo. Ele deveria ter percebido. Sarah ainda era seu maior problema, mesmo após todos aqueles anos. Para sempre. Merecidamente, e ele estivera se enganando, achando que poderia evitar tudo isso, agora que estava de volta a Nova York. Imaginando que poderia ignorar essa terrível verdade. Pondo fim às tentativas dos seus velhos amigos de finalmente fazer algo a respeito do que aconteceu com ela, com o atraso de uma década. – Como? – A voz não soava nada como a dele. O sorriso de Zoe afetou-o de uma maneira prejudicial. De uma maneira insensata. – Você me ouviu. – Sim. Mas acho que não sei o que quer dizer com isso. O sorriso dela se alargou, e Hunter se sentiu desestabilizado. Furioso e carente em vez de seu estado predileto de torpor. Meio perdido, e era a duração disso que ele achava imperdoável. Aceitou o fato de que era o pior tipo de homem dez anos atrás. Provou isso todos os dias desde então, não é mesmo? Por que isso não podia terminar? Nunca terminava. – Ah, acho que sabe, sim – Zoe falava quase animada. – Mas pode fingir o contrário, se quiser. Não ficarei com uma imagem ruim de você. Duvido que seja impossível. De qualquer maneira, ficarei a sua espera no meu escritório amanhã de manhã às 10h. – Suas expectativas vão terminar em frustração, srta. Brook. – Espero que não. As sobrancelhas impecáveis de Zoe se ergueram. Hunter não conseguia entender qual o problema consigo mesmo; ela podia ameaçá-lo e ele a desejava de qualquer jeito. – Sou muito boa em conseguir o que quero, sr. Grant. Você não vai querer me testar. – Está me chantageando, srta. Brook? Os olhos acinzentados dela tinham um cintilar de triunfo, o que a fez parecer bela na penumbra do clube. Mas Hunter tinha feito das mulheres bonitas sua ocupação, e Zoe Brook não satisfazia os requisitos. Era muito ácida, muito mordaz. Seus lábios carnudos eram intensos demais para um sorriso forçado, seu olhar azul-acinzentado, direto demais, inteligente demais. O cabelo era grosso e negro; sua figura, atraente e elegante sob as roupas que sussurravam seu sucesso com linhas elegantes, mas não podia dizer que era bonita. Ele gostava de suavidade e doçura. Sussurros ardentes, olhares derretidos. Ela era tão… tão demais. E isso sem saber que, quando a tocasse, ele pegaria fogo. – Isso sugeriria que deve haver algo sobre sua ex-namorada que poderia ser usado para chantageá-lo – disse ela depois de um momento de consideração. Sua boca se contraiu. – Está dizendo que há? – Não tenho ideia. Não sei do que você está falando. – Hunter sorriu. – Mas todos conhecem o incompetente profissional que eu sou. – Não acho que seja incompetente – ela contrapôs, e não na forma de um cumprimento. – Mas o resto todo, sim. – Talvez esteja certa. É preciso certo grau de inteligência para continuar comprometido com minha própria destruição. – Manteve o olhar no dela. – De todo modo, ainda não sei do que você está falando. Houve uma pequena pausa, e o mundo externo se fez ouvir. O pulsar insistente da música alta da boate. O som distante de uma risada. Seu próprio coração batendo forte. – Você é bem autoconsciente para um troglodita, devo admitir – disse ela como se estivesse acenando uma bandeira branca. – Fui um troglodita profissionalmente, nunca socialmente. É uma distinção crucial. – Está me dizendo que é desse jeito por vontade própria? – Não somos todos? – perguntou ele, com mais aspereza do que queria. Hunter percebeu que revelara demais, quando ela inclinou a cabeça para o lado e fitou-o com uma franqueza desconfortável. Ele precisava se afastar dessa mulher. Precisa acabar com essa conversa. Não sabia por que não conseguia fazer isso. Por que estava ali parado diante dela como se esperasse pelo julgamento, sabendo que ela já o tinha feito? Antes mesmo de chegar, sem dúvida, ou não teria procurado por ele dessa maneira. Mas isso não deveria importar. – Eu tomaria muito cuidado com esse joguinho, se fosse você – Hunter murmurou. Mostrando mais do que deveria, mais uma vez. – Você pode não gostar de onde isso vai acabar. – Não se preocupe. – Havia certa severidade no semblante de Zoe que parecia ódio, o que não deveria surpreendê-lo. Não mais. Isso deveria tê-lo feito se sentir vazio, como se ela mesma o tivesse escavado com uma colher dentada enquanto estavam ali, parados, próximos o bastante para se tocar. – Não vou ficar magoada porque está sendo mesquinho comigo, sr. Grant. Eu não sou ela. Aquelas palavras atingiram-no em cheio. Infalíveis e letais. Zoe Brook sorriu de novo, um sorriso ainda mais largo. – Dez horas – ela tornou a dizer. Hunter ficou ali parado, sem ação, como Zoe decerto pretendia, com sua fala arrastada e aquele brilho gélido nos olhos que lembravam o mar da costa do Maine, onde sua família tinha uma casa de campo enorme, onde ele vira essa tonalidade cinza perigosa no Natal. E nele crescia aquela crueza à medida que ela o olhava e não via nada além das coisas sombrias e terríveis que tinha feito. Hunter preferia quando se sentia vazio. Ao menos sabia quem era. Zoe estendeu um cartão de visitas para ele. – Não se atrase. E, quando ela saiu, ele não se mexeu, como se Zoe o tivesse colado no lugar. Como se ele tivesse sido reduzido a cacos. Sombras e mentiras onde seus ossos deveriam estar. Ruínas do homem que ele nunca fora. ES S A FOI a vida que você criou, Hunter disse a si mesmo, quando por fim saiu da boate para a manhã fria de fevereiro, o inverno rigoroso batendo em seu rosto. Fez sinal para um táxi na avenida gelada e ficou olhando pela janela enquanto Manhattan ia ficando para trás, a caminho de sua cobertura minimalista e sem vida que se erguia acima de Wall Street: a cripta perfeita para os mortosvivos, pensou, quando a comprou alguns meses antes. Afinal, fora ele quem dera um soco na cara do juiz, em dezembro, no meio de uma decisão acirrada e calorosa. Hunter sabia o que estava fazendo e o que provavelmente aconteceria. Porém, não ligava mais para ficar se contendo. Sua carreira toda tinha sido um exercício de ultrapassar os limites. Foi colocado no banco de reserva, multado, repreendido. Disse a um repórter, certa vez, que queria saber o que era preciso para ser completamente expulso da liga de futebol; foi quando conseguiu provar, enfim, que não estava de brincadeira. – Observem – disse a dois de seus três colegas de quarto da faculdade, com sua arrogância prepotente típica durante o deprimente jantar anual, antes de sua insônia ficar ainda mais perturbadora com uma carta anônima e um punhado de acusações desagradáveis em que não queria pensar. Exibiu os nós de seus dedos arranhados com grade orgulho, sem enganar nenhum dos homens que o conheciam muito bem, mas era assim que eles jogavam durante esses anos todos. Sorrisos largos. Grandes histórias. Um imenso abismo entre eles. Ou talvez fosse ele. – Sou bem-sucedido em tudo o que eu faço – disse Hunter, sorrindo para Austin Treffen e Alex Diaz como se eles tivessem todos dezoito anos e uma plena explosão de esperanças, sonhos e grandes ideias sobre como seriam suas vidas. Em vez do que eles eram de fato, o que se deixaram tornar nesses anos de silêncio. Comprado e pago. Cúmplices. – Como sempre. Mas Hunter não queria pensar em Sarah Michaels, muito menos agora que Zoe Brook atirara isso em seu rosto. Ele evitava esse assunto desde a noite em que Sarah morreu, mas o destino e aquela maldita carta de Austin jogada na mesa naquela noite de dezembro interferiram. Dez anos atrás, Hunter suspeitava que Sarah o tivesse traído depois de três anos intensos de namoro, desde a faculdade até o primeiro ano deles na cidade de Nova York. Foi por isso, pensava Hunter, que ela terminara com ele na época. Hunter achava que a culpa sobre seu comportamento fizera com que Sarah tirasse a própria vida naquela noite terrível, e ele nunca se perdoou por seu papel na decisão dela. Que ele agira mal com ela ficou bem claro depois que Sarah morreu, e isso já era bem ruim. No entanto, a carta que Austin recebeu sugerira que era pior do que isso, muito pior, e Hunter não via como conseguiria viver com o que sabia agora. Consigo mesmo, por não ter sabido disso na época. Era um insensível, um desalmado, cego e egoísta ao extremo. Desperdiçara sua vida como se estivesse em uma missão para fazer isso desde o início. Desapontou a família, os amigos, os dois times de futebol em que jogou durante sua carreira, todos os seus fãs. Ele desperdiçou todo o talento que tinha. Deixou que a única garota que amara fosse embora, direto para os braços de um monstro, e não percebeu nada, a não ser a própria dor e o ciúme. E sabia que esse não era o menor de seus pecados. Porque ainda se lembrava de cada momento daquela noite, dez anos atrás, na festa de Natal do escritório de advocacia do pai de Austin. Como Sarah chegara até ele com toda aquela dor sombria no rosto e como ele gostara. – Posso falar com você? – perguntara ela. – Por favor... Talvez depois, dissera ele, fazendo de conta que não se importava, que mal prestava atenção. É uma grande noite. Já estava na hora de Sarah se sentir um pouco como ele se sentia, Hunter decidiu então. Estava gostando da aparência perdida, assustada e hesitante dela, todas as coisas que Sarah Michaels nunca fora. Hunter acreditava que ela enfim reconhecera o imenso erro que cometera ao terminar com ele. Achava tão irônico que tivesse sido totalmente fiel a Sarah, mesmo sendo um atleta profissional; e fora ela quem o traíra, e com o pai de Austin, ninguém menos que ele. Estivera tão certo de que era a vítima, tão cheio de razão de que Sarah cometera tal atrocidade... E, em consideração ao que ela fora na faculdade, ele disse a si mesmo hipocritamente, optou por manter em segredo. Porque era um cara muito legal. E porque ele era todas essas coisas mesquinhas, porque achara que aquele olhar disperso no rosto dela – tudo relacionado a ele, óbvio – não bastava, tinha de fazer mais. Assim, Hunter tomou a mão da jovem com quem estava circulando e pediu-lhe que se casasse com ele; bem ali, no meio da festa de Natal com toda aquela elegância e dinheiro herdado que Treffen, Smith e Howell reivindicavam para si. Hunter observara Sarah ir embora enquanto o champanhe era servido, parecendo insignificante e vencida. E todos esses anos depois, ele ainda se sentia envergonhado da enorme satisfação que experimentara na época. Não tinha ideia de que seria a última vez que a veria. Que passaria o resto de sua vida imaginando que se soubesse que nunca mais colocaria os olhos em Sarah viva poderia ter feito algo diferente. Uma sombra antissocial, teria dito Zoe Brook. Ela não fazia ideia de como estava certa. Então, mais uma vez, se soubesse sobre Sarah, talvez tivesse. ZOE SÓ conseguiu voltar a respirar direito ao entrar em seu apartamento, tarde daquela noite, fechando-se para o mundo. Tirou as botas no hall de entrada e andou de pés descalços pelo apartamento, que se estendia ao longo de todo o terceiro andar de uma casa de arenito vermelho anterior à guerra, no Upper West Side. Respirava fundo enquanto se movia pela sala com seu turbilhão de cores vibrantes, deixando sua máscara de durona cair. Em casa, era outra pessoa. Ali, era a Zoe que deveria ser. A Zoe que não fora arruinada. Seguiu para o banheiro, tirando as roupas de trabalho pelo caminho, em direção à bela banheira de pés disposta no piso preto e branco que parecia um tabuleiro de xadrez. Abriu a torneira e colocou um sachê de seus sais de banho favoritos, deixando o aroma de lavanda trabalhar. Havia mais de Jason Treffen em sua mente do que o habitual nessa noite, e isso a deixou tensa. Sua interação com Hunter Grant pela manhã não ajudou. O problema era que ela teve vontade de tocá-lo de novo, ali parado no meio de uma boate de striptease, em todos os lugares. Queria tocá-lo, e isso não fazia sentido. Não para ela. Sua pele coçava. Nova. Como se não lhe pertencesse mais. E essa noção estranha levou-a de volta ao passado. Seus avós a tinham criado com rancor, depois de seus pais a terem abandonado, lembrando-a diariamente de que não estavam fazendo mais do que sua obrigação cristã. E foi isso mesmo que fizeram. Zoe cresceu no deserto do sul da Califórnia, mundos inteiros e uma longa estrada de distância da glamorosa Los Angeles. Era geladíssimo no inverno, brutalmente quente no verão, e havia sempre aquele vento inquietante do deserto, vindo das desoladas montanhas marrons, deixando todos tensos. Zoe tentara ao máximo amar seus avós e sua pitada de caridade que eles nunca a deixaram esquecer até que completasse dezoito anos. Tentou mesmo. A escola não foi fácil para ela, mas Zoe se candidatou a uma bolsa de estudos e a conseguiu, porque não tinha escolha, se quisesse mesmo fugir. Quando conheceu Jason Treffen em uma atividade da bolsa de estudos, no seu último ano na Cornell, ele era charmoso e gentil. Jason compreendia. E, por isso, quando lhe ofereceu ajuda, ela aceitou. Ainda não era capaz de se perdoar por isso. Jason saldara seus empréstimos estudantis porque disse que conhecia uma promessa quando via uma. Contratara Zoe como sua assistente jurídica em sua elegante firma de direito na cidade de Nova York, e ela ficou muito grata. Pela primeira vez na vida, sentia-se cuidada. Até mesmo mimada. Como se fosse digna de amor, depois de tudo, apesar dos avós. Foi só na segunda vez em que Jason a convidou para jantar com um amigo dele – porque o velho parceiro estava sozinho e Zoe era uma linda garota que poderia ser prestativa, não poderia? – que ela sentiu aquele aperto no estômago. E foi somente depois de mais um ou dois “favores”, que terminaram com negociações cada vez mais intensas de sexo, que Jason sugeriu que ela deveria ter aceitado, e Zoe enfim entendeu. Que ela finalmente viu o lobo em pele de cordeiro. Mas, nesse momento, claro, ela já estava presa na armadilha. Jason era bom no que fazia. E ainda melhor ao punir as garotas que não cooperavam. Era rico, poderoso e bem relacionado, e, como ele dizia sempre, ninguém acreditaria nela, de qualquer maneira. Foram necessários três longos e terríveis anos para Zoe comprar sua liberdade. Ela viu outras garotas se entregando. Às drogas, ao desespero. Zoe quase desmoronou. Era difícil demais, e ela estava sozinha – achava mesmo que poderia vencer um homem tão poderoso quanto Jason em seu próprio jogo? –, mas, então, sua amiga Sarah cometeu suicídio. E isso mudou tudo. Zoe compreendeu que tinha de escapar, ou tudo isso – a morte de Sarah, o que ela sofreu durante aqueles anos todos, o que acontecera com as outras garotas – teria sido em vão. Precisava escapar, ou Jason venceria. Zoe torceu seu longo cabelo negro em um coque bagunçado no topo da cabeça e testou a água na banheira, deixando que escorresse por entre seus dedos. E tudo voltou à memória. Inundou-a, exigindo sua rendição, como sempre foi. Insistindo que se lembrasse de tudo. – Você realmente acredita que pode fugir de mim? – Jason riu dela no último dia em seu escritório, lá no alto, quando Zoe jogou o cheque arduamente ganho na frente dele e disse que para ela bastava. Estava indo embora. Enfim, era livre. – Tirei você da obscuridade, Zoe. Você não possui nada que não tenha sido dado por mim e nunca terá. Lembre-se disso. – Você me tornou uma prostituta – ela afirmou, o ódio, o terror e o desgosto deixando sua voz rouca. Óbvio demais. – Prostitutas geralmente fecham o negócio. – Ele parecia tão satisfeito consigo mesmo... Tão presunçoso... Nem um pouco preocupado de que ela estava escapando de suas mãos. – Esse é o problema com as prostitutas. O que se faz é brincar com o perigo. Você tem sorte de existirem tantos homens que gostam de pagar pelo privilégio desse tipo de provocação. Mas por uma ou duas noites ela saíra do sério, não é mesmo? Quando eles simplesmente conseguiam o que queriam. E pela maneira como Jason olhara para ela, Zoe soube que ele sabia. – Sim – ela falou por entre os dentes. – Sortuda é como me sinto. Estou tomada pela gratidão. – Ficará – ele garantiu. Anos se passaram, e Zoe ainda não conseguia tirar a risada dele dos ouvidos, apagar aquele sorriso malicioso da memória. – Oi, Zoe. Ele a surpreendera nos bastidores, na sala verde de um dos shows noturnos que eram gravados localmente naquela época, onde ela orientava um cliente como parte de seu primeiro emprego como relações-públicas. Zoe o encarou, na esperança de que desaparecesse, como às vezes acontecia nos pesadelos, que ela se recusava a admitir que vinha tendo desde que escapara da Treffen, Smith e Howell. Mas ele, é claro, apenas sorrira para ela. – Você não morreria por ser um pouco educada – Jason comentou, gentil, mas ela podia ver o monstro naqueles olhos. – Na verdade, eu poderia morrer, sim. O sorriso dele se alargara, ficando mais amigável. Jason Treffen na sua característica mais perigosa. – Aproveite esse seu espírito insolente – disse ele, como se estivesse conferindo um dom a ela. – Não vai durar. Alguns de seus colegas tinham entrado na sala e ficaram surpresos com a presença de Jason Treffen, o santo de Nova York, ali parado com uma nova e modesta associada como Zoe. Ela foi obrigada a sorrir com educação enquanto Jason tirava fotos com eles. Quando ele deslizou o braço sobre os ombros dela. Enquanto Jason conversava com todos, distribuindo seus inúmeros chavões e ideias, que adquiririam um tom de pesadelo caso soubessem o que se encontrava por trás delas. Jason planejara aquele encontro, Zoe sabia disso. Para lembrá-la de que, sempre que quisesse, poderia alcançá-la e fazê-la se sentir nojenta e barata. Usada. Zoe já prometera que acabaria com ele algum dia. Depois desse confronto, ela determinou que queria que doesse. E seu desejo de vingança a fazia arder por dentro, uma chama nua, quente e brilhante. O eclipse de todo o resto. – Você só existe porque eu permito – dissera ele em um evento de caridade, cinco anos antes, agarrando seu cotovelo e fazendo-a sentir como se milhares de insetos percorressem sua pele. – Tudo o que você possui, tudo o que conquistou, é meu. Eu dei a você, e posso tirar tudo. Ela já não era mais tão jovem. E não se importava muito por estar morta por dentro. – Não consigo imaginar por que você se incomodaria. – E ela ficara tão orgulhosa que conseguira permanecer ali parada como se fosse uma pedra, como se não se importasse de ele a estar tocando. – Por que faço algo? – Mais uma vez, aquela risada sórdida. Ele afundou os dedos na parte macia acima do cotovelo, deixando o braço de Zoe dormente. Ela lembrou-se de que Jason gostava de impor dor, de observar os outros sofrerem. Mas Zoe apenas encarou-o de volta, fria e sem expressão, sem desejar dar-lhe a satisfação de reagir. – Porque eu posso, Zoe. Posso fazer o que eu quiser. Lembre-se disso. A última vez que o vira fora meses atrás. Ela estava em um restaurante refinado, celebrando o aniversário de um dos seus antigos clientes, que também era um político poderoso em Nova York. Esperava ver Jason ali, manipulando as pessoas como sempre, e não se desapontou. Preparou-se para o inevitável encontro, mas ele não a abordou. Estivera divertindo-se em uma multidão de admiradores até que uma mulher surgiu ao lado dele e sussurrou algo em seu ouvido. Zoe viu a maneira como Jason deixou sua mão descansar por um longo momento no ombro da jovem. Vira como se voltou para olhá-la dos pés à cabeça, o brilho do sorriso repulsivo dele, que fazia seu estômago embrulhar do outro lado da sala. Vira os dois seguirem para a porta, a mulher saindo à frente dele; assim, não pôde mais ver o rosto dela. Aquele rosto inexpressivo, a não ser pelos olhos escuros que mostravam um sofrimento repugnante e gritante. Zoe conhecia aquilo. E muito bem. Era como um soco no estômago, tão forte que não deixava respirar, e ela precisava continuar ali, observando. Sentiu, então, algo diferente, aquela sensação doentia, arrepiante, que lhe dizia que ele a vira. Certamente, quando ela desviou seu olhar da jovem mulher que saíra apressada da festa para a calada da noite, Jason a analisava. Ele manteve o olhar no dela por entre a multidão. Tão arrogante. Tão superior. Zoe apertou os dedos tão forte ao redor da haste do cálice de vinho que ficaram marcas fundas na pele. Achou que fosse vomitar ali mesmo. Jason Treffen mal abrira um sorriso. Satisfeito, como sempre. Ganhando, como de costume. Zoe respirou fundo, voltando para o próprio banheiro. Você está segura, disse a si mesma, várias vezes, até que sua frequência cardíaca suavizasse. Entrou na água quente e mergulhou naquele abraço sedoso, ficando submersa até o queixo. Finalmente, chegara a hora. O país todo se preparava para celebrar Jason Treffen e seus muitos anos de “serviço” humanitário, e era aí que Zoe entrava. Era o momento de nocauteá-lo, de atingi-lo onde doía. Estava na hora de tirar proveito para si mesma. E Hunter Grant – que namorara Sarah Michaels quando Zoe e ela caíram na armadilha de Jason, que partiu o coração da pobre garota, que ostentou outra mulher diante dela na noite em que Sarah morrera e que achava que não estava fazendo coisa ainda pior – ia ajudá-la nisso. Ou Zoe o destruiria, também. Não importava o que Hunter a fazia sentir. HUNTER ODIAVA Midtown com fervor. Odiava as ruas repletas de zangões repugnantes, tão arrogantes e brutos. Odiava o prédio da sede da Treffen, Smith e Howell, uma caixa preta sem inspiração arquitetônica, que não se distinguia do resto do bloco em que se situava. Odiava a urgência das multidões nas ruas. Os onipresentes vendedores de cachorro-quente, o mau cheiro dos metrôs que subia pelas grades aos seus pés, o brilho negro da fonte apática que dominava a entrada do pátio para o prédio e ficava sem água nessa época do ano, como uma metáfora. Hunter não entrava nesse prédio desde a noite daquele Natal horrível, dez anos atrás. Mas estava sob o cerco de no mínimo três diferentes processos legais graças ao seu comportamento e, finalmente, concordara em se encontrar com sua equipe jurídica hoje, nesse lugar detestável. Esse monumento enorme e faminto por tantas mentiras. Hunter sabia que poderia deparar com Jason ali. E provavelmente iria. O nome do homem estava gravado na parede, afinal de contas. Ele não sabia o que faria caso isso acontecesse. Sabia o que queria fazer, o que deveria ter feito uma década atrás: dar um soco no nariz desse canalha presunçoso insuportável, que era o mínimo que Jason Treffen merecia. Talvez já estivesse na hora de garantir que ele recebesse isso, mas é claro, precisaria de ação. Austin dedicou-se, desde o macabro jantar de aniversário em dezembro, a expor o monstro que seu pai era com a família. Alex passou a arquitetar maneiras de fazer com que Jason pagasse publicamente. Austin e Alex tinham planos. Queriam acabar com Jason e tinham ideias sobre como fazer isso. Austin já fizera sua parte. Alex vinha trabalhando na dele. Ao passo que Hunter estava evitando tudo, como se isso pudesse fazer com que esquecesse. Junto com a maioria das mensagens e ligações que recebeu dos velhos amigos, durante sua estada lá. Ele não olhou seu reflexo nas portas brilhantes do elevador a sua frente, ao subir até o escritório. Sabia o que o encarava. Zoe Brook fora conservadora demais no resumo de suas falhas. As portas se abriram, e Hunter não ficou surpreso ao encontrar uma mulher jovem parada ali, elegante, educada e deliciada por vê-lo. Parecia um déjà vu. – Olá, sr. Grant – disse ela, sorrindo. – Sou Iris. Se ele tivesse de adivinhar, diria que ela era a mais nova encarnação do que Sarah tinha sido. O cargo era de assistente legal, na época. Mas se essa fosse outra das garotas de Jason, fazer o trabalho de assistente era apenas a ponta do iceberg. E esse sentimento desagradável de embrulho no estômago dizia a ele que sabia muito bem o que aquele iceberg implicava e que essa garota era parte disso. Estava com a corda no pescoço, sem dúvida. Uma vítima que ele não poderia salvar. Quantas haveria agora? Quantas mais haveria antes que ele fizesse algo a respeito? Quantas pessoas poderiam dizer que sua inércia cega tinha uma contagem de corpos real? – Muito prazer, Iris. – E Hunter pôde ouvir a aspereza na própria voz. Essa fúria exacerbada, tão ineficaz quanto o resto dele. Forçou um sorriso. – Você está aqui para eu não me perder? – O sr. Treffen me enviou para pegálo. Ele gostaria de vê-lo e cumprimentálo antes da reunião. Se percebeu que Hunter congelara ou que o sorriso desaparecera de seu rosto, Iris estava muito bem treinada para não comentar. E que Deus o ajudasse, ele não queria pensar nos malditos programas de treinamentos de Jason Treffen. – É por aqui – disse ela. Mas Hunter não a seguiu quando Iris começou a se mover. Ficou ali, junto aos elevadores, desejando ser um homem diferente. – Sr. Grant? – Por favor, diga ao sr. Treffen que não tenho tempo para vê-lo hoje. – Porque não sei se tento matá-lo com minhas próprias mãos ou se devo tentar me controlar. Ou, ainda pior, se não faço nada. – Tenho certeza de que ele entenderá. A máscara educada de Iris não se alterou. – É claro – disse ela, suavemente. E Hunter a deixou ir, de volta para o inferno, como fez com Sarah, dez anos atrás. Nem mesmo disse a si mesmo que era melhor assim. Porque ele deixava tudo o que tocava muito pior. NAQUELA NOITE, Austin escreveu as mensagens em maiúsculo. Após ter evitado um Treffen hoje, Hunter achou que seria melhor evitar o outro também. Não que fosse justo colocá-los juntos. Hunter não se importava, porém. A noite de inverno caíra lá fora, escura, gélida e pouco acolhedora. Não estava muito melhor dentro da cobertura, que parecia se agigantar ao redor dele, dilatada, sombria e espessa com todos os seus pecados. Sentou-se no escuro, assistindo ao SportsCenter naquela TV gigantesca que ocupava quase toda a imensa parede. Hunter soltou um suspiro quando Jason Treffen apareceu na tela da TV, lembrando-se de que esse era um dos motivos pelos quais seus amigos estavam tão motivados para agir. Agora, Jason se achava a algumas semanas de ser celebrado em rede nacional, e um ou outro anúncio parecia promulgar seu rosto sorridente, como se ele estivesse concorrendo para um cargo público. Sem oposição. A cobertura estava implacável. Treffen, o incansável advogado das mulheres, em sua primeira entrevista minuciosa! Treffen, defensor dos oprimidos e benfeitor pessoal de tantos, finalmente se abre! Foi quase um alívio quando a programação regular retornou e um dos antigos colegas de Hunter, que o estava processando, surgiu na tela. Hunter colocou no mudo, sem querer ouvir, de novo, um resumo das maneiras em que sua expulsão da liga de futebol foi uma bênção para todos os interessados. Ele pôde ver seu antigo recebedor dizer “Ele nunca foi um jogador de equipe” direto para a câmera, como se soubesse que Hunter o assistia, com ou sem som. Isso tudo era parte da mesma música e dança que todos no futebol profissional vinham apresentando desde meados de dezembro, independentemente de estarem abrindo processos uns contra os outros. Hunter poderia citar a si mesmo, quase palavra por palavra. Por si mesmo. Não um jogador de equipe. Prima donna. Desperdício de potencial, desperdício de recursos, narcisista… Blá-blá-blá. Parecia o momento perfeito ligar para um velho amigo com quem não queria conversar, para discutir um assunto em que ele não queria pensar. Eu sei o que houve com Sarah, Zoe Brook dissera. O que significava que ele não parara de pensar sobre isso, não importava o quanto desejasse. – Pare de me enviar mensagens – resmungou Hunter quando Austin atendeu o telefone. – Você parece uma garotinha de catorze anos. Estou ocupado. – Ocupado fazendo o quê? Jogando duro? – Austin deu uma risadinha. – Porque, pelo que eu sei, você não está trabalhando. – Eu tenho o que fazer. Não percebi que teria de revelar minha agenda através de uma secretária. – Você está sentado em seu apartamento de solteiro, sozinho, chorando seus dias de glória na ESPN On Demand – disse Austin, com desprezo. – Não está? Ai! – Vou repetir: pare de me enviar mensagens. Quando estiver cansado dos meus dias de glória, você será o primeiro a saber. – As notícias brotam, idiota, e nem mesmo são a seu respeito. Nunca foi, na verdade. – Então você tem ainda menos motivos para me importunar. – É claro que sua reação é desaparecer – Austin parecia desesperado. – Por que estou surpreso? Por que achei que desta vez seria diferente? – Porque você é um otimista tolo? – Aqui está o que você faz – Austin disse, como se não tivesse ouvido o sarcasmo de coração. – Você já fez isso há dez anos, e vai fazer agora de novo. – Essa conversa me recorda por que eu não tenho namoradas. Vamos conversar sobre para onde nossa relação está indo? Você está se sentindo gordo? Irá me contar sobre suas mágoas na sequência? – Acho que você mostrou seus sentimentos no campo de futebol e nos tabloides, na última década – rebateu Austin. – Tudo isso enquanto se mantinha o mais longe possível dessa fossa. Hunter não disse nada, porque era verdade. Depois da morte de Sarah, ele largou tudo. Saiu do apartamento que dividia com Austin e Alex em Nova York, sem uma palavra. Conseguiu ser transferido para Dallas no início da temporada seguinte e nunca teve nenhuma intenção de voltar para Nova York. Ou a essas amizades que já tinham sido mais importantes para ele do que sua própria família. – Você quer alguma coisa em especial, Austin? – Hunter esfregou o rosto com a mão. – Ou você só desejava bater papo comigo? Fico muito grato, fico sim, mas, da próxima vez não precisa ligar. Mande flores. Mas eu não gosto de rosas. – É isso que acontece com você quando não está jogando futebol? Pare de falar de flores. – Podem ser tulipas. Também aprecio lírio oriental. E hortênsia ocasional. Ele não tinha ideia do que dizia. Mas sorria maliciosamente na escuridão, o que parecia uma melhora. Lembrou-se daqueles dias, muito tempo atrás, quando chamava Austin de irmão. – Foi atingido na cabeça, hoje, Hunter? Quer dizer, mais forte do que o normal? Isso só fazia com que Hunter quisesse falar de, digamos, arbustos. Gramados ornamentais. As pequenas alegrias das hortas. Ele mal conseguiu se conter. – Entendo – disse Austin com uma aspereza conhecida na voz, quando os minutos passavam e Hunter continuava calado. Ele se parecia muito como da última vez em que Hunter o vira, em um bar aqui ou ali, onde Hunter fingia que ele era o tipo de homem que se importava com alguma coisa. – Essa é a parte em que você se esconde na multidão, certo? Finge que não está envolvido, como antigamente. – Não sei do que você está falando – mentiu Hunter, e teria sido impossível imaginá-lo fazendo piadas sobre flores alguns minutos antes, como se ele e Austin fossem muito próximos. Precisava lembrar-se de que perdera tudo na noite em que perdeu Sarah. Tudo aquilo em que já havia pensado era importante. – Estou bem aqui. Falando ao telefone quando em geral aquela quantidade de mensagens de perseguição leva direto a uma ordem judicial. – Não sei por que fico surpreso. Existe alguém na sua vida que você não tenha desapontado, Hunter? Uma que seja? Ele pensou em seus pais indignadíssimos, que nunca entenderam o desejo dele de jogar futebol, muito menos sua inclinação por escândalos públicos envolvendo seu péssimo temperamento e decisões ainda piores. Em seu irmão JP, o futuro magnata, que apenas balançava a cabeça diante do comportamento de Hunter. Bem, não dependia dele para nada. Até mesmo sua irmã caçula, Nora, que já olhara para ele com toda aquela adoração de super herói nos olhos, passara todas as tradicionais festas de Natal da família Grant, no Maine, suspirando profundamente toda vez que ficava a sós com ele. Como se sua expulsão do futebol a tivesse finalmente forçado a vê-lo como todo o resto o via. – Você deveria ter me enviado um buquê, Austin. Teria muito menos drama e frustração. Mais tarde, Hunter sentou-se no escuro, só com a TV como companhia, e disse a si mesmo que gostava assim. Tinha trinta e três anos, e perdera todas as pessoas que significaram alguma coisa para ele. Alguns homens mereciam vidas de desespero silencioso, de confinamento solitário. Uma casa vazia, uma vida abandonada, outro inverno completamente sozinho. Zoe Brook enganava a si mesma: não havia reabilitação para ele. Não tinha por que fingir. Hunter nunca estivera destinado a nada, a não ser isso. CAPÍTULO 3 – É isso que perdeu outro compromisso, sr. Grant, ou é apenas um pouco de deleite noturno durante a semana? Autoindulgência, quem sabe? Odeio falar isso, mas está parecendo autopiedade. Por um instante, Hunter achou estar sonhando com aquela voz sarcástica e divertida que só poderia pertencer a uma pessoa. Mas não estava adormecido. Ficara ainda mais um pouco no sofá, completamente POR enfurecido, depois de falar com Austin e, então, resolveu ir para a academia, descarregar a raiva na esteira. Correu quilômetros, até que suas pernas ficassem trêmulas e fracas. Depois, sentou-se na banheira de hidromassagem com os jatos no máximo, fazendo de conta que sua mente se achava complemente vazia. Deparou com Zoe Brook ali parada quando abriu os olhos, como uma daquelas aparições em que ele não queria mais pensar. Ela usava outro vestido elegantíssimo, cinza metálico, que flutuava sobre suas curvas esguias, deixando-o com a boca seca, e uma malha longa sobre ele. Os lábios eram vermelhos, os olhos, frios, e não havia nenhum motivo para que Zoe o estivesse fitando assim às onze da noite. – Acho que isso confirma que você está me perseguindo – disse Hunter, em vez de todas as outras coisas que queria dizer. – Preciso chamar a segurança? – Não é perseguição. É persistência. Posso entender como você conhece bem esse conceito. – Dá no mesmo – murmurou ele. Zoe esboçou um daqueles seus sorrisos perversos, e Hunter agradeceu aos céus pelo fato de as bolhas esconderem seu membro mais indisciplinado. Esticou os braços ao lado do corpo, dentro da banheira, e retribuiu o sorriso. Sentiu-se de repente desperto. Com a mente clara, inclusive. Até que enfim! Mais focado do que estivera em anos. – Eu sei que não existe a possibilidade de ter perdido seu compromisso hoje de propósito – Zoe afirmou, de uma maneira brilhante e tranquila, oposta ao seu olhar arguto para ele. – Mas receio que já sejam dois strikes. – Não entendo metáforas de beisebol. É um problema de jogador de futebol americano. Jets, Sharks... Sabe como é. – Vamos começar de novo, então? Às dez, na quinta. Não me faça vir atrás de você de novo. – Ou o quê? – perguntou, com aspereza. – Ficaremos os dois nus e molhados? Um grupo de mulheres passou por eles conversando, enroladas em toalhas, saindo do vestiário, completamente alheias ao fato de estarem interrompendo algo eletrizante. A conversa delas parou abruptamente quando viram Hunter na banheira, e começaram a dar risadinhas excitadas quando ele lhes sorriu. Riram mais alto e desapareceram na sauna, onde houve uma súbita explosão de gritinhos quando a porta se fechou. – Acho que me reconheceram. – Bem – disse Zoe, daquela maneira irritadiça dela que o fez sorrir –, você na certa é reconhecível. Ele ergueu-se, esticando os braços sobre a cabeça e deixando a água quente percorrer seu corpo, divertidíssimo com a maneira com que os olhos dela se arregalaram ao olhar para o peito dele, baixando para a bermuda, colada nas coxas. Hunter percebeu como Zoe engoliu em seco. Os olhos azul-acinzentados correram por sua pele de um modo que, ele tinha certeza, deixariam nela um rastro. Hunter a desejava ainda mais do que se lembrava naquele dia na boate de striptease, onde Zoe parecia um raio de luz, fazendo com que se esquecesse de si mesmo. Queria saborear a linha elegante de seu pescoço, saber o que existia por baixo daquelas belas roupas. Queria ver aonde aquele rubor nas faces dela levaria, se ele percorreria o restante da pele suave dela e se transformaria em um vermelho vivo. Céus, como a desejava! Ali, naquele exato momento. Em qualquer lugar. – Por que não fazemos a reunião agora mesmo? – perguntou ele, estreitando os olhos. Hunter queria diminuir a distância entre os dois para que pudesse tocá-la de novo. Para sentir aquele fogo, que fazia com que se sentisse vivo de novo. E por mais que detestasse o que acompanhava esse sentimento, achava que gostava desse ardor. – Você teve o trabalho de me encontrar na academia no meio da noite. Já tem toda a minha atenção. Mas havia fantasmas nos olhos dela quando tornou a encará-lo. – Ainda não – ela contrapôs, suavemente, de forma proposital. – Às dez horas de quinta, sr. Grant. – Ficarei a par desse seu plano? – perguntou ele, entre áspero e divertido, mas seu corpo não ligava para qual deles. Simplesmente a desejava. Ainda mais quando ela soltava aquela risada. – Ou continuará a dar indiretas vagas e fazer ameaças não tão veladas? – Mantenha seu compromisso – sugeriu ela. – Gosto do seu estilo. – Hunter passou a perna pela lateral da banheira para sair, observando os olhos dela se arregalarem de novo antes de poder controlá-los. – Intriga e drama sobre um compromisso que eu não marquei e nem quero. Aprecio seu esforço, srta. Brook. De verdade. – Pense em como apreciará ainda mais na quinta. – E Zoe lhe lançou um sorriso que fez com que ele pensasse em creme doce e gatos deliciados. Hunter apanhou a toalha e enxugou o rosto; quando baixou-a, ela já tinha ido. Isso não deveria surpreendê-lo. Ou fazêlo rir o bastante de modo a se ouvir o eco nos azulejos ao seu redor, lembrando-o do homem que um dia fora e que hoje mal reconhecia. Arrumou-se depressa no vestiário e passou a dar alguns telefonemas. Podia ser um pária, mas isso não significava que era menos famoso. As pessoas ainda atendiam às suas ligações, mesmo que no meio da noite. Zoe Brook era a melhor, achava ele, e ela mesma o afirmava. Conseguia resolver qualquer problema de imagem, transformar qualquer comportamento grotesco em um festival de bolsas de seda, sem muito esforço. Ela era a grande jogada. – O único problema – disse Zair al Ruyi, seu amigo e colega de quarto de seus dias de Harvard, de Washington D.C., onde era embaixador nos Estados Unidos de seu sultanato distante e rico em petróleo – é que ela pode muito bem fazer picadinho de você enquanto o salva das garras do leão. É a especialidade dela. – Por sorte – brincou Hunter –, minha carne é magra. Não sobra muita coisa. Zair, dono de seus próprios segredos sombrios e nada estranho às dificuldades, com ou sem imunidade diplomática, achou graça. – Ela pode resolver qualquer problema. Até mesmo o seu. – E você sabe disso por experiência própria? – perguntou Hunter, segurando o telefone com o ombro, enquanto caminhava pela noite fria. – Diga que pela primeira vez na vida você planeja compartilhar. Hunter não conhecia alguém mais cauteloso ou mais fechado do que Zair. Já estavam no segundo ano da faculdade quando Hunter se deu conta de que nas suas vagas referências a “casa”, Zair queria dizer um palácio de sultão. Ou quando dizia “meu irmão”, ele falava no sultão de Ruyi. Seu velho amigo apenas ria agora, o que fez com que Hunter desejasse que as coisas fossem diferentes. Que, em vez de correr atrás de uma bola nos últimos anos, ele tivesse feito um esforço para manter contato com seus melhores amigos, que eram mais irmãos do que seu próprio irmão. Mas ele perdera isso, também. – Independentemente do que Zoe Brook queira com você, Hunter – Zair prosseguiu, sem responder à pergunta diretamente –, eu daria a ela. Porque, do contrário, suspeito que ela seguirá em frente e tomará de você. HUNTER ENCONTROU Zoe na sala de espera do escritório dela na Columbus Circle às 10h15 da manhã de quintafeira. Acomodou-se em um dos sofás de couro brilhante vermelho como se estivesse em sua própria sala de estar, um detalhe que ele a viu receber com um olhar divertido. Suas sobrancelhas se arquearam, e Hunter sentiu o calor percorrendo sua pele. Como o roçar dos dedos dela contra seu sexo. – Olhe só! – Zoe parecia estar zombando. – Você sabe andar pela cidade. E sozinho! – O charme está na terceira vez – concordou ele no mesmo tom, ciente de que a recepcionista o olhava com admiração. Ou seria com horror? – Pode-se dizer que mudei de ideia na academia, ontem à noite. – Homens na sua idade precisam ter cuidado – disse ela como que concordando. E Hunter teve de sorrir com esse tapa de luva de pelica. Ainda mais porque sabia muito bem que ela era um ano mais nova que ele. – Seus corações não são mais os mesmos. – Fui visitado por uma aparição das conversas irritantes do passado – Hunter afirmou, com suavidade –, que me provocou a vir aqui. Era isso ou mergulhar em um coma de indiferença. Zoe sorriu, lenta e triunfante, e ainda mais ardente. Isso fez com que ele desejasse que estivessem sozinhos. Fez com que ele se importasse menos a cada segundo pelo o fato de não estarem. – Um coma poderia ter sido um progresso, sr. Grant, considerando tudo – disse ela como se pudesse ler a mente suja dele. Hunter esperava que ela não conseguisse. Afinal, passou um bom tempo imaginando um final diferente e muito mais satisfatório do que o encontro na banheira, alguns dias atrás. – Por que não me segue? Hunter perdeu-se no balançar daqueles quadris, naquela saia encantadora quando ela se virou e ele a seguiu. A doce curva de seu traseiro. A maneira como Zoe caminhava, aquele andar arrogante e confiante que fazia o corpo de Hunter enrijecer, naqueles sapatos elegantes com os solados vermelhos que o hipnotizavam a cada passo, como um convite para o melhor pecado. Ele aceitou. Com satisfação. – Você diz que é boa no que faz – Hunter comentou enquanto ela o guiava pelo hall iluminado e gracioso ao escritório particular. – Não preciso dizer isso, sr. Grant. A curva afiada dos lábios dela, por cima do ombro, era a melhor coisa que ele vira em anos. Fazia até mesmo os espaços vazios e sombrios parecerem estar cantando, iluminados. Com ardor. – Meu trabalho fala por si só, e normalmente nos noticiários noturnos. Ou quando sou muito boa? De maneira alguma. Nada de notícias. Nada de sussurros. Nem mesmo um parágrafo especulativo nos tabloides, ali entre as visões de OVNIs. Eu faço desaparecer por completo, como se nunca tivesse acontecido. – Como mágica. – Mais ou menos isso. Só que mais caro. – Gostei da maneira como acabou comigo na boate naquele dia – falou Hunter com voz arrastada. – É assim que funciona? Você faz picadinho dos clientes para que eles se sintam gratos quando os recompuser em sua imagem preferida, o que quer que isso signifique? – Não olhe por trás das cortinas, sr. Grant – disse ela, sem fitá-lo desta vez, a voz com o tom da risada que ele não conseguia ver. Mas queria vê-la. Queria envolver-se nela. Repetidas vezes, como se a risada pudesse finalmente purificá-lo. – Apenas aceite o poder da varinha de relações públicas. É só deixar a magia atuar. – Já estive em alguns times, srta. Brook. Sei que você precisa me desconstruir para depois me construir de novo. É a Guerra Psicológica para leigos. – Então, espero que você seja o cliente perfeito, certo? – Ela acenou para que ele entrasse em seu escritório e fechou a porta por trás dos dois. Hunter olhou em volta enquanto Zoe seguia para a mesa, absorvendo a vivacidade das paredes brancas, o piso de concreto frio com tapetes espalhados em cores suaves para amortecer a frieza. O gelo foi aliviado pela visão da cidade através das janelas e a típica parede de fotos mostrando Zoe com várias pessoas famosas e/ou poderosas. Clientes felizes, provavelmente. Hunter reconheceu a maioria deles e observou que Zair estava no alto à esquerda, sua imagem bonita demais, séria demais. Seu rosto sem sorriso naquela parede em particular era outro mistério que na certa nunca seria solucionado. A mesa, feita de lâminas pesadas de metal e vidro, estava meticulosamente arrumada, e Hunter suspeitava que Zoe sabia muito bem como ficava formidável e intocável quando se encostava nela, inclinando-se para trás para encará-lo friamente. O problema era que Hunter não respondia a esse tipo de mensagem como deveria. Da maneira como ele, sem dúvida, não tinha intenção de responder. Queria atrapalhá-la um pouco. Fazer todo aquele controle se transformar em outra coisa. Algo no mínimo tão quente, forte e tolo quanto essa coisa que o assolava, exigindo que ele se perdesse naquele cabelo enrolado e macio, tomasse sua boca ferina e argumentativa na dele, puxasse aquelas pernas longas ao redor de sua cintura e mergulhasse dentro dela, ainda com os sapatos de sola vermelha nos pés. Queria saber por que ele era o alvo dela, o que ela queria. O que Zoe achava que sabia sobre Sarah. Hunter continuou caminhando no piso frio que fazia seus passos soarem como um tambor, passou pela área de estar que ficava à direita e não teve dúvidas de onde Zoe queria que ele sentasse, em um sofá baixo que o deixaria na altura dos joelhos dela. Ele não concordou. Foi chegando cada vez mais perto, observando como Zoe lutava para não reagir, a maneira com que seu rosto fascinante endureceu e suavizou, quase no mesmo instante, como se precisasse pedir a si mesma para manter a calma. Hunter esperava que mantivesse. E, então, estava pairando sobre ela, ameaçador. Completamente, assumidamente e inapropriadamente no espaço dela. Como se, inclinando de leve a cabeça, ele pudesse enfim provar da boca de Zoe. Seria tão fácil. Ela ergueu o queixo para manter o olhar no dele, mas acabou mostrando apenas aquela cautela fria que usava como escudo. Hunter ficou imaginando o custo disso para Zoe. Não entendia por que queria saber; era como um desespero rasgando suas entranhas, querendo sair de dentro dele. – Talvez... – disse ela e, embora sua voz fosse suave, ele podia ouvir algo sombrio por trás; um indício de dor que não deveria ter chamado a atenção dele, gritado para ele – ... eu devesse ter sido mais clara quanto ao que significa ser um cliente modelo. – Fale por que veio atrás de mim. O que você quer? Não havia nada além de uma respiração cortada entre eles, e Hunter podia apostar toda a sua fortuna que Zoe queria erguer-se para recuperar um pouco da altura e de sua vantagem. Mas não o fez, porque ele saberia exatamente por que ela estaria fazendo isso. Hunter ficou imaginando se essa também seria a razão por ela não ter pedido que se afastasse. Seria revelador demais. Ele sorriu. Sempre fora bom nesse tipo de jogo. – Fale e eu me comportarei. – Esse é um exemplo do seu modo de agir, sr. Grant? – Sua voz estava leve. Graciosa. Mas não seu olhar. – Porque parece mais uma tentativa grosseira de intimidação. – De forma alguma. Nunca sou grosseiro. O problema era que, assim perto, ele não conseguia se concentrar direito em coisas como estratégia. Podia sentir o cheiro de lavanda na pele dela e queria segui-lo. Saboreá-lo. Tirar-lhe as roupas e deleitar-se na pele revelada até que ambos estivessem em frangalhos. Na mesa, no chão, em qualquer lugar. Hunter baixou o olhar para a boca de Zoe, que era mais carnuda e tentadora de perto. Como um farol, era quase impossível de ignorar. – Esse é o primeiro passo em direção a um eu novinho em folha. Só me diga o que quer de mim. – A reabilitação não é fácil para ninguém – disse ela com a voz regular demais. Ele tomou isso como uma vitória, a adrenalina e a necessidade assolando-o, soando mais alta do que suas botas contra o piso rijo. – Depende do cliente, e os clientes tendem a ter dificuldade com a parte mais crucial. – Zoe esperou que ele erguesse os olhos de novo, e manteve o olhar por alguns segundos. – Para começar, você precisa fazer o que eu digo. – O que acontece com os clientes que não fazem? – Todos acabam fazendo. – Ninguém é completamente bemsucedido, srta. Brook – salientou ele, com a entonação mais baixa do que deveria. Um ruído áspero contra esse pulsar da urgência, da corrente intensa entre os dois. – É estatisticamente impossível. – Os únicos fracassos que já enfrentei tinham algo em comum. O ardor entre eles ficou tenso. Mais quente. Mais selvagem. Encurralando-o. Hunter viu a mudança nos olhos dela, em todo seu rosto. – Adivinhe o que é. – Eles não fazem o que você pede que façam. Para dar seguimento ao assunto. – Olhe só! – Houve aquele brilho no olhar cinza dela que parecia o toque que ele ansiava, como um fogo ardente em suas entranhas. Ele se aproximou? Ou ela? Hunter não conseguia mais discernir. – O senhor pode ser ensinado... Hunter podia ver a consciência e a excitação em seu semblante, como um sinal luminoso. O leve toque de cor no alto de suas bochechas, o resplendor em seus olhos. O vislumbre repentino e quase chocante da maciez de seus lábios. Ele precisou de todo o autocontrole para não se curvar e saboreá-lo. Sorvê-la e embriagar-se de seu calor. Fazê-la sentir aquele fogo que o enlouquecia. Que preenchia todos os espaços vazios dentro dele com suas chamas. Fazendo os dois arderem. Hunter gostava da maneira com que ela erguia o queixo, dura e fria apesar do clamor e das chamas que dançavam no ar ao redor deles. Ele apreciava o pulsar de seu próprio desejo, um sentimento que estava adormecido havia muito tempo. Queria testá-lo com Zoe, ver o que seria feito deles. Se sobreviveriam. Quanto tempo arderiam antes de sucumbirem? Ele a desejava. – Quer bancar a professora? – perguntou Hunter, prologando as palavras, pois gostava do efeito de sua voz nele, meio provocante, meio promessa. Podia ver a maneira como Zoe lutava para esconder. Podia sentir internamente, forte e quente. – Porque tenho algumas ideias para a primeira lição. Acho que vai gostar dos exercícios. Mas, primeiro, precisa me dizer por que estou aqui. POR UM momento, Zoe não conseguiu lembrar. Sobre o que estavam falando, o que estava acontecendo, o que ela estava – ou não – fazendo? Hunter parecia uma parede diante dela, imponente e enorme, além de incrivelmente e incontrolavelmente másculo. E ardente. Tão ardente que chegava a queimar ao ficar muito próxima a ele, enquanto tentava com ardor manter-se gélida. Tão ardente que Zoe temia perder o controle para sempre se não fizesse algo, qualquer coisa, para evitar cair no fogo alastrante que parecia devastar todo o espaço mínimo entre seus corpos. Pense, ordenou a si mesma, como aprendera a fazer em situações muito piores do que essa. Não reaja simplesmente. Reflita. Porém, isso era muito difícil quando se via cercada por um homem grande, rude e belo, que olhava para ela como se quisesse devorá-la. Como se já conhecesse seu sabor. Como se tudo o que precisasse fazer fosse mover-se o mínimo e descobrir. Não que ela quisesse algo assim. Com ele. É claro que não queria. Mas, nesse momento, ali, era muito difícil de lembrar-se de por que não. – Sr. Grant... – A voz dela soou gélida Zoe cruzou os braços sobre o peito num gesto óbvio de autodefesa, que não podia ser evitado. Era apenas humana. Mesmo que Hunter Grant tivesse sido o primeiro cliente a fazê-la sentir-se assim. O primeiro homem que se aproximara em muitos anos. Talvez desde sempre; e ela não queria pensar nas implicações disso. – Acho que está com uma ideia errada. – Não minta para mim, Zoe. Ela não sabia o que era pior: o humor na voz dele, o fogo de calor intenso no olhar ou o afago inesperado de seu nome na boca dele. Naquela boca máscula, inebriante, que ela de jeito nenhum se imaginava reivindicando como sua. – Pode instigar. Dar voltas. Mas não minta. – Ele a desafiava. – Sr. Grant... – Zoe exalou um suspiro dramaticamente exasperado, como se ele fosse um menino mau. – O senhor poderia testar a paciência de um de seus santos. – Sorte a minha, então, que não haja nenhum nesta sala. – Não preciso recorrer a mentiras. – Zoe relaxou encostada à mesa, como se estivesse completamente à vontade. Como se fosse rotina ter um homem enorme assim tão próximo, perto de um beijo que ela preferia evitar, que poderia abalar seu mundo; e, daí, o que aconteceria com seus planos para Jason Treffen? – Pode se surpreender em descobrir que não é o primeiro dos meus clientes a imaginar que incluir sexo poderia tornar o processo mais agradável para eles. Uma das expressões sombrias e ilegíveis dele cruzou seu semblante, sugerindo, mais uma vez, que Hunter era um homem complicado. Muito mais do que ele gostaria de admitir. E ela ainda não acreditava que fosse possível. Porque isso dificultaria ainda mais as coisas que precisava fazer com ele. Hunter sorriu, enviando aquele fogo dançante e sedutor aos locais mais selvagens dentro dela. Fazendo com que seu estômago embrulhasse. – É isso o que estou fazendo? – Hunter perguntou, numa entonação suave em que ela não conseguia acreditar. – É provável que esses clientes tenham de fato contratado você. Hunter aprumou-se e enfiou os polegares nos bolsos do jeans, que lhe sentava muito bem. O movimento fez a camisa colar nos músculos rijos de seu peito, e, graças à brilhante ideia de Zoe de confrontá-lo na banheira, ela sabia exatamente o que havia por baixo do tecido. Zoe sentiu a garganta se apertar. E pior ainda, sentiu aquele espaço extra entre os dois como se fosse uma perda. Como se fosse um pesar. – Você não precisa me contratar, sr. Grant. Já decidi assumir seu caso pro bono. – Acalme-se, coração! O dela estava descompassado. – Mas estávamos falando sobre sexo. – Estávamos? Que excitante. Achei que estivéssemos discutindo reconstrução de imagem. – Mas os olhos dele se mostravam ardentes demais e avaliando os dela. – Não, não achou. – Zoe queria que o sorriso dele não tivesse esse efeito nela. Que não fosse tão suscetível a um homem como ele, algo que teria achado impossível uma semana atrás. – Bem, você é sem dúvida um homem atraente. – Obrigado. O tom dele soou seco, mas ela não mudou o seu olhar firme, como se estivesse palestrando em um palanque. Se Zoe o mantivesse por bastante tempo, talvez acalmasse aquela agitação dentro dela. – Todas aquelas capas de revista não podem estar erradas; eu posso me gabar. – Ele passou a mão pelo corpo. Naquele momento, tudo parou ao redor de Zoe. Havia apenas a lenta jornada da palma da mão sobre o abdômen rijo e definido dele, como se Hunter estivesse alisando uma ruga na camisa, o que ela sabia que não era o caso. Zoe o vira molhado e quase nu na noite anterior, erguendo-se da banheira como um sonho delirante. Os músculos definidos, bem como o abdômen, o caminho de pelos escuros apontando para o sul. Estava gravado na memória como uma marca em brasa. De repente, ficou difícil de engolir, mas ela se forçou a fazê-lo. E continuou, como se a aparência dele não a tivesse perturbado. – Seu antigo emprego exigia um nível de aptidão física impressionante, e eu estaria mentindo se dissesse não me sentir intrigada. – E você não mente. Graças a Deus. – Mas você é um tipo muito específico de homem. – Ela sorriu quando ele franziu a testa. – A maioria dos homens que entram por este escritório é mais ou menos parecida. Você está acostumado a se manter no controle; você mesmo disse isso. Talvez me ache atraente, mas transaria comigo de qualquer forma, porque na sua cabeça isso me colocaria de volta à posição de subordinada que você acha que eu deveria assumir. É o tipo de homem que se excita com isso, sr. Grant. E, de bônus, continuaria se sentindo no controle, não importando quantas vezes eu pedisse para fazer coisas para as câmeras que você não gosta. – Bem... – Havia uma espécie de brilho de consideração naquele olhar azul e uma grande onda daquele calor insano que ela fingia não perceber. – Também seria divertido. Zoe esperava que ele dissesse algo assim. – Não para mim. – Ela o encarou. Direta e prática. E sabia que estava colocando um fim naquela conversa, de uma vez por todas. Porque Zoe nunca teve um cliente que viesse até ela e não recuasse quando ela lhe lançava uma versão desse discurso. Disse a si mesma que aquele sentimento agudo em seu peito era café demais, não a frustração sufocante de que Hunter era apenas mais um na multidão. Idiotas intercambiáveis, todos eles, como as frotas de táxis amarelos percorrendo a Nona Avenida, completamente indistinguíveis uns dos outros. Que foi o motivo pelo qual ela o escolheu, lembrou a si mesma. Porque ele era como o restante. Como os piores. – Eu não estava brincando quando disse que prefiro estar no comando. – Zoe observou o rosto dele conforme as palavras iam penetrando-o. – Pode ser bonito, sr. Grant, mas não quero você, nem ninguém, a menos que rasteje. E isso não é uma metáfora. Tudo ficou quieto. Dolorosamente quieto. Os inteligentes olhos azuis de Hunter estavam muito ardentes, e Zoe sentiu um aperto esquisito, como se algo duro e forte estivesse enrolado em suas costelas; onde uma parte louca e rebelde sua desejava que as mãos dele estivessem. Passaram-se alguns minutos, e Hunter não fez nenhuma das coisas habituais e esperadas. Ele não zombou. Não argumentou. Não se vangloriou, nem rechaçou ou teceu insultos. Ficou apenas observando-a. Estudando-a. Fazendo com que ela percebesse, com seu silêncio intencional, que subestimara aquele homem. Isso era inquietante. Zoe começava a achar Hunter inquietante, e não entendia como ele conseguira convencer o mundo de que não passava de um atleta. E, então, ele sorriu, quebrando o momento e fazendo o coração dela saltar o peito. – Ok – disse ele. Zoe estava tão trêmula que quase gaguejou ao responder, e nunca teria se perdoado por isso. Respirou fundo, lutando para se controlar. O que diabos estava acontecendo com ela? O que viria depois? Lágrimas? Um gritinho infantil? Ela percebia a atração dos dois. – Não entendo o que isso quer dizer – ela comentou, quando conseguiu falar direito. – Quer dizer ok. O que era aquela coisa sombria e faminta no olhar dele que Zoe sentia atravessá-la, deixando-a tensa e nervosa, com aquela sensação concentrada no estômago? O que era isso? Nesse ponto, qualquer outro homem que já insistisse assim teria tido um ataque de birra – provando de uma vez por todas que o que eles queriam era que ela cedesse, por mais que conseguissem. Mas não ela. Zoe jamais. Não entendia Hunter. Ele a deixara nervosa, em partes que ela achava que nada tocaria, todas as áreas escuras e escondidas que achou que estivessem lacradas para sempre. – Ok? – repetiu Zoe. – Está mesmo me dizendo que você, Hunter Talbot Grant III, o John McEnroe do futebol e a celebridade mais detestável de nosso tempo, secretamente abriga fantasias de submissão? Você, o garoto do pôster para machos alfas idiotas? Ele sorriu, voraz de novo, cada centímetro dele um predador perigoso, ardente demais, faminto demais. E se ela não estivesse com os dois pés no chão, juraria que todo o escritório rodava ao seu redor em espirais irregulares. – Certo – ele afirmou, com aquele toque arrogante nos lábios e um brilho conquistador nos olhos azuis. – Não gosto de rótulos, srta. Brook. Gosto de vencer. Isso me torna submisso? Ela nunca vira uma criatura menos submissa na vida. Não havia como esse homem, que exalava masculinidade pelos poros, que tinha feito um espetáculo de si mesmo e sua incapacidade de obedecer, fosse quem fosse que estivesse mandando, mesmo quando era seu trabalho fazer o que os treinadores lhe pediam, ser capaz de render-se. Hunter achava que era um jogo. Ele achava que tudo era um jogo. Mas não significava que ganhara. – Certo, então. – Ela sentiu o clamor no peito, o pulsar de todo aquele calor embaixo, mas concentrada em pagar para ver, porque era tudo o que importava. – O que está esperando, então? A porta do escritório está fechada. Seu segredo está em segurança comigo. De todo jeito, seja um beta. Ele só a observava, quieta e concentrada, descontroladamente masculino e intensamente exigente, sem dizer uma palavra. Não precisava nem falar. Ele emanava comando e controle rígidos de cada um daqueles músculos suaves e suculentos tão bem talhados. De seus olhos azuis, de seu maxilar duro. Até mesmo a maneira como ficava na frente dela, formidavelmente atraente e ainda próximo demais, sussurrava à região feminina e delicada dentro de Zoe que ela pensava que Jason Treffen matara anos atrás. Hunter a fazia sentir-se suave, e isso era imperdoável. Assim, Zoe estalou os dedos e apontou para o chão. – Seja um bom garoto, Hunter. Rasteje. E a maneira com que ele riu foi como acender um palito de fósforo em um rastro de gasolina, catapultando os dois em um inferno intenso que Zoe, com uma onda de pânico, temia poder consumilos ali mesmo. Ressoou através dela, tocando cada parte sua com ardor, admiração e um tipo de medo. Fez com que tremesse e querer cancelar tudo, antes que ficasse ainda pior. Mas ela não se movia. Não conseguia falar. Não conseguia retroceder. Não poderia deixar que Hunter a visse considerando isso. Hunter inclinou a cabeça de leve, quase regiamente, mantendo o olhar no dela. Sabendo. Exigindo. Puro desafio masculino disfarçado naquele azul intenso. – Pedi e recebereis – disse ele em uma voz que foi direto para a cabeça dela e por entre suas pernas, e estava longe de ser submissa. Porque ele era tão submisso quanto um lobo alfa. E então, Hunter abriu os braços em uma simulação de rendição, tão fingida, camuflada pela curva zombeteira de seus lábios perfeitos, deu um passo para trás e caiu de joelhos – bem ali, no meio do escritório dela. CAPÍTULO 4 A de Zoe a abandonou rápido, e voltou forte demais, depressa demais. Seu corpo parecia de outra pessoa, como se seu coração batesse tão forte e descompassado por vontade própria, como se quisesse rasgar seu peito. Pulsava insistente em sua garganta, em seu estômago. Em seus seios, que pareciam agora pesados, e naquele calor chocante e abundante entre as pernas. Ela se sentia como se tivesse levado RESPIRAÇÃO um soco. Uma parte dela desejava que tivesse. Mal percebeu que baixara as mãos ao lado do corpo e agarrava a borda da mesa com tampo de vidro. Forte, como se estivesse com medo do que poderia acontecer se soltasse. Como se já soubesse exatamente o que aconteceria. Porque a única coisa que conseguia ver era Hunter. A luz brilhante do inverno já se desvanecia, e Nova York deixava de existir através de suas janelas. O negócio acertado e a vingança que ela estava determinada a desempenhar sumiram como fumaça. Não havia nada além de Hunter ali. De joelhos diante dela, grande e másculo, e aquele olhar sensual e preguiçoso em seus lindos olhos, que sua posição tecnicamente submissa não fazia nada para atenuar. Era um homem grande cuja cabeça, mesmo estando ele de joelhos, chegava quase ao nível do peito dela. E os bicos de seus seios ficaram dolorosamente duros à imagem do que Hunter poderia fazer com eles. O que ela queria que ele fizesse, mas não fez. Zoe não podia desejar isso, podia? Não era do tipo de mulher que desejava. Não tinha certeza de que sabia como. Essa era apenas uma entre as coisas que perdera. Que tiraram dela. A lembrança de seu passado sórdido e horroroso deveria tê-la feito tomar uma atitude, no mínimo defender-se melhor, mas Zoe não conseguia se mexer. Hunter olhou-a como se fosse inclinar-se e saboreá-la, tomá-la, simplesmente porque ele era Hunter, não importava que ela estivesse teoricamente parada em uma posição de poder. Literalmente olhando-o de cima. Isso deveria ter feito alguma diferença. Deveria ter destruído um homem como ele, acabado com todo o poder do macho alfa. Era óbvio que não estava funcionando. Talvez Zoe se sentisse mais como uma presa agora do que quando ele pairava sobre ela, antes, tomando conta de todo o espaço, tornando-a incapaz de diferenciar entre a respiração dele a própria. Ah, sim. Estava com problemas. E ainda não conseguia controlar a respiração. – Seu desejo é uma ordem, Zoe – disse ele, com um tom divertido na voz baixa, os olhos fixos nos dela. As mãos traidoras de Zoe coçavam para diminuir a distância entre os dois; para enterrarem-se naquele cabelo loiro, e aquele anseio que beirava a urgência chegou muito perto de sufocá-la. Não entendia o que estava acontecendo. Com certeza ela não queria isso. – Por favor, diga que esses sapatos que você está usando estão envolvidos nas fantasias dominatrix que gostaria de colocar em prática. Prometo que ficarei feliz em ser seu escravo sexual. – Isso é ridículo. – A voz dela soou como um silvo. Zoe conseguia se ouvir, e esperava que ele não percebesse o quão desesperada estava. – Você está fazendo joguinhos. – Pode ficar por cima, se quiser – Hunter afirmou, com aquele jeito arrastado e pecaminoso que a fazia estremecer e dificultava sentar-se quieta na beira da mesa. Ou em qualquer lugar, pois o olhar dele queimava o dela. – Não me importo. O que excitar você. Ela não queria pensar no que a excitava. Isso nunca surgiu antes, não dessa forma. Era como se Hunter soubesse mais sobre o corpo dela, seus desejos e necessidades do que ela própria. Como se ele estivesse deliberadamente provocando-a, como se soubesse muito bem que não precisaria de muito esforço para fazê-la arder em chamas. – Você tem de parar com isso – disse Zoe duramente; ou ao menos tentou. – É isso o que me excita. Você de pé, a uma distância adequada de mim, comportando-se. Mas Hunter se moveu, então. Inclinou seu glorioso corpo para a frente e segurou-a pelos quadris com suas mãos firmes, e tudo pareceu explodir. Ou era só ela, uma grande implosão incandescente virando-a do avesso. Havia calor demais. Vindo das mãos fortes e elegantes dele. Da aparência firme e máscula de seu rosto. Dela, de dentro dela. Zoe tinha certeza de que cada parte sua se dividiria em milhares de pedacinhos se ele não a segurasse firme, fazendo-a corar da cabeça aos pés, ruborizada, fogosa e apavorada. E foi quando Hunter se inclinou, tomou a bainha da saia em suas mãos muito ágeis, firmes e cheias de calosidades, e começou subi-la, desnudando suas pernas. – Não pode… o que está… – Zoe estava gaguejando, e a pior parte era que ela não se importava mais, como alguns instantes atrás. Esse era o menor de seus problemas. – ... adorando você. – Hunter falava rouco e baixo, o que fez a pele dela latejar, o cabelo da nuca ficar de pé e todas as partes do seu corpo que ficaram coradas agora formigarem. – Todas as boas rendições começam com um ato de adoração, Zoe. Todo o mundo sabe disso. E, por um momento, ela só conseguia encará-lo, atônita. Paralisada. Sem ação, enquanto esse homem subia cada vez mais sua saia, mantendo o olhar fixo no dela. Por um momento, eles apenas se encararam. Hunter, então, deslizou a mão ao redor da coxa direita de Zoe, segurando- a, enquanto o resto dela estremecia. Manteve o olhar por mais um interminável momento e inclinou-se, pousando os lábios na carne dela e sugando. Com força. Doeu. Era como um ferrão de fogo, perfurando-a, desde sua coxa até a umidade quente acima, em seguida exalando desejo por ela toda, entregando o controle de seu corpo para ele. Não era nada parecido com o que já sentira. Era, percebeu Zoe, de uma distância onde o cérebro dela ainda funcionava, apesar do turbilhão de tudo isso, um maldito chupão. Hunter se afastou, as mãos ainda em lugares perigosos, a boca formando uma curva presunçosa, e aquela dor aguda. Ele a marcara. E agora ele erguia o olhar para ela mais uma vez, impertinente e determinado, suas mãos subindo mais uma vez, calculadas e lentas. Sua próxima meta era óbvia. Tão óbvia, pensou Zoe, que ela poderia extinguir o próprio fogo. Tão deliciosamente e ardentemente óbvio que Zoe sabia que se deixasse continuar por mais um segundo, ele a possuiria. Ela estaria perdida para sempre, e Hunter saberia que com uma simples ação como essa teria o que quisesse dela. Foi assim que aconteceu. Zoe deslocou-se da mesa, bem consciente de que Hunter deixara que ela afastasse as mãos dele de sua saia, interrompesse aqueles toques que eram como um sussurro de sua pele macia acima dos joelhos, que ela disse a si mesma que não significavam nada. Afastou-se dele com uma pressa humilhante, quase tropeçando no próprio pé, indo para trás da mesa, o que ela esperava parecesse mau humor. Porque ela não sabia o que faria se ele visse a profundidade de seu pânico. Se soubesse como chegara perto de destruí-la, e pior ainda, como estivera próxima de deixar isso acontecer. Ela não tinha certeza de que ele não percebera. – Pode ficar de joelhos, sr. Grant. Combina com você. Talvez aprenda um pouco sobre humildade aqui. – É improvável. – Ele se ergueu com aquela graça inata e atlética que lembrava as proezas de força que seria capaz de realizar, se assim desejasse. Hunter era um tipo de belo guerreiro, suave apesar dos seus ombros largos e sólidos e do poder que ele impunha tão facilmente. Quando deixara de achá-lo repulsivo? – Se tocar em mim de novo... – Zoe mantinha o olhar firme nele, para que não houvesse nenhum erro, nenhum malentendido, e esperava que essa postura estivesse mais clara do que sua cabeça. – ... não só lançarei uma campanha para arruiná-lo ainda mais como ficarei tentada a denunciá-lo às autoridades competentes. Hunter riu, e essa risada propagou-se como um novo fogo, engolindo tudo em seu caminho. – Nada como uma reação exagerada para provar que você não é tão fria quanto quer que eu pense que é, Zoe. – Você foi rude. Isso é constrangimento. – Deveria ter me pedido para parar, então. – O olhar dele machucava, era ardente demais. – E você não pediu. E, pela primeira vez em muito tempo, Zoe não conseguiu encontrar uma resposta que o colocasse em seu lugar. Ficou ali parada, com a cidade por trás e a vida que ela construíra ao seu redor como cenário, encarando o homem que era para ser uma ferramenta para ela, e não isso. Não um caminho certo para a própria destruição. Ela percebia isso. Podia sentir a marca que Hunter deixara no seu corpo, como um doce queimado. Como uma vergonha. – Se não disser por que me quer, terei de deduzir que seja uma campanha muito criativa para me levar para a cama. – Hunter cruzou os braços no peito, parecendo ainda mais másculo, arrogante e convencido. Presunçoso, pensou ela. – E eu gosto de sexo, Zoe. Muito. Portanto, ficaria felicíssimo em rastejar no chão se fosse esse o caso. O que importa? Se eu fizer isso, você vai precisar admitir que me deseja tanto assim. Que isso tudo é uma manobra complicada para ficar nua comigo. – Não quero. – Foi automático. E rápido demais. – E isso não é uma manobra. Ele a analisou. – Ou eu posso simplesmente fazer o que costumo fazer. Você vai espernear e me chamar de todos os nomes. Neandertal, cretino, imbecil, qualquer um. – Acredito que a palavra que esteja procurando seja misógino. – Também. Não que seja verdade. Não que você ache que seja verdade, mas longe de mim me intrometer na sua ilusão. Terminaremos no mesmo lugar, de qualquer forma. Ele baixou o olhar, traçando seu rosto, sua boca. Descendo mais, espalhando aquele terrível calor onde a tocasse, tão forte quanto se estivesse usando as mãos. Os lugares por onde seus dedos roçaram na pele dele, por todo interior de sua coxa, se incendiaram. E ela ficou feliz por ter a mesa ampla entre eles. Percebeu, então, que não sabia se o afastaria se Hunter se aproximasse de novo, e isso era a percepção mais apavorante que tivera até agora. – Isso não é “espernear”, sr. Grant – disse Zoe da forma mais gélida que conseguiu. – A verdade é que não acho esses seus espetáculos nem um pouco atraentes. Hunter encarou-a por um longo, tenso, sombrio e perigoso momento, até que não houvesse como negar que o rosto de Zoe estava ainda mais vermelho que antes, ou que ele não conseguia perceber a evidência bem ali na sua frente, como um sinalizador. Mostrando a mentirosa que ela era. Zoe agradecia aos céus por Hunter não conseguir sentir a mordida dele do jeito que ela sentia, latejante e viva, dizendo-lhe milhares de coisas que ela não queria saber, e todas elas contavam uma história de sua própria estarrecedora fraqueza. – Sim, Zoe – ele murmurou, numa entonação zombeteira que ecoou dentro dela como um terrível tremor, sua ruína bem ali no brilho daqueles olhos muito azuis, a curva perigosa de sua boca. – Acredito que você ache. – ENTÃO VOCÊ o odeia. – Daniel, colega de Zoe, olhava de cara feia do outro lado da quitinete confortável do escritório, após ouvir o discurso desorientado e mal-humorado de Zoe sobre o tópico de Hunter e seus muitos problemas de imagem. Para não mencionar os problemas pessoais dele. Nem os problemas pessoais dela, embora Zoe deixasse essa parte de lado. Bem como a marca que ele deixou nela, como evidência. – Eu o odeio demais. O mundo todo o odeia, Zoe. Acredito que o próprio time queimou a imagem dele no Super Bowl durante o show. Então, por que, se posso perguntar, você está assumindo-o como cliente? Você, observou Zoe. Não usou o nós como costumava fazer. Daniel estava certo. – Não gosto dele – disse Zoe, com cuidado, tentando, tarde demais, mudar o tom e esconder o pânico –, mas não é nada pessoal. Só não aprecio futebol americano. – Deixou escapar uma risada e decidiu que não precisava de café, afinal de contas. – Isso nem é verdade, tecnicamente falando; eu não sei nada de futebol. Muito embora o avô dela tratasse o esporte como religião, a ponto de ter transformado sua casa em um templo de adoração; e ai de quem desviasse sua atenção da tela da TV durante uma temporada interminável de futebol. – Dei um jeito de deixar os esportes de fora da minha vida adulta. – Precisamos desse tipo de desafio? – perguntou Daniel com firmeza. Seu olhar era acusador e desagradável. – A empresa tem uma nova missão? Pegar os seres humanos mais repreensíveis e ver se pode torná-los mais suaves e adoráveis, mais adequados para o consumo público? – Ele tem problemas com o humor e com o controle de impulsos – respondeu Zoe, furiosa porque Daniel estava provocando-a em defesa de Hunter Grant. Mais furiosa ainda do que o costume. – Ele foi despedido de seu trabalho devido a alguns problemas de gerenciamento de fúria. Isso o torna menos repreensível do que, digamos, molestadores de crianças? Terroristas? Não acha? Daniel ficou apenas encarando-a, o queixo erguido. Um brilho que ela não queria reconhecer em seu olhar. – Algum problema? – perguntou ela com a maior calma possível. – Não gosto da maneira como ele olha para você – afirmou Daniel. Rápido demais, como se tivesse querido dizer isso desde que entrara para discutir a logística de uma campanha com os dois no escritório de Zoe, mais cedo. Embora Zoe tivesse ficado ali sentada, fingindo ser profissional com um maldito chupão na coxa e Hunter não houvesse feito nada, a não ser forçar um sorriso. – E não gosto do fato de que você não parece se importar com a maneira com que ele a olha. Isso era culpa dela. Ela entrara nisso. Zoe reprimiu um suspiro quando ele a fitou, deslizando a mão direita no ombro esquerdo e massageando para aliviar a tensão ali, que deixava seu pescoço duro como pedra. Daniel fora sua primeira contratação quando começou sua própria empresa quatro anos atrás, uma escolha fácil de fazer, depois de conhecê-lo desde seus primeiros dias como relações-públicas. Mas Daniel era mais do que isso. Fora o primeiro homem em quem se permitira confiar depois de escapar de Jason Treffen. E uma noite em Park City, Utah, enquanto organizava uma reapresentação pós-reabilitação do vício em cocaína de um diretor no Sundance Film Festival, Zoe deixou que o fato de gostar e confiar nele cruzasse uma linha a que ela deveria ter resistido. Isso foi um ano antes, e Zoe ainda pagava pelo erro de várias maneiras desde então. Pelo visto, essa tarde seria mais uma forma de pagamento. – Preciso que você seja meu sócio, Daniel – disse ela com suavidade, mantendo o olhar dele, embora não quisesse fazer isso. Mas achava que devia isso a ele. – Meu parceiro de trabalho. Não um namorado ciumento. – Não sou seu namorado. – Ele não disfarçava mais a amargura. Sua boca parecia furiosa e frágil, tudo de uma vez, e seu corpo esguio e alto estava tenso. – Foi um beijo. Você terminou, não eu… – É exatamente por isso – proferiu ela, cortante como uma faca, e certeira. Os olhos verdes de Daniel arderam de fúria e de algo mais que ela não queria enfrentar, mas em seguida ele desviou o olhar e suspirou. Zoe pressionou com mais força os dedos no lado do pescoço, um pouco massagem, um pouco punição, e deixou o fato de ser uma mentirosa envolvê-la como uma capa. Como uma vergonha, de novo. Como aquela queimadura reveladora, aquela marca na sua coxa. Não foi um sentido de responsabilidade como chefe de Daniel que fez com que o afastasse naquela noite em Sundance. Não era medo do que a relação de trabalho deles poderia virar se permitisse que aquele beijo fosse para onde ele queria que fosse. Ela queria que tivesse sido. Zoe deixou que Daniel pensasse assim, porque qualquer uma dessas coisas teria de ser melhor do que a verdade. Que era essa: ela não sentia nada. Zoe achava que o que lhe acontecera, o que fizera porque tivera de fazer, deixara-a frígida. Incapaz de sentir o que quer que fosse, mesmo quando um homem bonito, de que ela gostava, que considerava um de seus poucos amigos neste mundo, a desejava. Quando achou que também o queria. Daniel a adorava, Zoe já sabia disso havia anos. Ele era bom, gentil. Perfeito para ela; e ela não sentia nada. Achava que isso seria outra parte do que fazia muito já vinha pagando, o preço pelo pecado capital de ter sido uma idiota ingênua aos vinte e dois anos. Achava que estava destroçada no nível mais básico. Impossível de reparo ou de salvação. Arruinada por completo. Até hoje. – Nem tudo era uma piada – Zoe falara pelas costas de Hunter em seu escritório, após ele tê-la deixado lá parada, atônita e caminhado até o sofá, jogando-se nele como se nada tivesse acontecido. Quando ela estava devastada. Em frangalhos. Ele a estudara por um momento, aquele belo rosto sombrio. Nenhuma piada. – Diga o que quer de mim – Hunter pedira, calmamente. – Ou do que tem medo. Você escolhe. E Zoe ainda não sabia como lidar com o fato de Hunter Grant ser a única pessoa que ela conhecera em anos que percebia a verdade. Que via o que ela escondia por baixo daquela carcaça firme e determinada. Que poderia ter levado vantagem hoje, mas não levou. E tampouco entendia isso. E isso não era algo que poderia discutir com Daniel, que talvez a amasse, ela sabia, mas que nunca a enxergara. Não da maneira como Hunter enxergara. Não por inteiro. Zoe sabia que a tempestade passara entre eles, quando Daniel deu uma risada. – Certo – murmurou Daniel. – Entendi. Zoe olhou para ele, aquela consciência masculina que ela não queria ver superada pela preocupação. Ele era diferente de Hunter em todos os sentidos. Daniel poderia não enxergá-la, mas se importava com ela. Por que isso não bastava? Mas ela sabia. De certa maneira, até fazia sentido. Estava maculada, manchada pelas coisas que tinha feito, e sabia disso. Aceitara essa realidade fazia muito tempo. Lógico que, de uma maneira horrível, o único homem que poderia fazê-la sentir algo fora feito de uma seleção de seus medos mais sombrios. Era o tipo de homem que ela mais odiava. O tipo de homem que revelaria esse tipo de poder sobre ela, sem dúvida. Ele apenas começara. Essa marca na coxa parecia brilhar, e então, doer. – Não gosto disso, Zoe – disse Daniel, lembrando-a de onde ela estava e com quem. – Acho que é perigoso. – É claro que ele é perigoso. – Zoe conseguiu rir, fingindo que não doía. Que nada disso machucava. – É por esse motivo que nosso trabalho é transformálo em um gatinho mimoso. O primeiro passo começaria no dia seguinte e iria exigir muito mais de estar sozinha com aquele homem. A última coisa que Zoe queria. Porém, ela conseguiria, sabia disso. Porque não tinha escolha. Porque sua vingança era mais importante do que tudo o mais, incluindo os próprios sentimentos, e ela faria dar certo. Afinal, não tinha escolha. HUNTER DIRIGIUna cidade deprimente por umas duas horas saindo de Manhattan, para onde Zoe o conduzira, perplexo e incomodado. Tudo ao seu redor eram prédios de tijolos desmoronando, o ar sufocante do desespero já profundamente saturado; todas as ruínas habituais do que fora um dia uma cidade de moinhos. Havia locais similares por toda a costa leste, ele sabia, e nenhum deles era mais convidativo desde o último suspiro da indústria têxtil anos atrás. Esse foi o máximo de tempo que já passou em um deles e já queria ir embora. – Parece um lugar adorável para se morar. – Hunter olhava pela janela, para a pequena fileira de casas com uma aparência desoladora que se alinhavam na rua, parecendo abandonadas sob a luz fraca da tarde de inverno, embora ele suspeitasse que não estivessem. – Tão convidativo... – Vamos parar no corretor na saída. – Zoe emitiu um som baixo que era muito agudo para ser uma risada. – Você pode comprar uma casa ou duas com os trocados que carrega no bolso. – O que estamos fazendo? – Hunter quis saber, sem a mesma suavidade da primeira vez, logo após apanhá-la na frente do escritório durante a tarde. Nem da quinta vez, quando pegaram a I-95 na ponte George Washington e seguiram para o norte. – Por que estamos aqui? – Terá de esperar para ver – disse ela, seu tom frio perfeitamente equilibrado, como se fosse assim o tempo todo. Sua atenção estava no BlackBerry, seus polegares batendo no teclado. – Vai precisar confiar em mim. – Olhou para ele, e seus lábios se curvaram de leve. – Vire à direita no semáforo. Hunter não confiava nela. Não confiava nem em si mesmo. Mas ele a saboreara. Sentira o doce calor suave de sua pele sob as mãos. Sentira o perfume inebriante e feminino de lavanda, quente e apurado. E queria mais. Também queria respostas. Mas ele a queria mais. Hunter virou à direita no semáforo e seguiu as indicações dela até o estacionamento do prédio de uma antiga escola do outro lado da cidade. Edgarton High, dizia a placa desgastada na parede. Hunter estacionou com o que ele podia admitir ser uma cantada de pneus meio exibicionista, embora não tivesse surtido nenhum efeito em Zoe. Acenou para que ela saísse do carro, mas, naturalmente, Zoe não o fez de pronto. Ela virou-se para olhar para ele, estudá-lo como se Hunter fosse um quadro na parede de alguma galeria de arte de segunda e ela não o entendesse. Hunter sentiu a força do olhar dela de novo, a eletricidade, e isso o deixou furioso. Se isso tinha a ver com sexo, a maneira como ele queria que fosse, eles já teriam ido para a cama. E muito. E Hunter não desejava pensar no que mais podia ser, porque Zoe não parecia inclinada a responder, e ele não tinha certeza de querer saber. Ela ficou ali sentada, elegante e indiferente, suas longas pernas cruzadas e as mãos juntas sobre o colo. Apenas seus olhos pareciam aquecidos; ardentes, na verdade, e muito calculistas quando se moveram sobre ele. Julgandoo, dispensando-o e certificando-se de que Hunter tinha plena consciência disso enquanto ela agia assim. – Você conhece o conceito de uma transa de ódio? – perguntou ele. Claro que Zoe esboçou um sorriso forçado, embora Hunter tenha se gabado de que, talvez, houvesse um leve rubor nas suas bochechas quando ela o fez. O que significava o fato de ele querer acreditar nisso? Com uma urgência que beirava o desespero? – Que embaraçoso – disse Zoe, embora não soasse nada embaraçada. – Eu não o odeio, sr. Grant. Isso se chama indiferença. – Não se preocupe – disse ele brevemente, sem se incomodar em disfarçar o mau humor, se é que era isso. Parecia que tinha cacos de vidro em sua garganta, em suas entranhas. Até mais embaixo, como se ele ainda fosse um idiota de quinze anos. – Eu a odeio por nós dois. – Você não me odeia. – Zoe estava notavelmente confiante e imperturbável, o que ele de fato não achava excitante; até agora. – Você não entende por que não estou vibrando em reverência nem admirando o grande presente de ter sua atenção, e a única maneira de um cara como você interpretar isso é com o seu… – Olhou para a área em questão, o que não ajudou a melhorar a situação, e, então subiu o olhar para os olhos dele. O dela parecia um mar de inverno e sorridente demais. – Bem... Direi que não, obrigada, e deixarei assim. – Está bem – resmungou Hunter. – Tenho a sensação de que você seria uma chorona conturbada. E, sim, elas geralmente choram. Lágrimas de alegria e admiração. É o meu dom. – Eu não me gabaria de você beijar as meninas e fazê-las chorar, sr. Grant – respondeu ela, a única pessoa que ele conhecera que era imune a seu charme. Hunter disse a si mesmo que isso tudo, esse conflito interno a destruí-lo de dentro para fora, o fazia se sentir feliz. Muitíssimo feliz. – Existem palavras para homens assim, e algumas delas chegam com a prisão. – Vamos ficar sentados aqui o dia todo? – ele tornou a resmungar. Zoe achou graça e começou a abrir a porta, permitindo que Hunter desviasse a atenção da sua boca presunçosa e saísse do carro rebaixado antes que fizesse outra coisa que pudesse se arrepender. Zoe saiu ainda com mais graça, parecendo imperturbável pelo fato de estar de botas pretas lustrosas de salto alto e o estacionamento ter mais gelo do que asfalto. E caminhou na direção dele. Não havia outra palavra para isso. Ela era uma ameaça, Hunter era difícil e estava aborrecidíssimo com toda essa situação. Consigo mesmo. Isso era mesmo uma melhoria ao entorpecimento? – Por que os homens grandes insistem em dirigir esses carros minúsculos? – perguntou ela. Ele já estava perdendo as estribeiras, ao passo que essa mulher enfurecedora ficava falando como se estivesse em um coquetel aborrecido e decidira cerrar os dentes e ser educada com ele. – É preciso quase deitar-se para entrar nele. Decerto, com todo o dinheiro que você tem, poderia encontrar um veículo esportivo em que caiba de verdade. – Gosto de carros rápidos. E quanto mais rápidos eles são, menores ficam. É uma questão de aerodinâmica. Em um minuto ele estaria batendo no peito como um gorila. Ou fazendo exatamente o que desejava, o que a alertara que poderia fazer, que era arrastá-la à caverna mais próxima com suas mãos enterradas no balançar brilhante do cabelo escuro dela. E depois... E depois... Mas Zoe estava rindo dele. Brejeira. Indiferente. E mesmo assim Hunter a desejava. – Siga-me, por favor – Zoe pediu, com toda aquela calma irritante. – E tente não tropeçar em nada enquanto estiver ocupado demais desprezando a forma como esse pessoal simples vive. – Podemos apenas… entrar? – ele demandou, quando ela abria a porta pesada da escola e o convidava a entrar com um aceno de cabeça. – Não deveria haver guardas ou algo assim? – Este não é o tipo de lugar em que a comunidade se reúne e exige medidas de segurança nas escolas – disse ela e seu tom estava um pouco mais gélido do que antes. – Está mais para aqueles antros em que o uso de anfetaminas cresce, todos bebem para esquecer em bares deprimentes, e a única coisa que pode ser feita pela sobrevivência é ir embora. Mas poucas pessoas conseguem fazer isso. – Obrigado por me trazer aqui – disse ele sem nem mesmo tentar esconder a irritação. – Não tem nada que eu aprecie mais do que… – Foi daqui que Sarah saiu – disse Zoe, a voz cortante como uma faca. Hunter pensou ter se transformado em pedra, ou quem sabe apenas desejasse ter virado uma. O olhar frio de Zoe procurou o dele, e havia uma espécie de calor sombrio que Hunter não reconheceu, mas que ela dissipou. Em seguida, tratou-o com ansiedade, exigindo um sorriso. – Esta é a escola onde ela estudou. Sarah foi a oradora da turma. Foi assim que entrou para Harvard. Sabia disso? Hunter sabia alguma coisa. Mas havia esse terrível pressentimento agarrandoo, como dedos em sua garganta, e ele não queria ter essa conversa. Não queria nada daquilo. Não queria saber mais do que já sabia. – Não, srta. Brook, não sabia. – Porque isso era quase verdade. – Quanto tempo ficaram juntos? – Poderia ao menos tentar disfarçar esse tom de julgamento? Ela riu, um som vazio. – Eu estava tentando. – Tente mais, então. – Hunter olhou-a por um minuto. – Ou encontre um fantasma diferente para jogar na minha cara. – Ele não entendia a multidão de sombras que via passar pelo rosto dela. Não queria entender, assim como não desejava fazer a próxima pergunta. Mas fez: – Vai me contar como a conheceu? Zoe não respondeu, e o covarde dentro dele se sentiu aliviado. Ela começou a caminhar, e ele desejava ir embora, naquele momento. Hunter não queria nada com essa mulher ansiosa que escondia a fundo sua suavidade, muito menos aquelas coisas sombrias que vira naqueles olhos inquietos. Nada a respeito dela – nada a respeito disso – o levaria de volta ao torpor, e essa era a única coisa que ele sabia como fazer. A única coisa que ele queria. Mas Hunter acabou por segui-la. A escola era uma bagunça. Paredes sujas, pintura descascando. Sem instalações, para falar a verdade, nem nada que tivesse visto dias de glória por muito tempo. Era muito destoante da escola preparatória exclusiva que Hunter cursara fora de Boston. Esse era um lugar onde os sonhos eram transformados em pó e, depois, negados. A apatia estava impregnada nas paredes, ecoava pelos corredores com pouca luz, penetrava pela pele de Hunter e fazia com que se sentisse culpado a cada passo. Mais culpado. Sarah caminhou por ali. Sobreviveu a isso e, de alguma maneira, quando Hunter a conheceu em Harvard, ela era uma pessoa muito ativa. Não era deprimida. Nem oprimida. Sarah se empolgava com todos os sonhos que planejara realizar e insistia que todos ao seu redor fizessem o mesmo. Se não fosse por Sarah, ele teria pego o caminho de menor resistência direto para o fundo e a cobertura que seu pai administrava em Boston, um caminho que seu irmão mais novo seguiu sem pestanejar. Teria vivido a vida que Zoe Brook expusera para ele naquela boate de strip, todo o dinheiro do Monopoly e o sangue azul do Mayflower, como sua irmã, Nora, e sua esnobe arte para caridade que seus pais ficavam felizes em subsidiar, porque era isso o que era esperado dele. Hunter era um Grant, e os Grant eram financistas. Homens de negócios. Filantropos ocasionais, mas não atletas profissionais. Essas exibições vulgares estavam abaixo deles, como sua mãe parara de lembrá-lo depois de seu terceiro ou quarto escândalo publicado. Fora Sarah quem disse a Hunter que deveria fazer o que quisesse, e não o que a família esperava dele. E quem poderia dizer como poderia ter sido sua vida se ele tivesse lidado de forma diferente com tudo dez anos atrás? Talvez tivesse salvado Sarah de seu pesadelo. Talvez houvesse se orgulhado do sonho que ela o encorajara a realizar e feito algo em vez de desperdiçá-lo. Mas ele nunca saberia. Hunter parou ao ver Zoe parar, e se deu conta de que eles estavam do lado de fora de um ginásio vazio e da lamentável sala de musculação com as venezianas quebradas nas laterais. Ele franziu a testa, e levou um momento até que entendesse que não estava com raiva, apesar da sensação de algo muito parecido com esse sentimento em seu sangue. Talvez estivesse na defensiva. Estava tão tenso que chegava a doer. – Esse é o time de futebol da escola – Zoe informou. – Tal como é. Hunter olhou para as crianças do outro lado da janela. Elas não pareciam em nada com um time de futebol. Eram esqueléticas. Não havia um atleta natural no grupo, algo que ficava muito evidente, mesmo com um olhar superficial. O pressentimento começava a sufocálo de novo, e mais forte dessa vez. Hunter passou as mãos pelo cabelo, agitado. Queria se mexer. Fazer alguma coisa. Essa inquietação era sua ruína. Sempre fora. Fazia com que brigasse, ou transasse, independentemente do que seu cérebro pedisse para fazer. Duvidava que Zoe fosse apreciar. Ela estava muito calma ao lado dele. Muito calma. Isso acionou todos os tipos de alarmes nele, mas Hunter não entendia o motivo, e gostava disso tanto quanto gostava dessa inquietação dentro de si, que ainda pulsava. Ela apontou para o jovem professor no canto, falando intensamente com um dos seus alunos. – Aquele é Jack – disse ela. – Ele ensina matemática, e tenho certeza de que a única coisa que sabe sobre futebol aprendeu vendo no YouTube. Jack comprou a maioria dos pesos ali e inventou que encontrou o dinheiro em algum lugar nos orçamentos de programas para atletas; o que, sejamos francos, não existe. – Isso tem a ver com caridade? – perguntou ele depois de um tempo. – Porque eu não precisaria dirigir duas horas para o interior para ouviu outra história triste. Poderia ter feito um cheque no seu escritório ontem. – Isso não é caridade. – É o que, então? Por que estou aqui? Zoe o encarou, séria, quando Hunter se virou para ela, e havia uma turbulência que ele não compreendia em seu olhar, tornando-o sombrio, nublado. Fazendo-o ter desejos, mas isso era ridículo. Insano. Se ele a tocasse, provavelmente ela amputaria sua mão com um simples olhar. – Para seu conhecimento, uma dessas crianças é o próximo… – Fez uma pausa. – Não faço ideia do que constitui um prodígio no futebol. Você? Talvez um deles seja o próximo você. Hunter não desejava isso para ninguém, muito menos um garoto que já não tinha nada. – Não há prodígios nessa fala – disse categoricamente. – Esse time de futebol é uma porcaria. E, sim, essa é uma avaliação que posso fazer com tranquilidade sem tê-los visto jogar uma bola. Os olhos dela estavam escuros demais. – Que sorte, então, que eles têm um dos melhores jogadores da história do futebol à disposição. Você pode ensinálos a como jogar uma bola. – Não. – Hunter parecia distante, até para si mesmo. – Não posso. – Você vai. Ele deixou escapar um som desolado demais para ser uma risada. – Também assisti Friday Night Lights. Todos amam o treinador Taylor, Zoe. Mas isso não significa que quero ser ele. – Ninguém aqui vai confundi-lo com o treinador Taylor – respondeu Zoe, mordaz, e, embora seu olhar ainda estivesse sombrio, a voz soava normal. Suave. Fria. Um desafio que ele sentiu como se as mãos dela estivessem em sua pele, em seu membro. – O treinador Taylor é uma figura adorada que ninguém quer acreditar que seja ficção. Sem mencionar que é um bom homem. – É isso o que quero dizer – disse ele por entre os dentes. – A última coisa que essas crianças precisam é de mim. Hunter achou tê-la visto sorver o ar, vigorosa e rapidamente, e ocorreu-lhe que talvez Zoe não fosse tão gélida quanto aparentava. Era patético o quanto ele queria que isso fosse verdade. – Isso é chamado de controle de danos, Sr. Grant. O equivalente à vida real de um garoto mau em um filme fazendo carinho em um cãozinho fofinho. Precisamos humanizá-lo. Você é rico demais e odiado demais. – Os paparazzi vão me encontrar. – Ele não sabia por que estava tão furioso, por que se sentia tão bruto. Tão atacado. Tão indiferente a isso, em todos os sentidos. – Eles sempre encontram. Já posso ver as manchetes. Minha tentativa cínica de mudar a opinião pública. Minha manobra calculada para ganhar meus fãs de volta. E assim por diante. Não existe a menor possibilidade de eu ficar parecendo um imbecil dissimulado. – Deixe que eu me preocupe com isso. – Não quero tal coisa. – Hunter se virou para ela. – Estou bastante entediado para deixar meu pai me levar para a costa leste, mas não fingirei ser algum tipo de influência positiva para um grupo de garotos. A hipocrisia poderia me matar. Você terá de encontrar outra pessoa para fazer seus joguinhos, Zoe. – Não! Era alarme o que ele via no rosto dela? Ou queria que fosse? – Preciso de você. – Que pena. – Esse é o primeiro passo – disse ela rapidamente, e ele teve a sensação de que Zoe queria tocá-lo no braço, mas não o fez. Porque sabiam o que acontecia quando se tocavam. E ele era bruto o bastante para deixar que o indício de que ela estava tomada pelo desejo como ele o amolecesse. Zoe se manteve em silêncio por um longo tempo, embora Hunter pudesse senti-la ao seu lado, aquela irritabilidade dela parecendo vibrar, chacoalhar o ar ao redor deles. E também se esgueirar em direção a ele como se ela estivesse penetrando em sua pele, quando isso era a última coisa que ele queria. Hunter teve de lutar para não passar o braço ao redor do corpo esguio dela e puxá-la para perto, como se precisasse ou quisesse seu calor. Ele nem mesmo sabia de onde vinha essa ânsia. Fora carinhoso com uma única pessoa durante toda a sua vida, e ainda estava lidando com os destroços. Não cometeria o mesmo erro de novo. – Faça isso – Zoe falou, por fim, com a voz baixa, bem quando ele começava a pensar que ela não falaria nada. – Faça isso e observe do que sou capaz quando eu deixar vazar; a rapidez com que as opiniões a seu respeito mudarão. Eu sou muito boa. – E esse é o seu grande plano? Está desperdiçando seu tempo. Porque não me importo com o que dizem sobre mim, Zoe. Sou imune. – Não acredito em você – ela afirmou com tanta suavidade que pareceu um sussurro. E Hunter não tinha como responder a isso. Não ali. Não com o fantasma de Sarah pairando sobre ele e os segredos de Zoe como sombras negras aos seus pés. Não com aquelas crianças que mereciam uma melhor visão dele através do vidro, que já o reconheciam. Hunter ainda queria estar dentro dela mais do que a sabedoria permitia. Mais do que o limite do saudável. Mais do que poderia ignorar. Assim, disse a si mesmo que esse era o motivo por estar fazendo isso. Porque era a única explicação que fazia sentido. – Como isso funciona? – perguntou ele, e sua voz soou mais rouca do que deveria. – Venha aqui todos os dias – disselhe categoricamente, como se soubesse o que ele estava pensando, e Hunter acreditava que Zoe tinha poder para isso. – Faça o que puder. Encontre-se com minha equipe na quinta-feira para uma atualização do progresso. Seus olhares se cruzaram, e ele desejou ser um homem diferente. Melhor. Um homem bom. – E não mencione o ódio nunca mais. Faça o que é pedido, sr. Grant, e nós ficaremos bem. CAPÍTULO 5 ELA ESTAVA brincando com fogo. Mas nas semanas que se seguiram, Zoe convenceu-se de que sabia o que estava fazendo. Que era um incêndio controlado. Que tinha tudo sob controle. Que aquelas coisas estranhas que pairaram entre eles, sombrias e radiantes ao mesmo tempo, mesmo no corredor da escola, eram fruto de sua imaginação. E, de qualquer maneira, não eram nada com que tivesse de se preocupar. O que era uma coisa boa, porque já bastava ter Hunter com que se preocupar. Até mesmo, principalmente, quando ele se “comportava”. Zoe passara muito tempo pesquisando o que os tabloides chamavam de Efeito Hunter. Agora ela precisava observar isso na prática enquanto ele colocava em ação de uma forma mais ou menos contida no circuito social de Manhattan, exatamente conforme o planejado. – Precisa sorrir dessa maneira para toda mulher que olhar para você? – perguntou Zoe, tentando conter o azedume diante das dezenas de admiradoras que ficavam balbuciantes ao vê-lo caminhar orgulhoso vestido a rigor no baile anual da Viennese Opera em benefício ao Carnegie Hall, no elegante Waldorf Astoria. Em um mar de criaturas resplandecentes, Hunter parecia brilhar ainda um pouco mais; sua notoriedade que se danasse. – É assim que eu sorrio, Zoe. – Seu sorriso tem vários níveis de ameaça, e se você não usar um mais gerenciável, causará um tumulto. – Gosto de tumultos. – Que surpresa! Mas esta noite será elegante, contido e passará despercebido. Sei que requer um esforço. Hunter virou-se com aquele sorriso exuberante para ela. Era anestesiante e de tirar o fôlego. Seus olhos azuis indolentes, a curva de sua boca confiante, e aquele físico estonteante vestido tão elegantemente que quase fez os fotógrafos chorarem ao tirar inúmeras fotos. Zoe fingia que esse tremor interno, forte e longo, era apenas fome. Esquecera-se de jantar. – Acabe com ele – disse ela, e deu um longo suspiro, como se Hunter a aborrecesse. Ela queria que fosse assim. Mais a cada dia. No entanto, mesmo quando Hunter não estava sorrindo de maneira tão sedutora, ele era formidável. Tinha força de personalidade e presença, e por mais que fosse doloroso admitir, era de tirar fôlego vê-lo em ação. Zoe arrastou-o a um hospital para ajudar pacientes terminais, onde Hunter passou duas horas lendo para alguns garotos que o olhavam como se ele fosse melhor a cada palavra. Levou-o a um almoço beneficente em prol das bibliotecas, onde ele encantou completamente os bibliotecários sisudos, no geral senhoras, que Hunter fez corar e depois dar risadinhas, como as garotas que estavam com ele na academia naquela noite em que ela o encontrara seminu. – Ele é um homem mau, muito mau – disse uma delas a Zoe, em voz baixa, abanando-se teatralmente. – Isso é bem verdade – respondeu Zoe, com irritação. E sorriu, na esperança de que isso pudesse eliminar seu show impróprio de ressentimento. – É o brilho nos olhos dele... – confidenciou a bibliotecária. – Como não perdoá-lo por tudo? Como mesmo? Isso levantou uma questão: como Hunter conseguiu fazer todo um país se virar contra ele? Porque quanto mais tempo Zoe passava com Hunter, mais compreendia que sua terrível reputação, seus acessos de raiva e seus escândalos deviam ter sido todos de propósito. Ela mesma disse isso em uma tarde de neve no Prospect Park no Brooklyn, onde Hunter decidiu “do nada” fazer um boneco de neve com um grupo fotogênico de crianças. – Você consegue encantar todos que conhece sem o menor esforço – ela afirmou sem rodeios, enquanto eles caminhavam com dificuldade de volta ao campo e suas botas trituravam a camada de gelo escondida sob a neve fofa. – Por que todo esse trabalho de se tornar tão odiado por toda parte? – Comprometimento total – disse ele, daquele jeito malicioso. – É como eu jogo. – Estou falando sério. Hunter estava usando um chapéu de lã que caía na testa e um cachecol ao redor do pescoço, e ainda não era o bastante para suavizar o impacto de seu olhar radiante. Que a queimava, aquecendo-a por dentro, fazendo com que se esquecesse do frio, da neve, da longa caminhada. Fazendo com que se esquecesse de um longo e perturbado momento em que precisou conter esse fogo ou ele poderia destruir o que restara dela. Lembrando-a de que muito do que vira era uma atuação, e esse Hunter, dos olhos azuis e diretos e da boca surpreendentemente sombria, era mais provável de ser o real. Que Deus a ajudasse. – Uma pergunta melhor, já que sou tão desprezado, seria: como você acha que essas fotos minhas cheias de vida em poses planejadas com centenas de querubins de bochechas rosadas vai funcionar? – De forma casual – respondeu ela, e disse a si mesma que não estava aborrecida com todo esse foco repentino. – Não sei o que isso significa. – Saberá. A boa notícia é que eu sei muito bem o que significa. Ele a fitou de novo por um longo tempo, e ela ficou se perguntando como não se reduzira a cinzas ali mesmo; e quem se importava com o frio que estava fazendo? Achou que ele pudesse dizer alguma coisa mais e se preparou. Não sabia por quê. Havia algo no raspar sombrio dos galhos das árvores nuas atrás dele, o céu cinzento, a neve caindo ao redor de Hunter como uma mensagem. Como algo que ela não quisesse analisar muito de perto. Mas Hunter apenas enfiou as mãos nos bolsos do casaco, inclinou a cabeça contra o vento e continuou caminhando. Zoe falou a si mesma que isso era algo bom. Porque era. É claro que era. – Quero que você passeie de carruagem no Central Park – anunciou ela certa manhã bem cedo em uma das reuniões no desjejum que ela marcava. Hunter a encarou, parecendo sonolento e mal-humorado, e absurdamente sexy vestindo jeans e um blusão de gola alta, com a barba por fazer. – Deixe-me adivinhar. Eu começo a cantar no primeiro poste de luz e todos viramos uma animação que se transforma em um vídeo viral no YouTube. – Olhou para ela com o cenho franzido, e, depois, para o café. – Não, obrigado. – Não seria um encontro amoroso – continuou Zoe como se ele não tivesse falado. Estava sentada na frente dele junto a uma mesinha de madeira muito pequena e que estava bamba. Zoe pegou seu BlackBerry e fez pose olhando para ele, como se não estivesse tão consciente assim de quanto espaço Hunter ocupava naquele canto da cafeteria, do quanto ele era grande. De como era atraente, mesmo quando não estava tentando ser nada disso. Talvez mais ainda nessa situação. Ela manteve o tom animado: – Precisa levar sua mãe. Hunter deu uma risada curta e surpresa. – Alison Blodgett Grant não andaria em uma carruagem alugada como uma turista comum mais do que daria cambalhotas nua em plena Broadway – disse Hunter com ironia. – Além disso, ela não atende mais às minhas ligações. Minha mãe as transfere para a secretária, que as analisa para ver se não têm nada de perturbador antes de transmiti-las. Zoe parou de fingir que estava interessada no BlackBerry. – Sua mãe tem uma secretária? Achei que ela não trabalhasse. – Ela tem uma secretária para seus assuntos sociais; e não, ela não trabalha. Não da maneira como você imagina. – Mas com certeza ela… – Zoe. Ela nunca tinha ouvido esse tom na voz dele, que a fez se sentar mais ereta e ficar quieta. – Minha mãe queria um senador. Prestígio, poder e um bom uso para todos aqueles séculos de criação aristocrata. Ela acha que esportes são para as crianças, não para adultos. E fica horrorizada pelo fato de que seus outros filhos apareceram nos jornais muito menos do que eu. Sem falar nos muitos escândalos embaraçosos que me levaram a eles, todos vistos por ela como uma ofensa pessoal. – O sorriso que se rompeu em seus lábios fez o coração de Zoe se apertar. – Minha mãe não vai despencar para Nova York para me salvar de mim mesmo. Posso assegurar. Não havia nenhum motivo para que ela lutasse contra o desejo de confortá- lo. De colocar as mãos nas dele, tocá-lo, fazer alguma coisa sobre como Hunter estava sentado ali, sozinho e resignado, nem mesmo atento; ele parecia terrivelmente triste. Recomponha-se, vociferou para si mesma. Essa era a encenação dele. Tudo é encenação. Mas ela não acreditava nisso. Zoe limpou a garganta e sugeriu: – Sua irmã, então. – Nora? – Tem mais de uma? – Ela sabia que não. – Nora tem coisas melhores para fazer. – Ele baixou o olhar sério para o café e levou um tempo até que olhasse para Zoe de novo. – Ou eu acho que sim. Ela é uma socialite atarefada. – Sua irmã administra uma instituição artística bem impressionante no SoHo, na verdade. – Ela franziu a testa quando ele pareceu surpreso. – Não sabia? – Sabia. – Hunter roçou a mão no maxilar com a barba por fazer. Era estranho que Zoe quisesse fazer isso ela mesma. Que as palmas de suas mãos na verdade estivessem coçando para fazê-lo. Ela agarrou sua caneca quente de café, como punição, e não largou-a quando sentiu dor. – Ela é praticamente uma criança. – Tem vinte e quatro anos. – Exatamente. Zoe suspirou. – Já se deu conta de que todas aquelas strippers que estavam ao seu redor naquela manhã eram da idade da sua irmã, se não mais jovens? Dois pesos e duas medidas, sr. Grant? Ele tomou um longo gole de café e colocou a caneca na mesa, com muito cuidado. E, quando seu olhar se encontrou com o dela, tinha uma fúria moderada, e Zoe não devia ter gostado. – Deixe minha irmã fora disso. Ela já tem muito com que se preocupar como o depósito ativo para todas as fantasias dinásticas da minha mãe. E quanto às strippers… – Hunter se inclinou para a frente, e Zoe percebeu que estava prendendo a respiração. – Para alguém que passa grande parte do tempo manipulando a percepção para servir aos clientes, você acredita em tudo o que vê com muita facilidade. – A voz dele era sombria e áspera, assim como a maneira com que a olhava. – É bom que você seja sexy, Zoe. Ou você não passaria de um aborrecimento. Zoe se concentrou na última parte, a parte ofensiva, porque não queria saber o que ele queria dizer. Não queria sentir nada que não fosse uma leve piedade e um pouco mais de aversão quando Hunter a olhava. Mas ela não sentia nenhuma dessas duas coisas fazia tempos. E foi preciso apenas uma ligação naquela tarde para descobrir que Hunter não passara a noite naquela boate de striptease em que o encontrou. Fora seu ex-companheiro de time, casado, que passara a noite na festa. Hunter recebeu uma ligação da mulher dele quando o homem continuava firme e forte na manhã seguinte, segundo o gerente da boate. Ele pegou o amigo, colocou-o no carro e pagou por tudo, inclusive pelo tempo das strippers. Com uma generosa gorjeta. Quase como se ele não fosse quem ela achava era. Daniel, é claro, discordara com veemência. O resto da equipe achava as reuniões com Hunter – de que Zoe parou de participar após aquele último café, porque não podia se permitir desviar-se de suas metas, e todo aquele tempo com ele parecia levar direto para a cegueira – nem mais nem menos chocantes do que aquelas em que tinham de lidar com o resto de seus clientes ricos e arrogantes. Mas não Daniel. – Ele é um boçal – disse Daniel, com rispidez. Ele parou furioso diante da mesa dela, com tanta raiva que Zoe não ousou revelar seu pequeno pensamento – que o achava um boçal quando o conhecera, mas que mudara de opinião fazia algum tempo. E, honestamente, não gostava de ouvilo ser chamado assim agora. – Ele é um cliente – ela afirmou, porém. Daniel não precisava saber que Hunter não procurara por ela, e, portanto, não estava pagando pelos serviços. Ninguém precisava saber disso. – Um cliente muito rico, Daniel. O que importa se é um boçal? – Pode dizer ao seu cliente que se ele me chamar de fraco e frágil de novo, daquela maneira tosca dele, eu vou largá-lo de mão. Zoe sabia que não podia rir. Manteve o rosto completamente isento de diversão. – Por que Hunter o chamaria de fraco e frágil? – perguntou ela, com cautela. Ele estaria ameaçando? – O sujeito é metido a valentão – vociferou Daniel. – É isso o que os valentões fazem. E o fato de ele ficar bajulando você não significa que funcione com os outros, Zoe. Grant é candidato ao desastre. Por que você não enxerga isso? – Sei o que estou fazendo, Daniel – revidou ela, um pouco mais irritada do que deveria. Daniel pareceu ter levado uma bofetada dela, e Zoe não se sentiu culpada como deveria. – Ouça – disse ela, voz mais calma –, você precisa confiar em mim. Sempre confiou antes. – E confio – Daniel murmurou, embora ela pudesse ver que ele continuava com raiva. Mas o problema era que Zoe não tinha certeza se confiava em si mesma. Porque quando estava com Hunter, esquecia-se de que o propósito disso tudo era vingança. HUNTER TOCOU a campainha do bar privativo em Chelsea naquela noite, precisamente às nove e meia como combinado, e deixou que o recepcionista o guiasse pelo seu interior luxuoso. Era um espaço sexy e elegante de veludo e madeira, conforto sofisticado acentuado por coquetéis ambiciosos e pouca luz. Hunter foi levado a uma área privativa cercada de cortinas transparentes e românticas, através das quais pôde vislumbrar apenas uma leve sugestão do que ele deduzia que fosse Zoe. – Quando pediu que a encontrasse aqui eu não me dei conta de que era um bordel – disse ele abrindo caminho através da barreira cintilante como um touro em uma loja de porcelana. – Eu teria me vestido de maneira mais apropriada. Com minha roupa de dança do ventre, por exemplo. Talvez não saiba, Zoe, mas eu faço a dança dos sete véus. E, então, Hunter parou, dando uma boa olhada pela primeira vez nela sem aquelas cortinas no caminho. Era como ser dispensado de forma decisiva por toda uma linha de defesa. – Não fique tão empolgado – disse Zoe, fria, erguendo o queixo. Ele não conseguiu evitar. Ela usava uma espécie de vestido brilhoso em um de seus tons cinza-escuros favoritos, que aderia a cada curva e cavidade, superfície e extensão de seu corpo perfeitamente tonificado. Fez sua boca ficar seca e sua cabeça girar, todo seu sangue seguindo para a parte mais irreverente e incontrolável de seu corpo. – Não estou empolgado – afirmou ele com voz arrastada, numa aproximação de seu eu descuidado, o cara que se entediava com tudo. Hunter se lembrava desse cara. Era ele cinco minutos atrás. – Esqueceu? Sou rico, lindo e famoso. As pessoas costumam se empolgar ao me ver. – Se você diz – respondeu ela, previsivelmente indiferente, o que, também previsivelmente, fez com que ele a desejasse ainda mais. – Atenção positiva não é o mesmo que atenção negativa, sabe disso. A menos que você seja uma prostituta de atenção. – Sou o tipo de prostituta que você quiser que eu seja, Zoe. – E ele abriu um sorriso quando os lábios dela se estreitaram. – Já reconsiderou sua posição em uma boa transa de ódio, bem pervertida e relaxante? Porque eu não. Só para constar. O olhar gélido e acinzentado dela era repreensivo, mas, bem lá no fundo, Hunter imaginou ter visto um lampejo de calor. – Tive uma reunião antes que exigia um traje formal. Não me vesti para você. – Ela parecia muito agitada, e ele se parabenizou por ter conseguido ao menos uma pequena rachadura na armadura de Zoe Brook. – Está olhando para mim como se estivéssemos em um encontro. Não estamos. – Você é uma destruidora de sonhos, Zoe. Uma estraga-prazeres de marca maior. Sente prazer em arruinar tudo aquilo que toca? – Além disso – continuou ela, olhando-o com aquele seu jeito superior, um olhar afetado apenas pelo leve tremor dos lábios –, não serviria para nenhum propósito estratégico ser visto em um encontro comigo. Precisamos encontrar uma assistente social para você. Talvez uma professora de maternal. Alguém que seja doce, saudável e boa. – Parece emocionante. Sinceramente. – O amor virtuoso dela fará de você um homem melhor. – Duvido muito. – Essa é a questão da virtude. Pode ser aproveitada e utilizada. Todos acreditam que o amor, sobretudo o amor virtuoso e saudável, inspira mudanças. Assim como a religião, mas essa é mais difícil de vender e requer que você continue com a prática em locais públicos. O amor que reabilita é imaculado. – Não percebi que você tinha uma agência de encontros – ele manteve a voz calma. – Não preciso preencher um questionário detalhado, discutindo minhas diversas preferências sexuais? Para começar, gosto de mulheres obedientes e aventureiras. – Essas coisas andam juntas? – Quer que eu lhe mostre? – Ele sorriu quando ela virou os olhos. – Que pena... Mas tenho certeza de que há professoras selvagens e ardentes de préescola, cheias de virtude e ansiando por um cara como eu para orientá-las, não é? Mas Hunter não estava pensando muito nas vidas secretas e pervertidas das professoras, por estar preso na extensão das esculturais pernas de Zoe, na maneira com que se mexia na banqueta, cruzando-as e fazendo com que ele esquecesse o próprio nome. Toda aquela pele audaciosamente nua com o inverno rigoroso, um creme cor de marfim descendo até chegar a um par de sapatos com os quais era impossível se caminhar, aquelas ankle boots audaciosas que lembravam punk rock e o tipo de sexo exigente e instigante que arrasava com vidas inteiras. O tipo que faria com Zoe, mais cedo ou mais tarde. Ou ele morreria desejando-a dessa maneira. E, então, havia o restante de seu corpo sexy e elegante, naquela escandalosa superfície cinza, com apenas um único, quase penetrante, diamante no pescoço, o cabelo preto preso no alto em um visual que parecia complicado e gracioso, e que fez com que ele desejasse afundar as mãos e os dentes nele – nela… Talvez não fosse bela. Talvez fosse ainda mais intensa do que isso. Talvez a beleza fosse algo insípido ao lado de Zoe Brook e o que ela conseguia fazer com um simples vestido justo e sem alças. O que ela estava fazendo com ele. Nesse momento. – Sente-se, sr. Grant – ordenou Zoe, o cenho franzido demonstrando mais incômodo do que aborrecimento, o que ele entendia que era mais um golpe para colocá-lo em seu lugar. Hunter gostava disso. – Pare de me chamar assim, Zoe. Isso me faz querer demonstrar que estamos em uma posição muito menos formal, ou ao menos deveríamos. É o que você quer? Os lábios dela se apertaram. Hunter não se enganara: havia um lampejo de diversão nos olhos azul-acinzentados dela. Zoe apenas acenou de leve, depois de um momento, dando o ponto para ele. Mas uma vitória era uma vitória. E, embora pequena, tomou conta dele como uma chama. Como uísque. Como sexo. – Fale. – Como? – Fale – Hunter repetiu, com mais aspereza. – Meu nome. Ele não conseguia ler a expressão que via no rosto dela. O brilho em seus olhos perigosos e distantes. Mas podia sentir a tensão em seu próprio corpo, e sabia que isso era muito mais importante para ele do que deveria. Muito disso – como Zoe – era mais do que apenas uma mulher sexy com um vestido escandaloso. Ela era a única coisa que o mantinha vivo. A única coisa que tinha esse poder. Ele não queria pensar nisso. Queria seu nome na boca de Zoe. Queria ouvir. – Se eu disser seu nome, vai parar de me rondar? – Ela parecia zangada e exasperada, mas ele via algo mais naqueles olhos tempestuosos e frios. Talvez fosse o que queria ver. Talvez fosse a verdade. – Está me deixando ansiosa. – Se disser meu nome, eu lhe darei tudo o que quiser. – Certo. – Mas ela se conteve por um momento, depois outro. Engoliu em seco. E rendeu-se: – Hunter. – Foi assim tão difícil? – perguntou ele, divertido. – Você não se desintegrou. É só um nome. Hunter sentou-se muito calmo, saboreando o momento. Primeiro, tirou o casaco, jogando-o de lado com displicência, sem tirar os olhos dela. Em seguida, acomodou-se muito próximo a Zoe, quase por cima dela, abrindo um sorriso quando ela suspirou, irritada. Zoe se manteve rígida e ereta, e ele, relaxado, esticando o braço por cima da cadeira, ficando muito próximo de abraçá-la. – Você realmente gosta de invadir o espaço dos outros, não é? – perguntou ela, com uma sobrancelha erguida. Mas não se moveu. – Sou muito grande. – Hunter aspirou o perfume caro e elegante que ela usava, que não era nem de perto tão fascinante quanto o aroma de lavanda que sentiu em sua pele, em outra ocasião. – Não posso fazer nada se preciso de muito espaço. – Você usa seu corpo como arma. Ele ficou um tempo observando-a. Memorizando, como se não tivesse certeza de que chegaria perto assim dela de novo. Do arco perfeito das sobrancelhas escuras. Da boca teimosa e esperta, brilhante na luz trêmula e parca dessa noite. Hunter podia ver seu pulso através da pele macia de seu pescoço, dizendo-lhe exatamente como era custoso para ela ficar próxima a ele. E, mesmo assim, Zoe não tentou afastá-lo, nem mesmo quando o olhar dele foi baixando, até esquecer-se por completo no vão tentador entre seus seios. Ele ansiava por prová-la agora mais do que ansiava pela própria respiração. Não fazia ideia de como se conteve, a não ser pelo fato de que queria que Zoe o desejasse, também. Queria que ela se sentisse fora da própria pele, como ele se sentia. Como que aniquilado por essa atração. Essa… coisa que estava aos poucos tomando conta dele. Do que sobrara dele. Hunter acenou em direção ao pecado acinzentado que era o vestido dela. – Roto – disse ele, e em seguida indicou a si mesmo com um movimento da mão. – Esfarrapado. Zoe encarou-o por um longo momento, com aquele misto inebriante de consciência e cautela em seu olhar. – Não entendi. – É uma coincidência, então, que você esteja usando um vestido que parece ter sido pintado direto em sua pele esta noite. Para sua “reunião” neste ambiente obviamente não corporativo, com um cliente que chantageou para que trabalhasse com você. Um cliente que sabe como suas coxas se sentem sob as mãos dele. Sem mencionar o sabor. – Ele riu. – Tenho certeza de que o fato de você parecer apetitosa não teve nada a ver com sua decisão de vesti-lo esta noite. – Não é para você! – Não pode usar seu corpo da maneira como faz e depois reclamar quando os outros fazem o mesmo, Zoe. – Não sou um homem grande, cheio de músculos e com a força de um touro, deixando rastros pelo mundo como um bandido desprevenido. – Nem eu. – Hunter se surpreendeu ao perceber que sorria. – Meus pés têm um arco adorável. Todos dizem isso. Quer ver? – Você é impossível – Zoe resmungou, mas ele pensou ter visto um leve lampejo de humor no canto de sua boca, como uma risada freada antes de traí-la. – E não quero falar sobre suas inumeráveis falhas corporais. Quero falar sobre seu comportamento com meus associados. – Estou ainda menos interessado nessa conversa. – Você não pode bater de frente com Daniel – Zoe afirmou com severidade. – Pode não ter percebido, mas você precisa dele. Xingá-lo não é muito inteligente. – David é um punk – disse Hunter, com desdém. – O nome dele é Daniel. – Não me importa o nome dele. – Embora Hunter soubesse, é claro. Ele a encarava. – O sujeito é apaixonado por você. Ela não negou. – Isso é mais uma coisa que não é da sua conta. – Você não está saindo com ele, ou o defenderia e me mandaria para longe. – Talvez eu faça isso de qualquer jeito. Não importa com quem eu esteja saindo. – Zoe mostrou a ele aquele sorriso malicioso, e Hunter sentiu-o em sua virilha, como se ela tivesse se inclinado e lambido toda sua extensão, ali mesmo. Sentiu-se ficar rijo como uma pedra. Ardente. Mas ela ainda estava falando: – Não sei o que há com você que traz à tona esse desejo intenso de fazer-lhe mal. Mas tenho certeza de que você passa por isso tempo todo. – Sou um gosto adquirido. – Que as pessoas cospem fora? – Aquela sobrancelha arqueada, aquele torcer da boca... – Prefiro quando engolem – disse ele, o olhar naqueles lábios brilhantes. – Mas não vou mentir, Zoe. Não sou muito exigente. Ela voltou a cabeça para trás, com certeza para dizer mais alguma coisa sobre ele, e Hunter se descobriu pronto para isso; toda a adrenalina e o foco que usara no campo agora estava sobre ela. Porém, Zoe apenas riu. Em seguida, encostou-se no assento e colocou as mãos na boca como se quisesse mandar de volta aquele som infantil. Seus olhos encontraram os dele em um misto de espanto e horror. Ele adorou isso. – Está vendo? – Seu sorriso largo ocupava todo seu rosto, trazendo a ele um brilho como da luz do sol. – Você gosta de mim. Zoe balançou a cabeça com uma firme negativa, mas as mãos ainda cobriamlhe a boca como se, do contrário, fosse trair a si mesma. E Hunter não reconheceu aquele sentimento de alegria que começou a crescer dentro dele. Leve e reluzente. Brilhante. – Por alguma razão, ninguém acredita nisso – confidenciou ele –, mas sou uma pessoa agradável. Zoe deixou as mãos caírem, mas sorria, como se não conseguisse evitar, e isso acabou com ele. Atravessou-o como uma lança. Derrubou as paredes que Hunter erguera tempos atrás, cujo motivo não tinha mais certeza, e mais daquela luz solar penetrou-o, invadiu-o, fez com que esquecesse, por um momento, quem ele era. O que ele era. Que sombras se espreitavam nele. O que tinha feito. E o que não tinha. Zoe tossiu. – Tenho certeza de que eu estava rindo… – Dando risadinhas, para ser mais preciso. – … de você, Hunter. Não com você. – Acho que não. E ele estava rindo, também, se dando conta de como se encontrava próximo a ela, como a cabeça dela foi para trás e seu cabelo roçou nele. Os olhos acinzentados de Zoe ficaram mais azulados do que Hunter já presenciara, e aquilo foi se somando dentro dele, formando um nó em seu estômago, e aquelas sombras que ocupavam seus espaços vazios pareceram mais suaves, de alguma maneira. Ele não sabia o que isso significava. Traçou um padrão vago pela lateral do adorável rosto de Zoe com o dedo, acompanhando aquela boca afiada e perigosa que só fazia com que ele a desejasse ainda mais. E sentiu de novo aquela chama incandescente entre os dois, mais forte dessa vez. Mais tensa. Içando-os juntos, machucando. – Quem mais sabe que a impetuosa Zoe Brook bufa um pouquinho quando dá risadinhas como uma colegial? – perguntou ele, com suavidade. – Imagino que seja informação confidencial. Não se preocupe, não contarei a ninguém. Quero isso só para mim. Hunter a observou prender a respiração como se sua vida dependesse disso. Ou como se fosse o poder dele, isso e o calor no olhar dela, brilhante e inconfundível. Acendeu-o de novo, as labaredas tomando conta. As paredes virando cinzas. – Desde quando você é doce? – ela sussurrou, com a voz rouca. A necessidade condenando os dois. – Nunca. – Mas seus dedos ainda desenhavam símbolos na pele acetinada de seu rosto e de seu pescoço. – Isso é doce – Zoe falou mais forte e quase como uma acusação. Havia aquela seriedade em seu semblante, entalhada entre as sobrancelhas. – Não pode negar isso. – Se estou fazendo – disse ele, que podia ouvir o fogo na própria voz, o desejo –, não pode ser nada doce. Por definição. Pode perguntar aos oito milhões de inimigos que tenho. Ou ler em seus depoimentos. – Doçura é inaceitável. – Apenas espere alguns minutos. Tenho certeza de que voltarei a ser um imbecil. Não posso evitar. – Hunter observava, fascinado, enquanto as emoções que não conseguia entender iam aflorando e cruzando as feições dela, em geral tão frias. Ele só reconheceu o lampejo de pânico, seguido logo por um tipo de resignação, que fez com que seu peito doesse. – Só sei quebrar as coisas – Hunter afirmou, ríspido, de repente, e viu a reação dela a isso, como se a tivesse machucado. – Zoe, eu não quero… Ela não deixou que terminasse. Seus olhos cinza se tornaram sombrios, sombrios demais, e, então, ela avançou, um toque de seu corpo perfeito, suas mãos subindo para emoldurar-lhe o rosto. Para segurá-lo, como se ela tivesse o poder de imobilizá-lo assim facilmente. Mas, então, Hunter percebeu, com alguma surpresa, ali sentado, suas próprias mãos ao redor dos punhos dela. Ele tentou de novo: – Zoe… – Cale a boca – ela ordenou. Hunter ouviu o fogo e o pânico, a loucura e a necessidade, e sentiu tudo isso dentro de si, crescendo como a maré. – Pelo amor de Deus, Hunter, cale-se. E, a seguir, Zoe acabou com aquele espaço elétrico entre os dois e tomou a boca dele com a sua. CAPÍTULO 6 ZOE BEIJOU-O como se sua vida dependesse disso. Todo aquele fogo. Todo aquele perigo, aquela necessidade impossível. Todas as coisas que ela sentia que não devia, que até então achava que não poderia sentir. Aquele fogo incontrolado, queimando dentro dela, dentro dele, fazendo-a tremer junto a ele, enquanto saboreava daquela boca, repetidas vezes. Porque Zoe achava que talvez sua vida realmente dependesse disso. Zoe já tinha mostrado demais a Hunter. Não entendia como isso aconteceu. Isso não era para ser complicado. Ele não era. Mas ela por fim se deu conta de que havia apenas uma maneira de lidar com Hunter Grant. Ele achava que a desejava? Então, ele a teria, mas nos termos dela. Zoe acreditava que havia certa poesia em pegar de volta desse homem o que outros homens haviam tirado dela. Ele disse que se arrastaria. Ela garantiria isso. Mas, primeiro, ela o beijara. Assumiu o controle e pegou o que queria daquela boca talentosa que não deveria tê-la atraído, muito menos a encantado. Zoe passou por cima dele, erguendo as laterais do vestido até a altura da coxa para que pudesse sentar-se em seu colo. Hunter emitiu um som gutural que deveria ter sido uma rendição, mas que ecoou nela como um grito de guerra. Porque era. Zoe lutava por sua vida com todos os deslizares de sua boca perfeita sobre a dele, cada movimento de seu atraente corpo atlético sob o dela. Ela pressionava seu corpo contra o de Hunter, virando a cabeça para prová-lo mais fundo, mais úmido, mais ardente. Encontrou a rigidez compacta de sua necessidade, e montou nela. Zoe tomaria posse. Pegaria o que queria e o deixaria para trás quando tivesse terminado. Conquistaria essa coisa. Sairia vencedora, por fim. Mas ele ter o sabor do fogo não ajudava. Hunter a beijava como se ela fosse uma revelação, e ele, um conhecedor que traficava essas coisas. Ele a lambia, saboreava e seduzia na mesma medida, fazendo as chamas dançarem, o fogo ficar ainda mais ardente, selvagem e impossível. Estava duro entre as pernas dela, seu músculo repleto e todas aquelas delícias do poder masculino, mas Hunter não usava nada disso contra ela. Isso tudo a fazia tremer. Isso tudo a fazia desejar. Isso tudo a fazia se esquecer do que estava fazendo… Foi ele quem recuou, e ela odiou isso. Odiou que ele tivesse presença de espírito quando ela ainda estava perdida. Odiou que Hunter a olhou por um longo e ofegante momento, ainda rijo contra ela, os olhos brilhantes parecendo penetrá-la. Odiou que tudo o que queria, com todo o bater de seu coração, com toda sua respiração dissonante, era a boca dele na sua mais uma vez. – Você é deliciosa – murmurou ele, uma de suas mãos se movendo, o polegar roçando os lábios dela, marcando-o com um simples toque. Zoe podia sentir em seus seios, pesado contra o corpete apertado do vestido. Sentia fundo nela, faminto e pulsante, pressionado contra ela. Os olhos muito azuis. Como se fosse um tipo de sol, iluminando-os, embora ela soubesse que isso era impossível. Ele estava muito degenerado, e ela, muito arruinada. Nada disso era real. Nada disso podia estar acontecendo. No entanto, Hunter se mexeu debaixo dela, uma de suas grandes mãos envolvendo seu quadril e segurando-a junto a si; e Zoe parou de dizer a si mesma o que era e o que não era real. Porque ela podia senti-lo por todo lugar. – Como pode ser assim tão deliciosa? – A voz dele não passava de um murmúrio, como se estivesse cantando para ela. E Zoe queria dizer-lhe que ele estava errado, que ela estava manchada por dentro e arruinada havia anos, já, mas ele não esperou por sua resposta. Hunter se aprumou e capturou-lhe a boca de novo, virando-a do avesso. E Zoe derreteu-se. E esqueceu. Esqueceu-se do que passara, de a que sobrevivera. De quem se tornara. De quem criara dos destroços de seu antigo eu. Era como se ele beijasse a Zoe que ela poderia ter sido, ansiosa e mágica, e todos aqueles futuros ousados e brilhantes. Um turbilhão de cores. Uma cacofonia de possibilidades. E todo esse calor delicioso e entorpecente. E, por um momento, Zoe cedeu a essa insanidade, como se atravessando a parte de trás de um guarda-roupa ou descendo pelo buraco de um coelho. Ela se deixou levar. Deixou que ele a saboreasse. Tentasse. Como se fossem outras pessoas. Como se pudessem fazer tudo isso sem ter de pagar mais tarde quando ela soubesse muito bem que não poderiam. Sempre havia um preço. Mas por um momento, com a boca dele como um abrasador, inflamando-a, ela fingiu o contrário. Fingiu que não sabia. Fingiu que não havia mais nada, a não ser ele. Esse beijo. Esse calor desvairado, a maneira como se roçava nele e fazia os dois suspirarem. O fogo que não deveria ter existido, para começar. Absolutamente nada, a não ser Hunter. Que Deus a ajudasse, mas não conseguia se deter. – Sua casa – disse ela, então, soltando sua boca da dele. Hunter piscou, as mãos agarrando seus quadris, segurando-a de uma forma que podia mandar os dois para a prisão caso um funcionário enfiasse a cabeça através da cortina de seu pequeno refúgio. – O quê? – Sua voz era densa. – Você quer transar comigo, não quer? – A garganta de Zoe estava áspera com todo esse anseio e sua determinação de não derramar lágrimas por toda sua necessidade. Ela podia controlar isso. E controlaria. Hunter piscou, e seus olhos claros se tornaram ilegíveis outra vez. – Essa é uma pergunta capciosa? – Prefiro não atrair a atenção da polícia – disse ela friamente, indo para trás e para cima em um único movimento. Manteve o olhar no dele enquanto ajeitava o vestido. – Então... Sua casa? Era apenas sexo. E era a única maneira de quebrar o feitiço. Zoe não podia arriscar deixá-lo persegui-la mais. Ele era intuitivo demais, por incrível que parecesse. Via demais. Zoe tinha que parar de se surpreender e começar a dar os passos necessários para contornar isso. Tudo o que tinha de fazer era deixá-lo tê-la. Hunter ficaria entediado antes de afastar-se, assim como ficava com suas aspirantes a estrelas e suas modelosbarra-atrizes que os jornais contabilizavam todos os anos. E essa dancinha tensa dos dois chegaria ao fim. Ela poderia se esconder de novo e continuar escondida. E, então, poderia usá-lo como planejava para acabar com Jason Treffen, sem esse calor irrelevante. Tudo o que tinha de fazer era sobreviver a essa noite. – Bem? – perguntou ela. Era uma provocação. Uma ousadia. – Não me diga que, depois disso tudo, você não passa de um provocador. Ficarei devastada. – Ah... – disse ele suavemente, um tom sensual em sua voz – Não sou um provocador. – Não é romântico o bastante para você? – Ela sorriu, maliciosa. – Precisa de um cartão? Flores? Ela não entendeu o sorriso dele, excitante e intenso. Assim como não compreendeu a maneira com que prendeu a respiração quando ele se ergueu. – Nunca é demais – ele afirmou, baixo, como se estivesse falando com outra pessoa. Como se fosse um verso ou dois de uma poesia que ele recitasse para ganhar um favor dela. – Gosto de gardênias. E às vezes de girassol, mas com moderação. São muito vistosos. A maneira com que olhava para ela, para seus seios e sua barriga, suas pernas e subia de novo, a atingia. Tudo a atingia. Zoe se sentia em carne viva. Aniquilada. Mas sabia que tinha de fazer isso. Assim, quando Hunter estendeu a mão com uma espécie de tensão em seus olhos e certa ferocidade em sua expressão ao encará-la, como se ele estivesse se contendo para não tomá-la ali mesmo onde estavam, Zoe disse a si mesma que essa era a única maneira, e aproveitou-a. ZOE ENTROU no imenso apartamento de Hunter olhando ao redor como se não estivesse nem um pouco impressionada pelos seus três andares bem acima da Wall Street, suas escadas espirais, paredes incrivelmente altas e brancas, vistas estonteantes mostrando o sul de Manhattan em todas as direções. Ela parou no meio do espaço estéril e fundo, girando devagar, desabotoando o casaco grosso que usara devido ao frio invernal. Viu a enorme TV em uma das paredes, os cantos do moderno sofá em L que poderia comportar todo o antigo time de futebol de Hunter e a total falta de qualquer coisa que desse uma dica da personalidade dele. Nenhuma fotografia. Nenhum livro. Nenhuma arte para amenizar o branco das paredes. Nem mesmo a coleção de troféus e lembranças esportivas que Zoe imaginava que devessem estar espalhados por todo canto, para um homem com o currículo dele. Nenhuma pulsação. Um robô poderia viver ali. Talvez esse fosse o verdadeiro Hunter, disse a si mesma: vazio e árido. Nada além de uma concha muito cara e fria. Ela não sabia por que tudo dentro de si se rebelava a esse pensamento, mas estava na hora de livrar-se de devaneios inúteis e fazer o que deveria ser feito. – Parece que você vive em um necrotério. – Zoe jogou o casaco no sofá. Seu casaco azul-escuro era a única cor em toda a cobertura, e fez com que ela se sentisse tensa. Meio impaciente, como se esse simples fato, como se tudo isso, significasse o que ela não queria olhar mais de perto. – Você deveria pensar em dar um toque mais vivo – continuou Zoe, quando ele não disse nada. – Nada muito doido, veja bem. Talvez um quadro único para amenizar essa atmosfera de hospital? Ela olhou para Hunter, e seu coração saltou e começou a bater forte no peito. Ele ainda não dissera nada. Só a observava, seus olhos azuis mais escuros do que o habitual, mais escuros do que era possível, tão brilhantes que Zoe quase se esqueceu das cores das outras coisas. Ele tirou o casaco, deixou-o cair no chão, embora não parecesse descuido aos olhos dela. Isso chamou a atenção. Hunter não tirava aqueles olhos elétricos de cima dela. Zoe nem sequer tinha certeza se ele piscava. Isso era inquietante. Mexia com ela, por dentro, como uma onda quase dolorosa de calor. – Ou, talvez, seja o que você goste – disse ela, como se nada a respeito dele penetrasse sua pele. Como se estivesse completamente à vontade ali parada, as mãos nos quadris e a cabeça inclinada de forma arrogante, encarando-o de volta. Como se isso não fosse um conflito que precisasse vencer, não importando o que tivesse de fazer. – Gosta de brincar de médico, Hunter? É isso? Um estilo de sala de operações para fazê-lo se sentir sexy? Os lábios esculpidos dele se moveram em algo intenso demais para ser um sorriso, e ela lutou com um tremor, lembrando-se do sabor deles sobre os seus. Zoe achou que ele diria algo, mas apenas indicou a escada em espiral perto dela, com um aceno daquele maxilar de aço. – Achei que você nunca se calasse em um bar – Zoe continuou com frieza, tentando aliviar a tensão que continha, antes que a partisse em duas –, e agora você está em total silêncio? Não sei se fico alegre ou alarmada. – Nenhum dos dois funciona comigo. Era um som másculo, que arranhou sua pele, insinuando-se através de seu sangue, de cada batida de seu coração. O ar no apartamento cavernoso ficou rarefeito. Depois, agitou-se. Assim como Zoe. Ela decidiu que não havia nada a fazer a não ser continuar com seu papel e esperar que funcionasse. Porque tinha de funcionar. Porque ela nunca mais se arriscaria assim de novo. Cruzou a sala devagar, forçando um rebolado, cuidando para que cada parte de seu corpo se movesse. Um convite. Um desafio. A fantasia masculina perfeita. Sensual e poderosa ao mesmo tempo, como queria que acontecesse, como queria que fosse. Zoe observou os olhos azuis dele se estreitarem, a pele de seu rosto friamente belo ficar tensa. Desejo. Necessidade. Zoe disse a si mesma que não importava que sua garganta estivesse seca, ou que seu coração estivesse descompassado no peito, em um sentimento de pânico. Não importava que pudesse sentir a maneira com que ele olhava para seu calor úmido entre as pernas, para o rubor que cobria sua pele, para a rigidez de seus mamilos, para a respiração irregular que ela tentava manter silenciosa. O que importava era que fizesse Hunter perder o controle. Ela conseguiria isso. Conseguiria. Os olhos dele fitavam, brilhantes, os dela, seu olhar era duro e, mais uma vez, ele via o que não devia. – Mudou de ideia? Zoe forçou uma risada, dizendo a si mesma que o embrulho no estômago não era nada além de seus nervos. Hunter podia tê-la feito sentir algo no escritório dela naquele dia, no bar durante o beijo selvagem, em todos os momentos estranhos que passaram juntos nessas curiosas semanas invernais, mas isso passaria. E então, teria apenas de passar a noite intacta, para poder assumir o controle dele de novo, disso, da vingança que ela esboçara antes mesmo de escapar da Treffen, Smith e Howell. – Você mudou? – ela devolveu a pergunta. – Isso não vai acontecer – Hunter afirmou, e aquele sorriso ficou selvagem. Ele acenou para a escada de novo. Zoe lutou contra o tremor, ao menos onde ele pudesse ver, e forçou-se a se virar para a espiral de metal que se erguia elegante do chão até o topo dos três níveis. Calma e natural, disse a si mesma. Seja casual, ainda está no controle. Como se fizesse isso todo o tempo. Ou nunca. Zoe subiu as escadas lentamente, ciente de Hunter vindo atrás, desde que começara a subida, como uma parede de calor. Uma fornalha de fogo masculino, e ele nem mesmo a tocara. Zoe esperava que ele não conseguisse perceber o arrepio que percorria seus braços, seu pescoço, mas ela o ouvia fazer o mínimo som, profundo, baixo satisfeito, e sabia que estava. Ele sabia. Homens como ele sempre sabem. Era o que o tornava um predador, o tipo que Zoe sentia nos ossos, como uma dor interna, como se Hunter a estivesse usando contra si mesma. Quando chegou ao segundo andar, olhou de leve por cima do ombro, e ele sorriu, malicioso, para ela. Ardente e confiante. Anjos caíram e mil sinos tocaram naqueles olhos azuis, e Zoe sentiu como se fossem um sopro. Como uma língua de fogo saindo de seus sapatos, percorrendo sua espinha, queimando-a viva ali mesmo. – Continue – disse ele com aquele mesmo tom baixo, que fazia seu corpo retesar e depois soltar com mais daquele calor intenso. Ele estava alguns degraus abaixo, uma das mãos no corrimão e a outra no bolso da calça, e ela teve a percepção estonteante de que estava fazendo de propósito para manter as mãos longe dela. Por enquanto. Como se não pudesse garantir o próprio controle. Zoe virou-se para a frente e engoliu em seco, contra seu pulsar intenso e sua crescente incapacidade de respirar. Seus membros estavam pesados com o mesmo fogo, e ela só queria deixar-se arder por inteiro. Porém, continuou adiante. Chutou uma bota, depois a outra, sorrindo ao som voraz que ele emitiu. – Todos gostam da fantasia da Cinderela – Zoe murmurou. – Até mesmo os homens mais odiados de Nova York, ao que parece. – Isso me torna…? – O Príncipe Encantado? Difícil. – Sou muito encantador. Nove entre dez jornais concordam. – Ainda não vi nenhuma evidência que sustente isso. – Gostaria que eu provasse o quanto posso ser encantador? A voz dele era suave e mais envolvente do que deveria, a respiração soprava na orelha e na a pele exposta do pescoço de Zoe, e ela precisou lutar para não tremer. Para não derreter. Para não se render ali mesmo. – Tudo o que precisa fazer é levar a mão para trás e eu a encantarei por inteiro. Zoe riu, surpresa por ter soado tão gutural, tão inteiro. Sexo e desejo, bem ali, tão nua como se estivesse indefesa sob ele, aberta para seu toque. Tão poderoso como se ela soubesse o que estava fazendo com isso, com ele, com esse flerte intencional que só poderia terminar de um jeito. Era quase como se Zoe estivesse fazendo isso só porque queria fazer. Como se ela realmente o quisesse tanto assim. A novidade dessa louca percepção fez com que Zoe balançasse, se desequilibrasse, e ela continuou, apoiando-se no corrimão enquanto se virava para olhá-lo mais uma vez, agora apenas um degrau abaixo. Grande, sólido e bloqueando sua retirada. A fraqueza era uma coisa ruim, disse a si mesma, não importa que tipo. Não deveria ser tão bom sentir-se tão deliciosamente feminina, como se esse tipo de falta de ar fosse uma coisa boa. Ardente. Abrangente. Como se ela nunca mais pudesse respirar direito de novo, graças a Deus. – Existem usos melhores para você do que recuperação de sapato, eu acho. – Zoe garantiu a si mesma que estava tentando soar sexy e atraente. Isso não era simplesmente como soava quando Hunter estava assim próximo a ela, fazendo com que todos os seus sentidos se descontrolassem. Ele sorriu, um sorriso com uma intenção sombria que Zoe sentiu na pele, sensual e completa, depois lá no fundo, como uma dor forte e profunda. O ar ao redor deles, entre eles, estava denso. Sufocante. Úmido com essa necessidade, com esse desejo pulsante, que fazia com que se sentisse real. Carne e osso, com desejos e capaz de ansiar, como todo o mundo. Foi isso o que ele fez com ela. Que poderia ser o fim dela. Então, mais uma vez, aquela parte traiçoeira de Zoe sussurrou, morrer poderia ser um preço pequeno a se pagar. Hunter pode valer o risco. Não importava o que sentia, lembrouse, furiosa, atônita consigo mesma. Importava o que ele sentia, e ela teria de estar preparada para manipular e lidar com isso quando ele a esquecesse no momento em que virasse para o lado para dormir. Preparada para usar isso. Era parte do plano. – Abra o fecho – Zoe ordenou, mostrando a ele o fecho escondido na lateral ao erguer um braço sobre a cabeça, bem lentamente, com uma graça sinuosa criada para deixá-lo tão selvagem quando ela se sentia. Zoe achou que Hunter paralisara por um segundo, mas devia ser imaginação, porque, quando a tocou, suas mãos estavam tão firmes quanto aquelas promessas sombrias em seus profundos olhos azuis. A sensação das mãos dele tocando-a era uma tortura, um presente. Zoe forçou-se a não reagir quando seus dedos roçaram gentilmente a pele que ele expôs, enquanto abria o zíper até seus quadris, embora, lá no fundo, ela tenha ficado em frangalhos. Em breve não restaria nada dela, além de escombros. Mas ele poderia esconder, sabia disso. Poderia esconder qualquer coisa. – Obrigada – disse Zoe, com uma calma profunda que não sentia. – Lembra quando prometeu ser meu escravo de desejo? Esta é sua chance de provar. O sorriso dele se tornou faminto, e a respiração dela parou na hora. – Continue caminhando – disse ele –, e provarei qualquer coisa. Ela acreditou nele. Zoe virou-se, o pânico se misturando com a terrível excitação dentro dela. Começou a subir as escadas de novo, mas algo mudou. Tudo parecia delicado agora. Tenso. Frágil. Ou ela estava assim. Ignorou tudo isso, cerrando os dentes e deixando o vestido cair à medida que subia. Foi tirando-o centímetro por centímetro, revelando-se devagar para ele, enquanto tomava a última curva da espiral que a deixava direto na suíte que tomava todo o andar superior da cobertura. De onde não poderia retroceder. Parou bruscamente. Era como uma capela. O quarto tinha três lados envidraçados e uma enorme torre de vidro acima, formando um arco sobre o piso escuro e o altar central no coração dele: sua cama. Ficava sobre um estrado preto a um metro do chão, maciço e imponente, reluzente e de alguma maneira primitivamente masculino, tudo junto. Não havia mais nada. Apenas uma cama carnal e a revigorante noite de inverno por todo lado, ali do outro lado do vidro, fazendo-a sentir quase uma vertigem, como se estivesse na ponta dos pés ao lado do mundo e fosse cair em queda livre direto para o céu. Zoe pensou nos homens das cavernas e seus catres, lobos e seus covis, como se Hunter a tivesse mesmo arrastado até ali pelo cabelo, onde a única cor estava na cama, uma pilha de marrons vivos e vermelhos profundos que a fazia pensar em peles. Em sexo e uma inabalável e irrevogável posse. Do tipo que não deixa marcas na pele, mas forma cicatrizes do mesmo jeito. Em milhares de coisas que ele não deveria querer – não queria. É claro que não queria. Mas bem lá no fundo, Zoe sentiu um calafrio e muito calor, certo tremor e uma espécie de fraqueza. A urgência, a necessidade, de simplesmente se esparramar diante dele como em sacrifício a uma deidade ancestral misteriosa que comandasse esse quarto, que compreendesse as coisas que se passavam com ele. Esse desejo de render-se e o anseio de desistir, de submeter-se ao que ele pudesse fazer a ela, embora Hunter fizesse porque ela também queria. Esse desejo sem precedentes de ceder, por fim, como se isso significasse segurança em vez de risco insuportável. Ela não tinha medo dele, percebeu em um lampejo ofuscante de uma visão chocante e dolorosa. Tinha medo de si mesma. Estava assustada com as coisas que queria, que nunca soubera que poderia querer até agora. Mas isso não tinha a ver com querer. Tinha a ver com vingança. – Suas fãs devem adorar este quarto – disse ela, para lembrar-se da realidade de quem ele era, o que isso era. Hunter deu risada, um ruído baixo que ela sentiu como uma carícia. – As fãs não passam do primeiro piso. Tenho alguns padrões. Zoe deixou o vestido cair aos seus pés antes que pudesse pensar melhor sobre tudo, e porque ela não queria pensar nas implicações do que ele dissera. Chutou o vestido para o lado, movendo-se rapidamente em direção à enorme cama masculina, fingindo com toda a força que não a incomodava. Que era apenas uma cama. Que ele era apenas um homem. É só uma noite, lembrou a si mesma. Algumas horas, no máximo, mesmo que Hunter não a tivesse beijado no bar como um homem que ansiava por isso, ou algo mais. Qualquer pessoa pode lidar com uma noite. Ela sabia disso melhor do que muita gente. – Suponho que isso sirva – disse ela, então, a voz recortada. Tensa com toda sua falsa coragem. Tentou retomar o controle que tanto desejava, achando que assim poderia causar menos danos. – Deixe-me contar como isso funciona. Acho que começaremos com você de joelhos de novo, encarando… – Zoe... Ela não queria parar, mas parou. Não queria virar-se para ele, mas virou-se. Tinha de fazer isso. Tinha de provar que ele não mexia com ela. Tinha de garantir que Hunter entendesse muito bem como isso pouco a afetava. Mas quando olhou para ele, foi como uma explosão. Forte e imediata. Implacável. Zoe tonteou de novo e, por um momento assustador, achou que realmente cairia, mas conseguiu se recompor. Hunter olhava-a como um estranho. Ou mais como ele mesmo, talvez, do que fora esse tempo todo em que ela o conhecia, o que fez com que sentisse aquele terrível calafrio de novo, que se espalhou e penetrou-lhe fundo. Ele era tão poderoso, tão másculo. Forte e seguro, concentrado nela com aquele calor brilhante que consumia. A cidade do outro lado do vidro, as luzes e as pontes se estendendo em todas as direções espiralavam e se tornaram parte daquele fogo nos olhos dele, estampado em seu rosto. Ocorreu-lhe que já estava nua; pior do que nua, na verdade. Sabia exatamente como parecia, ali parada com nada além de duas tiras de renda preta provocante. O sutiã sem alças e o caleçon eram tão femininos... Hunter estava certo quando a acusou de usar o corpo como arma. Ela o aprimorava para ser sua alma letal de propósito. Sabia muito bem como combiná-lo, como mirá-lo, para conseguir o que queria. Se ele não estivesse olhando para ela, como se tivesse toda munição. – Eu quero.. – Zoe começou, mas tudo estava quente demais por trás dos olhos dela, naquele incontrolável tremor nos joelhos, naquela febre que tomara conta de seu ventre, enviando uma sensação aos seus dedos, até que se fechassem diante da necessidade de tocá-lo. Hunter seguiu na sua direção, másculo, e não muito dócil, possivelmente a criatura mais gloriosa que ela já contemplara. Ele não tirou os olhos dela. Não parou. E Zoe nunca se sentira tanto uma presa como agora. Ou mais bonita. – Hunter... – ela sussurrou. Sua boca parecia dura e exigente, inclinada para um lado. E seu nome, naquele espaço com ar quente demais entre os dois, soou como uma invocação ao deus terrível dele, que, ela sabia, destruiria o que sobrara dela. Zoe entendia que deveria cuidar disso. Que isso teria feito com que saísse correndo caso estivesse no escritório naquele dia. Mas ela não se moveu. Hunter encurtou a distância entre eles e agarrou-lhe os braços, puxando-a para si. Não foi gentil e, apesar de si mesma, apesar da parte desesperada dela que sabia que não devia deixar que isso acontecesse, isso a excitou. Seus seios ficaram pressionados contra a superfície de seu peito esplêndido. Finalmente. Seu ventre era macio contra a inconfundível saliência de sua ereção. Enfim. E sua constituição era tão grande, tão forte, todos aqueles músculos, superfícies lisas e rijas, como uma fantasia do homem perfeito que se tornava realidade. Ele a cercou. Ele está seduzindo você, sussurrou aquela voz traiçoeira. Zoe inclinou a cabeça para trás e lembrou-se de que não poderia deixar isso acontecer. Não desse jeito, não nos termos dele. Que o preço que teria de pagar não valia a pena pelos breves momentos de fogo e reverência que ela poderia… – Tenho uma ideia – disse Hunter, daquele jeito gutural que parecia um soco, bem no meio de seu desejo. Ondas de choque vibravam, provocando seus mamilos doloridos, fazendo seus seios pesarem. Fazendo sua pele formigar, muito quente, muito apertado. – Que tal você parar com esses joguinhos estúpidos? – Não estou jogando! – Nada disso parecia nem um pouco brincadeira. – Aprecio o nobre sacrifício de seu corpo exuberante para minhas necessidades selvagens. – Embora Hunter falasse baixo, ela ouviu aquela diversão sombria, mesmo agora, se acender nela. – Mas quero que você também queira. Quero que seja real. – Os dedos dele pressionando seus ombros inundaram-na de chamas dançantes e raios, e ela tremeu. Ele acenou com a cabeça. – Quero isso. – Não, não quer. – A voz dela soou amarga, externando seu passado, e ela não conseguiu fazer nada para impedir. Hunter levou a mão ao rosto dela, acariciando sua face de uma maneira que ela chamaria de ternura, caso isso fosse possível. Como não era, Zoe se concentrou no calor. Na marca, na queimadura. Em Hunter. – Eu insisto – disse ele, suavemente. – Os homens preferem a fantasia. A qualquer custo. Não importa quais contornos de realidade sejam necessários para fazer acontecer. – Zoe se sentia fora de si. Áspera e sem controle. – É a única coisa que vocês sabem fazer. – Zoe... Ela teria lidado com qualquer outro comando. Mas não seu nome, não desse jeito, dito como uma prece. Como se Hunter pudesse ouvir a aspereza por trás das palavras dela, perceber as lágrimas ardendo por trás de seus olhos. Como se ele soubesse das coisas terríveis e tristes que ela nunca compartilharia com ninguém. Se algo poderia tê-la feito correr para a porta seria isso. E, mesmo assim, Zoe permaneceu ali parada, as mãos dele segurando seu rosto, seu corpo espetacular pressionando o dela, encarando-o como se isso fosse algo mais do que um propósito. – Vamos tirar a roupa – sugeriu ele, aquele brilho nos olhos azuis suavizando, incendiando-a, e ela não conseguia lutar contra a profundidade disso, com o perigo disso, com o pensamento de que seria feita em pedaços que ela não saberia como consertar. – E ver o que acontece. Hunter não esperou por uma resposta; simplesmente pegou-a. Passou as pernas dela ao redor de sua cintura e tomou sua boca, uma das mãos atrás da cabeça dela, a outra em seu traseiro. Estava exigente. Selvagem. E aquele choque de eletricidade e uma espécie de reconhecimento primitivo que Zoe não queria reconhecer ressoaram dentro dela, tirando-a de seu próprio pensamento e do passado, por fim, e jogando-a direto no fogo. No fogo dele. E Zoe deixou-se queimar. SIM, HUNTER pensou, e tomou-a. A boca de Zoe, quente e doce, hábil e vigorosa, e a sua, como o vinho mais fino que já provara. Suas mãos no cabelo dela, baixando a mecha negra sedosa que escapara do coque elegante. Aquele tempero selvagem do desejo de Zoe contra sua língua, suas curvas envoltas em seu corpo, incandescente e viciante… Sim. Ele sentia como se a desejasse desde sempre. Como se nunca tivesse desejado outra coisa e nunca mais viesse a desejar. Zoe, sua boca perversa encontrando a dele, enfrentando-o, desafiando-o. E Hunter queria mais. Queria saboreá-la mais, aproximar-se mais. Finalmente, ele não paralisara. Não estava entorpecido. Sentia tudo e queria mais. Ele desejava. Repetidas vezes, até que os dois estivessem saciados. Sim. Ela riu, um som inflamado e rouco, e ele percebeu que falara em voz alta. Mas que penetrara como um punho cerrado da necessidade que o mantinha preso. Hunter colocou-a no chão, sorriu, e Zoe pôde sentir a ânsia nele. Ele viu os olhos cinza dela se abrirem de leve, ouviu a respiração dela ficar mais difícil. Talvez um homem melhor não se deleitasse com isso. Mas Hunter se deleitou. Foi em direção a ela, virando-a e guiando-a para a cama gigantesca que dominava o quarto. Zoe engoliu em seco, de forma audível, mas foi. Lentamente. Sem tirar os olhos dele. Ele gostava disso. Hunter tirou a camisa, impaciente com o segundo que perdeu de olhá-la. Desabotoou a calça, e esqueceu-se dela, porque chegaram ao primeiro degrau que levava à cama. – Não tropece – disse ele, e sua voz soou como a de um estranho no silêncio pesado. Rouca e ardente. – Não me deixe cair – ela replicou, um lampejo do fogo dela subindo pelo rosto, e Hunter sorriu. Ela era dele. Por inteiro. Finalmente! Sem máscaras. Apenas Zoe. Hunter não achava que a deixaria ir. – Eu a pegarei de volta – garantiu, e isso devia tê-lo alarmado, pela profundidade com que falou. Tão longe que fora. Mas os olhos dela eram como o mar depois de uma chuva de inverno, e ele a desejava. – Prometo. – Hunter passou as mãos ao redor dos quadris dela, pegando-a com facilidade e colocando-a na beirada de seu colchão. Ele não se uniu a Zoe. Porém, inclinou-se, ajoelhando-se e puxando as longas pernas dela sobre seus ombros, enquanto forçava caminho entre elas. – Refresque minha memória, Zoe. Como queria que eu me ajoelhasse? Assim? Ela murmurou algo que parecia uma prece, ou talvez o nome dele. – Não vou parar – alertou-a, e sentiua estremecer. – Vou mergulhar em você, depois farei de novo. E de novo. Até que esteja satisfeito. Ela disse algo, ardente, baixo e ininteligível. Zoe era como um banquete sensual diante dele, seu cabelo negro emaranhado, sua pele cremosa corada de desejo, dois pedaços de renda erótica preta emoldurando aquele corpo perfeito; e tudo isso era dele. – Estou avisando, Zoe. Pode demorar um pouco. Sou um tremendo ganancioso. Ela emitiu um som que mais parecia um soluço. Hunter riu. Ele deslizou as mãos em suas coxas acetinadas, deleitando-se com cada tremor, cada movimento de tensão dela diante e ao redor de si. A renda negra que ela usava estava acabando com ele, tão sexy naquelas curvas elegantes, naquela pele doce. Hunter sentia o cheiro de lavanda de novo, e isso o deixou ainda mais excitado, beirando o desespero. Zoe se movia junto a ele, junto à cama, ainda emitindo aqueles sons que não eram palavras. Carente e irracional, e ele só estava começando. Hunter queria que ela gritasse seu nome. Ele a desejava tanto que parecia que ia explodir. Não dava a mínima de por que ela o tinha procurado, apenas que o fizera. – Você é minha – Hunter disse a ela, firme e seguro. Inclinou-se para a frente e apenas pressionou a boca contra o centro do ardor dela, renda negra e mulher, toda Zoe, toda dele. E deleitou-se. CAPÍTULO 7 ERA COMO morrer. Morrer e voltar à vida, vestida de fogo, e Zoe já não conseguia mais respirar. Era apenas Hunter e sua boca, selvagem, exigente, contra o centro de seu desejo. Ela se viu atirada como uma bêbada, os braços sobre o rosto, arfando desesperadamente contra o sal de sua própria pele. Ele simplesmente… a tomou. Beijoua com força e intensidade através da renda de sua calcinha. Usou seus dentes, seu maxilar duro, sua boca perfeita. Ela se mexia em direção a ele e para longe dele, sem saber o que queria ou o que fazer com as sensações que a assolavam, cada vez mais dominada… – Pare de lutar comigo – ordenou ele. E o sangue dela corria tão rápido nas veias, cantando e gritando, que Zoe não tinha certeza de tê-lo ouvido direito. – Não sei como. – Mas Zoe relaxou mesmo assim. Então, Hunter pressionou sua boca contra a dele, novamente, mais forte, um dom e uma disciplina, e ela se partiu em mil pedaços. Zoe gemia algo incoerente, e mesmo assim Hunter não parava. Ela perdeu a boca dele, mas sentiu as mãos em seus quadris outra vez, e uma lufada de ar fresco contra todo aquele calor. Zoe precisou de um longo momento para se dar conta de que Hunter tirara sua calcinha sem que percebesse. Ocorreu-lhe que mesmo que o mundo ainda estivesse girando, mesmo que não tivesse mais certeza do próprio nome ou se respiraria normalmente outra vez, ela precisava fazer alguma coisa. Porque em algum lugar debaixo de todo aquele prazer trêmulo e desconcertante, que ainda a invadia, havia um preço a pagar. Sabia disso. Muito bem. Zoe lutava para se mover. Sentou-se, mas descobriu que seus membros ficaram pesados demais. Como se estivessem sob o comando dele, e não dela. Zoe só conseguia ficar ali deitada e completamente destruída, e observá-lo enquanto colocava suas pernas de volta sobre os ombros dele, seus olhos azuis brilhantes como diamantes, ardentes e penetrantes, e aquele olhar de puro deleite masculino e satisfação que fazia seu peito doer e seu âmago inflar. – Eu quero… – Estava muito difícil de falar, e essa lassidão perigosa que fazia suas pernas e seus braços se sentirem tão guiados estava por todo lugar agora, como se uma grande mão a prendesse na cama, forçando-a a ficar ali deitada diante dele com tamanho abandono libertino. – Deixe-me... – Não quero deixar você fazer nada, Zoe. Quero mergulhar em você. Eu disse. Então, Hunter deslizou as mãos por baixo dela, apoiando-a diante dele como uma oferta, e ela compreendeu, com uma parte distante do cérebro, a única que ainda funcionava, que o som estranho de lamúria que ouvira era dela mesma. Mas não fazia sentido, e Hunter a olhava por sobre o comprimento de seu torso; a respiração dele, uma carícia íntima contra a parte mais sensível de seu corpo. E Zoe não conseguia parar de tremer. E havia muita segurança naqueles olhos azuis, muito triunfo na curva de sua boca, e tudo parecia se contrair ao redor deles, dentro dela, até que Zoe achou que os dois haviam sido eletrocutados. Só então ele baixou a cabeça acariciou-a com a língua. E tudo se apagou. E explodiu. Era como ser atingida por um raio. Golpeada por ele, dilacerada, e depois, incendiada repetidas vezes. Ele a provocava. Usava o fogo dela contra ela mesma, gemendo em seu âmago suculento enquanto a saboreava, para que pudesse sentir o lobo dentro dele, sentir ecoar em cada pedacinho seu. Hunter investia nela, adorava-a, reverenciava e provocava, mantendo-a bem ali onde queria, para que não houvesse possibilidade de escapar, como se estivesse preparado para forçar o prazer nela se fosse necessário. E Zoe simplesmente se rendeu à tempestade. A ele. A Hunter. Como se confiasse nele. E, quando ela se afastou, dessa vez, pôde ouvir o som sombrio de sua risada, o triunfo erótico e o deleite sensual, como se estivesse se banhando nisso. Mergulhando, e ela não se importava. Ainda lutava com sua respiração quando Hunter se moveu, aquele boca maravilhosa subindo por seu quadril, sua barriga. Indolente e conhecedora, atiçando o fogo nela mais uma vez, mesmo que ainda estivesse trêmula das labaredas restantes do incêndio anterior. Hunter traçou o caminho até o umbigo com a língua, percorrendo seu corpo como se estivesse enviando cada centímetro, cada curva dela para sua memória, mudando-a de lugar, rolando os dois para o centro da sua cama imensa. Ele a ergueu de novo, retirando o sutiã e adorando seus seios, pegando um mamilo endurecido entre os dentes, sugando-o, chocando-a com a intensidade da necessidade que a assolava. Impossível, pensou ela, e só percebeu que falara em voz alta quando sentiu a risada dele retumbar em seu corpo. – Não só é possível – disse ele, insuportável e delicioso ao mesmo tempo – como necessário. – Estou entediada – respondeu ela, quando conseguiu formar as palavras, arqueando-se para ele. – Vai demorar muito? Zoe não soube por que se sentia compelida a provocá-lo até que sentiu os dentes dele em sua carne mais uma vez, o pequeno beliscão como punição e recompensa ao mesmo tempo e, então, ela sorriu. – Você está certa. – A boca de Hunter estava contra a suave lateral do seio dela, suas mãos firmes espalhadas por suas costas, mantendo-a arqueada diante dele; ela era dele para se saboreada como Hunter desejasse. – Uso meu corpo como arma. E você gosta. Zoe sentiu o sorriso dele contra sua pele, e Hunter concentrou, então, sua atenção no outro seio, indo de um para o outro, com uma paciência delicada, até que ela estivesse estremecendo debaixo dele, desesperada e enlouquecida, como se Hunter tivesse começado naquele minuto. Como se já não a tivesse jogado daquele penhasco duas vezes. – Preciso prová-la em cada pedaço, Zoe. Ainda não estou satisfeito. Ela sentia o arranhar de dentes em seu pescoço, a magia da língua dele. Explorou seu peito com as mãos trêmulas, a gloriosa força daqueles ombros, cada risco daquele abdômen maravilhoso que ela vira pela primeira vez quando ele saiu da água, daquela banheira, reluzente e quente. Hunter cheirava a algo apimentado e tinha sabor de sal e homem, e ela ainda não estava satisfeita. Quando ele avançou lentamente sobre ela e posicionou-se entre suas pernas, duro e grande, e tão perfeito, ela quase tombou de novo, só pela doçura com que eles se encaixavam. Como se você fosse feita para isso, entoou uma voz em sua cabeça. Para ele. Hunter apoiou-se sobre ela, levando as mãos para cada lado da cabeça dela e mantendo-as ali. Não havia nenhum sinal de sorriso nele agora, nenhum traço de sua risada. Havia apenas a estampa da necessidade, uma ferocidade que ela sentia dentro de si. Havia apenas aquele olhar azul, penetrante, sério e decidido. O coração de Zoe saltou, depois passou para uma batida mais baixa, forte e longa. Ela estava embalando o corpo forte e rijo dele com o seu, que acabou se liquefazendo, fundindo, quase em ebulição. – Quer estar no controle, não? – perguntou ele, e tudo nele era perigoso, perigoso demais. Zoe sentia a pressão dele, prendendo- a na cama, o mastro duro ainda dentro da calça, mas intumescido contra o seu calor. O seu desejo. Zoe não tinha ideia de que era possível sentir tanta paixão assim. Não teria pensado que era capaz disso. E mesmo assim isso a deixava em ponto de ebulição. Tomava conta de todo seu ser. Fazia com que se sentisse outra pessoa. Alguém tão forte quanto ele, e tão perigoso. Inquebrável. – Sempre – ela conseguiu dizer, reunindo o que restara de sua bravura, mas acabou soando quase nostálgica, e ela percebeu que ele também sentiu isso. Na maneira com que os olhos azuis dele ficaram sombrios. Na maneira com que Hunter mudou de posição, um deslizar dos seus quadris que enviava um delicioso raio de uma promessa roubada, deixando-a com a respiração irregular. – Quero estar dentro de você – ele afirmou. Como uma invocação. – Tão fundo que você não vai conseguir dizer quem é quem. Tão forte que, quando eu gozar, você achará que é você. O calor assolou-a, acumulando-se entre suas pernas, fazendo-a se mexer, qualquer coisa para sentir toda a dimensão rija dele contra sua suavidade, a melhor coisa. – Zoe. – Era um comando. – Faça acontecer. Agora. Ela piscou, quase enlouquecida com o desejo por ele. A compreensão demorou para emergir, como se o cérebro dela não quisesse funcionar. – Você quer que eu seja cúmplice. – Absolutamente nenhuma negação plausível – ele concordou, seu olhar ainda mais ardente, deixando-a inquieta debaixo ele. – E seu eu não fizer? – Não acho que isso acontecerá. O lobo estava em seus olhos, agora, naquela curva de sua boca. Na maneira como Hunter movia os quadris contra os dela, fazendo-a prender a respiração, enviando mais daqueles raios, inundando todos aqueles lugares escuros que ela havia trancado. – Mas se acontecer, você dormirá vazia, solitária, com frio e sozinha. E com total controle. É isso o que quer? – E se eu não puder decidir? – Ela moveu os quadris com ele, encontrandoo naquela dança antiga, passando as pernas ao redor dele e entregando-se àquela extensão de aço, pressionando tão forte e rijo contra a parte ardente dele. As chamas tomavam conta dela, que estava ardente de luxúria. Ela desejava. – E se isso já me bastar? Hunter deu risada e, então, baixou a cabeça e beijou-a. Mas era mais do que um beijo. Desnudou-a por completo. Era uma tomada carnal, uma dominação brilhante, e Zoe estremecia a cada toque da língua dele na sua, a cada roçar de seus dentes. A ciência de que ele tinha o tipo de força de vontade para mantê-los assim juntos para sempre aos poucos se desfazia dela. E ele faria isso, se fosse preciso. Hunter usava o corpo de Zoe contra ela mesma, e ela descobriu que não se importava. Também o desejava demais para se preocupar com o que isso fazia com ela. Quando ele ergueu a cabeça, seus olhos estavam tão azuis que chegava a doer, e as mãos de Zoe, desajeitadas, tentavam abrir o zíper da calça desabotoada dele. Ela empurrou, pressionou e por fim o libertou, suspirando quando envolveu a rigidez sedosa de Hunter com as mãos. Mas eles estavam próximos demais do clímax. Quando Hunter entregou a ela uma camisinha, Zoe percebeu que estava tremendo de novo e podia sentir os leves tremores que o assolavam, também, onde ele ainda se mantinha imóvel sobre ela. Hunter nunca desejara tanto alguma coisa. Zoe cobriu-o cuidadosa e rapidamente, e, então, guiou-o em sua abertura. – Diga meu nome – exigiu ele ardente, como antes, com uma intensidade curiosa e aquele olhar sério no rosto. – Eu não quero dizer seu nome. – E Zoe se moveu antes que Hunter pudesse argumentar, deixando entrar toda a extensão dele dentro de seu corpo. Era escorregadio, terrível, perfeito. Irreal. – Por que não diz o meu? – Zoe ofegou como se isso pudesse salvá-la. Como se qualquer coisa pudesse. Ela compreendia que estava condenada, e não se importava mais. – Faça do seu jeito – sussurrou ele, a boca no ouvido dela, que já estava tremendo, consumida; já era dele. – Vou fazê-la gritar, Zoe. Vou fazê-la implorar. E, então, farei tudo de novo até que meu nome seja a única coisa saiba. – Promessas, promessas... – ela sussurrou e riu do olhar sombrio no rosto dele. Mas, então, começou a se mexer. ELA ERA intensa. E era dele. Hunter queria marcar sua pele, tatuá- la na perfeição sedosa de sua carne. Ele queria marcá-la, mais uma vez, para não haver dúvidas. Contentou-se com aquele simples deslizar transformador dentro dela, o aperto das coxas de Zoe, a dor aguda de suas unhas nas costas dele. Aquele ritmo complicado, aquela bela dança. O animal nele queria a selvageria, mas Hunter desejava saboreá-la, e assim o fez. Estabeleceu um ritmo calculadamente confortável, atordoado pelo fogo que rugia dentro dele, embriagado com todos os barulhos que ela fazia, o movimento de seus quadris, o perfume morno de lavanda entre seus corpos, o sabor dela e aquela sensação de posse, de equidade, que surgiu dentro dele, clamando-o a cada movimento. Tornando-o o homem que deveria ter sido, como se fosse um batismo, e ele nunca mais fosse voltar a ser o mesmo quando tivesse terminado. Ele acreditava nisso. Acreditava que pudesse fazer qualquer coisa por essa mulher. Queria isso tão intensamente quanto queria Zoe. Ela inclinou a cabeça para trás, arqueou-se para ele, e seus olhos ficaram mais escuros, com a mesma paixão que Hunter podia sentir em si mesmo. A mesma dimensão. Como se não fosse sexo, mas sim, um sacramento. – Por favor... – Ela arfou, e ele sorriu. – Eu disse que você imploraria. – Não é educado tripudiar. Hunter não sabia como Zoe tinha feito, como conseguira soar tão formal mesmo agora, mesmo quando ele estava dentro dela, bem fundo, e mantendo-a no limite. Quando o mundo parecia novo com cada golpe ágil, com cada movimento glorioso. Cada tremor, cada suspiro. Não bastava. Nunca bastaria. – Diga. – Hunter se perdeu no sabor dos seios dela e brincou com seus mamilos orgulhosos, sem perder o ritmo, direto, proposital, mantendo-a naquele tremor frenético sob ele, mas sem nocauteá-la. – Diga meu nome, Zoe. E ele sentiu-a derreter. O fogo seguido pelo raio, macio, forte e dele, e ela gritou, por fim. Para o vidro acima, para a noite ao redor deles, para o céu e para o mundo. Repetidamente, até que soasse como uma música. Como um voto. Seu nome. Sua posse. Sua. – Hunter! – ela gritou. – Vou matar você se não… – Não prometi servi-la? Confie! – Então faça, pelo amor de Deus! Ele achou graça, e levou a mão entre eles para roçar seus dedos no pequeno centro de prazer dela, puxando-a para si, quando ela fez aquele som desesperado, que ele sentiu em cada parte sua, antes de Zoe se fragmentar ao redor dele. E só então, quando Zoe estava em frangalhos, e ele, mergulhando nela como queria, da maneira que achava que deveria fazer pelo resto da vida até que isso acabasse com ele – e Hunter não acreditava que se importaria caso isso acontecesse –, deixou-se segui-la pelo caminho do êxtase. MAIS TARDE, Hunter acordou na quietude da noite em um susto repentino, mas ela ainda estava ali. Não havia saído enquanto ele dormia, enquanto não estava prestando atenção. Ela não desaparecera. Não fora embora para nunca mais vê-lo. O coração dele batia forte, como se tivesse corrido por quilômetros; e algumas partes de Hunter achavam que fora o que ele fizera, de uma maneira ou de outra, nos últimos dez anos. Não dessa vez, pensou Hunter, com uma solenidade que poderia preocupá-lo à luz do dia. Mas estava escuro na caverna de seu quarto, e o dia demoraria a chegar. Assim, ele podia fingir, por um momento, que era o homem que queria ser enquanto estava dentro dela. Zoe se enroscava nele, como se dormissem assim juntos por milhares de noites, e Hunter adorou isso. Adorava o perfume do cabelo dela e como ele escorria pelos seus dedos, o peso suave de seu corpo contra o dele na escuridão. A cabeça dela pousada no braço dele e a maneira com que a curva de seu traseiro se encaixava tão aconchegada nele no meio da cama enorme fazia tudo parecer confortável. Zoe era inteligente e irritada, linda e sexy, e se encaixava como se tivesse sido feita de acordo com as especificações precisas dele. Ela não era outra fã cujo nome Hunter não sabia. Não tinha sido mais uma forma vazia de exercício. Ele a desejara. Ainda desejava. Hunter a sentiu dentro dele, aquela explosão voraz, algo como uma surpresa, e ele tinha a estranha sensação de que não sumiria com o amanhecer, como tudo o mais. Ele sentia uma imitação pálida deste tipo de equidade muito tempo atrás, quando era jovem e imaturo, a vida ainda era dourada e Hunter não fazia a menor ideia do que era perder algo irreparável. No escuro, podia admitir para si mesmo que isso era diferente. Era melhor, talvez mais complicado. Porque ainda não sabia qual era o plano dela. Por que Zoe fora atrás dele naquela boate de striptease e usara Sarah para que fizesse o que ela queria que fizesse? Ele ainda não sabia o que ela queria dele. Essa noite, Hunter não se importava. Zoe tinha perfume de lavanda e sabor de creme doce e quente, uma mulher excitante, e Hunter não parecia reagir da maneira como deveria. Não parecia fazer nada, a não ser puxá-la para mais perto, dar um beijo suave em sua têmpora e segurá-la junto de si como que para não deixá-la ir. Ele se moveu por trás dela no escuro, saboreando-a de novo na escuridão, suas mãos explorando-a, adorando-a, como se fosse a primeira vez, enquanto a mantinha junto de si, na mesma posição. Ele podia traçar seus seios sob o braço erguido, beijar-lhe a parte sensível atrás da orelha. Podia acarinhar a lateral de seu corpo, sua coxa, seu calor feminino e convidativo sob suas mãos. Pôde sentir quando ela passou do sono para o alerta total, e também o tremor delicioso que a assolou. Quando Zoe voltou sua atenção para ele com um gemidinho, pressionando o traseiro contra ele, deixando-o ainda mais excitado. Quando ela sussurrou seu nome, ele penetrou-a, fazendo os dois suspirarem. Hunter rolou com ela, segurando-lhe a mão na dele como se a prendesse no colchão. Como um sonho. Quente e sedoso. Doce. E, então, ele os levou ao clímax avassalador, lento e silencioso, quase uma reverência. Como uma esperança, pensou ele, perdendo-se nela. Como uma promessa que Hunter pretendia manter. A LUZ da manhã acordou-a, penetrando todo aquele vidro com a insistência frenética do inverno, e Zoe sentou-se num pulo. Por um longo momento, não tinha ideia de onde estava ou por que estava tão brilhante. E, quando voltou a si, quando a longa noite começou a passar em sua mente, uma imagem ardente após a outra, fazendo seu ventre se contorcer, jogando-a no fogo de novo, ficou furiosa consigo mesma. Era melhor do que as coisas sombrias que se escondiam sob aquele ímpeto de moderação. Acordar na cama dele não era o que deveria ter acontecido. Com certeza não fazia parte do que ela planejara na noite passada, quando se viu beijando-o, e precisou entender que tinha de lidar com essa coisa entre os dois. Com ele. Zoe deveria ter ido embora durante a noite, como pretendera. Depois da primeira vez. Antes que fizesse aquele poço sombrio dentro de si abrir-se ainda mais, até mesmo mais profundo. Até mesmo mais traiçoeiro que antes. Era uma tola. Perdera a conta das vezes que se uniram na escuridão, e ela não queria pensar quantas fora ela quem buscara por ele. Como rastejara sobre o corpo de guerreiro atlético por sua própria vontade, sem máscaras nem jogos. Nenhum sinal de compulsão, apenas vontade. Necessidade. Desejo. Como provara de cada parte daquele peito de dar água na boca, descobrindo e memorizando cada pedacinho dele. Como tomara seu membro rijo em sua boca, lambendo-o da base à ponta e voltando, depois o provocando nos locais mais obscuros mais abaixo, até que Hunter gemesse em rendição, as mãos agarrando os lençóis. Como montara nele, tomando-o profundamente, em um impulso deslizante e exultante, que fez os dois tremerem a ponto de ela precisar segurar-se nele por um momento para recuperar o fôlego, as mãos espalmadas sobre o tórax de granito e aquela haste de aço levando-a à loucura. Zoe não queria pensar em como as mãos dele agarraram seus quadris quando começou a se mover sobre ele, ou na maneira com que arqueava as costas para dar-lhe livre acesso aos seus seios, ao seu ventre, e não porque queria assumir o controle, mas porque era gostoso. Tão gostoso que só de lembrar já começava a tremer. E ela decerto não pretendia pensar nesse tremor de êxtase que a assolava, cada vez mais forte, fazendo com que se perdesse por completo, enquanto ele a colocava de costas e os levava direto àquele impressionante e glorioso esquecimento. Hunter fora muito voraz, e ela se igualara a ele. Tão freneticamente possessivo, e ela respondera da mesma forma. Quase como se… Mas ela não podia se deixar levar. Não importava o que acontecera na noite passada. Ele a possuíra. Estava acabado. Esse era o plano. Zoe olhou para o quarto ridículo, que parecia maior e mais sério com todo aquele sol de inverno penetrando, hostil e inevitável. A cama larga ficava no centro, um momento de orgulho para uma longa noite da qual ela deveria se arrepender. A escuridão vertiginosa nela sussurrava que acabaria se arrependendo. Ao menos Hunter não estava em nenhum lugar visível, pelo que ela agradecia. Era isso o que sentia; era isso o que essa coisa estranha que a consumia era, que fazia seu pulso se agitar e enrijecer, tudo junto: gratidão. Sair daquela cama gigante, passar pelos travesseiros que exalavam o perfume de Hunter foi mais difícil do que deveria. Olhar ao redor e ver seu sutiã, sua calcinha, e infelizmente seu vestido colante, que era a última coisa que queria vestir, talvez nunca mais, já que tudo o que pensava quando olhava para ele era em Hunter. Nas mãos dele. Na boca dele. Nas exigências dele. Ela se sentia forte. Gloriosa. Como se não estivesse devastada. Como se fosse outra pessoa. Foi então que, ao olhar para o vestido em suas mãos, ela entendeu o que significava aquela pressão boa e perigosa em seu peito. Aquele calor que a cegava. Aquele aperto na garganta que não sentia fazia muito tempo. Estava a ponto de surtar e chorar. As mãos de Zoe se fecharam, e ela olhou ao redor, pronta para socar alguma coisa, quebrar alguma coisa, gritar, até que viu a porta que levava a uma lateral quase imperceptível na parede. Foi ali, passando por vários closets que ela não deveria ter o menor interesse de explorar porque não deveria se importar, que encontrou o banheiro gigante. Tinha uma banheira que parecia uma piscina olímpica, e um chuveiro que poderia abrigar multidões, com pelo menos três duchas separadas. – O melhor para atender a uma vida de playboy e tudo o que ela implica – murmurou, e a voz nem mesmo ecoou naquele espaço luxuoso e exuberante. As fãs não passavam do primeiro andar, disse ele na noite anterior, e Zoe odiou o quanto queria acreditar nisso agora. Ficou sob o jato quente por um longo tempo. Até tomar posse de sua pele de novo, como se encaixasse nela de novo, da maneira como deveria ser. Até que ela parasse com aquela tremedeira inútil, como se estivesse lutando contra uma febre. Até que saísse aquele peso do seu peito e ela não tivesse mais medo de se acabar em lágrimas. Até que a água quente lavasse qualquer evidência que algumas lágrimas poderiam ter deixado contra sua vontade. Secou-se, feliz por ter embaçado todos os espelhos para que não tivesse que olhar para seu reflexo, porque temia o que poderia ver. Muitas verdades nos olhos que ela não queria reconhecer. Muita coisa de que deveria ter mais conhecimento em vez de se deixar sentir. – Era apenas sexo – disse severamente a si mesma enquanto voltava para pegar suas roupas. Tinha de parar com isso. – Vamos lá, Zoe. Você já passou por coisas piores. E embora ela soubesse ser verdade, foi muito mais difícil do que deveria descer aquelas escadas depois de prender o cabelo em um coque e colocar os sapatos. Desceu a primeira curva da escada em espiral e parou, sacudindo a cabeça. Engoliu em seco e roçou a base da mão contra o peito, para onde aquele peso havia retornado com mais força, e ficado insuportável. O problema era que ela gostava dele. E, enquanto ficava ali parada, usando o vestido da noite anterior, seu corpo todo ainda reclamava das horas sem dormir que passara com Hunter marcando cada pedacinho seu com aquela boca perversa, com cada toque daquelas mãos talentosas. Zoe sentia como se estivesse em carne viva. Como se toda aquela luz do sol entrando pelo teto estivesse atacando-a, atravessando-a, abrindo portas, tremendo janelas, derrubando paredes. Estivera se escondendo. Todo esse tempo se sentira tão orgulhosa de si por seguir em frente, por cuidar de seu bem-estar, por extrair uma vida decente das cinzas do que acontecera com ela, mas tudo o que estivera fazendo fora se esconder. Hibernando e sonhando uma vingança, enquanto o mundo girava sem ela. Jogando pela sobrevivência por todos esses anos. Mas sobreviver não era a mesma coisa que viver. Não chegava nem perto. Zoe olhava para si mesma naquele vestido cinza, que era igual a todos os outros vestidos cinza que usava. Cinza e pretos, marrom-escuros e azul-marinho, ela vestia as cores do luto. Passara toda essa última década no próprio funeral. Como nunca percebera isso antes? Para onde olhasse ali parada, acesa e brilhante depois de uma noite que não deveria ter acontecido com um homem como Hunter, que não deveria tê-la atraído de maneira alguma, via que Jason Treffen vencera. Que ele ganhava desde que ela fugira da operação nojenta dele e se estabelecera por conta própria. De certa maneira, isso tudo fora um jogo de faz de conta. A audácia dela, a insistência pelo controle, a sua vida toda. A respiração de Zoe estava irregular. Não deveria manter todas as cores brilhantes que se permitira em seu apartamento. Não deveria ter medo de ser quem era, fosse lá quem quer que fosse. Ela queria sentir-se da maneira com que Hunter a fez se sentir: desestabilizada e viva. Selvagem e livre, completamente solta. Mesmo que tudo tenha sido apenas corriqueiro para ele, seu charme de playboy, mas não da parte dela. Quando Hunter a beijou, Zoe se sentiu inteira. Isso era uma vitória. Recuperar quem ela era, ou quem poderia ter sido. Nunca mais se esconder. Nunca mais se trancar do mundo, com medo. Zoe entendia agora que Jason Treffen poderia reaparecer a qualquer momento e dizer ao mundo o que e quem ela realmente era. Como se fosse a função dele fazer isso. Não era de admirar que Zoe estivera adiando colocar seus planos de vingança em ação, mesmo agora que se achava tão próxima do ato final. Não era de admirar que levara tanto tempo. Ela tivera medo. Mas agora não mais. Sentia-se livre. Quando recomeçou a descer as escadas, Zoe sorria, pelo que parecia ser a primeira vez. Talvez da vida toda. Viu Hunter, ao fazer a última curva, esparramado naquele sofá imaculadamente branco, vestindo apenas calça cujo cós ficava na altura dos quadris. Ele parecia sonolento e lindo, seu cabelo loiro escuro estava desalinhado, e um indício de barba aparecia em seu queixo, fazendo com que parecesse menos belo e mais perigoso, o que acionou uma pequena sinfonia dentro dela. Ele a fazia sentir-se insaciável. Gananciosa. Bela e real. Inteira. Zoe caminhou calmamente na direção dele, quase como se não pudesse parar, e Hunter não ergueu o olhar quando ela se aproximou, ocupado demais assistindo TV com uma intensidade que Zoe não compreendia. O volume estava tão baixo que ela não conseguia ouvir a voz, até estar atrás de Hunter, do outro lado do sofá. Aquela voz. Jason Treffen. A tela da TV de Hunter era tão grande que Jason parecia maior do que a parede. Maior do que a vida. Certamente, grande o bastante para destruir as vidas em que ele se intrometia. Como a de Sarah. Como a dela. Ele se reclinava como o rei do mundo em um sofá de algum programa matinal de TV, sorrindo, alegre, parecendo o homem honrado e confiável que Zoe uma vez acreditou que fosse. E Hunter estava sentado ali diante da imagem, como o acólito que ela de alguma maneira esquecera que ele fora. Que diabos, talvez ainda fosse. Foi por isso que o escolhera. O fato de que gostava dele era apenas sua própria perversidade. Hunter virou-se para olhar para ela. Seus olhos estreitaram-se astutos demais quando sentou-se ereto, como se pudesse ler todos os tipos de coisas terríveis ali mesmo em seu rosto. Como se ela não estivesse mais usando sua máscara. – Zoe? Mas ela olhava para a TV, não para ele. – Zoe. Era uma ordem, mas ela se achava tão distante, tão longe, que levou um tempo para tirar os olhos do aparelho e direcioná-lo no primeiro homem que deixou que a tocasse em quase uma década. O primeiro homem que desejou em muito tempo. O primeiro homem a quem implorou. O primeiro homem de quem gostou dessa maneira e que sabia seria para sempre. Zoe não entendia por que estava surpresa por Jason Treffen ser uma ameaça nesse momento, literalmente. O que era surpreendente era que se deixara esquecer que sabia muito bem quem era Hunter. Que sempre soube. – Diga – Hunter pediu, com algum tipo de ferocidade que fazia o ar ao redor deles pesar e ser difícil de controlar. – Como conheceu Sarah? Talvez ele também soubesse. Talvez sempre tivesse sabido, da mesma forma que ela. Talvez esse não fosse mais do que outro jogo doentio. Mas Zoe estava cansada de todos os outros vencendo. Estava cansada de se esconder, não importava o que a tivesse impelido a mostrar a cara. Estava cansada do maldito Jason Treffen e dos danos que ele causara. Estava ali. Zoe só percebeu que falava quando o viu reagir a sua voz, levantando-se como se ela o tivesse puxado e socado. Mas era como se ela sumisse dentro de si, desaparecendo naquele espaço que não precisara acessar por muito tempo. Podia ver como Hunter se mostrava tenso, e seu rosto, sombrio, mas ela sorriu; porque se sentia completamente entorpecida, e assim era melhor. Muito melhor. – Eu me lembro de você, Hunter. – Terá de ser mais específica. Havia um tormento sombrio naquele olhar, naquela tensão estranha no corpo dele, na maneira como elevou a mão para tocá-la e parou. É claro que parou. Zoe suspeitava que Hunter soubesse muito bem o que ela iria dizer. E quem iria querer tocar em alguém assim? Não podia culpá-lo. Foi sorte ela ter desaparecido dentro de si mesma, porque assim não doía. – Sarah e eu nos conhecemos no estágio na Treffen, Smith e Howell, quando ainda achávamos que seríamos assistentes legais – disse Zoe daquela maneira remota e fria, como se não estivesse de fato falando de si mesma. E, em muitas coisas, não estava. Aquela Zoe morrera havia muito tempo. – Ela queria ser juíza. Eu queria dizer coisas inteligentes nos tribunais. Almoçávamos juntas todos os dias, embora quanto mais o tempo passasse, menos conversássemos. Naquela última semana, apenas ficamos ali sentadas; afinal, o que havia para ser dito? Hunter não desviou o olhar. Talvez ele já soubesse de tudo isso. – Sarah não foi a única que se matou, sabe? Ela só fez isso de forma impressionante. Ele disse algo, e Zoe levou um tempo para perceber que era seu nome. – Sarah sempre falava que você era o namorado ela – disse Zoe, porque ela não se importava com o que ele dizia ou como dizia. Como se fosse doloroso. – Não me ocorreu até bem depois de você já ser bem rico aos vinte e três anos. Você era mesmo namorado dela? Ou pagava mais para que ela agisse dessa forma? Hunter empalideceu, e foi como um soco no estômago que uma parte dela fosse responsável por isso. – Eu não paguei a para Sarah fazer nada – disse ele com uma voz estranha. Como se quisesse ficar furioso por ela ter sugerido isso, mas a dor fosse muito forte. – Ele o chantageou? – perguntou ela com frieza, dizendo a si mesma que nada disso importava. E não importava mesmo. Hunter não importava; ele era útil, apenas isso. – Porque é isso o que ele faz. Não basta ter garotas de programa em um escritório de advocacia pomposo. Não para o santo Jason Treffen. – Eu não paguei a Sarah. – Ainda aquele tom sombrio e horrível na voz. – Não paguei a ninguém. – Achei que você tivesse sido despedido de seu time de futebol porque deixou de pagar a Treffen. – Zoe sustentou o olhar nele, e não era bravata que se movia dentro dela. Era muito mais pesado do que isso. Muito mais venenoso. – Mas isso só funcionaria se você fosse um dos clientes de seus bordéis. Se ainda for. – Não – a voz dele estava baixa e alterada, como se estivesse arrastando um banco de aço e deixando marcas no chão. – Foi culpa minha. Fui expulso da liga exclusivamente porque sou um imbecil. Jason Treffen estava pendurado na parede, na tela da TV, emoldurando Hunter da maneira com que emoldurou a vida de Zoe; e ela desejava poder concentrar a raiva que costumava alimentá-la, a fúria profunda e contínua que a estimulara por todos esses anos. Jason ria, flertava com os dois apresentadores do programa, encenava seu maldito papel como sempre fazia, e ela desejava ter acesso àquela raiva que a mantivera aquecida, segura e viva por toda a última década. Mas Zoe tinha aquele o peso no peito, pressionando por trás de seus olhos, e não sentia nada a não ser tristeza. Uma tristeza tão absurda que achava que poderia deformá-la. Mudá-la. Desfigurá-la até os ossos, tão fundo e permanente que nunca caminharia do mesmo jeito de novo. Sempre houve um preço. Para tudo. Ela sabia disso melhor do que ninguém. Zoe achava que não deveria ter ficado tão surpresa que, depois desse tempo todo, depois de todas as maneiras com que pagou, isso tudo pudesse machucar tanto. E mesmo assim, ali estava, destroçando-a como se não estivesse tão arruinada como imaginara. Como se fosse sempre algo novo que pudesse ser estabilizado. Destruído. Virado pó. – Não formamos um belo par? – disse ela, com a entonação sombria por todos esses anos em desespero, negação e fantasias de vingança para aliviar o terrível custo de tudo isso. Tudo o que fizera. Tudo o que perdera. Todas as garotas que Jason arruinara. Todos os meios como ele a arruinou. Tudo isso. Porque era tudo o que ela deixara. Talvez Jason estivesse certo havia muito tempo, e o que ele fez dela fosse tudo o que ela seria. Talvez devesse ter cedido a isso muito tempo atrás, da maneira como os outros cederam. Da maneira como Sarah cedeu. Talvez devesse ter desistido. Teria sido mais fácil. Ela sorriu para Hunter e disse a si mesma que era divertido. – Você não é um cliente de bordel, mas ao menos é um imbecil. Acho que sou apenas mais uma prostituta. CAPÍTULO 8 ELE SABIA. De certa forma, Hunter tinha consciência; ele suspeitava disso. Por que mais ela jogaria o nome de Sarah no seu rosto naquela primeira manhã? Ele sabia, mas não queria saber a história de sua vida maldita, e mesmo assim não era o momento de mergulhar no pântano confortável de sua própria autocomiseração. Não quando Zoe tinha sido tão fria, tão gélida. E não era aquela frieza inteligente e provocada que Hunter achava que não era o bastante, que ele só queria aproveitar. Era como se a Zoe que ele conhecia tivesse desaparecido sob o gelo do inverno e ele mal conseguisse suportar. Hunter odiava isso. Não permitiria. Cruzou os braços no peito para não tocá-la e recorreu a todos aqueles anos de futebol tensos e partidas duras para se acalmar. Para se concentrar. Isso tudo não tinha a ver com ele, mas com Zoe. Sua bela, corajosa e durona Zoe, que ele se recusava a deixar desaparecer na escuridão que a prendia. Profundamente. – Era por isso que você me queria – disse ele, fazendo um esforço para não gritar. Para manter toda aquela fúria que revolvia dentro dele, acumulada e controlada, porque Hunter não queria mirar nela. – Minha ligação com Sarah. – Acenou com a cabeça em direção à TV. – Com aquele imbecil. – Você é a chave da minha vingança. – Mas a voz dela soou gélida. Afiada e zombeteira. Como uma bofetada. Ele não queria bater de volta; queria confortá-la, abraçá-la, ajudá-la. No entanto, sabia que ela nunca deixaria. Zoe não permitiria que chegasse perto dela de novo; não sem brigar. Hunter sempre entrava em uma briga. Era bom nisso. – Vingança – disse ele. – Dormindo com tanto entusiasmo com um homem que você acredita preferir a companhia de garotas de programa. Como isso fere Jason, exatamente? – Isso era apenas para manipular você. – Zoe arqueou uma de suas sobrancelhas escuras. – Em especial o entusiasmo. Ele riu, embora sem sucesso. – Aprecio seu sofrimento com tudo isso. Bem ponderado. Você deveria mesmo ter chegado com uma atitude melhor para o dia seguinte. Havia certa hesitação naqueles olhos cinzentos, e ele achou que poderia ter rompido algo, mas Zoe sorriu, aquele mesmo sorrio vazio. – Não acho que tenha de manipular mais esta situação. – Zoe se mostrava calma demais, como se não tivesse passado por aquela cama; como se ele não soubesse que ela havia calculado a noite toda. – Você vai me ajudar porque Jason Treffen é responsável pela morte de sua namorada ou porque sabe que eu sei que você é um dos clientes especiais dele e não há de querer que isso venha à tona. Não importa qual dos dois. – É claro que importa. – Isso saiu mais áspero do que deveria, revelando- o demais, e ela sacudiu a cabeça como se ele a tivesse atingido. Maldição. – Eu disse que nunca fui cliente dele. Não dessa forma. – Estudou-a por um momento tenso, depois outro. – Está lutando com todos os fantasmas da sala ou está comigo, Zoe? – Não sei dizer a diferença. – Lute comigo, Zoe. Você pode me atingir de verdade. Porque estou bem aqui. Ela se moveu, e Hunter achou que fosse uma espécie de vitória, mesmo quando tudo o que Zoe fez foi distanciar-se e sentar-se, reclinada, como se estivesse mais confortável do que nunca. Mais calma do que nunca. E ele achando que seu peito fosse de abrir. Achou que isso poderia matá-lo. Ainda mais quando Zoe lançou-lhe aquele olhar nada amigável, como se, depois de tudo isso, ele fosse o inimigo. – Não estou lutando – ela afirmou, em um tom que sugeria que ele era um lunático em delírio. Hunter esfregou as mãos no rosto e sentou-se, não tão longe dela, mas com certeza não tão próximo como desejava. Estava em uma grande e perigosa ebulição por dentro, e tudo isso era tão doloroso, desequilibrado e extremo que não sabia o que fazer. – É claro que não está – resmungou e, em vez de entregar-se à sua habitual resposta do “dane-se” à adversidade da maneira com que preferiria, ele apena a encarou. – Por que não me conta sobre seu plano? Acho que está na hora da grande revelação, não acha? Zoe ficou quieta por um momento, e Hunter estava atento à maneira com que seu coração batia forte, como sua respiração parecia estar presa no peito. Alto. Forçada. Zoe mexeu-se de leve em seu assento, e Hunter queria que fossem seus nervos. Queria que ela se sentisse um pouco como ele se sentia. – O plano é você expor Jason Treffen. Mostre ao mundo quem ele de fato é. – Ela deu aquele sorriso mordaz de novo, ainda sem a reação e o brilho da Zoe que ele conhecia. – Pouco antes da grande entrevista dele que o estabelecerá para sempre como um santo na imagem do público. – Por que alguém me ouviria? – Hunter estava orgulhoso de seu tom calmo e racional. – Não sei se você prestou atenção, mas não tenho sido considerado o cara do ano pela verdade e justiça, ultimamente. – É por isso que você é perfeito. – Zoe parecia relaxar um pouco, enquanto enumerava as vantagens dele nos dedos, uma após a outra. – Sua reputação já está maculada, então, Jason não pode ameaçá-lo com a perda dela. Você é odiado, e o que importa se as pessoas o odiarem ainda mais? Mas você conhece bem o homem há mais de dez anos, o que significa que se falar bastante e bem alto, e nos ouvidos certos, que é onde eu entro, você será ouvido. – Tornou a sorrir. – E o fato de ter passado todo esse tempo fazendo bons trabalhos em silêncio no rastro de sua expulsão da liga sem tentar se beneficiar de nada disso vai pesar a seu favor. – E eu aqui começando a achar que você armou tudo isso durante esse período. Ela deu de ombros. – Eu disse que sabia o que estava fazendo. Mas Hunter não podia deixar de pensar sobre como Zoe teria dito essa última parte se ela não estivesse tão desligada e distante quanto agora, e isso bateu dentro dele, a perda daquele sorriso sarcástico e conhecedor. Daquele brilho divertido no olhar acinzentado. Ele a queria de volta. – Esperava que você fosse assim determinada porque já tinha planos para meu belo corpo. Acontece. Às vezes na academia. Ou nas bibliotecas. – Talvez não tenha me ouvido antes – disse ela, suave demais, o olhar sombrio e atormentado encarando-o. – Não estava sendo metafórica. Eu era garota de programa. Eu me vendia. Para os homens. Por dinheiro. – Cada frase era um tiro curto, cruel. – Por que continuaria flertando comigo agora? É aqui que geralmente sou paga. É isso o que significa ser uma prostituta. E Hunter reconheceu o que ele via nela, então. O que ela estava fazendo. Aquele quase riso em sua voz, encorajando-o a unir-se naquela piada horrível. Aquela ousadia áspera e penetrante, jogando na mesa a pior coisa em que Zoe podia pensar. E toda essa angústia terrível por baixo. Ah, sim. Ele conhecia essa rotina. Tão bem que podia sentir o sabor da bile em sua garganta. Hunter conhecia a culpa quando a via. Conhecia a autodepreciação e a vergonha profunda e debilitante. Ele conhecia esse jogo, pois o vinha jogando havia anos e por muito menos motivo. Mas Hunter também conhecia Zoe. – Como você quer ser paga? – perguntou ele com indolência, e ela se reclinou no sofá, a respiração tornandose acelerada e audível. – Dinheiro? Cartão de crédito? Uma troca de presentes e serviços? Zoe a fitou como se ele e golpeasse de novo, e dessa vez mais forte. – Muito engraçado. – Sejamos claros, Zoe. Não acho que o que aconteceu desde que você desceu essas escadas hoje de manhã seja engraçado. Nem um pouco. Fiz uma pergunta. – Sobre pagamento. – Ela empalideceu. Hunter achava que isso significava progresso, embora parecesse ter vidro quebrado dentro de si, estraçalhando com ele. – Lógico. – Manteve seu olhar duro no dela até que Zoe soltasse a respiração de forma longa, trêmula, zangada e em agonia, e ele sentisse como se pregos atravessassem seu peito. – Dê seu preço. – Pare – disse, curta e certeira. – Bem, parece querer jogar o que aconteceu com você na minha cara, então vamos lá. Vamos tornar isso o pior possível. Dê seu preço. Sabe que posso pagar. Sou mais rico que Deus. – É claro que irá transformar isso em você. Homens como você… – Não existem homens como eu! – esbravejou, toda a violência que vinha contendo surgindo agora em sua voz. – Não para você. Não agora. Dê seu preço. – Vá para o inferno! – Zoe ficou em pé numa explosão cega de raiva, mas ele já esperava por isso, queria isso. Hunter foi até ela, sentindo uma espécie de profunda satisfação quando Zoe se virou para ele. Sentiu o punhos dela baterem nele, mais forte do que previra, e deixou que continuasse. Nem mesmo ergueu os braços em defesa. – Bata mais forte – Hunter pediu, observando a luz negra nos olhos dela, aquele brilho austero cobrir-lhe o rosto. – Machuque ou não terá valido. Zoe oscilou, a respiração arfante, mas os olhos cinzentos que se encontraram com os dele pareciam uma tempestade de inverno. A morte que pairava sobre eles foi embora e, embora Hunter soubesse que fora bom, também sabia que haveria dor. E ela ainda mantinha os punhos fechados na sua frente como armas, como se não tivesse ideia de como eram pequenos. Ou como se isso não importasse, pois brigaria de qualquer maneira. Sua Zoe. Completamente incapaz de render-se. – Machuque-me – disse ele de novo, com mais intenção. – Não sabe como isso funciona? A porcaria sempre rola ladeira abaixo. Considere, então, isso como sendo uma bem alta. Zoe ainda respirava pesadamente. Parecia desesperada, apavorada e feroz, tudo ao mesmo tempo, e Hunter sabia que se tentasse tocá-la, ela sairia de si. Assim, ele se concentrou na dor causada pelos socos em seu tórax, cada um deles provando que ela não estava tão perdida quanto parecia. Zoe não desaparecera sob o gelo. Ainda estava ali, não importava o quanto doesse nela. Ou nele. – Não quero machucá-lo – falou entre os dentes, depois de um momento, como se as palavras rasgassem sua garganta. Hunter esperou até que Zoe o encarasse de novo. E mantivesse o olhar. – Então não machuque. – Não é assim tão simples. – Sim. – Hunter se mostrava implacável. Seguro. Quando ele não era nenhuma dessas duas coisas em nada, a não ser agora. – É. Zoe virou a cabeça para o lado como se pudesse esconder o modo como seu rosto se achava transtornado, e ele tinha de ficar ali parado vendo isso. Parado e sem fazer nada, a não ser esperar enquanto ela pressionava os punhos cerrados nos lábios, como se pudesse conter as lágrimas, caso necessário. Se chegasse a isso. – Vamos ferir a pessoa que merece – convidou Hunter, muito calmo, e, embora ela não o olhasse e ele visse uma espécie de umidade nos cantos de seus olhos e o punho dela na boca, apertando até que os nós dos dedos ficassem esbranquiçados, Zoe acenou com a cabeça. Foi comovente e duro, e o atingiu como se fosse sua própria dor, mas era um aceno. – Tenho algumas ideias. HUNTER LIGOUpara Austin do carro ao seguir para Edgarton naquela tarde, como fazia todos os dias desde que Zoe o levara lá. Primeiro porque ela ordenara e ele decidira fazer. E, agora, só em parte por isso, embora fosse mais uma coisa em que não estivesse preparado para pensar. – Quem é? – Austin perguntou em vez de cumprimentar. – Não reconheço o número. Tenho certeza de que o proprietário anterior me acusou de ser um perseguidor. – Precisamos nos encontrar – disse Hunter, ignorando o sarcasmo. – Definitivamente não reconheço essa voz. Sabe que não pode ficar bancando o avestruz se convoca reuniões, certo? As pessoas podem ter uma impressão errada e achar que você se importa com alguma coisa. – Amanhã à noite. Escolha o lugar. Traga Alex. – Alex já é homem adulto, Hunter, com sua própria agenda, o que você saberia se atendesse às ligações dele. Não o guardo no meu bolso. – Tem alguém que quero que vocês conheçam – Hunter afirmou, impaciente, e ele não sabia se foi o tom de sua voz ou o fato de que só poderia haver um motivo para que ele quisesse fazer apresentações para os dois, mas Austin ficou quieto por um momento. – Quem? Zoe dissera que estava bem com relação a isso, que queria fazê-lo porque se encaixava em seus planos, mas Hunter ainda pretendia protegê-la, caso mudasse de ideia. Porque poderia ser a única vez em que ela o deixaria protegêla, pensou, sombrio, e a verdade era que o mais provável fosse ela bater nele de novo. Hunter deixaria assim por um momento, a constatação de que aceitaria qualquer uma das duas coisas. – Vai descobrir amanhã, Austin. A menos que queira me doutrinar sobre meus hábitos. Irá me comparar com uma ostra novamente? Tenho certeza de que pode me insultar melhor do que isso, Austin. É como se nem estivesse tentando. – Hunter... Ele esperou, e foi como se história e memória se condensassem. Como se estivessem fortemente encaixadas, lembrando-o de milhares de outras conversas telefônicas, longas, de madrugada, todas aquelas horas em que passaram na companhia um do outro, aprendendo a própria linguagem, fazendo eles próprios seu formato de família. Lembrando-o mais uma vez do quanto perderam. – Ouça – implorou ele, inadequadamente, porque era óbvio que era tudo sua culpa. Fora ele quem partira, quem nunca olhara para trás. Quem fora tão determinado em fingir que nada estava acontecendo, na época e agora. Mas Austin tornara a falar de novo, guiando-o como se já soubesse aonde isso levaria: – É melhor que não seja uma maldita florista – disse, e Hunter não teve como não sorrir. – Não estou brincando. O CAMPO de futebol da Edgarton High tinha sessenta centímetros de neve fresca, e provavelmente ficaria assim por semanas, o que significava que as práticas aconteciam dentro do ginásio. Hunter odiava o ginásio. Os pisos arranhados arqueados e rangendo sob o golpear de tantos sapatos adolescentes, o cheiro de umidade ao redor deles como um estrangulamento úmido e as pequenas janelas altas eram distantes demais do chão para deixar qualquer luz de inverno entrar. O lugar deprimente era todo um risco de incêndio. – Não despediram você? – Aaron, o punk que queria ser um quarterback, indagara no primeiro dia. O garoto estava todo estufado e fazendo cara feia como se achasse que era um sujeito muito grande. Mas isso não escondia o desejo atordoado em seus olhos escuros, que deixava Hunter ciente do quanto ele queria ser convencido de que Hunter era o problema. De que algo, qualquer coisa, fosse o problema. – Por que eu deveria ouvir o que você diz? – Porque sou uma maldita lenda – respondera Hunter. – E você é um nada. E, no entanto, desafiando toda a razão e seu próprio temperamento incerto, seu pequeno e triste grupo de garotos não só continuava vindo para suas sessões de musculação cada vez mais difíceis e os seus treinos matadores – tudo mais adequado para equipes que já estavam no nível de campeonato do que uma com a sua falta de habilidades, porque Hunter achava que poderia muito bem começar duro – como pareciam trazer mais jogadores novos consigo cada vez que vinham. Até que parecesse menos como uma reflexão tardia na sala de musculação, aquele triste ginásio antigo, e mais como uma equipe real. Hoje a visão dele deixou-o irritado. Mais exigente. Porque Hunter se recusava a falhar com mais alguém. Recusava-se. – Você, hã... está bem? – Jack, o verdadeiro treinador de futebol americano, não que ele estivesse exercendo esse cargo há semanas, ousou perguntar. Hunter colocou o time para correr treinos de velocidade. Repetidas vezes, por toda a extensão do velho ginásio, fingindo que não conseguia ouvir a rebeldia resmungando enquanto corriam. – Eles precisam conseguir fazer isso muito bem quando já estiverem exaustos – disse Hunter com poucas palavras. – Tem a ver com resistência mental. – Sim – disse Jack com uma dessas vozes concordantes demais que significavam que ele não queria discutir, não que houvesse de fato concordado. – Claro. Mas, hã… Você está…? – Estou bem – proferiu, curto e grosso. Jack recuou, mas Hunter não modificou a entonação. Nem quando ficou mais furioso do que jamais estivera e não conseguiu fazer nada a respeito. Não conseguia ajudar Zoe. Não conseguia salvá-la. Não podia mudar uma única coisa que acontecera com ela, assim como não poderia salvar mais ninguém. Sarah. Nem a ele mesmo. Não poderia sequer tocá-la da maneira que queria, porque não era isso o que ela precisava. Zoe afirmou que transformara isso numa coisa dele, e ele se recusava a deixar isso acontecer. Hunter acabaria com Jason Treffen com as próprias mãos se fosse preciso. Percebeu que estava com uma expressão de raiva e que Jack o olhava. – Por quê? – perguntou Hunter. Saiu como um resmungo. – Não pareço bem? Jack ergueu as mãos em rendição e não perguntou mais. – Vocês podem decidir que tipo de perdedores querem ser – disse ele para o grupo de garotos naquela mesma noite fria e amarga. Eles estavam arfantes, espalhados no chão do ginásio, junto aos seus pés, com o frio penetrando as paredes. Olhando como se achassem que iriam morrer, ou talvez já estivessem mortos. O que significava que Hunter devia estar fazendo alguma coisa certa. – O tipo que dá ao melhor time motivo para lutar ou o tipo que desperdiça o tempo de todo o mundo. É tudo com vocês, cavalheiros. Veio uma espécie de silêncio longo, cansado e raivoso. Hunter quase sorriu. – Vocês decidem quem serão – continuou ele, com os braços sobre o peito, a expressão zangada e firme. – Podem se levantar e continuar jogando quando doer ou sair capengas do campo e não voltar. Pouquíssimas escolhas nessa vida podem ser assim tão simples. Apreciem essa. – Diz o cara que foi chutado para longe antes do Super Bowl – resmungou alguém. – E está lutando contra uns vinte processos – completou outro, com uma risada. – Queria ver alguns desses espíritos espertinhos nesses treinos – devolveu Hunter, e a risada morreu. – Entendam de uma vez por todas: vocês são as únicas pessoas no mundo todo que se importam com o que acontece com vocês. Talvez não gostem das minhas escolhas, mas, independentemente de serem boas ou ruins, são todas minhas. Não as tornem suas. Levantem-se. Vamos fazer mais um treino de corrida. Foi difícil não sorrir com os resmungos, e ele não tinha certeza de que conseguira. – Se não podem lidar com isso, desistam agora – rosnou ele. – A escolha é sua. – O que você sabe sobre escolhas? – Aaron, que aparentemente não era bastante esperto para se intimidar por todas as bravatas de Hunter, contestava, enquanto se erguia. – Nada disso é mais do que diversão para você. Ainda estaremos aqui por muito tempo depois que se cansar e voltar para a vida real. – Está aqui para fazer amigos? – Hunter olhou dentro dos olhos do garoto. – Cantar músicas alegres e trançar o cabelo uns dos outros? É por isso que vem aqui, Aaron? Ou quer jogar um futebol menos pior? E ele viu, então, aquele traço de aço no rosto do garoto. A maneira com que ficou mais ereto, embora provavelmente quisesse comer e dormir mais do que o ar que respirava. Como se tivesse decidido, aqui e agora, que queria esse mais. Mesmo que fosse só para mostrar a Hunter que ele podia. Hunter sabia que era como tudo começava. Lembrava-se disso, como se fosse de uma vida diferente. Isso levava a ser outra coisa. A ser melhor. – Não se preocupe, cara. – Havia um brilho nos olhos escuros de Aaron que fez Hunter sentir-se muito orgulhoso. – Ainda não estava escolhendo meu vestido do baile de formatura. Pode se acalmar. – Enquanto não me der cinquenta abdominais e se não aprender a falar com respeito, vai ficar correndo a noite toda. Cara. E foi só durante a corrida, com Jack gritando os comandos das laterais, como se estivesse se sentindo como o próprio treinador, Aaron contando seus abdominais com um tom de voz notadamente mais educado, que Hunter se permitiu um sorriso. ISSO ERA muito mais difícil do que previra. Zoe escapou do ar gelado entrando em uma soleira um pouco adiante do bar onde deveria se encontrar com Hunter, o coração batendo tão forte contra as costelas que ela achou que ficaria toda roxa. Uma coisa era Hunter saber sobre seu passado. Algo horrível e profundamente perturbador que ela passara o dia todo tentando aceitar, porém sem sucesso. Mas por que concordara em ir até um local público e contar a mais duas pessoas o segredo que escondera por todos esses anos? Ainda mais quando um deles era um Treffen. Por um momento assustador, ela não conseguiu respirar. Não sabia por quanto tempo estava ali, lutando contra o pânico. Será que simplesmente desabaria ali mesmo, na rua? Era errado uma parte dela querer isso, para que no mínimo pudesse falar a respeito de novo? Mas, lentamente, ela puxou ar para os pulmões. Uma longa respiração, depois outra. Por fim, conseguiu se recompor. Calma. E, quando todo o barulho em sua cabeça se aquietou, ela juntou-se ao fluxo de pedestres mais uma vez, para percorrer o restante de seu caminho, como se estivesse bem. Porque estava bem. Estava mesmo. Tinha de estar, de uma maneira ou de outra. Porque como poderia esperar acabar com o monstro que ainda espreitava todos os seus pesadelos se não conseguia ter uma simples conversa com dois homens que, Hunter garantira, odiavam Jason Treffen tanto quanto ela? Hunter. Aquele nome em sua cabeça, seu coração, como uma batida de tambor. Imagens dele na cama, por cima dela, dentro dela. O rosto, atormentado e exausto, quando pediu que batesse nele com mais força. Zoe não aguentava o fato de que ele sabia. Não conseguia suportar. Isso a deixava instável, como se fosse se dissolver a qualquer momento. Mas ela não tinha escolha a não ser fingir que era feita de pedra. Nunca teve chance. O bar em questão era um clube privativo em um hotel. Precisava passar por dois cordões de veludo e uma sentinela com rosto sério antes de poder entrar no espaço reservado. A vista dava para a silenciosa rua Lower East Side abaixo e uma Manhattan iminente acima, cheia de uma multidão elegante e recheada de estrelas deleitando-se em sua exclusividade. Era linda. Zoe conseguia respirar. Estava bem. – Zoe... Ela endureceu, mais gelo do que pedra, mas era Hunter, afastando-se da parede perto da entrada para encontrála. E Zoe se odiava, porque deixara que visse sua reação. Era como se ela não fizesse mais parte daquele corpo. Fez com que sentisse coisas que evitava fazia muitos anos. Vulnerável. Pequena. Ficou olhando para aqueles olhos perscrutadores sabendo que viram demais. Como sempre, maldito seja. E ela odiou-o, porque ele não tentou tocá-la. Ah, não. Nenhuma carícia em seu rosto, nenhum toque em seu cabelo, que deixara solto e caído nos ombros essa noite. Hunter enfiou as mãos nos bolsos da calça e parou tão perto dela que Zoe quase pôde sentir seu calor, mas não a tocou da maneira que sabia que a tocaria antes. Antes de ela ter falado para ele a verdade sobre si. Antes de ter descoberto que ela não era aquela criatura incandescente que aparecia refletida em seu olhar quando ele se moveu dentro dela. Antes. Já era esperado, mas isso não tornava mais fácil. E Zoe detestava o fato de estar doendo. Muito mais do que deveria. – Vamos em frente – proferiu, talvez com um toque de agressão na voz. Ele piscou. – Não precisa fazer nada. – Sua voz era calma demais. Uma alusão ao seu falar arrastado, nenhum sinal de raiva, dor ou calor. – Não precisa encontrar-se com eles, Zoe. Pode dar a volta e ir embora. Ainda farei tudo o que quiser que eu faça para ajudá-la a acabar com ele. Não precisa envolver mais ninguém, se não quiser. – Eu quero. – Seus lábios estavam entorpecidos, mas isso não importava. Assim como seu coração. Ela faria de qualquer jeito. – Vamos. Mas Hunter não se mexeu. Franziu a testa, o olhar percorrendo seu rosto, e ela não sentiu nada, apenas um vazio interno. Porque, antes, ele desejara tanto tocá-la que chegou a estremecer. E agora que Hunter sabia como era suja, profanada, mantinha as mãos afastadas dela. Zoe não imaginou que ele seria diferente do restante do mundo, portanto, não havia motivo para que se sentisse como se tivesse levado um soco no estômago. Como uma traição. Nenhum motivo, mesmo. Ela abriu o fecho do casaco com mais força do que habilidade e tirou o cachecol do pescoço, olhando para ele com expressão nada amigável. – Hunter, eu disse que quero fazer isso, portanto, vamos lá. – O que está vestindo? Zoe sabia o que ele queria dizer, mas havia toda uma fúria, dor de cabeça e pânico pulsando em suas têmporas, em suas veias, em cada respiração sua, e ela quis muito atingi-lo. Ainda mais forte. Com alguma coisa muito pesada, como uma das mesas dali. – Acredito que se chame roupa. – Zoe olhou para ele, na esperança de que parecesse de tão poucos amigos quanto se sentia. Como gostaria de se sentir. – Mas pode chamar do que quiser. Não me importo. Hunter piscou de novo e ela achou que ficara tenso, mas quando ele tornou a falar, a voz ainda estava perfeitamente calma. Como uma sombra ainda mais escura: – Nunca vi você de jeans, antes. Nem de vermelho. – Tem sido uma grande semana. Por que não refletir sobre o meu guardaroupa? O olhar dele se moveu sobre o dela, e Zoe odiava o fato de que seu corpo respondia estremecendo ao calor dele, deixando que aquela maldita necessidade florescesse em qualquer lugar que aquele olhar azul tocasse. – Eu gosto – disse ele. – Essa era, obviamente, minha meta pessoal. A boca dele se curvou, como se soubesse. Como se estivesse ali nessa noite quando ela decidiu que era hora de sair da toca da Rainha de Gelo das roupas justas de luto. Como se ele soubesse muito bem que ela era incapaz de tirar aquele brilho ardente nos olhos azuis dele de sua cabeça quando escolheu vestir aquele jeans skinny que abraçava suas pernas e a blusa vermelha que envolvia seu torso, deixando um profundo V aberto na frente. Como se Hunter soubesse o que ela estivera pensando quando calçou aqueles saltos matadores com estampa de leopardo que exigiam atenção e que faziam coisas perversas com seu caminhar, sobretudo nas calçadas invernais. Como se ela estivesse completamente transparente, depois de todos esses anos se escondendo. E esse mesmo fogo a assolava, a lembrava. O ar entre os dois ficou tenso. Zoe via aquela consciência em seus olhos, o mesmo fogo ardente. Mas Hunter ainda não fizera nenhum movimento para tocá-la, e isso a queimava como veneno, abafando todo o resto, pesando no peito como as lágrimas que se recusava a chorar. Não ali. Não na frente dele. Não quando já machucava demais. Ela queria gritar, se aproximar, explodir… – Vamos – disse ele calmamente, usando o queixo para indicar o caminho, como se até mesmo o menor toque pudesse ser corrosivo. Como se ela estivesse infectada. Era o seu pior pesadelo, e esse homem já estivera dentro dela. Zoe se sentiu enjoada e, depois, furiosa consigo mesma por esperar algo diferente. – Estão logo ali. Zoe teria dito que seu coração fora arrancado muitos anos atrás e que não poderia mais ser despedaçado. Que isso não poderia se partir desse jeito, se estilhaçando em todos aqueles pedaços que machucavam a cada respiração. Mas ela caminhou para onde ele apontava, porque era melhor do que desmoronar. Teria que deixar isso para mais tarde, quando tivesse terminado. Quando Hunter não pudesse vê-la. Quando pudesse ter certeza de que ele nunca saberia. Que ninguém saberia. Alex Diaz e Austin Treffen esperavam a uma mesa privativa em um canto distante, e os dois estavam em pé quando ela apareceu, ambos tão belos e poderosos quanto esperava que fossem. Zoe disse a si mesma que eles eram como qualquer outro cliente. Ricos, realizados e provavelmente maus. Era melhor deduzir isso para começar. Menos surpresas, pensava. Zoe supôs que isso dizia algo sobre ela que o pensamento suavizava. – Não preciso de apresentações. – Assim, Zoe trouxe seu lado profissional como um manto, forçando um sorriso, surpresa quando veio tão fácil. Como se nada houvesse mudado, mesmo que sentisse que tudo estava diferente. – Sei quem vocês são. Ela apertou as mãos deles como sempre fizera, enérgica e confiante, como se realmente se sentisse assim. – Alex. Austin. Sou Zoe Brook. – A rainha de relações públicas de Nova York. – Alex sorriu daquele jeito afetado que, ela deduzia, os repórteres sempre faziam. E Zoe não estava surpresa de que ele fosse tão bem-sucedido. – É claro. É um prazer conhecê-la em pessoa, embora sua reputação a preceda. – Melhor do que uma florista, acho – disse Austin, de modo bizarro. Mas ele encarava Hunter. – Está preocupado com sua reputação, Hunter? Porque acho que seja uma causa perdida. – Zoe tem uma afinidade especial com São Judas, para dizer a verdade – disse Hunter. A referência fez Zoe ficar alerta. Ele achava que ela era tóxica, e estava atenuando a situação fazendo referência a um mártir. Não tinha certeza de quem odiava mais, a si mesma ou Hunter. Ele, decidiu, quando Hunter passou por ela, sentando-se no sofá com seus amigos, deixando-a na outra ponta. Estava com medo de que Zoe fosse derramar a sujeira dela sobre seus amigos? Deixá-los tão sujos quanto ela, tão sujos quanto o deixara? Bem lá dentro, algo se lamuriava. Um som horroroso e lamentador, feito de perda e de arrependimento, mas Zoe ignorava. Não tinha razão nisso tudo. Não havia como consertar nada. Tudo o que existia era a vingança, e não importava o que sentisse por Hunter debaixo de todos aqueles escombros e toxinas, e de todas as formas como fora contaminada com o que fizera – ela acreditava no que ele dissera. Aquela vingança funcionaria melhor com Alex e Austin envolvidos. Deduzindo que fossem quem ele disse que eram. – O que fazemos aqui? – Austin olhou para Zoe e sorriu de leve. – Desculpe minha impaciência. Ela sorriu de volta e ficou satisfeita de que Hunter estava tenso, como se soubesse o que viria. – Detesto desperdiçar tempo – disse ela. – É um defeito meu. – Zoe... – Era Hunter, obviamente. Mas ela voltou ao seu modo profissional, e foi um alívio. Zoe era impenetrável quando nessa versão sua. Totalmente blindada. Conseguia até mesmo relaxar contra o sofá como se estivesse em uma festa ao ar livre para discutir nada além de canapês. Um jogo amigável de croqué. Ou qualquer outra coisa sobre o que os ricos e entediados conversavam quando cercados por todo aquele privilégio. – Seu pai é um cafetão – Zoe disse friamente para Austin, e observou os olhos dele ficarem inertes numa mistura de resignação e fúria, mas ela não o conhecia o bastante para conseguir decifrar. Olhou para Alex, que ficara imóvel. – E me lembro de vocês dois na época em que eu era assistente legal na Treffen, Smith e Howell, quando sua amiga Sarah Michaels trabalhava lá. O que, sim, significa exatamente o que vocês acham que significa. Zoe ouviu Hunter suspirar ao seu lado, onde se sentou próximo, mas ainda sem tocá-la. Ela sabia que nunca mais a tocaria, e se recusava a lamentar por isso. Quisera usar o sexo apenas para aliviar a tensão entre os dois e torná-lo mais maleável. Deveria ficar contente por ter sido um sucesso. Um grande sucesso, e o que ela realmente odiava nele, pensou, era que Hunter a fizera sentir-se inteira e nova, apenas para se virar e deixar claro que ela nunca seria outra coisa a não ser uma arruinada. Era verdade, mas isso não tornava a situação mais fácil de suportar. Inclinou-se para a frente e colocou os cotovelos sobre a mesa, como se fosse uma conversa casual entre amigos. – Hunter me assegurou de que nunca foi um dos clientes que Jason alcovitou e depois chantageou – Zoe falava quase com doçura. Ela sorriu e observou Alex e Austin de perto. – E vocês dois? CAPÍTULO 9 À MEDIDA que Zoe falava o ambiente ia ficando tenso, exatamente como pretendera, pensou Hunter. Ela estava lá, sentada muito calma ao seu lado como se discutisse prostituição, chantagem e a perversidade humana todas as noites. Como se ele não tivesse visto as cicatrizes do passado, tão vivas e brilhantes, tão bem estampadas no rosto dela em sua própria sala de estar no dia anterior. Como se tudo aquilo tivesse acontecido com outra pessoa. – Enfim, minha mãe está se divorciando de meu pai – disse Austin quando achou que Zoe estava mais convencida de que ele e Alex não eram monstros. – Fico feliz de dizer que eu a ajudei a chegar a tal decisão e que a estou representando. Se pudesse, eu deixaria Jason arrebentado e sangrando no chão do tribunal, mas me contentarei em arrancar o máximo de dinheiro que puder. – Devemos escolher? – Zoe indagou, afável. Hunter nunca admirara tanto uma pessoa. – Você tem de contar essa história, Zoe – Alex falou com intensidade, inclinando-se para a frente. – As garotas de programa. A chantagem de todos aqueles clientes. O mundo tem de saber a verdade sobre ele. – Concordo – disse Zoe, calma e racional como sempre. – Mas não posso fazer isso. – Você sabe tudo em primeira mão, como testemunha, depoimento de vítima. – Fui vítima por muito tempo – ela afirmou de maneira tão suave que demorou um pouco para se perceber a raiva borbulhando por baixo de suas palavras. – Não vou fazer isso novamente. Todos ficaram em silêncio por um momento; uma quietude à mesa enquanto o resto do clube fervilhava ao redor deles. A expressão de Austin estava mais sombria do que o normal, apenas observando Zoe, como se estivesse procurando um jeito de penetrar aquele muro de tranquilidade que ela era. Boa sorte com isso, meu caro, pensou Hunter, mas mesmo assim chegou mais perto dela para o caso dele tentar. – Eu entendo de onde você vem – começou Alex como se estivesse escolhendo cuidadosamente cada palavra. – Acha mesmo? Dessa vez sua voz estava tão suave, tão quase animada, que eles levaram um minuto para entender que na verdade era um soco no estômago. – Eu gostaria de fazê-la entender… – Alex reiniciou. – Já chega – Hunter não se deu conta de que ia falar até ouvir a própria voz. Foi uma ordem implacável, gritada, como se ele ainda fosse o quarterback que esperava que suas ordens fossem seguidas sem contestação. Alex olhou para ele e depois para Zoe novamente. Ele não parecia feliz, mas concordou. – Por que não montamos uma estratégia? – perguntou Zoe, muito serena. Mas Hunter a conhecia melhor agora. Ele a enxergava. A veia em seu pescoço pulsava, suas mãos apertadas, embaixo da mesa onde só ele podia ver, e as pernas cruzadas estavam completamente retesadas. E Hunter se desesperou, porque mesmo agora, mesmo ali, ele a desejava. Se ele fosse um homem melhor, não desejaria, com certeza. Não agora. Apenas a protegeria como Zoe merecia ter sido protegida desde o início. Se pudesse, ele a teria protegido de vermes como Jason Treffen. Ele a teria salvo. Em vez disso, ele era parte do problema. Sentia nojo de si mesmo. Zoe explicava o mesmo plano que contara a ele, naquele seu jeito conciso de sempre. Hunter não tinha dúvida de que funcionaria. Acreditava que ela era tão boa quanto dissera ser. Mas ele não queria a construção lenta, a palavra certa sussurrada na orelha certa. Hunter queria uma ação rápida, decisiva. Ele queria Jason acabado. Agora. – Não é o suficiente – ele afirmou quando ela parou de falar. Zoe respirou fundo antes de encarálo, e seu olhar estava sombrio, como se Hunter a tivesse magoado. Hunter não conseguiu se importar com isso, e o que ele queria fazer seria melhor, no final. – Isso vai se transformar numa longa batalha pela opinião pública, possivelmente permitindo que ele vença. – Ele não vai vencer– disse Zoe com certa frieza na voz. – Talvez sim. Por que permitir que isso aconteça? – Porque agora, além de todas as suas habilidades tão conhecidas, você também é um especialista em relações públicas? – perguntou ela naquele tom cortante que ele descobriu ainda amar, mesmo quando o dilacerava. – Ah, não... Espere. Essa sou eu. – Eu já lhe disse: é preciso muita habilidade para subir todos os degraus, como fiz, e cair de cada um deles. – Continue chamando de habilidade, se isso faz com que se sinta melhor. – Você não conhece Jason tão bem quanto eu. – Hunter tentava puxar os outros de volta à conversa ao perceber que observavam muito atentos o embate entre eles, para o seu gosto. – E você não o conhece como eu – Zoe rebateu, selvagem e inexpressiva ao mesmo tempo. Hunter inclinou a cabeça, admitindo a derrota. – Mas acabar com a reputação dele não é o suficiente. Graças a Austin, Jason já perdeu a família. Alex está tratando da sua ruína através da mídia. Tem uma coisa melhor que você e eu podemos fazer. Que só nós podemos fazer. Zoe girou na cadeira para que pudesse olhar direto para ele, e Hunter esqueceu-se de onde estavam. Quem estava sentado com eles, vendo tudo isso. Mas não se importava. Não quando havia uma tempestade naqueles olhos cinzentos dela, que viam coisas nele que nunca pudera esconder. Não dela. – Isso tudo vindo de um homem que encontrei num clube de striptease –Zoe falou com suavidade. E dureza. Um tiro fatal. – Que não queria fazer mais nada além de ficar mergulhado na própria autopiedade pelo resto da vida. Austin soltou uma gargalhada. Alex se retraiu. E Hunter, lento como sempre, só então se deu conta de que ela estava muito, muito brava com ele. Hunter inspirou lentamente e em seguida expirou mais lentamente ainda. Como se estivesse de volta ao campo de futebol, bloqueou todo o resto – o golpe que Zoe desferiu com tanta precisão, aquele olhar terrível, de quem havia sido traída; o barulho do bar ao redor deles, o tilintar dos copos caros e o som abafado da alta sociedade de Manhattan por todos os lados. Hunter ignorou tudo isso e focou unicamente num objetivo: Jason Treffen. – Você quer ganhar esta discussão ou quer vingança? – perguntou ele, sem rodeios. – Porque terá de escolher. Ele a observou engolir alguma coisa que ia falar, depois piscar, como se também tivesse esquecido onde estavam. As mãos, ainda apertadas no colo. Mais tarde, prometeu-lhe silenciosamente. Hunter trataria disso depois, o que quer que fosse. Quando não tivessem uma audiência. Quando pudesse ir mais fundo e ver o que estava acontecendo no meio daquela tempestade de inverno que podia sentir se desenrolar dentro dela. Quando descobrisse uma maneira de beijá-la sem que fosse mais uma coisa da qual ela tivesse de se recuperar. Zoe apertou os lábios, mas não falou mais nada. – Eu gosto – afirmou Alex, após Hunter ter explicado seu plano em toda sua rapidez e simplicidade. Mas todos olharam para Zoe. Que, é claro, os fez esperar. Um momento, e mais outro. O punho cerrado foi finalmente relaxado, e ela colocou as mãos cruzadas sobre a mesa. – Isso pode funcionar. – Austin deu uma risadinha amarga. – Bom trabalho. Ele nem vai se dar conta do que está acontecendo. – Estou apostando nisso. – Hunter fez um esgar. – Nisso e no fato de que sua vaidade não permitirá nenhuma outra consequência. – O que o coloca exatamente onde eu quero. – Alex sorriu largo. Ele olhou para Hunter e, pela primeira vez em muitos anos, Hunter não desviou o olhar primeiro. Não mudou de assunto, contou uma piada ou personificou Hunter Talbot Grant III, bancando o palhaço. Não fez de conta que Alex não o conhecia, o verdadeiro Hunter, que havia pouco percebera que fora enterrado junto com Sarah. Alex sorriu mais largo ainda. – Eu me lembro desse Hunter – ele murmurou, levantando o copo e batendo no de Hunter, num brinde. Olhou para Zoe como se tivesse de agradecer por isso a ela, depois fitou de novo Hunter, como se sempre tivessem sido amigos íntimos. – Eu gosto deste Hunter. Bemvindo de volta. ELE A alcançou na esquina, quando Zoe ia atravessar o cruzamento como se quisesse se afastar dele o mais rápido possível. – Está fugindo de mim? – perguntou ele abruptamente, esquecendo-se de que tentava não incomodá-la. O olhar que ela lhe deu provou que não estava fazendo nada disso. – Estou caminhando, não correndo – respondeu ela, fria. – Vou até uma avenida ao norte, onde pegarei um táxi. Aí direi ao motorista para seguir para bem longe de você. – Certo. Faltavam duas quadras até a Park Avenue. Isso lhe dava certo tempo. Hunter passou à frente dela, mas virouse para olhá-la. – Perfeito – ela falou, sombria. – Só para você saber, eu não desejo que bata em algum poste e fique inconsciente, mas também não vou fazer nada para impedir isso. – Você deveria se lembrar de como ganhei a vida nos últimos dez anos. Eu poderia caminhar de costas por toda Manhattan sem bater em nada. Dizem que sou muito hábil. Ela parou de caminhar. Estava muito frio, muito escuro naquela rua lateral rodeada de edifícios de tijolos e montes de neve retirada com pás na última tempestade de neve, mas Zoe não se importou. Hunter também não. – Não é isso o que dizem de você. – E o que é? – Hunter apertou as mãos dentro dos bolsos, e foi um sacrifício manter a voz baixa para continuar, ou pelo menos parecer, calmo. Zoe soltou a respiração com força, e ele pôde ver o vapor se formando no ar frio, enquanto alguma coisa acontecia com ela. Ele podia ver isso. Era como um terrível terremoto. Como se Zoe estivesse se desintegrando de dentro para fora. Mas quando ela falou, foi apenas um sussurro. Sem olhar para ele: – É óbvio que você está enojado. Por que não admite? Por que jogar esse joguinho doentio, Hunter? – Não estou jogando. – Entendo. Há uma razão para eu não querer divulgar meu passado sórdido. – Espere. – Ele se inclinou para poder olhá-la direto nos olhos. – Do que você está falando? – Não finja, Hunter – seu sussurro se tornara áspero.– Não piore as coisas. Tudo o que você vê quando olha para mim é o que ele fez. O que eu fiz. A mancha que isso deixou. Hunter ficou paralisado pela surpresa, e ela continuava falando sem se dar conta das lágrimas escorrendo pelo rosto, enquanto ele sentia cada uma delas rasgar seu coração. – Você não conseguia tirar as mãos de mim até que descobriu. – Que você era violentada! – Hunter a interrompeu, fazendo-a pular de susto, e nem se importou. Não quando era tão importante que ela o ouvisse. – Acha mesmo que eu podia tocar em você por mais um minuto depois de ter me contado uma coisa daquelas? Você acha que minha resposta ao que me revelou deveria ser baixar sua calça? – Sim – disse ela, com a voz trêmula.– Sim, droga! Hunter a fitava, estupefato. – Você acabou de dizer “sim”? – Isso aconteceu há muito tempo – disse bruscamente como se quisesse feri-lo com cada palavra. – Eu não morri. Estou bem aqui, e não estou em pedaços. Hunter entendeu que ela falava mais para si mesma do que para ele. – Você não pode realmente acreditar… – Não vou implorar, Hunter, não importa o quanto você se sentisse importante. Eu não deveria ter de provar a você que sou a mesma pessoa de duas noites atrás. – Escute. – Era uma ordem, e ele esperou que ela parasse de falar. Que olhasse para ele. Que continuasse olhando para ele. – Você gosta de joguinhos de poder, e eu também. Eles são divertidos. Mas isso não tem nada a ver com esses jogos. – Não se iluda. Tudo é jogo de poder. Tudo. – Eu… não… sou… ele. Hunter não gritou; nem precisaria. Aquelas quatro palavras tiveram o mesmo efeito de uma ventania girando ao redor dos dois e desaparecendo dentro da noite. Zoe recuou como se tivesse sido atacada, cortada ao meio. – Não me confunda com aquele maldito degenerado outra vez – disse ele no mesmo tom imperativo que não admitia discusão. – Vamos deixar tudo bem claro, você e eu, sobre consentimento. Está me entendendo? Sobre aquilo que você quer. Zoe estremeceu, mas Hunter sabia que desta vez não era por causa do frio. Estava frágil, furiosa e Zoe, olhando para ele do meio de um pesadelo que ela mesma exterminara, e ele pensou que nunca amara tanto uma pessoa em toda a sua vida. E nunca amaria. A verdade dessa constatação atingiu- o fundo e mudou tudo. Mas ele ainda esperava. – Quero me sentir viva – disse ela com os olhos brilhando. Sua voz estava trêmula, mostrando o turbilhão de emoções em que se encontrava. – Inteira. Como se ele nunca tivesse me destruído. – Ele não conseguiria – sussurrou ele, abalado. – Então por que você não… – Ela não terminou a frase, talvez porque não conseguisse. E desta vez Hunter não estava pensando em sexo. Ele não se importava com quem se achava no comando, nem pensava em jogar jogo algum. Só se importava com a expressão no rosto dela, que combinava com o buraco em seu coração. Estava pensando exclusivamente em Zoe. Ele caiu de joelhos sobre a calçada gelada, sem desviar o olhar dela, se entregando por completo. Se ela quisesse. – Não quero que você implore – Hunter afirmou, vendo o rosto dela se contorcer com o esforço de conter os soluços e as lágrimas que já a traíram antes. – Mas eu imploro, se você quiser. Pode ter o que quiser de mim, Zoe. A única coisa que você precisa fazer é pedir. Ela não pediu. Em vez disso, deu um passo à frente e o abraçou, afundando as mãos no cabelo dele. E então o beijou. Sal e doçura. Como se ela já soubesse a resposta. Como se ele fosse um herói, afinal. ZOE O levou ao seu apartamento. O santuário dela, onde ninguém podia entrar. Ele ficou parado no meio da sala, completamente viril, inteiramente Hunter. Parecia maior do que na rua, consumindo todo o oxigênio sem fazer o menor esforço. O ar em volta dele parecia zumbir, vivo e elétrico como sempre. Ela se sentia muito brilhante, muito exposta, na verdade trêmula pelo esforço de não perder o controle, mandá-lo embora ou, pior ainda, cair no chão com um colapso nervoso. Em vez disso, puxou-o para o sofá e subiu em seu colo. – Isso é consentimento – Zoe sussurrou. – Isso é tudo de que preciso – replicou ele e, enfim, a tocou. Suas mãos fortes e quentes no rosto dela, descendo por suas costas até seus quadris. – Sua boba. – Não me chame… – Zoe... – Hunter a puxou para mais perto, e ela já estava se derretendo, toda trêmula. – Fique quieta. Quando ela silenciou, ele a tomou. Hunter a fez se sentir mais do que viva. Incandescente e ardente. Ele mostrou com as mãos, com os lábios, com a boca e o corpo, que Zoe qualquer coisa, menos arruinada. Repetidas vezes, até que ela se sentisse mole e ele estivesse rouco, e só conseguissem se abraçar, entorpecidos. Depois que ele lhe provou mais uma vez, com bastante ênfase, ela ficou deitada sobre dele, pele nua contra pele nua, a cabeça aconchegada em seu pescoço, sentindo aquele cheiro fresco e inebriante. Era o máximo que já havia sentido de segurança em muito tempo, e ela se permitiu fingir, na penumbra de seu quarto, em seus braços, que coisas assim podiam durar. Que isso tudo era real, quando na verdade sabia que não era. Essa noite, ela fingiu. – Você está bem? – perguntou ele, e Zoe percebeu que devia ter feito algum barulho. Ela se aconchegou mais a Hunter, como uma mulher nos braços do seu amado. Como se isso fosse possível. – Demônios exorcizados – ela murmurou contra sua pele, e o engraçado era que quase estava acreditando que era verdade. E foi então que Zoe se deu conta do que acontecia com ela. O que já havia acontecido. Não imaginara que isso poderia acontecer, por isso nunca se preocupara em se proteger. Mas tudo tinha um sentido muito louco. Sua atração selvagem, desgovernada por esse homem quando por mais de dez anos ficara imune a qualquer atração. O fato de ela tê-lo deixado se aproximar do jeito que fizera, virando o jogo em seu próprio escritório. De ter deixado nela uma marca, e ela não ter odiado. De ter inventado uma razão porque devia dormir com ele. De ela ter contado o que lhe acontecera e só ter ficado chateada por medo de ele não a querer mais. Não por ter contado seu segredo. Não por ter ficado exposta. Mas sim por Hunter poder considerá-la menos. Ficara louca por Hunter Grant desde que o vira pela primeira vez. Como não se dera conta disso até agora? – Você passou a última década mergulhado em autopiedade – disse ela, as palavras saindo de sua boca antes que pudesse pensar, afiadas, cheias de acusação. Mas ele era Hunter, por isso só deu uma gargalhada. – Fiquei mesmo – concordou ele, num tom suave demais. – Como você já disse isso um milhão de vezes. Ela ergueu-se um pouco para poder encará-lo. – Toda aquela luta e o desfile de mulheres fáceis; o que era aquilo? – Minha punição – disse ele lentamente, e seu olhar fez Zoe sentir um aperto no coração. – E não foi nem a metade do que eu merecia. Ela não desviou o olhar. A distante noite de dezembro surgiu entre os dois, tão real que Zoe sentiu como se pudesse tocá-la. No entanto, não tinha a menor vontade de fazer isso. Mas sabia muito bem como eram os fantasmas. Como eles envenenavam o espírito. Como cresciam. – Você a amava? – Zoe não sabia bem por que perguntara aquilo, nem se queria saber a resposta. Hunter respirou com força e, de repente, parecia que não estavam próximos o suficiente. Mas ela não conseguia se mexer, e os braços dele ao seu redor, apertados, mantinham-na firme onde estava, grudada nele como se fizesse parte de seu corpo. – Eu tinha dezoito anos quando a conheci – Hunter disse depois de um tempo. – Vinte e três quando a perdi. Nós nos separamos e voltamos uma centena de vezes nesse período. Éramos muito jovens. Se Sarah tivesse vivido, se não tivesse se metido com Jason Treffen… – Suspirou. – Ela era gananciosa, ambiciosa, impetuosa, e eu não era assim. Acredito que mais cedo ou mais tarde Sarah me deixaria por alguém que fosse igual a ela. Ele deu um sorriso meio forçado, silencioso. – É – disse Hunter –, eu fiz isso. Fiz mesmo. – Depois olhou para Zoe, observando-a. Zoe teve a estranha sensação de estar caindo num redemoinho, como se tudo estivesse girando ao seu redor, mas, em vez de se sentir mal, queria ser levada por ele. Era a mesma sensação que tivera no escritório, que parecia ser há tanto tempo. Pelo menos agora ela sabia por quê. – Eu não sou Sarah. Ela não queria ter dito aquilo daquele jeito, tão rígida e irritada, mas não conseguia esconder o pânico, a onda de desespero que ameaçava arrastá-la para a escuridão. Era como se estivesse se desmanchando em pedaços ali em seus braços, em cinzas e poeira que poderiam ser levadas pelo vento. – Eu sei – disse Hunter lentamente sem desviar os olhos azuis dos dela. – Você também não pode me salvar – replicou, como se ele tivesse discutido com ela. Havia alguma coisa vermelha dentro de Zoe, quente e perigosa, e pela primeira vez em anos ela não tinha nenhuma estratégia. Nenhum plano. Só sentia a dor. Amava-o e sofria. – Não preciso do seu cavalo branco, ou da sua piedade ou qualquer coisa que seja. Não posso ajudá-lo a trazê-la de volta à vida. Está me entendendo? Hunter se mexeu como se, de repente, ela tivesse cravado alguma coisa pontuda e mortal no seu corpo. Zoe deixou que ele colocasse a mão no seu rosto, sentindo o calor, a força daquela mão, e, por Deus, nunca desejou tanto que eles fossem pessoas diferentes. – Não tenho mais como ser salva, Hunter – disse ela com a voz entrecortada, revelando tudo. Toda a confusão dentro dela, os escombros, as sombras e os arrependimentos, e a terrível vergonha. – Não tem jeito. – O fato é que eu tenho quase certeza de que você já salvou a si mesma. Sua pele contra a pele dela. Sua mão tão gentil. Seus olhos tão azuis que dominavam o mundo todo fazendo seu coração parecer grande demais dentro do peito, como se ele pudesse transbordar, libertar-se, atravessar todo o apartamento até a rua fria lá fora, e ela sabia que isso não podia durar. Sabia que não podia permitir. Mas aqui, agora, Zoe não podia evitar. Apoiou-se na mão dele e se permitiu fingir. – Ainda não – ela sussurrou. AP ÓS ALGUNS dias de planejamento intenso, eles foram levados à luxuosa sala de conferências no andar mais alto de Treffen, Smith e Howell por uma jovem atenciosa cuja expressão cuidadosamente inexpressiva fez o estômago de Zoe doer. Porém, ao mesmo tempo estimulou a raiva dentro dela, fazendo com que lembrasse exatamente por que estava fazendo isso, por que tinha de fazê-lo. Não valia a pena pensar na última vez em que estivera nesse edifício, por isso, ficou olhando pela janela, observando Nova York brilhando lá embaixo ao final da tarde, tão bonita e perfeita, pintada de branco, como se fosse um globo de neve, como se nada terrível pudesse acontecer àquela beleza urbana. Zoe nem tinha se dado conta de ter produzido algum ruído até Hunter vir para seu lado, passando-lhe sua força sem ao menos tocá-la. Nesse momento ela entendeu o quanto ia sentir falta dele, de seu apoio, mas não podia pensar nisso no momento. – Tudo bem? – perguntou ele. Ela escolhera a roupa para parecer mais do que bem. Vestira-se para arrasar, curvas acentuadas e azul-royal, com a promessa de vingança em cada linha. Nada submisso, ou subordinado, ou amedrontado. Nada de roupa fúnebre para ela, mas sim um traje que fazia com que parecesse o anjo vingador em que se transformara. – Não. – Zoe o fitou rapidamente, se sentindo confortada com o azul de seus olhos, como sempre. – Mas vou ficar. Estava tão perto agora. Tão perto. Sua vingança se achava a um passo, e, pela primeira vez em todos aqueles anos, ela pensou no que poderia estar a sua espera no outro lado. O que vinha depois da vingança? Nesse momento, Zoe ouviu a porta da sala de conferências se abrindo atrás dela e empurrou o pensamento para longe. Depois lidaria com isso. – Mas que surpresa! – Era a mesma voz de sempre: gentil, paterna e com toda a maldade por baixo. O som daquela voz provocou náuseas em Zoe, como sempre, mas ela já esperava por isso. Aguardou até que seus joelhos se firmassem, que seu estômago parasse de se contrair, que a automática onda de viscosidade se dissipasse, e só então virou-se para encará-lo. Jason Treffen estava parado entre as portas de vidro da sala de conferências, sorrindo para ela do mesmo jeito que sempre fizera. A mesma figura atlética, elegante, usando um terno italiano. A mesma colônia cítrica que fazia com que Zoe se sentisse enjoada. Os mesmos olhos apagados, frios, que lembravam os de um réptil. Em seguida ele virou-se para Hunter como se Zoe fosse insignificante. Invisível. Mas ela também já esperava por isso. Não conseguia evitar a já conhecida onda de autodepreciação que isso sempre lhe provocava. Com certeza, ele agira de propósito, o desgraçado. Mas ela sabia que isso ia acontecer, fato que a ajudou a manter o sorriso frio. – Hunter! – disse Jason, caloroso. – Estou muito feliz por você aparecer aqui. Faz muito tempo. Só tenho alguns minutos esta noite, mas se você vier até minha casa… – Como nos velhos tempos? – perguntou Hunter brandamente. Muito brandamente. – Vamos jogar um pouco de sinuca, beber uísque e rir muito enquanto você me fala como minha vida poderia ser se eu seguisse seu maravilhoso exemplo? Zoe observava Jason absorver aquilo. A ironia e a ferocidade escondidas na entonação de Hunter, contrastando com o jeito dele parado perto dela, com o ombro encostado na parede como se estivesse perfeitamente à vontade. – À exceção disso, você é bem-vindo a marcar um encontro comigo aqui. Sempre tenho tempo para você, Hunter. – Ele continuava gentil, educado. A sutil ênfase na palavra você, como se fosse embaraçoso que Hunter tivesse trazido uma criatura tão vil quanto Zoe, mas Jason era educado demais para mencionar isso. Era um mestre nesses jogos. Sempre fora. De certa maneira Zoe aprendera mais com ele do que se permitia admitir. E o benefício trazido por isso era que Jason, sem querer, ensinara tudo que ela precisava para derrotá-lo. Como ele estava para descobrir. – Hunter deve marcar esse encontro com Iris? – perguntou Zoe, muito tranquila, como se não notasse toda a tensão que corria entre os dois homens. – Não é esse o nome da garota que nos trouxe aqui? Eu tenho certeza de que o vi com ela numa festa não muito tempo atrás, Jason. Você lembra? Havia um brilho nos olhos de lagarto de Jason, uma irritabilidade diferente naquele sorriso, e Zoe soube que o surpreendera, porque ela o chamava de sr. Treffen quando ele era seu dono; e também por ser a primeira vez em muito tempo que ela iniciava uma conversa com ele. Mas Jason olhou para Hunter quando respondeu: – Iris é uma assistente legal, não uma secretária. Ela não agenda meus compromissos. Assistente legal, pensou Zoe. Um título tão presunçoso para um buraco tão profundo, tão escuro e pernicioso. – Quem o faz? – perguntou Hunter naquele tom ilusoriamente suave. Ele parecia muito grande e perigoso, mesmo em um de seus ternos caríssimos feitos para fazê-lo parecer jovial em vez de mortal. Hunter parecia um animal fora da jaula fingindo ser domesticado, com Nova York atrás dele como se fosse uma capa poderosa e gloriosa. Zoe sabia que nada disso passava despercebido a Jason. – Quero dizer, quem agenda seus compromissos? Jason inclinou a cabeça de leve para o lado, como se estivesse vendo Hunter pela primeira vez. – Você veio mesmo me ver depois de todos esses anos para discutir sobre minha equipe de apoio? – Isso depende do tipo de apoio de que você acha que estamos falando. Vou dar uma pista: não é clerical. Jason o olhou por um longo e tenso momento, depois fitou Zoe com aqueles olhos de réptil. Ela se forçou a respirar, a realmente sustentar o olhar daquele homem depravado. Não o salvador que ela pensara que fosse quando o conhecera. Não o monstro terrível em que ele se transformara. Não o atormentador que fora por todos aqueles anos, aparecendo quando ela menos esperava, magoandoa, ameaçando-a e aterrorizando-a ao seu bel-prazer, para seu próprio entretenimento doentio. Hoje, Zoe escolhera vir ali. Ele não tinha com que ameaçá-la. Era apenas mais um homem. Um homem terrível, ainda embriagado pelo seu próprio poder, mas só um homem. E ela estava diferente das outras vezes em que Jason dera um jeito de encontrá-la. Ela se sentia fundamentalmente diferente, porque agora que a náusea passara, ele parecia... menor, mais velho, e, comparado a um homem do tamanho de Hunter, frágil e quebradiço. Então ela encontrou seu olhar sem piscar e sorriu. – O que é isto? –perguntou Jason, voltando a fitar Hunter, bem devagar. – Não o vejo há mais ou menos uma década, e isto esta parecendo muito com um ataque. Ainda mais levando-se em conta a companhia na qual você está. – Isto não é um ataque – disse Hunter naquele mesmo jeito macio e perigoso. – Acredite, você saberia se eu o estivesse atacando. – Espero esse tipo de ataque de Austin – disse Jason. – Ele sempre foi uma grande decepção, como tantos filhos são para seus pais. Assim como você deve ter sido para o seu durante suas inúmeras escapadas. Isso é um terrível clichê. Mas confesso que esperava mais de você. – Não imagino o motivo. – Hunter sorriu dessa vez, porque eles também tinham planejado isso: Austin praticamente dissera, palavra por palavra, o que seu pai diria. – Fiz de tudo para que não gostassem de mim. Todo aquele comportamento antiesportivo, os ataques de raiva na frente de todos... Minha completa falta de caráter é minha aquisição especial de adulto. – Não se espera que homens como você tenham muito caráter – concordou Zoe naquele seu jeito que deixava os clientes inquietos e, pelo visto, tinha o mesmo efeito sobre Jason. – Eu não preciso mesmo de caráter, preciso? – Hunter sorriu para ela. O sorriso dele fez com que Zoe lembrasse de que não estava sozinha. Que tudo isso era parte da estratégia. Que entre eles, e com a ajuda de Austin e Alex, tinham antecipado cada movimento do Jason. – Eu posso deixar o futebol falar. Meu braço arremessador sempre foi muito eloquente. – E essa é a beleza disso – replicou Zoe, e virou-se para Jason. – Imagine se Hunter tivesse entrado sem querer num cenário de construção de caráter. Se tivesse se tornado um novo homem aos olhos do mundo. Visto a luz, se você preferir, e assim se aliviado do peso da vida terrível que levara até então. – Minha própria estrada para Damasco – completou Hunter, porque amava seus santos, e Zoe teve de conter uma risada. Jason suspirou. – Zoe é um aborrecimento, Hunter. Garotas assim servem para serem usadas, não para desfilarem carregando você numa... digamos... coleira. – Jason sacudiu a cabeça como se estivesse com pena de Hunter, como se Zoe fosse radioativa. – Isso é embaraçoso. – Ainda não – ela afirmou. Será que ele estava ciente de que Hunter mudara ao lado dela? Que parecia estar prestes a atirar Jason pela janela? Ou queria provocar tal violência? Ela entendeu que era o que ele queria. É claro que queria. Aí Jason poderia se fazer de vítima e processar. – Nós ainda nem chegamos à parte boa. Jason deu-lhe um sorriso mortal. – O que você acha que pode fazer comigo, sua cadelinha?– Jason perguntou com voz calma, cordial, e com aquela ameaça velada por trás. – Pensa que pode me ameaçar? A mim? Você deve ter esquecido tudo que lhe ensinei. – Ao contrário – disse ela, suavemente. – Esta sou eu usando cada uma das suas lições. – Chame-a de cadela novamente – disse Hunter sociavelmente, mas tão tenso e furioso por trás daquele semblante calmo que os cabelos da nuca de Zoe se arrepiaram –, e eu quebro cada osso no seu corpo. Mas Jason apenas riu, ainda com o mesmo jeito paternal e simpático de sempre, o que fez com que o que disse a seguir soasse ainda pior: – Se você fosse outro tipo de homem, talvez sua namorada não tivesse de se prostituir e depois se matar para poder se afastar de você, dez anos atrás. Devemos falar sobre isso? Zoe teve ímpetos de matá-lo. Hunter não reagiu, mas ela sentiu a agressão daquele golpe; a ferroada e o desejo de sentir o sangue de Jason Treffen explodiu dentro dela, elétrico e meio aterrorizante. Estava na hora de acabar com aquilo. De acabar com ele. – Você não vai falar mais nada, Jason – ela afirmou com uma satisfação que demorara dez anos para acontecer, e sentiu como se Sarah e todas as outras garotas que ele desgraçara estivessem ali com ela; cada uma delas sendo uma parte disso. – Você já fez bastante. O que você vai fazer é deixar esta firma. Seus dias como advogado estão terminados. Você está acabado. Fez-se um silêncio intenso, mas curto. Em seguida, Jason soltou uma gargalhada maior que antes, e sem cordialidade alguma. Virou-se em direção à porta dispensando-a como se fosse algo que ele nem notava. Abaixo de qualquer crítica. Zoe esperou até ele botar a mão na maçaneta da porta. – E se não for por vontade própria – avisou sem fazer nenhum esforço para esconder seu contentamento –, vai me obrigar a chutá-lo para fora daqui. Suas palavras tiveram a resposta que ela esperava. Outra gargalhada, e então Jason virou-se para encará-la, frio e divertido. Nada além de desafio naquele olhar vazio. – Eu gostaria de vê-la tentar. CAPÍTULO 10 JASON chegou a dizer a palavra “cadela”, mas ela ficou no ar, cruel, maldosa, se conectando ao reservatório de vergonha dentro de Zoe como um chute no estômago. Ela respirou tentando se acalmar e esconder de Jason que ele a atingira. – Eu estava esperando que você dissesse isso – disse Hunter, endireitando o corpo e olhando ostensivamente para seu relógio caríssimo. – Tenho uma reunião com NÃO sócios participantes da empresa em quinze minutos. Dado o número de processos que já enfrento, como tenho certeza de que você sabe, sou meio que considerado a galinha dos ovos de ouro. Eles gostam de me deixar feliz. Todas aquelas horas faturáveis e a fortuna que pago para eles. – Você está ameaçando me processar? – Jason girou os olhos como se tudo aquilo o deixasse entediado. – Não pode simplesmente sacudir a mão e criar um processo do nada, Hunter! As cortes judiciais tendem a torcer o nariz para isso. – Eu sei que sou apenas um bobalhão – Hunter replicou com o sorriso magnético que usara milhares de vezes, em várias conferências com a imprensa, e Zoe o amava, profunda e aterradoramente –, mas ainda sei ler. Você se lembra dos termos que redigiu no contrato de sociedade, não é? É preciso certo número de sócios participantes para retirar um dos seus pares. Eu li tudo sozinho. Jason já não mais sorria. – Isso nunca vai acontecer. – Ah, vai! – Zoe sorriu – Acredito que os sócios aqui estão bem cientes de sua pequena empresa paralela. Garanto que nenhum deles gostaria que Hunter fizesse desta empresa a pedra fundamental da sua reabilitação, assim como discutir sobre suas atividades como cafetão não deixará a associação de advogados satisfeita. Isso sem falar nos clientes que não gostarão de ter seu relacionamento com um cafetão comentado na imprensa. Estou apenas supondo. – Quem você acha que vai acreditar em você?– Jason já não estava mais fingindo. A verdade sobre quem ele era de fato se estampava agora no seu rosto contorcido, furioso, feio, e ele deu um passo na direção de Zoe como se ainda estivessem na década passada e pudesse usar as mãos se quisesse. Uma parte dela queria que ele fizesse isso, pois descobriria que as coisas tinham mudado. – Caso tenha esquecido, Zoe, você não passa de uma prostituta, o que, aliás, eu vou ficar muito feliz de contar para o mundo todo. Hunter tornou a ficar tenso, e seu olhar azul era homicida. Mas Zoe deu um passo à frente, porque tudo se resumia a esse momento. Fantasiara sobre ele durante anos. Fizera planos e esquemas em sua imaginação um milhão de vezes. Até mais. E estava muito melhor do que ela esperava. – Não tenho mais medo de você – disse ela ao arquiteto de sua vergonha mais profunda e sombria, o monstro embaixo da cama, esse homenzinho diminuto que se alimentava dos fracos como uma ave de rapina. No entanto, Zoe não era mais fraca. – Não sou eu quem está para receber um prêmio pelo conjunto da carreira. Não sou eu quem construiu uma brilhante reputação baseada inteiramente na percepção de que sou boa, gentil e profundamente voltada à caridade. Posso fazer Hunter contar ao mundo toda sua história sórdida, e o que isso significará para mim? Ninguém me conectará a isso, mas, mesmo que o façam, você ainda ficará manchado. – Inclinou-se de leve para adiante. – Maculado. Para sempre. – Ninguém prestará atenção a uma palavra sua. – Jason não se mostrava mais calmo como antes, e muito menos divertido. – Mas devem ouvir a mim – disse Hunter com o mesmo jeito que costumava falar para as câmeras. – O fato é que estou mudando minha vida. Enxerguei a luz. Não sou mais um astro do futebol. Deixei minha família mal e traí todos os meus fãs. Sou o tipo de cara que é bom só em uma coisa, e é por isso que decidi ser o treinador de futebol do Edgarton High. De graça, até ganharmos um campeonato. Jason estreitou os olhos e Zoe ficou exultante ao ver gotas de suor na sua testa. – Você já ouviu falar de Edgarton, não é? – Hunter perguntou. – Não é um grande local ou um grande time, para dizer a verdade. Se não me engano faltam poucos anos para o campeonato estadual. E, é claro, Sarah era de lá. Mas tenho certeza de que você sabe disso. – Sarah Michaels era uma desclassificada – Jason afirmou, agressivo. – Veio de uma família inteira de perdedores. Eu lhe fiz um favor. Pelo menos o tipo de prostituição que ela fez para mim lhe rendeu dinheiro. Sarah teria feito bem pior, e por muito menos, se tivesse ficado naquele lugar imundo. – Aposto que esses foram seus últimos pensamentos – disse Zoe com a entonação deliberadamente suave contrastando com a tensão na sala e mantendo o olhar no inimigo. Quase lá. Quase. – Gratidão por toda a sua ajuda. Zoe ficou imaginando se Sarah saberia de alguma maneira, se ela estaria por ali em algum lugar vendo o que a amiga estava fazendo. Sarah, que foi sua primeira amiga em Nova York. Sarah, que esteve ao seu lado quando as coisas ficaram tão sinistras. Sarah, que amara Hunter tanto a ponto de deixá-lo fora de sua corrupção. Ela achava que Sarah a teria apoiado. Zoe observou que Jason respirava mais pesadamente, ajustava a gravata e alisava o paletó. Nervos, ela pensou com grande satisfação. Até que enfim Jason estava se mostrando de verdade. – Você tem dez minutos para decidir se irá se aposentar, ou levar um pontapé e ser jogado para fora – informou Zoe, rompendo o silêncio tenso. – E preciso dizer uma coisa: não importa a sua escolha. Eu vou ganhar de qualquer maneira. Jason a encarou, e ela sustentou seu olhar. Quase valeram a pena todos aqueles anos de sofrimento só para ver aquela centelha de desconforto nos olhos dele. Uma centelha muito próxima do medo. – Eu gosto de vencer, Jason. Congratule-se. Foi você quem me ensinou como fazer. Jason estava parado feito uma estátua, e Zoe quase podia ouvir sua mente fervilhando, procurando uma maneira de virar o jogo, uma estratégia que o fizesse sair o vencedor. Zoe deu uma olhada rápida para Hunter, que balançou a cabeça quase imperceptivelmente em apoio, mas ela sentiu o calor explodir dentro de si, como se fosse um dos seus sorrisos. – Acabou o tempo – avisou Hunter, muito calmo após dez longos e amargos minutos de silêncio. – Tenho uma reunião. Jason ficou quieto por um momento, e Zoe pensou se não tinham julgado mal, se não teriam calculado errado. – Eu deixo a firma – Jason acabou dizendo, com a voz carregada de ódio em cada sílaba, o rosto contorcido, seus olhos, parecendo olhos de pesadelo. Mas Zoe tivera esse mesmo pesadelo durante anos. E o superara. – Mas eu vou dizer à mídia as minhas próprias razões para fazer isto. – Não me importa o que você dirá. – Zoe não fazia o menor esforço para esconder sua satisfação. Seu triunfo. – Desde que deixe esta firma e todas as suas vítimas para trás. Pois, que fique bem claro: seus dias de cafetão terminaram. Você sairá desta firma e dirá adeus ao seu círculo. Vai perder tudo, exceto seu bom nome. Assim como todas nós perdemos no dia em que você “se interessou” por nós. Jason olhou para ela com desprezo, e Zoe conhecia aquela expressão. Conhecia aquele homem. Esse homenzinho nojento que era tão vaidoso que acreditava que eles iriam deixá-lo com alguma coisa. Espere para ver, pensou ela. – Se eu fosse você ainda não abriria o champanhe, Zoe – ele afirmou, com um ódio mortal na voz. – É preciso mais que isso para ser melhor que eu. Sou adorado pela cidade inteira. Pelo país. Esses joguinhos de vocês não vão mudar isso. Porém, Zoe já contava com isso. Todos eles contavam com isso. – Está na hora de falar com seus sócios. – E esboçou um enorme sorriso de satisfação, porque estava acabado. Ela estava livre. LIVRE! E isso a deixava boba, sentimental e leve. Ou talvez fosse por causa de Hunter. Naquela primeira noite ela não conseguia se controlar. Jason saiu da firma de advocacia como tinham dito que ele fizesse, e ela e Hunter se foram, caminhando juntos, daquele edifício detestável. Deslumbrados. Vitoriosos. Antes de ela se dar conta, estavam dentro de um táxi, e Hunter a puxou para o colo, beijando-a repetidas vezes, como se ela fosse uma maravilha. Como poderia Zoe resistir a esse homem que a ajudara durante todo o processo até o dia de hoje? Como poderia não desfrutar dele? Só mais essa última vez, Zoe disse a si mesma enquanto o táxi seguia para o sul. Hunter a beijava profunda, lenta e longamente, como se não quisesse fazer mais nada. Como se não existisse mais nada além da sua boca sobre a dela, da dança de línguas, dentes e desejo, suas mãos segurando a cabeça dela e o corpo forte dele embaixo dela, ao seu redor. Era como se isso nunca fosse acabar, mas Zoe sabia que não era assim. E na manhã seguinte, Jason Treffen se encontrava em todas as notícias, com seu ar magnânimo, falando como decidira que estava hora de deixar a prática da advocacia de lado para se dedicar melhor à caridade. Nas entrelinhas era possível ler: “Não sou o homem mais maravilhoso do mundo?” – Não era bem isso que eu imaginei durante esses últimos dez anos – comentou Zoe, em pé na cozinha que parecia nunca ter sido usada por Hunter, roubando pedacinhos da rosca dele. Ela vestia apenas uma das camisetas de Hunter, que batia na metade de suas coxas, fazendo com que parecesse pequena e querida, como uma namorada amada, mas Zoe sabia que não era bem assim. Sabia que não era bem esse o tipo de intimidade que isso sugeria, ou a maneira como ele sorriu quando deu uma batida em sua mão como se fossem pessoas normais. Mas aquela parte sentimental e doentia dela queria sentir como era ser normal. Não importava o quanto fosse doer depois. – Ele vai ter o que merece – disse Hunter parado em toda sua gloriosa elegância na ilha central, tomando um gole de café e depois apontando a caneca na direção dela. – Prometo. Alex espera há anos a oportunidade de acabar com Jason. Você não viu aquele repórter perguntar se havia problemas no paraíso? O divórcio, deixar a firma, mudar toda a sua vida em tão pouco tempo... – Eu vi Jason descartar tudo aquilo fingindo que tudo tinha sido ideia própria – replicou Zoe, sombria. – Principalmente porque ele é tão bom, amável, moral e correto. E os vi engolir tudo o que ele disse, como sempre fazem. – Há brechas em todos os lugares para onde Jason olha, Zoe. É só uma questão de tempo. Você o destruiu. Não vai demorar muito e a fachada que ele construiu vai ruir. E Hunter era tão aberto, tão brilhante que a culpa tomou conta de Zoe. E ele percebeu. Ele enxergava tudo. Por um segundo aquele brilho azul de seus olhos a deixou sem ar. – Você vai me dizer o que está errado, Zoe? Sorrir estava mais difícil do que deveria, assim como empurrar para longe aquela onda de sofrimento e forçar-se a se sentir como deveria depois da noite que tiveram. Depois do que fizeram. Pelo menos, feliz, o que quer que isso fosse. – O que poderia haver de errado? – perguntou ela, mas viu que seu tom suave não o convencera. Nesse momento o porteiro ligou avisando que tinha uma entrega para Hunter, o que a salvou de ter de continuar fingindo. Austin mandara flores para Hunter. Flores épicas. Delicadas tulipas e todos os tipos de lírios, orquídeas, cactos e crisântemos rechonchudos. Uma explosão de hortênsias azuis, roxas, rosa e brancas. Quando o desfile colorido enfim terminou, o apartamento de Hunter estava lotado de flores. Eles ficaram parados na sala de estar, que era estéril e agora explodia com tantos matizes que era quase estonteante, sem falar nos perfumes se misturando. – Será que ele pensa que perdeu seu funeral? – perguntou Zoe. Hunter deu uma gargalhada. Uma verdadeira gargalhada, contente e inebriante. E Zoe viu, de repente, quem ele poderia ter sido. Quem ele seria de novo assim que tudo isso ficasse para trás. Se Sarah Michaels tivesse ido para uma firma diferente depois da faculdade. Se ele houvesse passado a última década fazendo outra coisa que não lamentar-se em público, deixando todos perceberem e odiá-lo da mesma forma que ele odiava a si mesmo. Se ela nunca o tivesse perseguido e arrastado para dentro de seu círculo, para dentro dessa confusão terrível... Sarah o amara o suficiente para deixá-lo partir. Como Zoe poderia agir diferente? Mas mesmo agora que via claramente o que tinha de fazer, não conseguia, porque Hunter a ergueu e colocou suas pernas ao redor de sua cintura, e quando a largou de novo, Zoe já esquecera tudo que não fosse o prazer ardente das mãos dele no seu corpo. O seu torso deslizando contra o dela. Hunter beijou sua boca, sua face, suas pálpebras, como se ela fosse a comemoração. Sua boca perfeita deu um sorriso arrebatador que fez o sangue dela parecer lento e ardente em suas veias. Zoe, então, se apoiou nos dedos dos pés, passou os braços ao redor de seus ombros largos e beijou-o também. Repetidas vezes, até que não ser mais possível dizer quem estava beijando quem, era apenas calor, desejo e eles. Uma última vez. Zoe o explorou lentamente. Memorizando-o nas pontas de seus dedos, em seus lábios. Demorou-se ali, para que tivesse o que lembrar. Arrancou-lhe as roupas, saboreando cada pedacinho de pele dura e suave ao mesmo tempo. E ela não se importava de estar descalça e toda amarrotada, o cabelo despenteado, porque ele a deitou no seu sofá branco e mexeu-se sobre ela como se fosse a mulher mais linda do mundo. E mesmo sabendo que não, Zoe se deixou acreditar nisso. Só por agora. Demonstrou isso em seu beijo e deixou que ele visse em seu rosto. Era como se não conseguisse evitar. Hunter mordiscou seu lábio inferior no momento em que sua rigidez tocava seu centro, insistente e exigente, onde ela era macia e derretida, provocando-a. Fazendo os dois estremecerem. Falou o nome dela e penetrou-a, firme e profundo. Depois, rolaram, e ela ficou por cima. Ele também sentou-se, colocou as mãos na cintura dela, e foi a vez de Zoe se mover, cavalgá-lo, provocá-lo, guiá-lo fundo nela e recuar, se contorcer e dançarem os dois até o êxtase. – Eu te amo – Hunter se declarou, enquanto a levava direto para dentro daquele fogo. E Zoe se partiu inteira, em tantos pedaços que sabia que nunca mais seria a mesma, sobretudo quando ele falou novamente quando a seguiu. Porém, quando ela conseguiu voltar a respirar, as palavras dele ainda ecoavam dentro dela, como um desejo, como uma prece, e Zoe soube que chegara a hora. Já havia passado da hora. – Vamos – disse Hunter com a boca em seu pescoço e aquelas mãos possessivas ainda segurando-a contra ele. Ele ainda estava dentro dela, e Zoe se sentia tão infeliz que parecia estar sendo rasgada por dentro, como se algum órgão estivesse falhando. – Preciso de um banho. Zoe afastou-se dele, e sentar-se no sofá foi muito mais difícil do que deveria ser. Afastar-se dele. Sair do sofá. Fazer essas coisas que ela não queria, mas era obrigada. Não tinha escolha. Ela nunca tivera a menor chance. – Estou indo – disse Zoe com dificuldade e rápido, porque não tinha certeza de conseguir dizer isso de outra forma. – Preciso ir. Hunter era a coisa mais tentadora que já vira, esticado no sofá branco que destacava ainda mais o espécime perfeito que ele era. Como se tivesse sido esculpido em mármore, coberto de bronze. Seus olhos eram mais azuis que qualquer dia na Califórnia, e olhavam preguiçosamente para ela agora. Indulgentes. – Certo. –Ele não entendera. – Aonde você vai? E... você está nua. – Está acabado. – Zoe sabia que soava muito rígida. Muito esquisita. – Desejei vingança por mais de uma década, e conseguimos. Mas não há razão para continuar com isso. Zoe não sabia como chamar aquilo, e ele estava se levantando do sofá com aquele olhar estreitado, e ela sentia como se não conseguisse respirar. – Eu quero lhe agradecer, é claro. – Não. – Não agradecer? – Não faça isso. Zoe percebeu que Hunter entendera pelo olhar que lhe lançou, como se ela o estivesse matando. Pela sua voz, que saiu sombria e rouca. – Além disso – disse ela tentando se mostrar animada, mas achando que soava psicótica –, você tem a capacidade de concentração de um mosquito. Todos sabem disso. Você merece uma ou duas atrizes depois de seu trabalho duro, não acha? – E não finja que isso tem a ver comigo. Zoe não conseguia mais encará-lo. Encontrou seu vestido azul-royal amontoado embaixo da escada espiral e sentiu-se melhor quando o vestiu. Derrubara um monstro com aquele vestido. Poderia sobreviver a essa batalha também. – Eu te amo – Hunter repetiu. Mas isso era impossível. – Não – disse ela, categórica –, não ama. Zoe não vira Hunter se mover, e agora ele estava lá, parado a sua frente, bravo e magoado, e ela odiou vê-lo assim. Odiou não poder fazer nada como gostaria de fazer. Não podia ter isso. Não podia ter Hunter. Zoe estava furiosa consigo mesma por ter fingido quando sabia a verdade. Sempre soubera. – Pode sair nua daqui, se quiser – disse Hunter entredentes. – Não a impedirei. Não a obrigarei a fazer algo que não queira, Zoe. Nunca. – Sua expressão era feroz, e isso a fez amolecer e estremecer por dentro. – Mas você não vai me dizer o que eu sinto, droga! – Você não sabe o que ele fez comigo, Hunter. Não faz ideia do que ele fez. Quantas vezes eu fiz isso. O que aconteceu comigo. – Você fez o que tinha de fazer para sobreviver – Hunter afirmou, sem rodeios. – Acha mesmo que eu vou culpá-la por isso? – Talvez não agora. Mas irá. É inevitável. – Não há nada que você possa me contar que me faria querê-la menos – disse Hunter com a voz rouca e aqueles olhos azuis fixos nos dela. – Nada. – As pessoas dizem isso, mas aí escutam coisas que não podem deixar passar. – Com quem você está falando? – censurou-a, gentil. – Você sabe de algumas coisas que eu fiz. Havia vários tabloides dedicados a elas. – Foi sua escolha fazer o que fez. – O que faz de mim um idiota. E faz de você uma… – Vítima? Sobrevivente? Prostituta? É tudo a mesma coisa. Marcada e modificada, diferente de todo o mundo. Destruída. – Linda – contradisse ele de maneira suave e enfática. O jeito como Hunter a fitava era como se a estivesse tocando com os olhos. Nas maçãs do rosto, nas sobrancelhas. – Forte. Sexy. Deslumbrante. – A testa. A boca. – Você não está destruída, Zoe. Mesmo que tentasse, não seria destruída. – Hunter! – Ela o amava. Era por isso que tinha de ir embora antes que ele visse as coisas que tanto queria esconder, especialmente dele. – Não posso fazer isso. – Não pode ou não quer? Zoe viu a vulnerabilidade nele, e isso a rasgou por dentro. – Ambos. Hunter pôs as mãos nos quadris e respirou profundamente como se estivesse sem fôlego. Zoe queria tocá-lo outra vez. Queria abraçá-lo; mas se não fosse embora agora, sabia que desabaria na frente dele, e não podia fazer isso. Devia isso a Hunter. Um adeus no qual ele pudesse acreditar para não ir atrás. Como Sarah fizera uma década antes. Dessa maneira Hunter poderia viver sem a sombra de Jason Treffen. Zoe podia ter conseguido sua vingança, mas mesmo assim ele a destruíra. Não havia como mudar isso. Hunter ficaria livre daquilo tudo, por fim. Queria isto para ele. Para um dos dois. Começou a caminhar em direção à porta, mas não pôde deixar de parar quando ele a chamou, como se seu corpo estivesse conspirando contra ela. – Eu amo você – Hunter tornou a repetir, mais forte e dolorido do que antes, como se estivesse se destruído por dentro. – Isso não vai mudar só porque você não quer acreditar. Isso nunca vai mudar. – Você ama um fantasma. – Zoe se virou para ele e se odiou quando estremeceu ao ver a expressão em seus belos olhos, em seu rosto perfeito. – Ela morreu há dez anos, Hunter, e eu não sou sua substituta. – Posso ver a diferença. Havia raiva misturada com mágoa em suas palavras, e assim estava melhor. Zoe disse a si mesma que tinha de ser melhor. – Sarah desistiu. Você não. Você lutou. Você não é nada parecida com ela. Zoe apontou com a cabeça as flores que os rodeavam, que os cercavam com seu perfume. Como o seu próprio despertar. – Seus amigos também a perderam. Você deveria lhes dar uma chance. – Isto não tem nada a ver com a Sarah, nem com eles – retrucou ele. – Acha que sou estúpido? Aquilo a feriu. – Evidente que não, Hunter. – Então pare de me tratar como se eu fosse um abobado. Sei o que você sente por mim. E sei o quanto isso deve aterrorizá-la. Zoe via o quanto ele lutava consigo mesmo, as mãos fechadas em punhos ao lado do corpo. Sabia muito bem o quanto era difícil para Hunter não vir até ela, porque sentia o mesmo. Necessidade e desejo corriam por dentro dela, exigindo que não fizesse isso. Mas o medo era pior. E sabia que não conseguiria fazer isso de novo, não podia confiar em si mesma. Se amasse, se confiasse, acabaria se enganando sempre. Foi o que aprendera com seus avós. Com Jason. Hunter merecia mais que isso. Mais do que ela. Zoe sabia que não importava o que ele dissesse, ela estava tão destruída que não tinha como se recuperar. Destruída no que era essencial. Hunter não ia querer isso. Ele queria a garota que tinha amado muito tempo atrás, que o abandonara antes que ele descobrisse o que ela era, e não tinha vivido para permitir que a escuridão a transformasse... nisso. – Você o nocauteou – Hunter murmurou, mas tão intensamente que ela sentiu um baque por dentro. – Não permita que ele tire isso. Porém, esse era o ponto, não era? Era tarde demais. Sempre fora. Jason Treffen arrancara o melhor dela uma década atrás. O que Zoe deixara era bom, e era dela, mas não era o que ela deveria ser, não era o que Hunter merecia. Ela o amava o bastante para ver isso. Zoe sorriu para Hunter, mas foi um sorriso ácido que ele sentiu como se fosse um soco direto no estômago. Zoe viu que ele se encolheu e sentiu ainda mais ódio de si mesma. – Isto é a coisa certa a ser feita. – Você está tentando convencer a mim ou a si mesma? – retrucou ele. E então, Zoe fez a única coisa que podia fazer: foi embora. NO DIA seguinte, Hunter dirigiu até Edgarton horas antes do horário habitual para o seu treinamento temporário. Esperou até que as aulas tivessem iniciado e só então entrou na escola para evitar qualquer comoção. Não queria que ninguém o visse antes de ele fazer o que pretendia. Sem segurança nenhum à vista, como sempre na Escola Edgarton, Hunter simplesmente caminhou pelos corredores até encontrar a sala de Jack, que parecia muito diferente parado em frente ao quadro: mais alto e encantador. Deve ser porque ele sabe que entende tudo de matemática, pensou Hunter. Assim como sabia quem era com uma bola de futebol nas mãos. Era o que ele sabia fazer, aquilo em que era bom. Hunter podia estar andando sem coração desde que Zoe o arrancara de seu peito e o esmagara, mas ainda sabia jogar. Sentia como se futebol fosse uma coisa mágica e, já que desperdiçara boa parte da sua vida sentindo pena de si mesmo, decidiu usá-lo. Hunter ficou no corredor até Jack vê- lo, e fez um sinal com a cabeça pedindo que saísse para falar com ele. Jack ficou surpreso. Hunter ouviu-o erguer a voz com a suprema confiança de um homem que esperava ser obedecido em seu domínio, e os alunos pararam de conversar na mesma hora. Jack fechou a porta da sala suavemente e pigarreou várias vezes ao se aproximar de Hunter. Olhou em volta como se estivesse surpreso de Hunter estar sozinho; ou, refletiu Hunter, talvez apenas não se sentisse confortável em olhá-lo nos olhos. Isso fez com que Hunter se sentisse um animal. Então, esforçou-se para melhorar a postura, para deixar de lado o grau de agressividade que achava estar demonstrando automaticamente. Talvez sempre tivesse demonstrado. Talvez seja por isso que ela partiu, pensou Hunter, e na mesma hora parou. Sabia que não fora isso. Da mesma forma que sabia que precisava deixá-la fazer sua escolha. Ele prometera a Zoe que nunca a forçaria a nada. Não podia anular a promessa só porque as coisas não saíram como queria. Ele não seria melhor que Jason se agisse assim. Mas Jack não relaxou, como se o homem que comandava a sala de aula tão facilmente fosse apenas um personagem que ele interpretava. E de repente Hunter se deu conta de onde vira isso antes. Em si mesmo. Na personagem estúpida que ele interpretara para os seus amigos mais intelectuais, para o mundo todo, até lá atrás, com a tremendamente esperta Sarah, que ele acreditara que o estivesse traindo com o homem mais inteligente que conheciam: Jason. Hunter vinha interpretando esse palhaço desde então. E Zoe fora a única que não acreditara no personagem. Entender isso o deixou tão perplexo que por um momento nem soube onde estava. – Eu sabia que esse dia iria chegar – disse Jack, e seu jeito entristecido fez Hunter voltar a si. – Está tudo bem. Vou pensar em alguma coisa para dizer a eles. Hunter apenas olhou para ele, e Jack pigarreou outra vez, mudando de um pé de apoio para o outro. – Estou deixando você desconfortável? – perguntou Hunter. Jack pareceu surpreso, mas em seguida sorriu. – Só porque você tem a compleição física de um tanque e poderia me quebrar com uma mão só? Talvez dois dedos? Mas não diria que isso me deixa desconfortável. Cauteloso, sem dúvida. Hunter achou que Jack continha um sorriso. – Precaução é bom. – Eles não vão lhe agradecer, então eu vou – disse Jack depois de um minuto, com seu sorriso desaparecendo. Ele se esticou, ajeitou os ombros estreitos. – O que você conseguiu aqui fez a diferença. Sei que tipo de perspectivas têm esses garotos, e eles também sabem. Eles levarão consigo o que você fez por muito tempo. Jack fez uma pausa e olhou diretamente para Hunter. – A única coisa que vão pensar sobre você aqui em Edgarton é que você é um herói, Hunter. É isso o que você é. Não aquela história que saiu no SportsCenter arrancada de velhos colegas decepcionados e invejosos. Espero que saiba disso. Demorou um bom tempo até que Hunter recuperasse o fôlego preso pela súbita pressão em seu peito, por aquele punho poderoso ao redor de sua cabeça que o fazia pensar que explodiria, fazendo-o trair-se. – Não sou um herói – afirmou, rouco, quando achou que poderia falar. – Nem de longe. Pode perguntar a qualquer um. – Pergunte a Zoe, a quem não pude salvar de si mesma. Ou a Sarah, a quem nunca tentei salvar. – Só vim aqui para criar uma boa imagem de mim. Foi uma manipulação cínica desde o início. Jack não desviou os olhos de Hunter. – Talvez tenha sido esse o motivo de ter vindo, na primeira vez. Mas não foi por esse motivo que você continuou. Hunter não soube como lidar com esse momento, tão simples e direto. Apenas concordou com a cabeça e disse a si mesmo que isso era suficiente. – Eu me despeço por você. – Jack engoliu em seco, enquanto voltava para sua sala de aula. – Cuide-se, Hunter. Foi aí que Hunter se deu conta do que estava acontecendo. – Jack! – Hunter chamou, antes que abrisse a porta, antes que pudesse pensar muito no que poderia ou não dizer. – Por que acha que eu vim aqui? Jack virou-se para encará-lo. – Bem… está indo embora, não é? Fiquei lisonjeado por você ter vindo pessoalmente, de verdade. – Não estou indo embora – Hunter falou alto, meio agressivo, por ter medo de que se falasse de outro jeito pudesse estragar tudo. – Eu quero o seu emprego. Foi a vez de Jack encará-lo. – Meu...? – Jack meio que se virou para a sala de aula, mas aí parou e balançou a cabeça. E então sorriu largo. – Você não está se referindo a minhas aulas de matemática. – Não. – E dessa vez o sorriso de Hunter era diferente, como se fosse novo. Como se pertencesse ao homem que Jack descrevera e que Hunter não reconhecia como sendo ele. Mas após todos aqueles anos ele queria ser aquele homem, muito mais do que queria admitir. Para aqueles garotos. Para Zoe, se ela conseguisse achar um caminho de volta para ele. Talvez até para si mesmo. – Não estava me referindo à matemática. HUNTER SEdirigia à saída da escola um tempo depois, quando ouviu barulho de alguém correndo sobre o linóleo gasto do chão, atrás dele. Virou-se e percebeu, quando identificou a figura em desabalada carreira em sua direção, que deveria ter esperado por isso. – Escute, garoto – ele começou a falar, mas Aaron estava vibrando e descontrolado. Perturbado, Hunter percebeu, e totalmente afobado. – Não ligo a mínima para o que você faz – o garoto jogou na cara de Hunter, que estava contorcida de emoção. Perda, pensou Hunter, e desapontamento. Já vira isso inúmeras vezes na expressão das pessoas que olhavam para ele. Conhecia bem. – Não é que eu fosse seu fã antes de vir para cá, sabe? Acabou que você é um perdedor maior do que eu pensava que era. – Aaron... – Hunter ordenou a si mesmo para ser gentil. Afável. Coisas em que ele nunca fora bom, é claro, ou então teria sido alguém diferente. – A verdade é que você é um idiota – falou o garoto entredentes, e Hunter reconheceu que era mesmo, também. A dor por baixo das palavras agressivas, que falava de outros abandonos piores ainda. De perdas mais profundas, do tipo que nunca passa. – Nós não precisávamos que você aparecesse por aqui só para tentar se sentir melhor com a sua droga de vida, dirigindo seu carrão por aí e agindo como se fosse melhor que todo o mundo. – Está falando de futebol? Porque na verdade eu sou melhor que qualquer outro, pelo menos em Edgarton. Não é o meu ego, garoto. Isso é um fato. – Vá para o inferno! – Eu estive lá. – Hunter observava o rosto afogueado de Aaron, suas mão apertadas ao lado do corpo, a expressão arrasada em seus olhos escuros. Era como olhar num espelho distorcido, e isso lhe confirmou que tomara a decisão certa ao vir ali. Que não importava o que acontecesse com todo o resto das coisas que tinha em andamento, que essa era a atitude certa a tomar. Esse garoto, tão desesperado para ser um homem e tão incerto sobre como fazer isso, era a razão. Ele importava. Isso importava. – E não recomendo. Aaron disse algo ainda mais agressivo, e Hunter soltou uma gargalhada. Gentileza e amabilidade não teriam funcionado com ele durante a sua derrocada, e Hunter se erguera com uma dieta leve de privilégios e apoio financeiro. Por que tentar então com um garoto como Aaron, que na certa acharia que era um truque? Além do mais, ele não poderia fazer isso. Não saberia como. – Aaron, cale a boca. Aaron o encarou, desafiador. A fúria e determinação como que saíam de sua pele, turvando o ar ao redor dos dois como uma nuvem de testosterona, mas Hunter viu o que havia por baixo. – Eu sou seu novo treinador. Oficialmente. O diretor quase desmaiara ao saber da notícia, assegurando a Hunter que podiam expedir sua contratação através do Conselho Escolar de Edgarton, sobretudo porque Hunter estava perfeitamente feliz não só em receber o mais baixo salário que eles podiam oferecer pela lei, mas também iria doar três vezes esse valor para o sistema escolar, para o novíssimo orçamento do atletismo. Como isso acontecera com ele depois de Zoe tê-lo abandonado, podia fazer o que dissera a Jason que faria; não só para mexer com a cabeça dele, para empurrá-lo para onde ele precisava que Jason fosse. Hunter se deu conta de que mais que tudo ele queria fazer isso. Que talvez até fosse bom nisso. Mas não compartilhou suas ideias com Aaron. Ele só ficou olhando para o garoto enquanto sua respiração mudava, tornando-se mais tranquila. – Nos próximos dias eu não vou participar dos treinos – continuou Hunter. Porque tinha de se acostumar primeiro com o buraco que a partida de Zoe deixara dentro dele antes que pudesse trabalhar com os garotos. E também porque decidira dirigir até Boston e se desculpar com seus pais, que sofriam havia tanto tempo enquanto ele estava se sentindo tão benevolente e machucado. – Mas você deve participar, Aaron. E acredite quando digo que quando eu voltar você terá de mudar essa sua atitude. Cem por cento. Está entendendo? Aaron agora estava realmente parecendo com o menino que era, encostado na parede, e o peito de Hunter se sentiu um pouco apertado. Talvez mais que um pouco. Era como se ele tivesse sido congelado, também, todos aqueles anos, e Zoe houvesse derretido todo o gelo. – Eu entendo – disse Aaron depois de um minuto, e Hunter concordou com a cabeça. – Do contrário, vai ter de fazer muitas flexões e corridas extras – disse de maneira sinistra. – Pode contar com isso. Hunter hesitou um momento, e então ergueu a mão e bateu no ombro dele, sentindo que o rapaz soltou a respiração de repente. Aí, virou-se e caminhou em direção ao seu carro, para Nova York e todas as outras coisas que precisava fazer. Mas não antes de ver Aaron sorrir largo, e um tanto emocionado, olhando direto para o chão aos seus pés, como se tivesse medo de que alguém o visse sorrindo. No entanto, não com muito medo. Não o suficiente para parar. CAPÍTULO 11 ZOE que o planeta não deixava de girar só porque o seu mundo saíra dos eixos. Ainda havia o seu trabalho, de que ela dizia a si mesma que nunca gostara tanto. Solucionou o escândalo de um político envolvido com fotos comprometedoras via celular, instruiu uma debutante sobre como acabar com a sua reputação de desmiolada para poder angariar fundos para a caridade, e começou as negociações com uma banda DESCOBRIU que queria estourar com o seu primeiro álbum em muito tempo. Vivera mais de trinta anos sem Hunter Talbot Grant III. Por que uma semana sem ele parecia tão vazia? Essa é uma boa vida, dizia a si mesma. Um dia depois do outro e ela perfeitamente bem. Era assim que era quando Jason Treffen se achava neutralizado e ela podia simplesmente… viver. Porém, Hunter se recusava a desaparecer, como pensara que ele faria. Poucos dias depois da terrível cena em seu apartamento, ele apareceu para a costumeira reunião, deixando-a chocada. Não estava pronta para vê-lo. Não estava preparada para ver seu andar vagaroso, ou o olhar analítico daqueles olhos azuis. Ele entrara em seu escritório como se fosse o dono, e se atirou no sofá dela com toda a despreocupação do mundo. Zoe não imaginava o quanto isso ainda podia doer. Doía tanto que teve de se sentar na beira da mesa, com medo de que suas pernas se dobrassem. – O que está fazendo aqui? – perguntou ela, sem conseguir manter o tom profissional. – É terça-feira – disse ele, como se fosse uma explicação. – Tenho reunião todas as terças-feiras. Preciso dessa consulta sobre a minha imagem, já que ela está tão danificada. Você mesma disse isso. – Jason saiu da firma de advocacia – Zoe afirmou, sem defesa. Alguma coisa atravessou-a quando ele a olhou com rancor e mágoa. – Eu sei. Eu estava aqui. Houve um brilho naqueles olhos azuis que a fez se sentir vazia. Crua. – Pareço uma pessoa reabilitada para você, Zoe? – Hunter perguntou-lhe, mais perigoso do que nunca. Foi então que ela admitiu para si mesma que não queria que ele a procurasse para reabilitar sua imagem. Que tinha erguido a cabeça, visto Hunter na porta e desejado ardentemente que ele tivesse decidido não levar um “não” como resposta. Mas Hunter prometera que não faria isso. Ela se desapontara consigo mesma por querer que ele o fizesse mesmo assim. Desapontada com a triste verdade de que ela ainda era muito fraca. E o pior é que tinha certeza de que Hunter sabia disso. – Vou chamar Daniel. Ele cuidará da sua conta. – É claro que sim. Com o coração cantando de alegria, sem dúvida. – Se você tem problemas com isso – ela disse, firme –, há várias outras firmas de relações públicas na cidade que eu ficarei feliz em recomendar. Mas Hunter apenas sorriu. E Zoe teve de engolir essa, porque se ela fizesse a cena que queria fazer, ficaria muito exposta, e tinha certeza de que Hunter sabia disso. Assim, teve de levar isso consigo para casa, para seu apartamento, que sempre fora tão confortável e agora parecia vazio. Como se ele tivesse deixado buracos atrás de si quando ela o deixara. Em tudo. E então Daniel, que não sabia nada sobre Jason Treffen ou a maneira deliberada com que tinham deixado a mudança de imagem de Hunter atrelada para forçá-lo a ficar na berlinda, onde eles queriam que ficasse, entrou na sala e tratou Hunter como qualquer outro cliente. O que significava que agora Zoe o via em todos os lugares. Nos tabloides, que gritaram sobre seu novo romance com alguém no Central Park numa charrete puxada a cavalo, para em seguida se retratarem envergonhados dizendo que a nova mulher na vida Hunter Grant era sua irmãzinha, Nora. Nos jornais, que o mostravam em eventos de arte e de caridade, sorrindo e quase se escondendo das câmeras. Ele vinha fazendo cada coisa que Zoe tinha lhe dito para fazer, mas se recusava a deixar que isso acendesse nela algo como esperança. Hunter fazia isso porque ela era boa no seu trabalho, e o que Zoe sugerira estava funcionando. Só isso. Zoe disse a si mesma que não poderia ser nada além. Que ela não queria que fosse algo mais. – Pensei que você odiasse Hunter Grant – disse Zoe certo dia enquanto ela e Daniel examinavam alguns papéis, e ele não falou mal de Hunter nenhuma vez; nem mesmo algum comentário maldoso. – Contudo, parece que você está superando isso. – Acontece que ele não é tão ruim. – E Daniel sorriu. – Estou tão surpreso quanto você, mas eu meio que gosto do cara. Zoe disse a si mesma, quando Daniel saiu do escritório, que não tinha o direito de ver aquilo como uma traição pessoal. Daniel escolheu um programa cômico muito popular que focava nas notícias sobre a imagem nova em folha de Hunter, deixando-o ir ao show para permitir que fizessem troça dele. Não perdoavam nada, como era sua marca registrada. Hunter até participou das piadas. E então, em certo ponto ele sorriu como se estivesse encabulado e esfregou a mão na cabeça, dizendo quase timidamente que era na verdade uma honra para ele ver se conseguia ensinar aos seus alunos o amor pelo jogo e, se Deus quisesse, boas maneiras. – Quer dizer que você é do tipo que “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”? – perguntou o anfitrião. Hunter deu de ombros, e então soltou uma gargalhada. De si mesmo. – Acho que sou mais o tipo que diz “se você não puder ser um bom exemplo, então servirá como um aviso horrível”. E acho que deixei bem claro que está fora de questão ser um bom exemplo. O jeito como ele gargalhou, longa e profundamente, como um chuveiro de luz que a envolveu em luminosidade, ali, sentada sozinha no quarto, fez Zoe perceber que tomara a decisão certa ao abandoná-lo; por todas as razões que dera e por aquelas que não falara também. Mas isso a estava matando. Zoe disse a si mesma que já estava morta fazia muito tempo. Era hora de viver, não importava o quanto custasse. De parar de se esconder como se prometera fazer, sem se preocupar com as consequências. Fazer alguma coisa, porque achava que não poderia mais fingir que estava bem quando duvidava que um dia pudesse se sentir bem de novo, enquanto vivesse. Enquanto ele vivesse. ZOE NÃO se permitiu pensar muito depois de ter decidido o que faria. Era fácil descobrir a programação de Hunter através do calendário de Daniel, e mais fácil ainda passar pelos porteiros ao entrar na festa beneficente numa cavernosa galeria de arte no Soho. O difícil era caminhar até Hunter após tê-lo visto parado junto ao bar, num grupo de pessoas bem-vestidas, incluindo sua irmã e Zair, seu antigo cliente, o único dos seus clientes cujos acordos confidenciais tinham deixado seu advogado estonteado. Se conseguiu derrotar Jason Treffen no mesmo escritório onde ele a destruíra tantos anos antes, Zoe afirmou para si mesma olhando o grupo de pessoas, Hunter o mais brilhante entre eles, conseguiria fazer isso. Mas ele ergueu a cabeça e a viu. Seu olhar a queimou como se estivesse esperando por Zoe, e foram os passos mais longos e difíceis que ela já dera. – Zoe! – murmurou Zair com seu sotaque britânico que era tão sinistro e perigoso quanto ele, quando ela se aproximou. – Que prazer... Austin cumprimentou-a com um sorriso, os braços ao redor de uma garota que parecia familiar. Alex sorriu como se todos fossem amigos. Zoe pensou isso também, que eles eram amigos de Hunter, e ela era só um problema que deveria ser mantido longe disso. E dele. Mas ela não era capaz. Zoe não conseguia mais fazer isso. E embora soubesse o que aquilo a tornava, não iria parar. – Eu não sabia que você participaria dessa festa – disse Hunter, quando percebeu que ela não iria dizer nada para ele. E seu olhar azul e sábio quase a fez cair de joelhos. Zoe quase permitiu isso. – Conhece minha irmã? Nora, esta é Zoe Brook. Ela gerencia minhas relações públicas. Zoe sorriu, apertou a mão da bela e inocente irmã de Hunter, que não tinha a menor ideia de quem a cumprimentava, e teve vontade de morrer. – Posso falar com você? – perguntou a Hunter com uma urgência que não conseguia disfarçar. Hunter arqueou uma sobrancelha. – Aqui? Mas a dança mal começou, e não quero abandonar minha irmã nas mãos desses urubus. Ele a estava provocando, decidiu Zoe. Isso estava dilacerando-a por dentro, tornando tudo mais difícil do que imaginara que seria, e ele a estava provocando. – Deixe Nora comigo – disse Zair com uma galanteria meio sombria que teria chamado o interesse de Zoe se ela tivesse sido capaz de coisas assim no momento. – Nora é um ser humano perfeitamente capaz, obrigada – a própria Nora respondeu. Mas Zoe não conseguia tirar os olhos de Hunter, e ele apenas sorriu. E daí em diante tudo virou um borrão. Ele a guiou através do salão, desviandose de todas as pessoas que queriam fazêlo parar e trocar algumas palavras. Hunter sorria e gargalhava como se estivesse se divertindo muito. Até que a empurrou através de uma porta até uma sala menor, bloqueada do salão principal por telas presas contra a parede. E quando ele olhou para ela, Zoe percebeu que ele não estava feliz, nem relaxado. O azul de seus olhos a queimava. Seus lábios estavam apertados naquela maneira que Zoe lembrava muito bem, e olhava para ela como se as palavras que queria dizer-lhe quisessem pular de sua boca. Mas Hunter não disse nada, apenas esperou. – Parece que você tem passado muito tempo com sua irmã ultimamente – Zoe disse, em pânico, porque não sabia como agir. – Alguém comentou uma vez que ela é, de fato, bastante impressionante para alguém de vinte e quatro anos. – E ele continuou a não fazer nada além de olhar para ela. Hunter estava muito bem, parecendo ele mesmo. Vestia um elegante terno preto e exalava poder. E segurança. E o jeito como a olhava fazia o coração dela disparar. Hunter merecia tanto mais, e ela não tinha certeza de se importar com isso. – Você pagou a firma por nosso… pelos serviços de Daniel. – É por isso que você está aqui? Para discutir nossa conta? – Eu disse que era pro bono – Zoe afirmou, entredentes. – Eu pago minhas contas, Zoe. Sempre. Você pode entender isso como uma metáfora significativa se quiser. Ela pensou que Hunter falaria algo mais, mas ele meramente ficou parado, grande e severo. Esperando. Hunter enfiou as mãos nos bolsos da calça, e seus olhos azuis olharam direto para ela, e Zoe soube que tinha de fazer isso. Antes que se convencesse a não fazer nada. Antes de perder a coragem. Era o ato mais egoísta da sua vida, e Hunter a fitava como se soubesse. E ela compreendeu que se fosse pelo menos uma boa pessoa ou já tivesse querido ser, se realmente se importasse com Hunter, viraria as costas e iria embora. Que ter feito isso antes fora a atitude correta a tomar. Ela sabia. Mas não conseguia se mover. – Hunter... – sussurrou, trêmula como se estivesse morrendo de frio e assustada como nunca antes. – Acho que cometi um erro terrível. Ele não se abalou. Nem mesmo se inclinou. – Você acha ou sabe? E de que erro estamos falando, Zoe? Preciso de detalhes. ELA ESTREMECEU como se ele tivesse batido nela, e Hunter não queria nada além de ir até Zoe, puxá-la para perto, sentir sua pressão junto ao seu corpo, garantir a si mesmo que ela estava ali e era real. Que estava segura, e não tinha nada de ficar parada em frente a ele com todo aquele medo estampado em seu belo rosto, como se Hunter a apavorasse. Ele entendia, mas não podia fazer nada por Zoe. Não podia ajudá-la. Ela teria de fazer isso sozinha. – Isso não é fácil... Sua bela Zoe, tão corajosa, com pesadelos nos olhos. – Diga-me uma coisa que seja – Hunter sugeriu, como se não desse a menor importância. – Algo que importe e que seja um pouco fácil pelo menos. – Faz diferença? – ela perguntou com toda a vulnerabilidade aparecendo em sua voz. Mas ele não podia fazer nada. Não se quisesse tudo dela. E Hunter queria. Era por isso que tanto esperara. – Não tenho tempo para esse tipo de jogo, qualquer que seja, Zoe. – Não é um jogo. – Então pare de jogar. Eu disse que te amava, e mesmo assim você me abandonou. Não fique pescando para descobrir meus sentimentos. Diga o que você quer. Peça, Zoe, e talvez consiga o que deseja. Era como um eco daquela noite da rua, e o rosto dela ficou corado. De vergonha, calor ou arrependimento, Hunter não sabia o que, mas foi melhor do que a expressão horrível em seu rosto no dia em que o deixara. Melhor do que a maneira gelada como Zoe o fitava desde então. Melhor do que os olhos azul-acinzentados cheios de pesadelos. E ela estava parada ali na sua frente, presa em alguma emoção intensa. Assim estava melhor, não importava o que acontecesse depois. – Você merece o melhor – Zoe falou, suavemente e meio magoada. Nada parecida com nenhuma versão da Zoe que ele conhecia. – Sarah o amava o suficiente para abandoná-lo, e eu tentei fazer o mesmo, Hunter. Você pode se livrar disso, e deveria mesmo. Da mancha do que Jason fez com ela e comigo. O que nós fizemos para sobreviver… ou não. Hunter teve medo de falar e se trair, por isso esperou, observando-a. Seus olhos estavam nublados, e seu rosto, contraído. Zoe apertava as mãos em frente do corpo, como uma figura submissa de um livro de fantasia, e as mãos dele se fecharam em punhos, porque isso não era ela. Hunter não sabia que diabos era aquilo, o que tomava conta de Zoe e fazia com que agisse daquela maneira, mas não era a Zoe que ele conhecia. Não havia fogo. Não havia poder. Não havia Zoe. Ela engoliu em seco. – Sinto muito, Hunter, mas parece que não consigo ficar longe de você, mesmo sabendo que deveria. Embora eu saiba que seja a melhor coisa para você. – Então você veio aqui para o quê? – ele exigiu, mal reconhecendo a própria voz. Zoe franziu a testa como se pensasse que ele iria mordê-la, e não de uma maneira divertida. Como se Hunter tivesse presas e ela houvesse sido mordida antes. Essa reação o aborreceu. – Você disse que me faria implorar, Hunter. Esta sou eu implorando. – E Zoe caiu de joelhos, bem em frente a ele, graciosa e frágil, apesar do belo vestido que usava e colava-se a ela como uma sombra escura de verde, fazendo suas curvas se destacarem mais que o normal. Porém, tudo o que Hunter conseguia ver era sua cabeça baixa, sua rigidez nada natural, seu comportamento completamente diferente do normal. O que era aquilo? Isso o deixou ainda mais chateado. – Eu lhe devo pelo menos isso – ela falou baixinho, quase recatada. E de repente ele entendeu. – Você acha que gosto de santas? É isso? – perguntou, seco, e gostou quando sentiu que ela ficou tensa com o tom de sua voz. – Pensou que viria bancar a mártir para mim? Zoe ergueu o rosto, e ele visualizou uma centelha em seus olhos que reconheceu, e se sentiu como deveria ter sentido com o beijo de outra mulher. Sua Zoe. Sua, por baixo dessa atitude esquisita dela que agora ele entendia, mesmo que partisse seu coração. Hunter a queria de volta, inteira, não importava qual coração tivesse de ser partido para isso. – Não sei o que você quer dizer. – Zoe tornou a baixar a cabeça, e isso era péssimo. Hunter gostava de jogos de poder com mulheres que não fossem capachos. Com essa em particular, porque sabia que essa era ardente: a Zoe que ele conhecia não era dócil, nem servil. A Zoe que conhecia o desejava com a mesma ferocidade que ele a desejava. Essa atitude era provocada por coisas tenebrosas dentro da cabeça dela, e Hunter não queria nada com isso. – Eu odeio capachos, Zoe. Desculpe. Você pode rastejar por aí, se quiser. Quem sabe? Talvez isso me faça mudar de ideia. – Isso é sério. Estou falando sério. – Então, levante-se, sua idiota! – Hunter rosnou, e ela ergueu a cabeça rápido, a boca aberta de surpresa. – Você me ouviu. A cor voltou ao rosto dela, e Zoe se apoiou nos saltos dos sapatos, ergueu-se numa explosão controlada que era muito mais a sua atitude normal do que tudo que ela fizera até ali. Hunter lembrou-se da noite em que Zoe batera nele, e ele queria isso de volta. Ele a queria de volta. – É óbvio que cometi um erro muito maior vindo aqui do que o de deixar você – disse ela com firmeza, mas pelo menos esse era um tom que ele reconhecia nela. – Desculpe. – Ah, não! Você não vai se livrar com tanta facilidade. O que pensou que aconteceria aqui? Que eu ia gostar de vê-la se sacrificando por minha causa? Que isso é mesmo que remotamente o que quero de você? – Não tenho ideia do que você quer. – Você! – vociferou ele, e ficou feliz quando ela teve um leve sobressalto, quando conseguiu sentir a palavra quicando na parede e voltando até ele. – Quero você, não essa droga de rendição. Não acho que você esteja derrotada, Zoe. Não acho que esteja maculada ou algo assim. Você é que acha isso. Ela deu um leve gemido, como se tivesse sido ferida, mas Hunter continuou, e só se deu conta de que ia de encontro a Zoe quando ela pôs a mão em seu peito para detê-lo. Ele parou, mas ela não tirou a mão, e Hunter sentiu aquele toque; a palma queimando sobre a camisa como se fosse ferro incandescente, sentiu o toque até a ponta dos pés. – Seja a mulher que me desafiou a deixar uma vida inteira de autopiedade – disse ele com amor, fúria e necessidade misturados em sua voz, na maneira como olhou para ela, no autocontrole que teve de ter para não tocá-la, beijá-la, encontrá-la de novo mais diretamente do que através dessas palavras. Mas ele não podia. – Hunter... – Zoe clamou, mas ele a ignorou. – Seja minha igual, seja a mulher que sabe que se estiver danificada, então, meu Deus, eu também estou! Faça valer a pena sentir toda essa nojeira, Zoe. – Hunter podia sentir a ferocidade em seus próprios lábios, como sangue. – Eu quero você, não o que quer que seja isso que você esconde quando fica difícil. Você não é uma mártir, e eu não sou um herói. Vamos ser quem nós somos. A respiração dele estava pesada, como se estivesse correndo, e ela também. E ele não soube dizer quando o turbilhão que vira nos olhos dela, no seu rosto, se transformou em lágrimas. Hunter não conseguiu evitar limpar as lágrimas dela com o dedo, fazendo-a estremecer. – Eu quero tudo, Zoe. Dê-me isso, ou não me dê nada. Ele viu a luta dentro dela, a batalha, a escuridão e o medo, mas Zoe era tão corajosa... Tão profundamente corajosa que ele achou que poderia quebrar por dentro, e quando as mãos dela pegaram as suas, que envolviam seu rosto, algo dentro dele se acalmou. – Eu não sei como, Hunter. Não sei se algum dia terei tudo. Não sei como começar. – Isto é começar – afirmou ele. – É o que parece. Se fosse fácil, todo o mundo seria bem mais feliz. – Você acha que é possível? – perguntou ela, e ele soube que essa era uma pergunta séria, talvez a mais séria que ela podia fazer. Então ele a beijou, longa e docemente, uma promessa e um desejo. – Para nós? – perguntou ele quando se afastou. – Eu acho que é inevitável. – E se eu o desapontar? E se você acordar certa manhã e não puder mais viver com o que eu sou? – perguntou ela séria, apesar de se agarrar a ele. – E não me diga que isso não vai acontecer. Poderia. Deveria. – Zoe, nós matamos monstros. É isso o que fazemos. Mesmo que esses monstros sejam os nossos. Ela o observou pelo momento mais longo da vida de Hunter. O momento mais importante, e aí o rosto dela clareou, e ela sorriu. Foi a coisa mais linda que ele já vira. – Eu amo você, Hunter. Não pensava que poderia. Eu não pensei… – Eu sei. Mas não se preocupe. Sei muito bem como fazer você se acostumar comigo. Prepare-se, Zoe. Vai ser uma jornada longa e árdua. Pode levar anos. Aquele sorriso dela batia de longe aquele sorriso forçado e perigoso, nervoso, que Hunter amava mais que tudo, e que explodiu dentro dele, quente e sexy. – Posso provar isso em cinco segundos, se você trancar aquela porta. – Anos – ele repetiu. – Longos anos. E com pedidos que não envolvem martírio de tipo algum. E eu falei sério sobre o rastejar. – Que bom! Um desafio. Passe para três segundos. – Ela tomou-lhe a boca, ou ele a dela, e por um momento não havia nada além do fogo deles, aquele glorioso calor. Eles, finalmente. Então Zoe se afastou, dando uma última mordiscada no lábio inferior, a curva daquela boca enlouquecendo-o, e Zoe o olhou como se fosse um milagre. – Então? – Zoe perguntou, provocando-o, amando-o. – Você fecha aquela porta ou vou eu? ZOE NÃO conseguia dormir. Estava deitada na enorme cama de Hunter, com as luzes da cidade brilhando como se fossem a sua própria Capela Sistina. Ela se sentia até feliz, embora não se atrevesse a chamar de felicidade. O que Hunter conseguia fazer com ela usando suas mãos espertas, talentosas, deveria ser considerado fora da lei. Zoe não tinha muita certeza se importava, desde que ele continuasse a tocá-la. Não que tudo girasse ao redor de sexo. Havia o jeito com que ele a olhava como se realmente se importasse com ela, do jeito que Zoe tinha pensado que ele se importava naquela manhã na cozinha. Havia aquela semente de esperança dentro dela que ficava maior a cada dia e que a fazia sorrir mais abertamente, curti-lo, curtir isso. Que a fazia se importar menos com as coisas que ela achava não ter e se preocupar mais em como eles se completavam. Como se eles tivessem esperado um pelo outro durante todos aqueles anos negros. Como se o amanhecer tivesse chegado para os dois. Hunter se virou, puxando-a mais para perto, deitando sua cabeça no ombro e afastando se cabelo do rosto. – O que foi? – perguntou com a voz rouca, na escuridão. – Você ainda está vibrando, e sem querer parecer muito convencido, acho que nós dois sabemos que isso é impossível. Ela sorriu. – Não sei. Talvez você esteja falhando... Hunter soltou um longo suspiro como se estivesse sofrendo. – Certo. – disse ele como se estivessem discutindo por horas. – O que a deixará feliz? Quer pintar todas as paredes desta cobertura para que ela não pareça… como é que você disse? – Um abatedouro refinado? – perguntou preguiçosamente, sorrindo ao lembrar-se do olhar de ultraje dele quando ela dissera isso. E a resposta dele fora apoiar as mãos de Zoe na janela da sala de estar, e ele, quente e duro atrás dela, depois profundamente dentro dela. – Vou parar de lutar contra o inevitável – disse Hunter. – Só me prometa que não serão tons pastel. Ela girou para encará-lo. – Não é uma má ideia – afirmou, como se ele estivesse falando sério. – Você não está mais no purgatório, Hunter. Você não morreu dez anos atrás. Merece viver. O rosto dele estava assombreado pela escuridão, mas mesmo assim Zoe sentiu o impacto daquele olhar azul. Ela sentiu sua mão grande apertar seu ombro, depois voltar a acariciar preguiçosamente as suas costas. – Você também – disse ele, rouco. Zoe pensou em tudo o que ele dissera repetidas vezes durante aqueles dias lindos que ela mal conseguia acreditar tivessem sido verdadeiros. Que eles podiam trocar lembranças terríveis por novas e melhores fantasias. E tudo entrou nos eixos. Assim de repente. Talvez sempre tivesse sido inevitável. Talvez ela estivesse esperando por isso, por essa… felicidade, se era isso de fato. Ainda era novo, mas não parecia frágil. Zoe não achava que nenhuma palavra errada, ou momento, ou briga pudesse acabar com isso. Não achava que coisa alguma pudesse. Parecia certo. Hunter não a via como uma responsabilidade desagradável, como seus avós diziam. Zoe sabia que Hunter não se voltaria contra ela, nem a maltrataria como Jason Treffen fizera. Ele não provara isso quando ela se ajoelhara na frente dele e se negara a aceitar aquilo? Hunter não queria ser seu dono. Ele queria amá-la. E isto mudava tudo. Isto a libertava, de todas as formas que não compreendera que podia, quando tirara Jason Treffen da firma. Porque agora, o medo não a faria parar. Agora, sabia que podia contar com Hunter para ajudá-la. – Acho que tenho de fazer isso – Zoe disse de supetão, e sentiu Hunter ficar tenso sob ela. Colocou as mãos espalmadas sobre seu peito. – Não que alguém espere isso de mim, ou porque Alex acha que é uma boa ideia ter uma das testemunhas fazendo parte da entrevista. Mas porque tenho de fazer isso por mim. Porque eu quero. Hunter permanecia quieto, mas ela sabia que ele estava tão focado nela quanto quando dentro dela, quando tudo o que importava era o calor, o fogo, aquela dança linda que pertencia somente a eles. Mais ainda, talvez. – Você não precisa tomar parte nisso, Hunter. Vou entender se não quiser. – Zoe... – É provável que a coisa fique feia – continuou, obstinada, porque ainda queria protegê-lo. Ele começara um novo relacionamento com a família. Estava treinando aqueles meninos. Hunter era mesmo um bom homem agora, um novo homem, e Zoe ainda era um escândalo. Dos grandes, se Alex fizesse as coisas do seu jeito. – Eu vou ser chamada de vários nomes. Você também. As pessoas não gostam quando seus heróis são arrancados do pedestal, sobretudo quando quem o derruba é uma prostituta. E eu serei uma. – Por favor, cale a boca. Não vou falar sobre isso. E não vou a lugar algum. Já disse. – Ele segurou o queixo dela enquanto acariciava seus lábios, de forma possessiva e ao mesmo tempo confortadora. – Nunca deixarei de querer você, Zoe. Isto já está sacramentado. Depois de alguns segundos ele a soltou, e Zoe se permitiu respirar. – Em poucos meses, talvez três, eu vou propor – disse ele na quietude que os rodeava e ela podia ouvir seu sorriso no escuro. Tão claramente como uma luz. – Estou contando agora para que você possa ir se preparando. – Propor o quê? Escapadas sexuais? Nós já fazemos isso, não é? Hunter lhe deu um tapinha no traseiro, causando-lhe uma risada. – Casamento, Zoe. Acredito que você recusará umas três vezes. Medo, descrença, algum pensamento bobo de que eu não devo me amarrar a alguém como você. Vou oferecer um acordo pré-nupcial, o que irá enfurecê-la, e você aceitará minha proposta adorável fazendo algo insano, como me dar um soco, provavelmente em público. Mal posso esperar. – Idiota... – Zoe resmungou, embora sorrisse. Ela subiu no peito perfeitamente escultural dele e o beijou. E de novo, do jeito que ela planejava continuar fazendo pelo resto de suas vidas. – Já se passaram três meses? – Hunter indagou, quando se afastou um pouco. – Ainda não. Você não deveria dizer muitas coisas doidas esta noite, Hunter. Poderia arruinar tudo, me apavorar. Ele ergueu uma das mãos, enfiou-a em seu cabelo, e ela estremeceu, desejandoo tão desesperadamente como sempre. Mais ainda, porque a cada dia que passava tinha mais confiança nele. E quanto mais confiava nele, mais confiava em si mesma. – Então é melhor praticarmos – murmurou ele beijando-lhe os lábios, e ela logo estava acesa mais uma vez; faminta. – Assim estaremos prontos quando chegar a hora. ELES FORAM juntos. – Quer entrar sozinha? – perguntou Hunter, do lado de fora do escritório onde, Zoe sabia, Alex os aguardava. Onde deveria contar sua história em todos os seus detalhes sórdidos, e transformar-se num dos pregos do caixão de Jason Treffen. Ela sentiu o pânico voltando. Engoliu em seco, examinando a expressão de Hunter. – Não quero… – Eu juro por Deus – disse ele com impaciência, contrastando com a bondade em seus olhos azuis, tão gentis que ela sentiu um nó na garganta – que se me disser qualquer coisa sobre o que você acha que não quero ouvir… – Você não vai querer ouvir – falou, impetuosa. – Não, não vou querer. Porque amo você, Zoe, e vou me casar com você, não importa quantas vezes você entre em pânico por causa disso. E vou odiar cada segundo disso porque eu odeio o fato de que teve de vivenciar isso. Mas olhe para você. A mulher mais encantadora que já conheci. Se você pode sentar e contar sua história, se pode falar em rede nacional e acusar Jason na cara dele, então eu posso me sentar com você e ouvi-la. Posso dividir o fardo. – Sua linda boca se curvou. – Ou tentar. Eu gostaria de tentar. Zoe estava estupefata. Lágrimas quase escorriam-lhe pelo rosto, e ela nem se importava se elas caíssem. – Eu também amo você – ela sussurrou. O sorriso dele ficou maior, arrogante. Como se soubesse o tempo todo que iria terminar assim, que ele venceria. Mas talvez ela também tivesse de fazer isso. Os dois tinham de fazer. Talvez esse fosse o ponto central. Hunter arrumou uma mecha do cabelo dela para trás da orelha, e esperou. Zoe olhou para a porta de Alex e respirou fundo. Para marcar esse momento tão importante, sua participação como uma “garotas de Jason”, Zoe se vestira de branco. Jeans branco e um top vaporoso na cor creme. Casta e pura. Vira o sorriso de Hunter quando saíra do quarto de manhã, e viu que ele compreendera o simbolismo. Porque ela estava a ponto de contar a história mais difícil que conhecia para um homem que a usaria como arma na destruição do monstro que a torturara por mais de uma década, mas ainda sabia sobre relações públicas. Ela podia inverter qualquer coisa. Até mesmo isso. Sempre quisera se vingar de Jason Treffen, mas isso era melhor. Isso seria justiça. – Estou pronta – Zoe afirmou. Hunter ficou ao seu lado como se fosse um guarda-costas. O muro entre ela e o mundo, que não precisaria mais carregar dentro de si, porque ele o faria por ela. Hunter seria seu escudo, assim como Zoe seria o dele. Eles mereciam um futuro livre do passado. Livre de fantasmas. Livre. E só havia uma maneira de fazer funcionar. – Isso pode ficar meio doido – Zoe tornou a avisá-lo, pela última vez. Hunter apenas sorriu, e então pegou a mão dela, entrecruzando seus dedos. Como se eles fossem uma unidade, um pensamento. Um. – Vamos – disse ele do jeito que ela sabia que faria, como se estivesse desejando uma bela briga. E na verdade ela também se sentia assim. E Zoe abriu a porta. Mas eles passaram por ela juntos. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Crews, Caitlin C945q Quero que você me use [recurso eletrônico] / Caitlin Crews; tradução Leila Krommers. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Harlequin, 2014. recurso digital Tradução de: Scandalize me Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-398-1652-1 (recurso eletrônico) 1. Romance americano. I. Krommers, Leila. II. Título. 14-16490 CDD: 813 CDU: 821.134.3(81)-3 PUBLICADO MEDIANTE ACORDO COM HARLEQUIN BOOKS S.A. Todos os direitos reservados. Proibidos a reprodução, o armazenamento ou a transmissão, no todo ou em parte. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. Título original: SCANDALIZE ME Copyright © 2014 by Harlequin Books S.A. Originalmente publicado em 2014 por Harlequin Presents Trade Arte-final de capa: Isabelle Paiva Produção do arquivo ePub: Ranna Studio Editora HR Ltda. Rua Argentina, 171, 4º andar São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ — 20921380 Contato: [email protected] Capa Texto de capa Rosto Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Créditos