SOBRE A CONCEPÇÃO DA CRIATURA COMO SENDO NADA EM SI: APROXIMAÇÕES ENTRE AS IDÉIAS DE RUDOLFF OTTO E MESTRE ECKHART Adriana Andrade de Souza - Doutoranda em Ciências da religião - UFJF Orientador: Prof.ºDr. Faustino Teixeira Resumo: Este artigo é uma tentativa de pensar as aproximações que Otto – em sua obra “O Sagrado” – estabelece entre o sentimento do numinoso surgido perante o poder do indizível (majestas) – sentimento a que chamou “sentimento do estado de criatura”, com os fenômenos de pobreza e humildade na mística de Mestre Eckhart. Palavras chave: sagrado, criatura, irracional. Mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza... Guimarães Rosa. A obra de Rudolf Otto (1869-1937) intitulada: “O Sagrado” (1917) fala do elemento não-racional e sua relação com o racional na idéia de Deus. O que está em jogo nessa relação é a primazia do não racional sobre o racional. Primazia não no sentido de que o não racional é mais importante que o racional, mas no sentido de ser primeiro – princípio, começo. Poderíamos mesmo dizer que a questão chave desta obra é que o racional já é sempre um segundo momento e que assim o sendo não é capaz de esgotar a totalidade do Sagrado. Pois neste está sempre imbricada a relação destas duas dimensões (o não racional e o racional). Para Otto, o não racional é a essência do Sagrado, ou seja, aquilo que é e permanece sempre sendo o que é. Essência que só pode ser indicada dentro da própria experiência religiosa. Experiência que é movida e comovida por um estado de arrebatamento despertado por algo que é fora. A esse algo Otto chamou o Numen. Mas o que é propriamente este poder que arrebata? Diante dele todo discurso se cala, todo barulho e agitação se recolhem no mais profundo silêncio e repouso. No espaço aberto pelo Numen não cabe nenhum conceito, nenhuma definição. O que implica que toda tentativa de aprendê-lo racionalmente está fadada ao fracasso. Só se deixa acenar dentro e a partir da experiência. Ou seja: o Numen faz brotar um sentimento que lhe corresponde: o sentimento do Numinoso – sentimento cuja semente já estava lançada. Essa correlação está implicada em toda experiência religiosa. Poderíamos mesmo dizer que o Numen só se deixa e faz ver pelo sentimento do Numinoso. Há aqui uma pertença mutua, de modo que um não pode ser sem o outro. Perguntamos então: onde está o Numinoso? Otto responde: “Só se pode indicar através do tom e do conteúdo particular da reação do sentimento que provoca o seu aparecimento na consciência e que é necessário “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 SOUZA, Adriana Andrade -2- experimentar em nós próprios”.1 Diríamos então: o Numinoso só se deixa acenar no âmbito da experiência vivida: não é um conceito que diz, mas a própria vivência. O que implica dizer que buscar essa essência quer dizer passar por dentro – ou se se quer: estar num interesse (inter = meio, esse = ser), estar no meio do ser. Estar no meio é estar todo dentro da experiência, sendo que essa experiência é, para Otto, também uma possibilidade de cada um. Essa esfera do vivido – o não racional – só num segundo momento assume-se em sua racionalidade. Para evidenciar essa dimensão do começo, do não racional – que é a própria essência da religião, Otto usa a Mística como base empírica. Ele mesmo diz: (...) sabemos perfeitamente que todas as <<extravagâncias místicas>> não tem relação alguma com a <<razão>>. Seja como for, esta crítica é um estímulo salutar; incita-nos a observar que a religião não se esgota nos seus enunciados racionais e a esclarecer a relação entre os seus elementos, de tal modo que claramente ganha consistência de si própria.2 Pois bem, assumiremos, aqui, a tarefa de pensar as aproximações que Otto estabelece nessa sua obra entre um sentimento numinoso que brota em reação ao poder do indizível (majestas) – sentimento a que chamou “sentimento do estado de criatura” – com os fenômenos de pobreza e humildade na mística de Mestre Eckhart. Para Otto, a grandeza desse poder nos arrebata e faz brotar o sentimento do nada que nós mesmos somos. Não é um simples poder, mas é – como diz Otto – um poder “como é aquele”. Um poder perante o qual tudo não passa de pó e cinza. É o que deixa ver a frase de Abraão (Gênesis 18, 27): “Tive a ousadia de falar contigo, eu que não passo de pó e cinza” (citado por Otto nesta obra). Pó e cinza traduz a pobreza da criatura que diante do seu criador se recolhe no seu próprio nada. E o que é o pó e a cinza? É o apoio frágil que a cada vez pode ser levado pelo sopro vazio de um vento. É o firmar-se no nada. E a criatura não é mais que pó e cinzas... Não é mais que nada. Nada feito, nada acabado: a criatura carrega o fado de uma falta, de uma imperfeição, de um não. Ou seja: a criatura é sempre parcial, o que significa que a cada nascer do sol precisa reconquistar seu mundo, pois este lhe é dado sempre num a cada vez. Para Eckhart, a criatura precisa sempre de novo participar no ser de Deus (do princípio) para garantir seu ser, sendo que nessa participação é preciso que ela mesma a cada vez deixe de ser. Pois bem, é desde essa compreensão que a aproximação aqui proposta entre o que Otto chama o sentimento de ser 1 2 OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, p. 19. OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, p. 20 “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 SOBRE A CONCEPÇÃO DA CRIATURA COMO SENDO NADA EM SI: APROXIMAÇÕES ENTRE AS IDÉIAS DE RUDOLFF OTTO E MESTRE ECKHART -3- criatura e o que Eckhart tem por pobreza e humildade ganha sua tonalidade. E é desde essa perspectiva que nos empenhamos nessa tarefa. Mas o que Eckhart, propriamente, tem por pobreza e humildade? No Sermão 52 Eckhart começa com a frase de São Mateus: “Bem-aventurados os podres em espírito, pois deles é o reino dos céus”. Para o autor a pobreza de que fala a palavra da sabedoria traduz uma experiência interior radical, o que implica desconsiderar aqui o conceito desgastado e corriqueiro de uma pobreza exterior. Perguntamos então: o que é um homem pobre? É o Mestre que nos responde: “... é um homem pobre quem nada quer e nada sabe e nada tem”.3 O que se deixa ver aqui é que em Mestre Eckhart a busca pela pobreza remete sempre a um nada, a um vazio. Pois que privar-se na vida de todo querer, saber e ter é “bater de frente”, “topar-se” com o próprio vazio. E estar vazio, para Eckhart, é quando se desprende de tudo que é outro. Em outra formulação: o estar vazio implica o não estar remetido a outro, o não estar na referência a um outro como um ser para isso ou para aquilo. Remissibilidade, referência são palavras que trazem no seu bojo a sina traiçoeira da criatura de ser sempre um ser do limite – um ser que se constitui desde a relação com o outro. O limite se dá sempre numa referência. Assim, por exemplo: o quintal da minha casa se determina como tal na referência à rua, ao quintal do vizinho, ou seja, a um outro que não ele mesmo. O muro ou a cerca é o limite, o diferencial que dimensiona o que é meu e o que é de outrem. É o que me permite dizer que esse é o meu quintal e o é porque não é a rua e nem o quintal do vizinho. Pois bem, o estar dentro dessa teia de remissões (teia no sentido de que cada ponto remete ao outro), ou seja, o estar condicionado por outro permite uma relação de intimidade e segurança com o mundo. Mundo no qual nós realmente nos sentimos em casa. E é justamente no seio dessa familiaridade com mundo – familiaridade que é antes uma cristalização do ser como isto ou aquilo - que se perde, se esquece o sentido mais radical, do ser criatura. E qual é esse sentido? É o sentido nenhum. É ser tão somente nada (o vazio) - nada substancial. Ou se se quer: é ser pobre. E ser pobre é estar no ser de Deus (na dimensão do princípio) como pura dinâmica de perder e conquistar, de chegar e de partir. Poderíamos mesmo dizer: ser pobre é estar como um estrangeiro em sua própria casa. E porque assim o é, o ser de Deus se traduz para a criatura como uma conquista constante. Ou seja: a cada vez precisa participar no ser de Deus para garantir seu ser, pois este é a cada vez o estranho. Pois que só assim a criatura pode concretizar-se em sua finitude. Finitude que 3 ECKHART, Maître. Sobre a pobreza – sermão n. 52. In. O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 190. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 SOUZA, Adriana Andrade -4- traz no seu seio a possibilidade da morte, pois todo ser pressupõe um deixar de ser. É preciso dizer que dentro do Catolicismo a experiência da eucaristia nos parece traduzir essa condição de finitude da existência humana. Pois o católico, o crente precisa sempre de novo participar, comemorar do princípio, do começo que é Deus. Precisa se unir a Deus em comunhão (comum-união). Comunhão que traduz sempre uma transformação: o pão e o vinho (transformação da uva e do trigo) se fazem corpo e sangue – algo deixa-se morrer para deixar nascer. A comunhão – poderíamos mesmo dizer – implica um nascer de novo, um nascer desde si mesmo como outro. Nesse sentido, o homem pobre é aquele que sempre e a cada vez precisa perder para ganhar, precisa deixar de ser para poder ser, precisa morrer para nascer. Morrer para todas as certezas, morrer para todo o pronto e acabado e deixar nascer o verdadeiro sentido da existência, que é colocar-se desde o movimento no qual a vida se concretiza. É o que nos parece dizer aquela passagem do Evangelho: “Aquele que, em nome do Reino, terá deixado tudo sobre a terra terá cem vezes mais.” Não sem alguma precipitação, diremos: aquele que deixar todas as determinações que nos seduz e nos induz a tomar a existência como algo substancial, ou melhor, aquele que em sua própria casa (na familiaridade das determinações) for tomado pela mais profunda estranheza terá “cem vezes mais”, quer dizer: terá a pura possibilidade. Possibilidade que é o próprio nada; não um simples nada, mas um nada que é tudo, que é cem vezes mais. Então é preciso perguntar: o que é isso, um nada que é tudo (que é cem vezes mais) no qual radica essa pobreza? E ainda: em que medida essa pobreza diz também o sentido mais profundo da humildade? Pois bem, o Sermão Jesus entra! deixa ver essa questão com expressividade. Nele Eckhart faz um comentário de uma passagem de São Lucas (10, 38) a qual traduz assim: Nosso Senhor Jesus Cristo entrou num pequeno povoado e foi recebido por uma virgem que era mulher4 Uma virgem que era mulher: eis como Eckhart traduz o ser Marta. E o que é ser Virgem? O Mestre nos responde: “(...) designa alguém que é liberto de todas as imagens, assim como quando ainda não era.”5. O que eqüivale dizer: ser virgem é estar recolhido no que nos há de mais íntimo: lá onde nenhuma imagem pode fixar-se. Por isso, Marta – enquanto virgem – 4 SCHÜRMANN, Reiner. Maître Eckhart ou la joie errante. Sermons Allemands Traduits et Commentés par Reiner Schürmann. Paris: Éditions Planète, 1972, p. 16. 5 Op. Cit, p. 17. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 SOBRE A CONCEPÇÃO DA CRIATURA COMO SENDO NADA EM SI: APROXIMAÇÕES ENTRE AS IDÉIAS DE RUDOLFF OTTO E MESTRE ECKHART -5- representa o mais íntimo da alma, ao que Eckhart chamou o fundo da alma. Fundo sem fundo, pois que nele todo apoio se esvanece, todo o chão - ou seja, todas as certezas que nos detém numa relação de proximidade com o mundo - se converte no mais profundo abismo, na mais profunda estranheza. Fundo que, segundo o Mestre, diz o ser quando ainda não era. E ser quando ainda não era é ser só o puro possível no qual está radicada a unidade de Deus. Unidade que, nesse sentido, só pode ser experienciada quando ousamos dar um passo atras – passo que é já um saltar-se da base para o abismo, para o nada. Nada que, por sua vez, trás em si a possibilidade de tudo que é. Nada desde onde o mundo se concretiza em seu ser. Esse passo atrás é o voltar-se do homem para baixo, para o pó, a cinza desde onde veio e para onde retornará – é fazer o percurso ao revés. O hino de Tersteegen, citado por Otto na obra aqui em questão, diz a emoção dessa experiência: Deus está presente, Que tudo se cale em nós E se curve perante Ele É isso a humildade: o curvar-se do homem para a terra – terra que recolhe e espera a vida. Terra que é mãe, que é mulher: que faz nascer, desabrochar a vida. Terra que não só recebe, mas que na sua generosidade de mãe, nos presenteia com seus muitos frutos. Frutos que brotam desde o seu íntimo acolhedor – que resguarda e fecunda. Nesse sentido, a humildade em Marta é sua proximidade com a terra. Marta é aquela que está recolhida na unidade de Deus – no ainda não concreto, não efetivo, não determinado. Marta é, assim, virgem para receber Deus e, assim o sendo, o recolhe para o seu interior. Mas qual a nobreza desse permanecer em recolhimento? Para Eckhart o permanecer recolhido nesse interior – que diz a virgindade de Marta – será sempre insuficiente, por mais radical que seja. Pois é preciso que o ser virgem deixe ser o ser mulher, deixe ser a sua feminidade: Marta é virgem e é também mulher. Dela (do fundo da alma) brotará muitos frutos – cem vezes mais. Assim o Mestre diz: Se o homem permanecer sempre virgem, nenhum fruto jamais brotaria dele. Se ele deve tornar-se fecundo, é necessário que ele seja mulher. <<Mulher>>: eis a palavra que se possa dirigir a alma, e é bem mais nobre que virgem. Que o homem receba Deus nele, isto é bom, e por esta recepção ele é virgem. Mais que Deus torne-se fecundo nele, isto é melhor; porque a fecundidade de um dom é só a gratuidade pelo dom (...)6 E mais: (...) Uma virgem que é mulher, livre e desimpedida de todo apego, é em todo tempo próxima de Deus e dela mesma. Ela carrega muitos frutos, e que são grandes, nem mais nem menos que o é Deus ele mesmo. É esta virgem que é 6 Op. Cit, p.18. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 SOUZA, Adriana Andrade -6- mulher que produz este fruto e este nascimento, e ela carrega frutos, cem ou mil vezes ao dia, sim, sem nome, dando nascimento e tornando-se fecunda a partir do fundo mais nobre: em verdade, a partir do mesmo fundo que o Pai gera seu Verbo eterno, daí, fecunda, ela gera de acordo.7 Marta, sendo virgem, está pronta para receber Deus. Mas segundo o Mestre é preciso que ela seja também mulher, de modo que deste mesmo Deus torne-se prenhe, cheia. Mulher para conceber, fecundar de graça o que lhe fora dado de graça. E eis que Deus irá nascer em cada movimento seu, em cada fazer-se do seu cotidiano - nascer como o outro, como filho, como tempo – o bendito fruto que é tempo. Donde podemos dizer que esse nascimento que se dá no que o Mestre chama fundo da alma – fundo que se traduz no ser Marta, é o limiar desde onde se dá a união e a privação, a conquista e a perda de Deus. Pois que todo nascer de Deus como filho, como tempo acaba por afastar a alma deste mesmo Deus, uma vez que esta vem a fixar-se novamente nas determinações, nas imagens. Por isso Marta – o fundo da alma – ao deixar Deus nascer deste mesmo Deus se priva, se nega; e o faz para poder novamente conquistá-lo – conquistá-lo na concretude crassa e sem brilho do nosso dia a dia. Isso explica o seu parentesco com a terra. Terra, cujo ciclo, já é sempre o abandonar-se ao jogo de afirmação e negação, de nascimento e morte. A terra resguarda a semente em seu íntimo e desde então a faz nascer como outra – como árvore. Árvore que é então a negação da semente – a semente deixa de ser semente para se concretizar como árvore e flor, ou seja, toda afirmação, todo nascimento se efetua desde a negação, desde a morte. A semente trás em si a possibilidade da sua própria morte. A árvore é a possibilidade realizada, possibilidade que enquanto tal continua reverberando na superfície concreta dessa realização. Pois a flor trás no seu seio a possibilidade do fruto, ou seja, a sua negação. O fruto é o não ser mais flor e o ainda não ser semente, ou seja, o fruto está fadado à negar-se na semente. Temos então que o movimento da terra implica sempre e a cada vez um retorno ao princípio (à semente). Princípio que continua vigorando no silêncio do mundo. Pois bem, o concretizar-se de Deus no tempo – que implica na sua perda - é desde onde se abre a possibilidade de para ele de novo retornar. Retorno que consiste em abandonar-se ao vazio de Deus – vazio que nos fala, nos apela na calada do nosso cotidiano. Marta precisa a cada novo dia arrumar a casa. (na continuação desta passagem do evangelho Marta é aquela que estando ocupada com os afazeres domésticos deixa passar quase despercebida a presença de Jesus). Arrumar para desarrumar, fazer por fazer – só pelo inútil do fazer. Fazer sem prever, fazer sem porquê. Fazer desde o nada no qual está radicado a dinâmica da vida. Arrumar quer dizer por em ordem – dispor cada coisa no seu ser, no seu limite. O que significa 7 Op. Cit, p.20. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 SOBRE A CONCEPÇÃO DA CRIATURA COMO SENDO NADA EM SI: APROXIMAÇÕES ENTRE AS IDÉIAS DE RUDOLFF OTTO E MESTRE ECKHART -7- que desarrumar é a desordem, a perda de todos os limites, perda da clareza, das certezas – perda do próprio. O próprio faz-se estranho. Segundo Eckhart, o homem poderá contemplar Deus na medida em que for capaz de desapropriar-se de tudo aquilo que lhe é próprio, inclusive de si mesmo. Poderíamos mesmo dizer: o homem que deseja chegar a Deus tem que esquecer - esquecer para lembrar. Esquecer do mundo e de si mesmo. Esquecer até mesmo de Deus encarnado no filho, pois a plenitude de todo ser tem morada onde todas as criaturas são esquecidas. Assim, poderíamos dizer que Marta, ao se ocupar com os serviços da casa, e ao manter-se afastada de Jesus, esquece do próprio Deus feito filho. E assim o faz para lembrar de Deus na experiência do abandono à inutilidade das ações cotidianas, na qual esse mesmo Deus manifesta-se resguardando-se. Esquecer para Lembrar. Para lembrar que o nada ser da nossa existência que implica propriamente num deixar ser o nada, é estar radicalmente aberto para receber, é estar livre para a dinâmica da vida, dinâmica da unidade que é Deus. Deixar ser o nada que é a nossa própria existência é tornar-se radicalmente externo ao mundo estando no mundo. Para Eckhart, Marta está na mais radical experiência da existência – está no mundo, mas o mundo não está nela. Por isso está continuamente num movimento de origem: precisa perder para ganhar. Precisa perder Deus para ganhá-lo. Marta é aquela para a qual o familiar é sempre estranho. Por isso Marta – o fundo da alma – vive na similaridade de Deus. Deus é aquele que a cada vez precisa ser conquistado, experienciado como se fosse a primeira vez, pois a cada vez é o estranho - a cada vez nasce como outro de si mesmo - numa dinâmica de garantia da própria vida. Vida que assim se descobre como o eterno fazer-se do mesmo. Mesmo que deve ser aprendido e surpreendido igualmente em todas as coisas. Pois bem, a isso que Eckhart chamou fundo da alma é, segundo Otto, onde repousam os elementos irracionais do Sagrado. E nas palavras de Otto: “Os elementos irracionais da nossa categoria do Sagrado conduzem-nos a algo de mais profundo ainda do que a <<razão pura>> tomada no seu sentido habitual, ao que o misticismo chamou, com razão, <<o fundo da alma>>...” 8. E é desde esse fundo – no qual radica o sentimento do Numinoso – que provém o elemento racional. Nesse sentido, também para Otto, o interior (não racional) deve eclodir para o exterior (racional) - o ser virgem deve deixar ser o ser mulher. Pois o Sagrado se constitui desde essa reciprocidade. Mas ao se exteriorizar, ao se racionalizar – ou poderíamos mesmo dizer - ao se definir neste ou naquele conceito, esse interior (o não racional) se retrai. Isso significa que o racional jamais esgota a totalidade do Sagrado. A divindade compreendida como Onipotência, Onisciência, Espírito ou como quer que possa ser dita racionalmente já é 8 OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, p. 150 “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 SOUZA, Adriana Andrade -8- sempre um manifestar-se desse fundo (desse não racional que é, para Otto, a essência do Sagrado), mas um manifestar-se ao modo do recolhimento. Diremos então: que é desde o racional que o não racional se mostra e se esconde, transborda-se e economiza-se. A grande questão é que Otto tende à – poderíamos dizer – elevar o elemento racional. Pois, para ele, quanto mais racional a religião mais excelente ela é. Ele mesmo diz: O Cristianismo comporta noções; são de uma clareza e de uma precisão superiores e formam um conjunto completo. É uma das características, não a única, sem dúvida alguma, nem mesmo a principal, mas uma das essenciais que marcam a superioridade do cristianismo relativamente a outros graus e outras formas da religião.9 A mística, por sua vez, num sentido próprio, volta-se mais sobre o elemento irracional da religião. Como vimos acima, a experiência de Deus, em Mestre Eckhart, é a experiência da perda de toda clareza e medida. É o lançar-se na escuridão sem limites, no abismo da desmedida. Para ele, o estar na presença de Deus já é sempre um estar no mundo desde o abandono, o desprendimento. O abandono de todo nome, de todo isto ou aquilo. Abandono de todo discurso fundamentado em razões. A mística de Eckhart fundamenta-se no afastamento de toda conceituação empenhada pelo homem, pois que esta se dá sempre no âmbito estagnado e disperso do seu ser criatura – seu ser parcial. Concluindo as nossas aproximações entre o sentimento do numinoso a que Otto nomeia sentimento do estado de criatura e os fenômenos de pobreza e humildade na mística de Mestre Eckhart, diremos que ambos falam de um momento originário; de um momento que é primeiro. Primeiro no sentido de ser o princípio. E conceber a criatura como sendo nada é já admitir a presença ausente de um ser criador. Talvez o grande diferencial seja que em Mestre Eckhart a experiência do nada, do desprendimento é a experiência da proximidade absoluta com Deus – com a unidade que é Deus. Aí tudo é um: o disperso se faz unidade, o barulho repouso, o criado se faz incriado. Esta experiência se dá num salto, num instante. Este salto, por sua vez, implica um sair do criado para o criado, ou seja, a criatura sai de si para si, pois está sempre no limite de si mesma, está sempre no limite do seu ser criatura. Desde o limite de si mesma a criatura se faz outra, nasce desde si mesma como outra, ou seja, se descobre numa nova possibilidade. A criatura, neste sentido, está constantemente se fazendo no ser de Deus (o princípio que é a possibilidade absoluta), num constante deixar de ser para poder ser, que diz a sua própria finitude. Para Eckhart a experiência da pobreza e humildade é a experiência da conquista do caminho de volta a esse princípio, ao fundo original – o puro 9 Op. Cit, p. 10. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 SOBRE A CONCEPÇÃO DA CRIATURA COMO SENDO NADA EM SI: APROXIMAÇÕES ENTRE AS IDÉIAS DE RUDOLFF OTTO E MESTRE ECKHART -9- possível. Caminho que se abre sempre como um raio – com a duração de um piscar de olhos. Pois a criatura já é sempre criatura: já é sempre determinação, limite, isto ou aquilo e, portanto, o princípio já sempre se perdeu na superfície tosca e sem brilho do nosso dia a dia. O que significa que este caminho de volta precisa sempre de novo ser conquistado desde a experiência da nossa finitude. Já em Otto, por sua vez, esse sentimento do nada nos é despertado por algo que nos é fora. Não se fala de uma unidade com o criador. O sentimento de criatura, do nada é um efeito do terror provocado por um objeto fora do eu – o Numen. A grandeza desse poder nos desperta para o nada que nós somos: somos finitos, parciais, limitados. O infinito, a totalidade é algo que me é fora – o totalmente outro. Mas tanto Eckhart quanto Otto, quando apontam em direção ao fundo original, estão se remetendo a uma instância que já é sempre pressuposta, que é sempre anterior a toda conceituação e familiaridade com o mundo. E sobre esse momento originário deixemos que nos fale uma poesia de Manyo-shuu, à guisa de finalização deste trabalho. No silêncio claro, O luar. Abre-se a flor, Apenas branca, À noite serena Do céu. Na espera de ti, Meu Senhor. Referências Bibliográficas: ECKHART, Maître. O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 1991. HARADA, Hermógenes. Do Sermão 52 de Eckhart. In: Scintilla-Revista de Filosofia e Mística Medieval. FFSB: Curitiba, 2004 LIBERA, Alain de. Indroduction a la Mystique Rhenane – d’Albert le Grand à Maître Eckhart. Paris: O.E.I.L, 1984 OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70. SCHÜRMANN, Reiner. Maître Eckhart ou la joie errante. Sermons Allemands Traduits et Commentés par Reiner Schürmann. Paris: Éditions Planète, 1972. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007